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Decifrando as Sombras nas Memórias: reflexões feministas sobre a questão social da violência contra as mulheres

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Academic year: 2021

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THIAGO FERNANDO SANT’ANNA

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Resumo: o objetivo deste artigo é analisar, à luz das teorizações advindas dos

Estudos Feministas e de Gênero, o fenômeno das práticas de violência contra as mulheres a partir das memórias narradas e registradas pelo vídeo-documentário “Memórias de Sombras”.

Palavras-chave: mulheres, violência, feminismo, gênero, questão social DECIFRANDO AS SOMBRAS

NAS MEMÓRIAS: REFLEXÕES FEMINISTAS SOBRE A QUESTÃO SOCIAL

DA VIOLÊNCIA CONTRA AS MULHERES

E

m memórias de sombras, vídeo-documentário da estação filmes, o cinegrafista, diretor e roteirista Douglas Pinheiro, destacou algu-mas memórias em narrativas de mulheres que foram vítialgu-mas de violência dos homens. A partir deste vídeo documentário, é nosso objetivo analisar práticas de violência contra as mulheres, ao res-saltar, enquanto uma questão social, o caráter socialmente construído do gênero e do corpo nas relações sociais desiguais nestes casos de abuso e agressão. A partir disso, instiga-nos perguntar: em que condições as representações sociais sobre o feminino e sobre o cor-po feminino presidem as práticas de violência contra as mulheres a partir das narrativas de mulheres que foram vítimas de violência? Assunto relevante, o problema da violência contra as mulheres tem sido, nos tempos atuais, uma questão social incontornável. Isso porque esta forma de abuso faz parte do “conjunto das expressões das desigualdades da sociedade capitalista madura” (IAMAMOTO,

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2008, p. 27). Sob essa ótica, a experiência de violência sofrida por mulheres revela uma das “múltiplas formas de pressão social, de invenção e de re-invenção da vida construídas no cotidiano, pois é no presente é que estão sendo recriadas formas novas de viver, que apontam um futuro que está sendo germinado” (IAMAMOTO, 2008, p. 28). Preocupam-nos não somente a qualidade das ações adotadas pelo Estado e pela sociedade em geral no sentido de con-ter tais práticas, mas também a construção da legitimidade social que a violência contra as mulheres tem ganhado em nossa socieda-de. Ou seja, as práticas de violência contra as mulheres têm sido, nas relações cotidianas patriarcais e misóginas, normalizadas e to-madas, em alguns casos, como “naturais”.

Várias vezes nos deparamos com enunciados que expressam as inúmeras possibilidades de acesso violento dos homens sobre os corpos das mulheres. Quem nunca trouxe à baila na imaginação a representa-ção de um homem das cavernas puxando a mulher pelo cabelo quando fantasiamos o mais antigo desenho da relação heterossexu-al? Nos dias hoje, esta imagem encontra-se sutilmente re-apresen-tada pela sua inversão como a imagem da mulher puxando o homem pela gravata. Outras vezes vemos reiterar a frase de que a prostitui-ção é a profissão mais antiga do mundo, o que traduzo por signifi-car que os homens sempre acessaram, violentamente, os corpos das mulheres. De costume, as pessoas nos dizem que em “briga de marido e mulher, ninguém mete a colher!”. E, deste modo, caso alguém soubesse que sua vizinha estivesse sendo espancada pelo marido teria que se eximir de chamar a polícia para não interferir na ordem sagrada, social e “harmônica” da vida conjugal.

Enunciados como estes, convergem para uma legitimidade e naturaliza-ção social em torno da prática de violência dos homens contra as mulheres. Por naturalização entendemos o processo em que artefa-tos, produartefa-tos, práticas e representações social e culturalmente construídas são tomadas como naturais e normais. Tal processo dá-se mediante a encoberta do processo de construção destas prá-ticas culturais, isto é, pela reiteração inquestionável de tais práti-cas no cotidiano da vida social. Neste práti-caso, a violência contra as mulheres, prática socialmente construída e violentamente tomada como “legítima” e “natural” em alguns casos, é capaz de reforçar discursos e práticas envolvidas neste conflito social.

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Como exemplo desta percepção, lembro que me chamou a atenção a frase descrita em um adesivo com destino a ser colado em vidros de automóveis ou casas, à venda em uma mercearia próximo da cidade de Araguari, que dizia: “A Polícia adverte: em caso de estu-pro, relaxe e goze”. O destinatário da mensagem está explícito: as mulheres. Agressivamente, a frase devassa a vida social das relações entre homens e mulheres, atravessa o corpo e alcança a consciência das mulheres. Ali, as assujeitam e as obrigam a aceitar a prática de violência que os homens cometem contra elas.

Esse processo dá-se mediante a produção de representações sociais das mulheres, isto é, “uma forma de conhecimento, socialmente ela-borada e partilhada, com um objetivo prático, e que contribui para a construção de uma realidade comum a um conjunto social” (JODELET, 2001, p. 22); e internalização destas representações por meio do processo de assujeitamento, tomado aqui, na acepção de Tânia Navarro-Swain (2000, p. 54) como, “resposta individual à interpelação do social que cria as identidades e a identificação a um grupo, definindo sua inserção no espaço societal”. Nesse sen-tido, os enunciados acima referidos, em circulação, estimulam a absorção das imagens em torno da mulher vítima de violência pe-las próprias mulheres. Em resumo, trata-se da temível pressão do mundo social sobre as mulheres para que elas absorvam e tomem tais representações como sendo auto-representações delas, como se fossem representações naturais e normais no dia-a-dia delas. Mas que social é este que produz, faz circular e absorver imagens? Como esse social produz tais representações norteadoras das práti-cas de violência contra as mulheres?

UMA QUESTÃO SOCIAL DE GÊNERO: O SUJEITO ENTRE A LIBERDADE E O DETERMINISMO

Para que possamos interpretar cenas narrativas de práticas de violência contra as mulheres na sociedade goiana, a partir das memórias relatadas no vídeo “Memórias de Sombras”, retomemos aqui a questão que, de longa data, instiga os cientistas sociais ocidentais: estaria o sujeito livre e consciente para produzir suas ações ou seria o sujeito produzido pelos diversos determinismos sociais?

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Sabe-, GoiâniaSabe-, v. 7Sabe-, n. 2Sabe-, p. 225-244Sabe-, jul./dez. 2009 228228228228228

mos que o sujeito é um produto da sociedade, mas também, ao atuar, exerce práticas em um espaço de liberdade e de transforma-ção da sociedade. O Sujeito não é plenamente determinado e nem totalmente livre para fazer o que queira. Ele vive entre “o que ele faz” e “o que fazem dele”. Nesse sentido, torna-se fundamental que problematizemos a noção de “social”, nesse processo de entrosamento com o sujeito. Para tal, o social nos aparece enquan-to uma questão na medida em que se enquan-torna um problema para as Ciências Sociais Aplicadas e para os seus objetos e conhecimentos construídos no interior da investigação científica.

Várias teorias procuraram interpretar o social como lugar de produção de diferenças e desigualdades, mas também como lócus de circu-lação, mobilização e transformação de diversos elementos que fo-ram interpretados de maneiras diferentes, de acordo com cada teoria. Para o marxismo, esse social que instiga o sujeito seria composto de ideologias e conflitos de classes, de condições materiais, o eco-nômico e o social, que determinasse o sujeito (LÖWY, 2007). Para as teorias funcionalistas e estruturalistas, o social seria um conjun-to de papéis, funções e relações sociais, de nível macro e micro estrutural, compostos da divisão de trabalho estruturada, de um sistema de partes interligadas (GIDDENS, 2007). Para as teorias do imaginário, como a de Castoriadis (2000), o social seria um emaranhado de imaginários, o sócio-cultural e as representações culturais. A psicologia social compreende o social como dotado de representações sociais, ou seja, do saber construído no senso co-mum (JODELET, 2001). Pensadores do Paradigma da Complexi-dade e da Diferença como Morin, Deleuze e Derrida apreenderam esse social como provido das complexidades das relações sociais e da pluralidade do social. As teorias da linguagem e a Lingüística tomam o social como um sistema de signos conhecido como lin-guagem.1 Teóricos inscritos nos pós-modernismos como Michel

Foucault pensam o social como oriundo de relações de poder e discursos.2 Os Estudos Feministas e de Gênero destacam as

repre-sentações e relações de gênero, e as tecnologias de gênero, que buscaremos explicitar melhor na seqüência do texto. Em suma, trata-se de uma rica e complexa diversidade de abordagens que não cabem aqui as esmiuçarmos.

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Feministas e de Gênero, a relação entre homens e mulheres para que possamos construir uma reflexão sobre a prática de violência contra as mulheres. Como o Social produz/atua sobre homens e mulheres e, este mesmo social transformado por homens e mulhe-res, produz também diferenças e desigualdades de gênero? Como as Representações Sociais de Gênero atuam na produção de cor-pos, de comportamentos e de relações sociais? São em torno destas indagações que pautaremos nossas análises das imagens da violên-cia contra as mulheres, tratadas nas memórias do vídeo “Memóri-as de Sombr“Memóri-as”.

OS ESTUDOS FEMINISTAS E DE GÊNERO: PERSPECTIVAS TEÓRICO-METODOLÓGICAS CONTEMPORÂNEAS Para que possamos enveredar pela análise das representações que

presi-dem as práticas de violência contra as mulheres é fundamental explicitarmos o arcabouço teórico construído no interior dos Es-tudos Feministas e de Gênero com fins de esclarecer nossos pontos de vista de análise. Vale ressaltar que vamos apresentá-lo desprovi-do de uma linearidade e desprovi-dos conceitos de evolução, pois muitas dessas teorias coexistem e se conflitam entre elas. A diferenciação entre as teorias feministas, logo abaixo, atende, portanto, a um quesito didático e não a uma ordem cronológica.

As primeiras abordagens são positivistas, funcionalistas e liberais, e são anteriores a elaboração do conceito de gênero. Conhecidas por se-rem estudos sobre as mulheres, oriundos da inserção das feminis-tas na Universidade, quando ao longo dos anos 1960 e 1970, elas reivindicaram as mulheres como sujeito e objeto da Ciência. Estas teorias, reunidas no chamado Feminismo Liberal, propunham uma reforma do Sistema Patriarcal para que as mulheres pudessem con-quistar espaços nas diversas áreas sociais que antes estavam restri-tos a elas.3

Tais estudos se mostraram importantes por terem dado visibilidade às mulheres, ao denunciar a situação de opressão em que muitas viviam, bem como contribuíram para descrever a vida social das mulheres, em-bora sem incursões pela análise. Isto é, mantiveram-se no campo da descrição, aquém de interpretação. Outra possibilidade desses

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dos foi a localização de dados empíricos e a identificação da realida-de social passível realida-de inúmeras possibilidarealida-des realida-de pesquisa.

Na seqüência a este movimento voltado para incluir as mulheres no cen-tro das pesquisas em ciências sociais e humanas e, em consonância com as mudanças paradigmáticas, tanto teóricas quanto societais, ao longo dos anos 1960 e 1970, outros esforços foram inspirados para a busca da compreensão do processo de produção, sustenta-ção e modificasustenta-ção das identidades e relações hierarquizadas de gê-nero em nossas sociedades. Mesmo que, posteriormente, tanto os conceitos de gênero quanto o de identidade fossem profundamen-te abalados, não há como negar que encontraram, em deprofundamen-termina- determina-do momento determina-do debate, um espaço importante e privilegiadetermina-do para o aprofundamento das análises. 4

Tais esforços se manifestaram, sobretudo, na tentativa de desvincular a noção de natureza à de experiência sócio-cultural de gênero. En-quanto o sexo se referia ao campo da anatomia e da fisiologia, o conceito de gênero relacionava à de cultura e sociedade. Gênero passou a ser pensado como um construto social, histórico, cultu-ral. Segundo Soihet (1997, p. 279):

Gênero tem sido, desde a década de 1970, o termo usado para teorizar a questão da diferença sexual. [...] O gênero se torna, inclusive, uma maneira de indicar as ‘construções sociais’ – a criação inteiramente social das idéias sobre os papéis próprios aos homens e às mulheres. O ‘gênero’ sublinha também o aspecto relacional entre as mulheres e os homens, ou seja, que nenhuma compreensão de qualquer um dos dois pode existir através de um estudo que os considere totalmente em separado.

Podemos assim considerar que a nossa sociedade elabora imagens e repre-sentações sociais sobre os gêneros, tomados como verdadeiros, en-quanto corpos sexuados, e eficientes no direcionamento dos corpos, dos comportamentos e das relações sociais. Tais produtos incorpo-ram os corpos, definine-os por um sexo e designa-os como corpos masculino e feminino. O sexo, assim, deixa de ser pensado como natureza a priori, para ser pensado como signo, produto do social. Pois, os discursos, no social, definem e constroem o sexo. Com isso, é possível afirmar que, o sexo é um conjunto de normas regulatórias

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estabelecidas pelos discursos, capazes de incorporar e cobrir os cor-pos, as pessoas, seus pensamentos e suas relações sociais.

Como base nestas noções preliminares, oriundas destas perspectivas femi-nistas, é possível pensarmos, para que pudéssemos analisar experiên-cias de violência contra as mulheres, na seguinte problematização: Em que medida as diferenças no comportamento de mulheres e ho-mens resultam do sexo e do gênero? Em outras palavras, em que me-dida são resultantes das diferenças biológicas e das diferenças sociais? Por último, citaríamos as abordagens feministas pós-estruturalistas, emergidas ao longo dos anos 1980 e 1990, alinhavadas com o pensamento da diferença de Deleuze, Derrida e Foucault. Tais perspectivas implicaram na implosão e na crítica do conceito de gênero por este reproduzir, no plano sócio-cultural, uma dicotomia oriunda do campo da natureza: Masculino X Feminino. Apesar de revelar a construção social e discursiva da diferença sexual, o con-ceito de gênero acabou por reforçar dois mundos universais, como se homem e mulheres se referissem universalmente a experiências padronizadas. Em outras palavras, o próprio conceito de gênero viu-se domesticado no interior dos Estudos Feministas, ao repro-duzir a ordem binária (que divide o mundo em duas partes) e homogeneizar os conceitos de “homem” e “mulher”. A partir des-tas reflexões, foi possível pensar na diferença dentro da diferença. Scott (1992, p. 87) assim ressaltou:

Além disso, uma vez que o gênero foi definido como relativo aos contextos social e cultural, foi possível pensar em termos de diferentes sistemas de gênero e nas relações daqueles com outras categorias como raça, classe ou etnia, assim como em levar em conta a mudança. A categoria de gênero, usada primeiro para analisar as diferenças entre os sexos, foi estendida à questão das diferenças dentro da diferença. [...] Na verdade, o termo “mulheres” dificilmente poderia ser usado sem modificação: mulheres de cor, mulheres judias, mulheres lésbicas, mulheres trabalhadoras pobres, mães solteiras [...].

Em consonância com estas idéias, emergiram perspectivas teóricas que passa-ram a criticar e desconstruir o processo de “naturalização” do sexo e do gênero. Para Butler (2003, p. 25), por exemplo, “o gênero é o meio discursivo/cultural pelo qual ‘a natureza sexuada’ ou ‘um sexo natural’ é

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produzido e estabelecido como ‘pré-discursivo’, anterior à cultura, uma superfície politicamente neutra sobre a qual age a cultura.”

Nesse sentido, não poderíamos tomar o gênero/cultural como efeito do sexo/natural, pois inexistiria um elemento dado a priori, pela na-tureza, com o poder de determinação imperativa sobre o sujeito. Trata-se de processo complexo que, segundo Navarro-Swain (2000, p. 69) pode ser assim esclarecido:

as representações sociais, veiculadas em imagens e em linguagens, traduzem o gênero em corpos sexuados e o desnudamento deste mecanismo permite a inversão das polaridades do sistema sexo/ gênero: assim, é o gênero que cria o sexo. O sexo biológico deixa de ser o significante geral que abriga o binário sexual e passa a ser igualmente signo produzido no próprio seio do agenciamento social. Neste sentido, é performativo, como sublinha Butler, instalando sua realidade no próprio discurso que o descreve. Assim, o sexo passa a ser pensado “[...] não mais como um dado corporal sobre o qual o construto do gênero é artificialmente imposto, mas como uma norma cultural que governa a materialização dos corpos. Ao levantarem estes alcances, as abordagens pós-estruturalistas

questio-naram o uso da categoria “mulher” em defesa da palavra “mulhe-res”, pois se referia à multiplicidade de significados atribuídos às diferenças corporais no feminino. Ou seja, traduzia as múltiplas experiências do social, ao contribuir para a subversão das categori-as de sexo, gênero, homem, mulher, mcategori-asculinidade e feminilida-de. Logo, sexo e gênero passaram a ser vistos como similares. O gênero nada mais era do que um conjunto de representações sociais

sobre o “verdadeiro homem” e a “verdadeira mulher” que constru-íra o sexo e os corpos como pré-discursivos, como se fossem ante-riores à cultura. Rosi Braidotti (2000, p. 183) definiu o gênero como uma “ficção reguladora, isto é, como uma atividade normativa que constrói certas categorias tais como o sujeito, o objeto, o mas-culino, o feminino, o heterossexual e o lesbiano, como parte de seu mesmo processo” e passam, portanto, a normatizar corpos, comportamento, relações sociais, formas de pensar, de se vestir, enfim, inúmeras possibilidades de vivenciar o social. O gênero, como ficção regulatória, produzido por aparelhos tecnológicos

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(LAURETIS, 1994) no campo material e simbólico, atua como “sombra” de representações sociais sobre as diferenças sexuais en-tre os homens, as mulheres, os homossexuais e os heterossexuais. Assim, em vez de o sexo ser considerado biologicamente determinado e o

gênero culturalmente construído, as teorias feministas pós-modernas alegam que ambos são produtos socialmente elaborados. Não somen-te o gênero é uma produção da sociedade, mas o próprio corpo huma-no não é imune às pressões sociais que o forjam, o modelam e o alteram em cada contexto sócio-discursivo. Deste modo, o corpo humano, os corpos de homens e de mulheres não são “dados” pela natureza, mas “estão sujeitos ao agenciamento humano e às escolhas pessoais no interior de diferentes contextos” (GIDDENS, 2005, p. 106). Estas teorias possibilitaram a crítica da Ordem Normativa Heterossexual,

ao reconhecer ser a Heterossexualidade, uma ordem compulsória. Em defesa dos conceitos de identidade nômade e líquida, emergi-ram outras correntes feministas que reivindicaemergi-ram sua posição no debate: o feminismo negro, o feminismo lesbiano etc, pois

Se alguém ‘é’ uma mulher, isso certamente não é tudo o que esse alguém é [...] mas porque o gênero nem sempre se constitui de maneira coerente ou consistente nos diferentes contextos históricos, e porque o gênero estabelece interseções com modalidades raciais, classistas, étnicas, sexuais e regionais de identidades discursivamente construídas (BUTLER, 2003, p. 20)

Em suma, as teorias feministas estão comprometidas com a elaboração de um projeto que implica “tanto criticar as definições e represen-tações existentes das mulheres como em criar novas imagens da subjetividade feminina” (BRAIDOTTI, 2000, p. 185). As teorias feministas perfazem, portanto, a elaboração de ferramentas analí-ticas poéanalí-ticas, ricas e plurais, capazes de escapar aos hermetismos e blocos teóricos androcêntricos.

“A MULHER É FORÇA DELA PRÓPRIA!”: AS MEMÓRIAS, AS SOM-BRAS E O CAMINHO

Após esta exposição sucinta sobre nossas abordagens, gostaríamos de partir para a análise de fontes sobre a violência contra as mulheres.

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mos utilizar como fontes, fragmentos das memórias de mulheres vítimas de violência oriundos do vídeo memória de sombras, de Douglas Pinheiro. Neste vídeo, o diretor e roteirista selecionou alguns trechos das narrativas de mulheres vítimas de violência. Estas mulheres, no documentário, não foram identificadas, mas apenas suas vozes, seus corpos e suas sombras tem visibilidade. Portanto, para uma compreensão melhor do nosso material empírico, é fundamental assistir ao vídeo-documentário.

Nossa premissa inicial a ser descartada em nossas análises é a de que a origem da agressividade masculina contra as mulheres ou a condi-ção para que estas sejam vítimas daqueles seria a natureza. Ou seja, refutamos tanto a idéia de buscar por uma origem quanto a de que os homens são naturalmente agressivos e as mulheres são naturalmente passivas. Para isso, partiremos de outros pressupos-tos teórico-metodológicos: primeiro, o que foca as condições de produção representacionais das práticas de violência contras as mulheres; segundo, a de que todas as práticas são socialmente construídas, reiteradas, modeladas e transformadas. Ao invés de tomarmos a “natureza” como a origem das condutas e das práticas sociais, tomá-la-emos como efeitos de representações sociais que circulam no social, dentre elas, as de gênero. Tais representações são como formas de conhecimento socialmente elaboradas sobre o masculino e o feminino, responsáveis por muitas das formas de pensar, agir e relacionar que possuímos no dia-a-dia.

Mas isso, de forma alguma, exime os homens que praticam violência con-tra as mulheres. Não se con-trata de desculpabilizar os homens pelas práticas de violência que possam praticar contra as mulheres. Isso porque, apesar das determinações sócio-culturais e simbólico-representacionais, existe uma margem de ação e de liberdade do sujeito que o responsabiliza pelos seus atos. De tal modo, apropriamo-nos aqui de concepções oriundas das teorias estrutural-funcionalistas, mas adaptamo-las à dinâmica transformadora e contextual da vida social na qual a identidade é uma “celebração móvel”, de acordo com Hall (2002, p. 13), isto é, “formada e transformada continua-mente em relação às formas pelas quais somos representados ou in-terpelados nos sistemas culturais que nos rodeiam”.

Assim, a identidade do sujeito não é tomada no seu sentido iluminista, oriundo de uma “concepção da pessoa humana como um

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duo totalmente centrado, unificado, dotado das capacidades de razão, de consciência e de ação”, como se o “centro essencial do eu era a identidade da pessoa” (HALL, 2002, p. 10-11). Esta identi-dade também não é pensada em seu sentido sociológico, como se fosse formada na interação do “eu” com o bloco homogêneo e monolítico da sociedade. Construída na mobilidade dos contextos que as pessoas acionam ao longo da sua vida, a identidade do su-jeito é um imperativo advindo do campo largo que pode ser defi-nido como “o social”, mas também é fruto de escolhas políticas do sujeito. Assim, escolher “bater”, “agredir” e “humilhar” são ações/ práticas que emergem na confluência das determinações e das es-colhas políticas dos sujeitos.

Nos campos das representações sociais de gênero, tomaremos as defini-ções de Louro (1997, p. 24-5), segundo a qual o gênero é consti-tuinte da identidade dos sujeitos:

compreendemos os sujeitos como tendo identidades plurais, múltiplas; identidades que se transformam, que não são fixas ou permanentes, que podem, até mesmo, ser contraditórias. [...] O Gênero institui a identidade do sujeito (assim como a etnia, a classe, ou a nacionalidade, por exemplo) pretende-se referir, portanto, a algo que transcende o mero desempenho de papéis, a idéia é perceber o gênero fazendo parte do sujeito, constituindo-o. O sujeito

é brasileiro, negro, homem, etc. Nessa perspectiva admite-se que

as diferentes instituições e práticas sociais são constituídas pelos gêneros e são, também, constituintes dos gêneros. Estas práticas e instituições “fabricam” os sujeitos.

Nesse sentido, ao observamos o campo das representações sociais que circulam, que são acionadas, reforçadas, negadas e também incor-poradas, perguntaríamos: Como as representações de gênero, que elaboram socialmente as noções de “homem” e de “mulher”, atu-am na produção da violência contra as mulheres? Como a prática de violência contra as mulheres é uma prática social e cultural-mente construída? Que imagens são construídas sobre homens a partir do imaginário de mulheres?

Como metodologia, vamos buscar na Linguagem Visual, elemen-tos que permitam mapear, as representações sociais/imagens que

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forjam o gênero masculino como agressivo e a mulher como passi-va diante do homem. Será importante que vincularmos os padrões sociais e o norteamento dos comportamentos humanos, em contraposição às ordens da natureza. Nosso argumento é o de que a Violência contra as mulheres é uma prática social de produção de uma diferença desigual de gênero, portanto, construída social e culturamente.

Detectamos, em um primeiro momento, na leitura do vídeo, que a vio-lência contra as mulheres possuem várias faces. Trata-se de uma violência física ou psicológica, que pode advir do pai, do marido ou dos irmãos. As relações sociais tecidas mediante o uso da vio-lência acionam tanto aspectos simbólicos quanto afetam a carne. As fronteiras entre o corpo e o espírito tornam-se esmaecidas a ponto de apagarem suas divisões, a ponto de fazer emergir sujeitos ao mesmo tempo matéria e espírito. Inexiste um sujeito que prati-ca ou que recebe, de forma passiva, apenas a violência físiprati-ca ou psicológica, pois ambas se imbricam. Ao violentar o corpo, alcan-ça-se a alma; ao submeter o espírito, mobilizam-se as representa-ções sociais de gênero que vão direcionar o que é ser homem e o que é ser mulher em nossa sociedade.

Logo no início do vídeo, uma das depoentes relatou, em referência a imagem do marido que caminhava na sua direção para a prática da violência: “Eu via a maldade no olho dele”, o que traduz para a proposta do documentário ao trazer o olhar masculino visto pelas mulheres, isto é, nas palavras delas. A memória-oral, fonte privile-giada do autor, dá visibilidade ao assujeitamento e as resistências femininas no contexto de violência.

As narrativas de memórias e a fala destas mulheres são elementos signifi-cativos a ser analisados nesta perspectiva de fazer emergir o sócio-cultural. Suas narrativas são cifradas por ideologias, perspectivas de mundo e por convenções sócio-culturais. Quem narra, narra de algum lugar, narra um aspecto e não outro, narra numa perspecti-va. Quem narra, não narra somente com as palavras, mas narra inseridas em um contexto sócio-cultural. Longe de ser um mero acionador anatômico, o falar é a passagem para identificar os ele-mentos sócio-culturais que presidem as práticas de violência lem-bradas no vídeo-documentário, pois está atravessado por condições discursivas, sociais e culturais. Nesse sentido, dar voz às mulheres

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é um passo importante na revisão das representações sociais de gênero acionadas no contexto da experiência de violência. Por meio das palavras, podemos perceber a intersecção da linguagem com o social (SCOTT, 1990).

Em seguida, o olhar do cinegrafista enquadrado pelo visor da câmera, outro limite sócio-cultural, percorre pela cultura material dispos-ta nas casas dessas mulheres, pelos produtos e lugares socialmente identificados com o feminino. O brinquedo (de criança), o bichi-nho de pelúcia, o bibelô, a bolsa, o barulho de panela, o fogão e a chapa fervendo, o fazer o café e o arrumar a casa. São objetos e lugares sociais, como a cozinha, por exemplo, identificados tradi-cionalmente com o universo isolado e separado do feminino. Em suma, são “marcadores sociais” (LOURO, 1997, p. 49), marcados também pelo próprio olhar cinegrafista, que instituem a diferença e a desigualdade, pois enquadra o feminino dentro dos limites da cozinha, da casa e demais ambiente rotulados como “lugares de mulher”. Ou seja, são mulheres, donas-de-casa, esposas, mães, fi-lhas, irmãs. As narrativas, bem como o vídeo, silenciam sobre as atividades laborais destas mulheres, suas concepções de mundo, seus sonhos, suas perspectivas de futuro, em suma, suas ações fora dos enquadramentos das representações tradicionalmente assina-ladas como femininas.

Tais marcadores funcionam como tecnologias de gênero que, de acordo com Teresa de Lauretis (1994, p. 240), são “técnicas e estratégias discursivas por meio das quais o gênero é construído”. Por meio de tais tecnologias, a imagem da “verdadeira mulher”, ou seja, sua representação social, é construída, reforçada, incorporada e resis-tida pelos sujeitos sociais destinatários – as mulheres. Tal processo de incorporação e assujeitamento de tais representações pode também ser tomado como nos sentido atribuído por Lauretis, como “interperlação”. Enquanto “processo pelo qual uma representação social é aceita e absorvida por uma pessoa como sua própria repre-sentação, e assim se torna real para ela, embora seja de fato imagi-nária” (LAURETIS, 1994, p. 220), a interpelação dobra e torna mulheres obedientes às forças das representações sociais. No documentário, a destruição da cultura material feminina implica, portanto na retaliação da própria identidade política feminina. Estes “marcadores sociais” advindo do campo da cultura material

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associam-se ao espaço ocupado pelas mulheres, ou reservados e im-postos a elas. As violências relatadas ocorreram dentro de casa, no âmbito da “sagrada” instituição social conhecida como família. Uma delas falou da seguinte forma a respeito do marido: “Ele era um rapaz educado e calmo”. / Era o “pai dos meus filhos e também foi um monstro”. Reservar e cercar as mulheres no âmbito do espaço privado já significa em si uma prática de violência. Agredi-las no interior destes espaços torna-as objeto passivo dos homens que as agridem. A “casa sagrada”, o casamento e a “família” passam a ser tecnologias de gênero, ou seja, técnicas e estratégias discursivas que elaboram e forjam o gênero feminino. E, não somente as mulheres, mães, donas-de-casa, esposas são construídas, mas a casa e o ambi-ente familiar são mecanismos de construção da mulher objeto, pas-siva e frágil diante do explícito potencial agressivo do homem/marido/ pai/irmão. A sagrada família e o templo do lar são tecnologias polí-ticas de produção de sujeitos. Ali são construídas as possibilidades agressivas masculinas e as limitações passivas femininas por meio de um contrato como, por exemplo, o do casamento.

Por dentro destes contextos – a família, o casamento e a casa – as identi-dades ficam disponíveis, bastando qualquer um dos sujeitos agen-tes, ali presenagen-tes, desejar acioná-las. Em suma, alinhado às teses de Carole Pateman (1993, p. 263) que, em estudo sobre o femi-nismo e o contrato de casamento, afirmou que o contrato sexual “institui o direito patriarcal dos homens sobre as mulheres”. Se-gundo a autora,”as feministas contemporâneas observam que o contrato de casamento, diferentemente de outros contratos váli-dos, requer que uma das partes abra mão de seu direito de legíti-ma defesa e de integridade corporal” (PATEMAN, 1993, p. 244). Outros signos dessa construção sócio-cultural da violência contra as mu-lheres são observáveis nos signos utilizados como o uso do termo “vagabunda” em referência à uma das mulheres pelo irmão. Chamar uma mulher de vagabunda, nesse sentido é acionar o sentido do trabalho feminino desvalorizado, é depreciar o não-trabalho. Não há como negar que as mulheres foram excluídas do trabalho fora do

espaço privado e, quando passaram a ocupar empregos, não deixa-ram de realizar a dupla jornada, composta das atividades “do lar”. Como o trabalho no lar sempre foi socialmente visto como “não-trabalho”, logo, o termo “vagabunda” alimenta com tal

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do. O uso da desqualificação do trabalho feminino está vinculado a uma política de retaliação do corpo feminino. O corpo, longe de ser uma instância da natureza, torna-se um aparato construído social e culturalmente capaz de ter a sua pesada materialidade cri-ada a partir dos valores e das representações sociais incorporcri-adas que os constituem. É, portanto, envolvido por aspectos sócio-cul-turais como rituais, linguagens, fantasias, representações, símbo-los e convenções. O uso da palavra “vagabunda”, ao estabelecer uma intersecção entre o social e a linguagem, aciona tais represen-tações e produz relações de gênero desiguais e hierarquizadas. Os valores e as representações construídas no bojo da sociedade

constitu-em os corpos e até mesmo a sua pesada materialidade. Ou seja, a “materialidade” dos corpos é forjada pelas significações atribuídas a este corpo. Sua “modelagem” se dá a partir da atuação das inúmeras representações sociais sobre os corpos daquelas/es, fazendo-os exis-tir e serem “pesados”. Os corpos inexistem sem o discurso sobre eles; o corpo é “um substrato de matéria viva dotada de memória” (BRAIDOTTI, 2000, p. 195). O “peso” sobre os corpos é o efeito do poder destas representações sociais, pois elas nos aprisionam em grades simbólicas e no imaginário social tão ou mais poderosas que o concreto das celas de uma prisão. Por meio desse processo, o corpo é construído, treinado e disciplinado em silêncio, ao longo do coti-diano familiar, das experiências fracassadas da instituição do casa-mento, nos confins da secular sagrada família.

Expressão máxima do desdobramento da violência física para o campo do simbólico foi a auto-representação que uma mulher, no vídeo, cons-truiu dela própria acerca dos efeitos da violência que sofrera: “Pus na cabeça que era feia e acabou!” Romper com a estética, com o desejo de ficar bela, sem questionamentos, é sinal da incorporação cultural que mulheres faziam dos padrões estéticos aqui negados. A violência assumiu aqui o processo de assujeitamento das mulheres às representações sociais forjadas pelas concepções estéticas machistas que produzem e violentam as mulheres. Ao absorverem tais ima-gens, a violência praticada contra essas mulheres traduz o domínio de suas identidades e de sua inserção no plano societal.

Em outros momentos, romper com a estética também significou resis-tência feminina, como da vítima que relatou os puxões de cabelo que o marido exercia e que ela, posteriormente, resolveu, por isso,

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cortá-lo. Enquanto o cabelo cumprido sempre foi visto, cultural-mente, expressão da feminilidade, da estética feminina e da satis-fação que as mulheres davam aos desejos masculinos; cortar o cabelo, nesse caso, é um ato político de exercício de poder, é uma resistên-cia dessa mulher às práticas de violênresistên-cia que sofria.

Interessante notar que, ao longo da história do Brasil, quando as mulhe-res, na época das guerras mundiais, foram trabalhar nas fábricas, cortaram seus cabelos. Signo cultural de acesso ao mundo do traba-lho, das profissões e de uma vida mais dinâmica, cortar o cabelo foi ato político comprometido com a resistência à violência e aos pu-xões que o marido lhe fazia. A depoente negava a antiga representa-ção do homem das cavernas puxando a mulher pelos cabelos e demarcava que a diferença dentro da diferença é sinal de resistência. Em seguida, em algumas passagens das narrativas das mulheres ex-põem e aprofundam sobre o problema do corpo das mulheres em relação ao domínio masculino. A cena de uma mulher trancafiada dentro de casa é sugestiva para tal interpretação. Poderíamos per-guntar: por que não foi expulsa de casa? Ora, aprisionar e enclausurar as mulheres são práticas culturais, construídas em torno da experiência histórica de relação das mulheres ao mundo privado. Logo, não é algo oriundo do mundo da natureza, mas sim da cultura e da sociedade. Os homens, ao contrário, são ex-pulsos de caso, quando são “vítimas” de contrariedades femini-nas. Trancafiar expõe uma concepção de propriedade dos homens sobre os corpos das mulheres.

Não distante, esta noção de “propriedade” foi também explicitada em outra narrativa sobre o que uma das depoentes tinha escutado do companheiro: “Vai ficar comigo e com mais ninguém!”. Sem dúvi-das, trata-se de expressão que apregoa um poder exercido pelos homens sobre o corpo das mulheres. Em um relacionamento e, sobretudo, por dentro do contrato sexual do casamento, os ho-mens se vêem como proprietários dos corpos das mulheres. Se uma das depoentes reconheceu que “na primeira agressão, já tinha que ter largado”, mas não o fez, a escolha por “ficar”, enquanto uma escolha política, remete às dificuldades, historicamente construídas, das mulheres em se manterem sós e construírem suas sobrevivên-cias ao longo da vida. Ficar é manter o corpo da mulher dentro dos domínios materiais e simbólicos do homem que a cerca.

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A perspectiva sócio-cultural do contexto de violência contra as mulheres exibidas no vídeo-documentário não está só presente nas práticas cometidas pelos homens contra suas parceiras, filhas e irmãs, mas também aponta para as possibilidades de superação do quadro. No vídeo, o cinegrafista foca caminhos, passagens, estradas, calça-das por onde essas mulheres teriam passado. A cena da pista da linha de ônibus assim com as dos pés sobre as calçadas da praça acenam para um “caminho” a ser percorrido. O “caminho” é metá-fora da construção social-cultural, pois se referem aos lugares que as mulheres passam ao longo da experiência cotidiana da violên-cia. Nesse caso, a violência é cultural, porque é uma passagem, é uma experiência sócio-cultural e não algo dado pela natureza ou pelas ordens divinas. Se as mulheres sofrem violência nos dias de hoje é porque nossa sociedade construiu condições sócio-culturais para tal, reforçou discursos que legitimam tais práticas, alimentou representações que reforçam imagens de mulheres subordinadas aos homens, conforme salientamos ao longo das análises prece-dentes. O caminho deste processo de construção sócio-cultural precisa ser refeito, ser desmontado, ser desconstruído.

As sombras são também visualizadas no vídeo, pois as mulheres ali rela-tadas não aparecem a não ser por meio de suas vozes e como espec-tros. Essas sombras também metaforizam tal perspectiva sócio-cultural, pois, referem-se ao real sem forma, tangente, passí-vel de mudança. A realidade como sombra nos apontam para a intervenção, para os domínios da construção sócio-cultural. Li-bertar-se das sombras, seria romper com a violência? Em questão de sombras, ainda estamos nas sombras da Caverna de Platão? O caminho e as sombras! O caminho das sombras nos aponta para a luz,

para a libertação do sujeito, para a re-invenção da vida no cotidia-no, para a recriação de formas novas de viver e a perspectiva de futuro a ser germinado. No vídeo-documentário, esse caminho culmina no “Parque da Liberdade” (o nome do parque em que as mulheres se encontram ao final do vídeo), para a união das mu-lheres. Uma das frases significativas de uma das depoentes, feliz-mente captada pelo diretor, foi: “A mulher é a força dela própria”, em contraposição à concepção construída historicamente de que a “mulher” representa a imagem do sexo frágil, que aceita tudo e não resiste. Ali, produzem-se outras representações, outras

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gens, em contraposição à de mulheres passivas, obedientes e im-potentes frente à agressão dos homens que as cercam.

Trata-se da “afirmação positiva do desejo das mulheres de manifestar e dar validez a formas diferentes de subjetividade” (BRAIDOTTI, 2000, p. 185), capazes de desestabilizar as ficções regulatórias criadas pelo gênero. Ali, apontam para outras construções, outras possibi-lidades de vivências, pois, se uma das faces da questão social é a desigualdade de gênero, revelada na violência contra as mulheres praticada por homens agressores e construída ao longo das vivências humanas – e não pré-discursiva ou um “dado” da natureza – é porque pode ser desconstruída. E a elaboração de outras vivências, outras relações à margem das ficções regulatórias do gênero, pode iluminar outros passos no caminho da liberdade e esmaecer as som-bras do passado.

Notas

1 Sobre o assunto, ver: ORLANDI, Eni P. Análise de Discurso: Princípios e Proce-dimentos. 4ª. ed. Campinas, SP: Pontes, 2002. Ver também: MAINGUENEAU, Dominique. Novas Tendências em Análise do Discurso. Pontes, Campinas, 1984. 2 Sobre o assunto, ver:FOUCAULT, Michel. Microfísica do poder. (trad. Roberto Machado). 16.ª edição. Rio de Janeiro: Graal, 2001. Ver também: FOUCAULT, Michel. A ordem do discurso. São Paulo, edições Loyola, 1996. FOUCAULT, Michel. A arqueologia do saber. (trad. Luiz Felipe Baeta Neves). 6.ª edição. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2000.

3 Ver a abordagem panorâmica em: SCOTT, Joan. História das mulheres. In::::: BURKE, Peter (org) A escrita da história – Novas Perspectivas. . . São Paulo: UNESP,1992. Ver também: SOIHET, Rachel. História das Mulheres. In: CAR-DOSO, Ciro Flamarion & VAINFAS, Ronaldo. . . Domínios da história: ensaios de teoria e metodologia. Rio de Janeiro, Campus, 1997.

4 Sobre o esgotamento dos conceitos de gênero e de identidade ver: SWAIN, Tânia Navarro. A invenção do corpo feminino ou a hora e a vez do nomadismo identitário. In: SWAIN, Tânia Navarro (org.). Feminismos: Teorias e Perspectivas. Textos de História: Revista do Programa de Pós-Graduação em História da Unb. Brasília, Unb, vol.8, n.1/2, 2000. Ver também: BUTLER, Judith. Problemas de Gênero – Feminismo e Subversão da Identidade. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003.

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Abstract: the objective of this article is analyse, in the ground of the feminist

theories and gender, practices of violence against women with the narrative memories recorded in the documentary vídeo “Memórias de Sombras”.

Keywords: women, violence, feminism, gender, social question Recebido em 11 de junho de 2010.

Aprovado em 29 de junho de 2010.

* Historiador, professor do curso de Serviço Social da Universidade Federal de Goiás/ Campus da Cidade de Goiás e doutorando em História, na Universidade de Brasília, na Área de Concentração “Estudos Feministas e de Gênero”.

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