Joel Antônio Ferreira**, Ivoni Richter Reimer***
OS DIREITOS HUMANOS
E A JUSTIÇA NA BÍBLIA*
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* Recebido em: 28.09.2018. Aprovado em: 14.10.2018.
** Pós-Doutorado (Universidade de Georgetown em Washington D.C.). Doutor em Ciências da Religião pela Umesp. Mestre em Teologia (Pontifizia Universita Gregoriana). Professor Titular na PUC Goiás. E-mail: joelantonioferreira@hotmail.com
*** Pós-Doutorado em Ciências Humanas (UFSC). Doutora em Filosofia/Teologia/Ciências da Religião (Universität Kassel). Docente na PUC Goiás. E-mail: ivonirr@gmail.com
A P R E S E N T A Ç Ã O D O D O S S I Ê
N
a história bíblica, desde o começo, o ‘grito pela vida’ foi forte. Uma das frases mais subversivas da Bíblia é a que diz que Deus escutou o “clamor do povo” (Êx 3,7-10) que era oprimido no Egito. O povo gritou, porque tinha fé e sofria afli-ções. Após a saída do Egito, na caminhada pelo deserto, serão os dez mandamen-tos (Êx 20) que apontarão os ‘novos direimandamen-tos’ de um povo que ia se descobrindo e se formando. A Lei (Torah) era a orientação para se chegar a Deus e para se chegar a ser seu povo. Este foi surgindo a partir dos membros marginalizados e escravos, provindos de várias tribos (hapirû).Foi nas experiências tribais que, lentamente, aquela gente foi experimentando a neces-sidade da unidade, da defesa da vida de todos, da coesão partilhada e do senti-do da liberdade, bem como da responsabilidade de cuidar da vida liberta. Era vital tudo isso nas montanhas (local das resistências e sobrevivências), porque os pequenos reinados (filisteus) e o grande Egito dominavam toda a região. Ali se efetivou, conforme as narrativas de Juízes e Samuel, a experiência igualita-rista das tribos, baseada nos direitos humanos de todos (Js 24). Não é de pouco significado a participação de mulheres, desde os inícios, das experiências de opressão e libertação, bem como de organização do povo nas novas etapas de sua vida (Sifrá e Puá, Míriam, Raabe, Sara, Hagar, Tamar, Rute e Naomi): direito e justiça não são estabelecidos à revelia nem contra as mulheres. Sua
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participação, o respeito às suas manifestações, a luta contra suas opressões fazem parte dos passos na construção de justiça e paz.
É interessante apontar a passagem do sistema tribalista dos hebreus para o sistema tributário monárquico (REIMER, 2017, p. 128-133). O modo de viver dos he-breus se modificou, radicalmente. De experiências quiçás mais igualitaristas (camponesas) e sem a exploração do trabalho, começaram a experienciar a organização do “tributo” (1 Rs 4-5) monárquico. Em nível profético, este novo regime econômico foi criticado, duramente, pelos camponeses explorados: os levitas do campo e os filhos dos profetas não aceitavam a monarquia (Jz 8-9; 1 Sm 8).
O profeta, na história hebraico/israelita, deve ser compreendido na sua interação pro-funda com o povo simples e mais pobre (REIMER, 2017; BACHMANN, 2016; GERSTENBERGER, 2016). Quatro dados são importantes nesta com-preensão: a) O profeta é alguém identificado com a Palavra de Deus e que se envolve com o pobre e a defesa dos seus direitos humanos (Mq 3,8); b) ele está, quase sempre, junto a um grupo que resiste à violência contra os direitos humanos (p.ex., Elias e Eliseu, 1Rs 17-2Rs 13); c) ele critica, arduamente, as relAções corruptas na sociedade (Is 10,1-4); d) no nível espiritual/místico, o profeta quer sempre anunciar a conversão (shuv).
O tributo foi a força econômica que moveu os monarcas, principalmente, com Salomão, levando a experiência tribalista à decadência. Tanto no reino norte como no sul surgiram os conflitos entre a economia da cidade e a antiga tradi-ção da “herança” (nahalah: vinha de Nabot, 1Rs 21), bem como a resistência rural.
Entre as diversas correntes do Antigo Testamento, que enfocam a questão dos Direitos Humanos e a defesa da Justiça, é necessário apontar, rapidamente, o profetis-mo no tempo da profetis-monarquia.
À medida que o sistema tributário foi se impondo, a resistência, também, foi se am-pliando. Surgiram os profetas no norte e no sul. A luta pela justiça e a defesa dos direitos humanos tornaram-se projetos comunitários e sociais, e foram adentrando também a legislação (REIMER, 2017, p. 141-148). Partindo da defesa dos marginalizados camponeses e dos direitos dos pobres, os profetas criticaram as estruturas da sociedade que se movia pelos tributos. Por exem-plo, Elias e Miquéias criticaram a propriedade e defenderam a herança
(naha-lah): a posse coletiva da terra para a produção e a reprodução da vida pelos camponeses das casas dos pais (beth abôt). A denúncia profética compreendia que o princípio da solidariedade (regime da casa) foi destruído pelas classes altas da cidade.
Miquéias foi quem apontou a contradição do campo com a cidade. Para ele, o novo regime econômico estava destruindo a liberdade camponesa e criando a
es-poliação sistêmica (Mq 2,1-2). Ele defendeu a “casa dos pais” (bet abôt) e a liberdade para a vida do povo. Não se amedrontou em dizer que o Estado pre-cisava ser destruído (Mq 3,10-12). Ele constatou o surgimento do ‘proletaria-do’ rural, visto que o povo estava sendo espoliado (Mq 3,3). Por três vezes, ele usou a palavra “justiça” (dzedakáh) para denunciar a insegurança, a injustiça e a destruição de Jerusalém.
O poder político e o Estado foram criticados por alguns profetas, porque as injustiças não ameaçavam apenas as relações sociais, mas também as dimensões am-bientais e cósmicas (PEREIRA, 2016; KESSLER, 2016): Oséias, no norte, denunciou a realeza da Samaria. Esta foi uma desgraça que mutilou o povo pobre. Estava havendo uma ‘decadência’ (Os 7) da corte, e Oséias denunciou as ‘alianças’ com os estrangeiros como sendo uma idolatria. O reino cairia (Os 8) na desgraça. Sem o “conhecimento” (hesed) de Yahweh, a nação cairia num abismo (Os 4,1-4) social e politico. No nível ideológico, ele denunciou que a nação estava dominada pelo “espírito da prostituição” (Os 1-3) ou da idola-tria. A vida do povo se destruía, porque os poderosos se aliavam, vergonhosa-mente, com os assírios. O Estado se apropriou, ideologicavergonhosa-mente, das práticas cultuais da outra nação para manipular os camponeses. Os sacerdotes faziam do santuário um lugar de propina e opressão. Até Baal tornou-se instrumento de idolatria estatal (Os 6,6), acabando com a vida da partilha das tribos. Com isso, o sistema do tributo foi se aguçando. Para Oséias, somente a aliança (berît) traria o direito, a justiça, a solidariedade, a compaixão e a fidelidade (Os 2,16-24).
Amós, ao profetizar no santuário de Betel falou da colheita do rei (Am 7,1). Ele mos-trou que o sistema tributário seduziu as outras instituições, particularmente, o clero do santuário real. As classes dominantes oprimiam os pobres. Ele foi duro com o rei, sua corte, seu país, afirmando que todos seriam aniquilados (KESSLER, 2016). Ele criticou, sempre, a ideologia do poder, a partir do “di-reito e da justiça” (Am 3,1-2; 5,10-14), na defesa dos pobres.
Isaías, no sul, conhecia bem a corte de Jerusalém. Ele condenou a politica a partir do direito dos pobres (Is 10,1-4). Uma classe dominante ocupou o poder (Is 5,8-21), oprimiu e espoliou. Não havia justiça (Is 5,1-7). Ele percebeu que o reino norte (Israel) estava para cair nas mãos do imperialismo assírio. Porém, exigia que o sul (Judá) fosse fiel à justiça e mantivesse a linha de Davi, e, para isso, escreveu o seu pensamento político: o “livro de Emanuel” (Is 9,1-6). Isaías esperava o restabelecimento da justiça pelo descendente de Davi (Is 32). Ele apresentou, também, a sua ‘utopia política’: uma era de paz (shalom), onde a defesa dos pobres seria o verdadeiro julgamento. Aí, o Espírito de Yahweh iria assegurar um mundo sem conflitos e o “conhecimento” (hesed) de Deus enche-ria todo o país. Também defendeu o “direito e a justiça” (Is 11,1-7; Is 28-32).
Jeremias, o levita do campo, era da família marginalizada de Abiatar. Ele cri-ticou todas as instituições e defendeu os direitos humanos das pessoas empo-brecidas. Para ele, conhecer (hesed) a Deus era concreto: significava praticar a justiça em favor dos pobres (Jr 22,16). Ele denunciou até os sábios (Jr 18,18). A denúncia das idolatrias devia levar à “conversão” (shûv) (Jr 2-4), que era a prática da “justiça” (dzedakah).
Os profetas partiram da defesa dos direitos humanos dos pobres. Eles foram represen-tativamente a ‘resistência’ permanente para buscar a liberdade e a identidade do povo. Denunciando a autolatria dos governantes, lutaram para refazer a vida do povo livre, no direito, na justiça e na solidariedade.
Os resultados da ação dos reis foram os cativeiros da Assíria e da Babilônia. E assim, a história do ‘povo de Deus’, sentiu o amargor de retornar ao sistema antigo do cativeiro do Egito.
Após os exílios, não existiu mais independência política para os hebreus/israelitas. O profetismo diminuiu, sensivelmente. Houve tentativas de reconstrução do povo com Zorobabel, com Esdras e com Neemias. Nenhum conseguiu acabar com a pobreza. Ao contrário, Esdras fulminou os pobres, as mulheres, pessoas estrangeiras e as criancinhas. Preocupou-se com uma categoria mais abstrata, ‘povo’, agora não mais hebreu, mas judeu. Criou leis duríssimas, ideologizan-do a raça judaica como povo escolhiideologizan-do e nação santa e a pureza ideologizan-do sangue (Es 9-10). Porém, nesse período, a defesa dos direitos humanos (pão, família, ter-ra, encontro entre estrangeiros e israelitas) aconteceu na literatura alternativa: Rute, Cantares, Jonas.
Houve um grande tempo de silêncio profético, a partir de 400 a.C. A invasão helenís-tica, de Alexandre até Antíoco IV (167-164 a.C), marcou esse tempo e vários povos da região com uma política agressiva, provocando a reação e revolução dos judeus liderados pelos irmãos macabeus. As ambigüidades de dominação e da produção literária, também religiosa (RIOS, 2017), também evidencia-ram-se nesse período; entre tantas coisas positivas (uma certo nível de inde-pendência), surgiram, ao mesmo tempo, as ideologias nacionalistas que que-riam reduzir Deus aos limites humanos. Era o pensamento dos novos grupos: saduceus, essênios, fariseus, zelotas.
O final desse período é marcado com a gradativa e poderosa ocupação romana. Nesse contexto, em termos de literatura sagrada, é narrado o evento Jesus de Nazaré, por meio dos evangelhos, das cartas, dos atos de apóstolos(as) e de apocalip-ses, canônicos e apócrifos. Trata-se de movimentos de resistência, esperança e transformação que, a partir do Judaísmo, repercutem de forma crítica para dentro e para fora do sistema religioso judaico. Jesus apresentou o seu proje-to baseado em Isaías (Lc 4,18-19; Is 61,1-2). Este projeproje-to foi enviado a João Batista (Mt 11,5-6), fundamentado em Isaías para apresentar e argumentar a
opção pelas pessoas empobrecidas (Is 29,18-19; 35,5-6). Este projeto foi cla-reado, ampliado, radicalizado no Sermão da Montanha (Mt 5,21.27.31.38.43). Revelou-se como maior que os profetas anteriores (Lc 10,23-24) e Abraão (Jo 8,52-58).
Jesus viveu em tempos e contextos marcados por várias formas de conflitos:
Em nível externo: no mundo dominado por Roma, o modo de produção era escra-vagista. Com isso, a terra e o povo de Jesus eram diretamente afetados. O procurador romano Pilatos e o rei vassalo Herodes representavam Roma e seus interesses políticos, econômicos e ideológicos. Nesse contexto, os seus contatos com Jesus foram tétricos e fatais. Membros da classe alta eram co-optados pelos romanos na exploração do povo (Lc 19,2; 20,47; Jo 11,47-48;), muitos ricos desprezavam os pobres (Lc 15,16; 16,20-21), e pessoas pobres empobreciam e adoeciam cada vez mais (Mc 12,41-44; Lc 8,43; Mt 20,1-16). Como o macro sistema era injusto (Lc 22,25), isso provocava desemprego, empobrecimento, fome, muita doença e endividamento crescentes (Mt 6,12; 18,24.28-34; 20,3.6; Lc 16,5). Com isso, havia e aumentava a tensão social (Mc 15,6; Mt 24,23-24), bem como a repressão governamental, como a de Pilatos (Lc 13,1). As maiores tensões estão exemplarmente demonstradas nos evangelhos por meio das polêmicas em torno dos tributos (Mc 12,13-17; Mt 22,15-22; Lc 20,20-6) e da realidade de prisão, tortura e morte de quem não se submetia ao sistema de dominação (Mc 14-15; Mt 26-27; Lc 22-23; Jo 18-19; At 10,39; 1Co 1,18-31).
Em nível interno, ou seja, nas relações sociais, culturais e religiosas, nas quais emergiu e se desenvolveu o movimento de Jesus e das primeiras comunidades cris-tãs, entendemos que se tratou de uma profunda e intensa busca e práxis de renovação da religião judaica, também aí desencadeando conflitos, no caso, internos. Exímio conhecedor da TANAK – Bíblia Hebraica, das tradições e das realidades do seu povo, Jesus tornou-se líder carismático, profético, sa-piencial, terapêutico, social, espiritual, com intervenções socioeducativas de longa duração significativas em termos econômicos, socioculturais, políticos e ideológicos (WENGST, 1981; HORSLEY, 2004; RICHTER REIMER, 2006; SCHOTTROFF, 2008; STEGEMANN, 2012; FERREIRA, 2012). Como tal, questionava a sua ‘religião oficial’, que era controlada pelo Templo e o Siné-drio (Mt 23,4.23-32; Mt 21,13), e, como tal, muitas vezes aliada ao sistema econômico de Jerusalém e de Roma. Abstraindo da voz profética, o sistema religioso torna-se um mecanismo de opressão também a quem dele faz parte... Jesus e seu movimento, bem como outros movimentos de renovação intraju-daica e de protestos contra o império romano, teve algumas características, que assim destacamos:
Ao anunciar o Reino (Mc 1,15), ele se fez gente igual a todos os seres humanos que tomam a justiça de Deus como referencial (Fl 2,5-11). Foi obediente ao Pai (Jo 12,45) e o revelou profeticamente (Jo 5,19). Acolhendo e convivendo com os marginalizados (Mc 1,40-45, Mt 5-7, Lc 15,1-2, Jo 6,1-15), denunciou as injustiças e desmascarou a ideologia e a práxis dos poderosos. No seguimento, considerou todos seus discípulos e discípulas não como ‘senhores(as)’, mas como criancinhas (Mc 10, 13-16; Lc 18,15-17) e como pessoas que se põem a serviço: a diaconia é característica central de quem segue a Jesus, como base de uma comunidade viva (Jo 13,1-16). Esta diaconia tem como fundamento e objetivo a justiça do Reino de Deus e, como exemplo, a própria práxis dia-conal de Jesus (Mc 9,33-37; 10,35-45), em atitudes críticas e reconstrutoras da dignidade da vida: Não como os que vos governam e sobre vós exercem autoridade e violência...!
Jesus proclamou o Reino de Deus como anúncio da justiça indistintamente a todas as pessoas que sofrem (Mc 1,29-34; Mt 3,15; 5,6.10.20), convocando-as si-multaneamente à práxis dessa justiça, para que a paz seja ‘como uma fonte a jorrar’... Este Reino de Deus coloca-se em defesa dos direitos humanos das pessoas que são lesadas, em qualquer situação e condição de sua existência (Gl 3,26-28; Rm 10,12; 1Co 12,13; Mt 25,34-36). Na paradigmática parábola do ‘bom samaritano’ (Lc 10,25-37), o centro da atenção e dos cuidados solidá-rios, de defesa e proteção está no personagem agredido, assaltado, largado... O agressor não recebe destaque narrativo; não é o foco, nem de punição, me-didas preventivas ou paliativas. Isto, no mínimo, abre perspectivas de reflexão e análise críticas em várias áreas de conhecimento e atuação acerca do sujeito de direitos humanos.
Após a ressurreição do Jesus crucificado, e tendo mulheres, especialmente Maria Ma-dalena, como protagonistas testemunhais e apostólicas, começa a se reorga-nizar o movimento de Jesus, ‘voltando para a Galiléia’, para novos inícios e perspectivas (Mc 16; Mt 28; Lc 24; Jo 20) (RICHTER REIMER, 2013). Várias experiências foram feitas, mas nem todos os percalços da jornada primeira, da Galiléia a Jerusalém, foram transpostos ou superados. Ao lado de comu-nidades e práxis religiosa de partilha, celebração, fé e compromisso social de solidariedade e de reconhecimento pleno da participação de todos e todas, também se perpetuaram experiências de opressão e submissão de mulheres e outras minorias qualificadas. Tratava-se de tensões como ânsia pelo poder contra a vida de amor (Jo 13,23-26; 21), tendências para o autoritarismo (Lc 22,24-27), desejo de ser ‘o maior’ (Mc 10,42-45), disputas e concorrências nas lideranças da ekklesía (Gl 2,1-14) e várias formas de enriquecimento, tam-bém ilícito (Lc 12,13-21; 16,19; 19,8). Estas lutas de poder tomam forma de injustiça de gênero, quando se nega às mulheres o direito da participação
(At 1,21-22; 1Tim 2,12) e delas se exige submissão e silêncio (Cl 3,18; 1Tim 2,11), interditando-lhes o direito à autonomia, a ser “imagem e semelhança de Deus” (Gn 1,26-27; 1Co 11,7-8; 1Tim 2,13-14). Essas relações de poder tomam forma de injustiça de classe, quando se exige de pessoas empobrecidas a realização de trabalhos sem a digna remuneração, o que atinge nível desu-manizado em se tratando de pessoas escravas (Ef 6,5-8; 1Pe 2,18-25), com o agravante do argumento e da legitimação teológicos (RICHTER REIMER; SOUZA; FERREIRA, 2018).
O desafio nem sempre está fora ou para além do texto. Assim, ao invés de continuar insistindo nessas relações de dependência e subordinação, poder-se-á ativar a força que está contida nesses mesmos textos, que, contudo, maiormente foram silenciados na história da interpretação: que os homens amem e respeitem as mulheres e que os senhores tratem pessoas subordinadas com justiça e eqüi-dade (Ef 5,25.28; 6,9; Cl 3,19; 4,1; 1Pe 3,10). Com isto, relações outras, mais justas e dignas, poderão ser construídas, sem violência, ódio ou rancor e amar-gor.
É neste espírito que o Dossiê Temático, aqui apresentado, foi proposto e construído, com o tema sempre desafiador e sempre atual: Bíblia, Justiça e Direitos Hu-manos, sob a coordenação do prof. Dr. Joel Antônio Ferreira e da profa. Dra. Ivoni Richter Reimer. Várias contribuições foram submetidas à revista Cami-nhos, e as que foram aprovadas em processo de avaliação por pares constam nessa sequência:
O prof. Dr. Luiz Alexandre Solano Rossi (PUC-PR), em seu artigo “A Justiça como Desejo de Deus: Leituras no Profeta Jeremias”, retoma e desenvolve a característica da denúncia e do anúncio proféticos. Especificamente em Jeremias, a busca por justiça marca a sua própria vocação, e a sua defesa tem por centro as pessoas mais vulneráveis na sociedade. Seguindo por vertente literária da formulação jurídica na Bíblia Hebraica, o prof. Dr. Matthias Grenzer (PUC-SP) e o mestrando Kleber Barreto de Jesus (PUC-SP), elaboraram o artigo “A Proibição de Maldizer o Chefe do Povo (Ex 22,27b)”. Conceitos e investigações semânticas orientaram essa pesquisa em torno da função de líderes e da promoção da justiça no antigo Israel, bem como os seus questionamentos. Continuando a temática da proibição, mas em outras relações, o prof. Dr. Luiz José Dietrich (PUC-PR) e o prof. Dr. Vicente Artuso (PUC PR) apresentam o artigo “Entre Imagens e Idolatria: Resistência, Ambigüidades e Violências”. Nele, elaboram a dinâmica histórica da resistência à idolatria por parte de população camponesa contra a religião urbana, que a explorava, e a sua apropriação perversa por meio de Ezequias e Josias, em suas reformas, que a tornam instrumento legitimador de concentração de riqueza e poder. A luta por justiça, portanto, perpassa também os conflitos religiosos.
Diferente no gênero literário e na perspectiva da abordagem, mas tendo igualmente a luta por justiça como fundamento e alvo, o artigo “Remissão e Sentimento: a História de Rute e Boaz à Luz da Sociologia dos Afetos”, do prof. Me. James Washington Alves dos Santos (IFAL/UFSCar) e da profa. Dra. Maria Chaves Jardim (UFSCar), trata das relações no livro de Rute pelo viés da afetividade. Desta maneira, a lei mosaica, que aborda o cuidado com os pobres e o direito à propriedade, é entrelaçada narrativa e interpretativamente por questões eco-nômicas, políticas e socioculturais.
O artigo do prof. Dr. Ágabo Borges de Sousa (UEFS), intitulado “O Livro de Daniel: um Texto Apocalíptico do Antigo Testamento”, esboça a história de canoni-zação desse livro, destacando algumas de suas características para afirmá-lo como literatura apocalíptica. Argumenta distinções em relação a outros textos proféticos, com bases históricas e contextuais, e desvela elementos conflitivos, na base do texto, oriundos de movimentos de resistência ao domínio helenísti-co. Oriundo deste mesmo período, outro texto bíblico ilumina as experiências sofridas do povo oprimido, interpretado pelo prof. Dr. Antonio Carlos Frizzo (Faculdade Católica de São José dos Campos; ITESP), no artigo “A Astúcia do Pobre no Conflito com o Rico: o Ensino de Sirácida 13”. Em sua perspectiva, trata-se de texto profético com novos contornos, de cunho sapiencial, elabo-rado para animar esperança em meio a profundas experiências de injustiça e opressão.
Passando para o período da dominação romana, o prof. Dr. Joel Antônio Ferreira (PUC Goiás) elabora alguns referenciais teóricos para a compreensão de textos bíbli-cos, a partir do modelo conflitual das relações, e interpreta 1Co 12,14-27 como exercício. Situação vital e lugar social são elementos imprescindíveis para ler e compreender os textos, no caso, com base na imagem do ‘corpo’ como elemento simbólico e articulador para construção e vivência da justiça, em liberdade e igualitarismo. Adentrando mais profundamente ainda os mecanismos de poder do Império Romano a partir da escrita do apóstolo Paulo, a profa. Dra. Clau-dia Janssen (Kirchliche Hochschule Wuppertal-Bethel), em seu artigo em língua alemã, intitulado “Sexualität und Macht: eine Lektüre von 1 Kor 6,12-20 im Kontext des Imperium Romanum” (“Sexualidade e Poder: uma leitura de 1Co 6,12-20 no Contexto do Império Romano”), aborda a relação entre poder e se-xualidade. Destaque é dado à exploração de mulheres prostituídas como forma de manutenção da dominação romana nas esferas do cotidiano e da intimidade. A visão teológica do “corpo de Cristo” contrapõe experiências libertadoras co-munitárias às estruturas de dominação romana e pode, assim, contribuir para reflexões e ações em prol da justiça, também de gênero. Ainda no contexto da literatura cristã paulina, o prof. Dr. Boris Agustín Nef Ulloa (PUC-SP) e a mes-tranda Adriana Barbosa Guimarães (PUC-SP) oferecem uma abordagem
exegé-tico-comunicativa de 2Co 5,14a. Com seu artigo “A Relação entre a Expressão
Agápe Toû Christoû e o Verbo Synécho: uma Abordagem Comunicativa de 2 Coríntios 5,14a”, destacam perspectivas cristológicas e pneumatológicas nessa escrita paulina em meio a conflitos vividos na comunidade cristã e as reconstru-ções possíveis e necessárias a partir da experiência do amor de Cristo.
Os problemas enfrentados por Paulo e comunidades cristãs com as quais ele interagia con-tinuaram existindo em tempos posteriores, quando os evangelhos foram escritos. Neles, as memórias da Boa Nova Jesus de Nazaré registram simultaneamente experiências dos tempos das comunidades e dos tempos de Jesus. No tempo da escrita dos evangelhos, as estruturas do Judaísmo não mais existiam como no tempo de Jesus, porque ocorreu, em 66-70, a Guerra que destruiu as mesmas: a cidade santa, o templo, os grupos e a maioria do povo. Assim, a memória é re-troprojetada para décadas anteriores, a fim de alimentar perseverante esperança e resistência pacífica. Desta forma, o prof. Dr. Ildo Perondi (PUC-PR) aborda em artigo intitulado Jesus de Nazaré e as Separações de seu Tempo, o tempo de Je-sus, lembrando das assimetrias sociais que Jesus enfrentou e denunciou. Com base em Mc 7,9, afirma que ele desmascara a hipocria de quem preza mais as tradições do que a vida digna, garantida pelos mandamentos de Deus. A práxis de Jesus estava caracterizada pelo serviço-diaconia que revelava o rosto de Deus e iluminava caminhos para a construção de justiça.
Finalizando o dossiê temático, o prof. Dr. Sidney Moraei Sanches (FAJE), com seu artigo “Epistemologia do Testemunho no Evangelho de Marcos”, faz ecoar para dentro de contextos violentos, antigos e atuais, a dinâmica força do testemunho, presente no evangelho de Marcos. Fazendo uso da epistemologia, enfatiza as duas dimensões centrais do testemunho, especificamente a individual e a social. Com base na perícope de Mc 5,1-20, verifica essas dimensões e as evidencia em sua abordagem: individual e socialmente, o geraseno foi paradigmático no testemunho da libertação que Jesus nele operou, libertando-o da possessão da ‘Legião’. O evangelho Marcos cumpre igualmente função individual e social, na medida em que registra a práxis de Jesus, o testemunho do geraseno e a acolhida deste testemunho pela comunidade. Por meio da memória performativa e celebrada torna-se possível, ainda hoje, participar do evento fundante por meio do testemunho revisitado.
Finalizamos a apresentação deste dossiê com a afirmação que a reconstrução da dig-nidade do geraseno possesso por meio da libertação causada por Jesus é pa-radigmática para reflexões e ações que tenham a justiça como devir central dos Direitos Humanos. Ela igualmente é animadora, no sentido de reconstruir esperança e solidariedade, adesão e crítica social. A transformação necessária perpassa todas as dimensões da existência, individual e social, material e espi-ritual, em todos os níveis de relação.
Que os estudos e as abordagens aqui realizadas possam alentar esperança com refle-xão crítico-construtiva, também no que se refere à nossa própria práxis. Neste sentido, desejamos a você, leitora e leitor, uma leitura profícua, agradável e sugestiva para as várias maneiras de proatividade possível.
Que a justiça corra como um rio! Que qualquer tipo de armas seja transformado em instrumento de trabalho que ajude a produzir bons frutos, salários justos, satisfação e prazer na alegria de viver! (Com base em Amós 5 e 1Co 13).
Boa leitura e bom proveito!
Referências
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FERREIRA, Joel Antônio. Jesus na Origem do Cristianismo: os vários grupos que iniciaram o cristianismo. Goiânia: Ed.d a PUC Goiás, 2012.
GERSTENBERGER, Erhard S. A Palavra Divina nos Doze Profetas e no Saltério: algumas ob-servações. Caminhos, Goiânia, v. 14, n. 1, p. 69-81, 2016. Disponível em: <http://seer.pucgoias. edu.br/index.php/caminhos/article/view/4825/2692>.
HORSLEY, Richard A. Jesus e o Império: o reino de Deus e a nova desordem mundial. Tradu-ção de Euclides L. Calloni. São Paulo: Paulus, 2004.
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PEREIRA, Nancy Cardoso. Onde estiver o seu Tesouro ali também o seu Coração: mineração, tecnologia e economia em Jó 28. Caminhos, Goiânia, v. 14, n. 1, p. 96-110, 2016. Disponível em: <http://seer.pucgoias.edu.br/index.php/caminhos/article/view/4828/2694>.
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