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Religião entre o Instituído e as Vivências Cotidianas: chaves de leitura a partir de Michel de Certeau e Veena Das

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Academic year: 2021

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Lauri Emilio Wirth**

Resumo: este artigo sintetiza um episódio amplamente conhecido entre os estudiosos da

religião, descrito por Michel de Certeau: A Possessão de Loudun. Mais que a descrição histórica do episódio, interessam-me as chaves de leitura que este autor aplicou ao estudo do fenômeno. A síntese está, grosso modo, referenciada nas pesquisa de Daniel Bogner sobre a obra de Certeau. Se a Possessão de Lou-dun exemplifica como a religião perde credibilidade como fundamento do ser no mundo na transição para o mundo moderno, ela também indica chaves de leitura úteis para analisar sua persistência e importância, num mundo em que a verdade religiosa é vencida pelas ciências e pela política. Por isto, o segundo foco desta reflexão volta-se às dinâmicas da vida cotidiana, numa tentativa de diálogo entre Veena Das e Michel de Certeau.

Palavras-chave: Religião. Cristianismo. Cotidiano.

S

into-me honrado por participar desta edição especial da revista Caminhos em homenagem ao professor Haroldo Reimer, amigo de longa data. Pensei um bo-cado sobre qual seria a melhor maneira de expressar meu testemunho de apreço e consideração. Referir-me ao “conjunto da obra” seria uma possibilidade. Mas esta expressão restringe o olhar ao passado, no qual o personagem real e concre-to sai de cena, vencido pela grandeza e pelo impacconcre-to de um produconcre-to: o conjunconcre-to da obra. Não é uma referência apropriada a alguém encantado com novos cami-nhos, saberes e olhares. Caminhos é uma boa metáfora. Os vejo entrelaçados, inovadores, provocativos, irreverentes, astutos. Alguns bem pavimentados,

rotei-RELIGIÃO ENTRE O INSTITUÍDO E AS VIVÊNCIAS

COTIDIANAS: CHAVES DE LEITURA A PARTIR DE MICHEL DE CERTEAU E VEENA DAS*

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* Recebido em: 11.11.2015. Aprovado em: 08.12.2015.

** Professor no Programa de Pós-Graduação em Ciências da Religião da Universidade Meto-dista de São Paulo. Teólogo. E-mail: lauri.wirth@metoMeto-dista.br.

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ros e guias para novos caminhantes. Outros sugerem planos de voos, horizontes. Alguns talvez solitários, sei lá, enigmáticos, outros. Sorrisos que falam, silêncios que comunicam. Companhia sempre acolhedora, comunitária, familiar: Ivoni, a companheira sempre altiva e irreverente a perscrutar, tecer e ecoar saberes de mulheres de ontem e de hoje; Daniel (meu afilhado perspicaz e inteligente, que transita elegante entre a arte e a ciência e vice-versa), Tiago (faz tempo que não o vejo, por isto o tenho na memória como um garoto falante e sempre curioso, e me surpreendo quando vejo suas fotos de jovem adulto, universitário). Compa-nheiro de caminhada, o que segue talvez lhe traga à memória longos papos dos tempos de doutoramento, preocupações com ferramentas de pesquisa, nossas in-quietações com uma pergunta que não cessa de interpelar-nos: a quem servimos com o nosso pesquisar, aprender, ensinar, gerir ...?

ENDEMONIADAS: UM SINTOMA

Em torno de 1632, as freiras Ursulinas de um recém fundado convento em Loudun, na França, se dizem enfeitiçadas. A evidência do feitiço é o falar sob o domí-nio do diabo. Indicado como feiticeiro é o padre Urbain Grandier. Segundo Certeau, a chave que abre o episódio à compreensão de seus sentidos não está no conteúdo de seus enunciados, nem na forma como os enunciados se apresentam. A possessão demoníaca só é compreensível como uma linguagem que expressa um sintoma, que articula experiência religiosa com seu contexto religioso específico.

Na época Loudun é um local assolado por conflitos e tragédias. Está na fronteira en-tre huguenotes e católicos, uma espécie de posto avançado da contrareforma. Além das sangrentas guerras religiosas, duas epidemias seguidas de peste ne-gra mataram 25% da população. Para evitar contaminações, foi proibida toda forma de aglomerações e reuniões. A cidade, antes um espaço de interação entre diferentes grupos, famílias e corporações, transforma-se num conglo-merado de grupos isolados. Grupos de maior poder aquisitivo retiram-se para suas fazendas no interior. Cada grupo busca em si seus referenciais de sobrevi-vência, entre eles o convento das ursulinas. À fragmentação social correspon-de uma fragmentação metafísica. O protestantismo introduz a possibilidacorrespon-de correspon-de uma nova verdade. A peste questiona a eficácia da própria fé. Em jogo está a credibilidade daquilo que até então era tido por verdade. Este contexto oferece uma constelação adequada para a ruptura dos referencias até então inquestio-náveis e que davam sentido a uma visão de mundo.

Certeau analisa o episódio como um “teatro de possessão” no qual é possível analisar deslocamentos, desvios e rupturas naquilo que a sociedade até então conside-rava ser a “realidade”. Neste contexto é possível perguntar pelos atores que

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entram em cena, como se diferenciam suas estratégias, que deslocamentos são perceptíveis em seus referencias, o que isto significa para a autocompreen-são da sociedade e que implicações isto tem para as mudanças que estão em curso. Em sua abordagem, Certeau não pretende explicar o que aconteceu de fato. Não define o que o fenômeno pode ser em sua essência, se as vozes são do diabo ou não. Falar sob o domínio do diabo é uma forma de se inscrever numa conjuntura dada, é um recurso para modificá-la. Nas palavras de Certeau (apud BOGNER, 2002, p. 41, nota 58):

Esta força, que se encontra em compasso de espera, penetra sorrateiramente nas tensões da sociedade... acentuando-as de repente; serve-se, para tal, dos meios e caminhos desta mesma sociedade, mas está a serviço de uma inquieta-ção que vem de longe e é surpreendente; ela rompe as fechaduras, dá vazão a diques sociais, abre caminhos que, depois de sua passagem, quando o rio voltar a seu leito, evidenciam uma outra paisagem, uma outra ordem.

No contexto em questão, esta novidade é nada mais, nada menos que a impossibilidade de doravante ler o cosmos como uma linguagem falada por Deus.

Para chegar a esta conclusão, Certeau analisa os diferentes atores que o episódio con-voca ao cenário e os deslocamentos que ele procon-voca em seus referencias. Os primeiros atores a entrarem em cena são os exorcistas. São os defensores da ordem estabelecida que aplicam os recursos convencionais para a identifica-ção de poderes demoníacos. Ou seja, interpretam a linguagem corporal e os fenô-menos espirituais a partir de um modelo interpretativo convencional. Como estes não conseguem solucionar o problema, novos atores entram em cena. A medicina aparece como aliada dos exorcistas ao mesmo tempo em que disputa com eles os referenciais para aquilo que pode ser considerado verdadeiro. Anuncia-se assim um sutil, mas significativo, deslocamento. Se para os exorcistas o corpo das freiras é uma espécie de palco de manifestação de uma verdade transcen-dente, para os médicos transforma-se num fim em si mesmo, que perde seu caráter transcendente e o transforma em material decifrável. Assim, a medici-na penetra num campo preparado pelo exorcismo, mas lhe confere um outro conteúdo. Dois sistemas de referência se sobrepõem.

O sistema de referência dos exorcistas entra em crise, o que fica evidente na necessida-de necessida-de buscar apoio na medicina. Contudo, os relatos dos interrogatórios médi-cos indicam uma crescente insegurança também dos profissionais da medicina em decifrar o que percebem nas evidências que recolhem, pois o fenômeno observado não se enquadra nos catalogados até então conhecidos. Com isto, também a medicina demonstra que é cativa de seus próprios métodos. Ela só descobre aquilo que já conhece, ou seja, só consegue identificar o que já está

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codificado nos catálogos aceitos como confiáveis por sua área de conhecimen-to. Assim, abre-se espaço para a dúvida: dado a falta de um diagnóstico con-fiável da medicina, seria o fenômeno de fato sobrenatural? A dúvida, por sua vez, impossibilita o enquadramento tão necessário à visão de mundo da época. Rompe-se assim a relação entre significante e significado, tão necessário para afirmar a verdade a respeito do episódio em questão.

No fenômeno da possessão insinua-se, assim, uma alteridade que ameaça o sistema de referência, tanto de exorcistas como de médicos. A estas alturas, a postura dos médicos está voltada para a defesa de seus referencias, mais do que para a busca da cura do corpo das freiras. Trata-se de identificar a patologia que se expressa na possessão para salvar os referencias de verdade próprios da medi-cina. Ocorre que as terapias aplicadas colocam na berlinda os próprios saberes da medicina e um amplo debate se desencadeia. Discute-se, por exemplo, se a melancolia pode ser causa da possessão. A relação causa e efeito está com-prometida e os atores são colocados diante de uma opção epistemológica: é necessário optar pela defesa de uma tradição que está sendo questionada ou abrir-se à novidade, à alteridade que se insinua. A consequência é a perda do acesso imediato à prima causa. Assim, o conhecimento torna-se inseguro e o que se segue é uma luta pela verdade (BOGNER, 2002, p. 47).

Para o discurso religioso, o desdobramento do episódio evidencia um duplo escân-dalo. Por um lado surgem vozes que questionam a legitimidade da verdade religiosa, por outro, o discurso religioso passa a concorrer com outros discur-sos, deslocando, inclusive, seus referencias de plausibilidade para o campo da medicina. Em jogo está o próprio referencial de verdade da religião, no caso, do cristianismo, na medida em que suas autoridades são forçadas a definir, a partir do episódio concreto em questão, como lidarão com aquilo que lhes é estranho. Abrem-se basicamente duas possibilidades: a) reconhecer a novi-dade e buscar caminhos para a nova formulação de seus referencias, o que implica necessariamente na relativização das verdades até então tidas como incontestáveis; ou b) lutar pela legitimidade do referencial tradicional, o que também evidencia um combate pela manutenção do poder ameaçado pela no-vidade que se insinua.

O resultado é que a verdade passa a ser disputada por vários atores, o que evidencia uma dupla ruptura: em sentido horizontal, a disciplina normativa desloca-se da religião para a medicina; em sentido vertical, a religião perde a capacidade da ação inquestionavelmente verdadeira, o que implica numa lenta, mas irre-versível, perda de legitimidade. Por outro lado, a medicina ocupa o espaço da religião, mas também ela fica marcada pela mácula da incerteza, pois seus da-dos empíricos não são capazes de decifrar com plausibilidade o fenômeno da possessão. Assim, também a medicina é forçada a explicitar seu referencial de

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verdade e assumi-lo como uma construção. A possessão transforma-se numa disputa politizada pelo discurso verdadeiro (BOGNER, 2002, p. 49).

Um novo deslocamento verifica-se quando o Estado entra em cena. Na luta entre pro-testantes e católicos, Loudun tinha assumido um perfil protestante. Esta con-juntura se desloca nos inícios do século XVII, com o estabelecimento de vá-rias ordens religiosas católicas, reformas de igrejas e uma mudança no cenário político local, cujo administrador protestante é substituído por um católico. Mas este cenário político aparentemente ainda dominado por referenciais reli-giosos, traz em seu bojo um dado novo: o “governador” católico dá sequência à política de seu antecessor protestante, numa estratégia de fortalecimento do poder local diante do poder central, sediado em Paris. Dividida pela religião, a população local vê-se unida por esta contingência política. Com isto a religião perde força como referência que confere identidade e segurança. Esta refe-rência lentamente se desloca da religião para o campo da política, ainda que esta se sirva de discursos religiosos. Nesta conjuntura, o combate à possessão assume dimensões políticas. O padre Urbain Grandier, no início tido por feiti-ceiro causador da possessão, assume agora o status de agitador político. Neste contexto, a linguagem religiosa torna a ação do Estado compreensível, mas do ponto de vista da lógica do Estado esta mesma linguagem é perfeitamente dispensável. A estas alturas, o combate ao demônio já não se caracteriza como a afirmação da verdade, mas como um recurso para impor a disciplina neces-sária à imposição do Estado centralizador, o que implica o aniquilamento de dissidências de qualquer ordem (BOGNER, 2002, p. 50).

Deslocamentos também se verificam na própria linguagem da possessão, na medida em que a pergunta pela verdade se relaciona com questões de poder. O exorcismo, fragilizado por sua incapacidade de fundamentar o ato de crer, o que se torna evidente na falta de resultados no enfrentamento da possessão, necessita agora de um novo lugar de plausibilidade: o corpo das freiras assume o lugar de uma

terra incógnita, reveladora de novidades e surpresas a serem constantemente decifradas, a exemplo das terras “descobertas” pelos navegadores da época. Contudo, na medida em que se transforma o corpo numa fonte de informações que fundamentam uma linguagem plausível, no sentido de verdadeira, cresce o poder daqueles que decifram tais informações. Torna-se necessário uma tipifi-cação dos sinais do corpo que caracterizam uma possessão demoníaca. Assim, desvios e irregularidades em relação ao “normal”, são identificados como ín-dicos do demoníaco. Com a lista de tais indícios pretende-se conferir credibi-lidade ao diagnóstico da inquisição. Neste processo, o corpo transformado em um locus que fornece informações que fundamentam uma verdade, na verdade se transforma num lugar de práticas de poder. Tanto exorcistas como médicos procuram fazer o corpo das freiras falar de acordo com os seus referencias

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ex-plicativos, o que torna o corpo um campo de disputa pela legitimação dos mé-todos nele aplicados. As práticas de poder se evidenciam na medida em que só é considerado aquilo que não contradiz os pressupostos a priori definidos. Em jogo já não está mais a “cura” de um corpo, mas a defesa de práticas religiosas tradicionais, aqui representadas pelo exorcismo, ameaçadas pelo fenômeno da possessão, numa conjuntura política e religiosa específica.

À linguagem da possessão falta um lugar próprio. Ela depende do lugar instituído, mas se coloca fora do texto deste lugar, seja ele representado pela religião tradicio-nal ou pela medicina. Fundamental, portanto, não é o conteúdo da linguagem possessiva, mas sua função dentro de um sistema de comunicação instituído, ou seja, sua transgressão. Neste sentido, a possessão é um modus loquendi, uma maneira de falar. Não enuncia um novo conteúdo, mas brinca com o dis-curso dominante e assim foge de suas estratégias classificatórias e discipli-nadoras. Isto ocorre, por exemplo, quando as possuídas silenciam diante das perguntas do inquisidor, quando esquecem aspectos relevantes, ou quando se recordam do esquecido em momentos em que isto não lhes é solicitado. Assim fazendo, desequilibram a ordem instituída e sua função normativa. O resultado deste processo é que, aparentemente, a ordem instituída se mantém ilesa; seus fundamentos, contudo, são corroídos sutilmente.

Assim, a tática de desobedecer obedecendo, o submeter-se formalmente a um pro-cesso de normalização subvertendo-o ao mesmo tempo, permanecem profun-damente imbricados, mas revelam a perda de uma evidência cosmológica: a palavra de Deus, transmitida pela instituição eclesiástica, perde força como fundamento do mundo. Os exorcistas têm a função de religar este fio rompido entre o além e o aquém, integrando a voz que se manifesta na possessão em seus códigos explicativos. É o discurso que não tem capacidade de enfrentar a novidade. As freiras, por outro lado, se dizem possuídas por um poder “para o qual não existe um nome”. Com esta postura colocam-se no papel de sujeitos e explodem a secular hermenêutica que a igreja aplica em situações idênticas. De interrogadas, se transformam em interrogadoras: “Porque você quer saber

de tudo isto?” (BOGNER, 2002, p. 58) IMPLICAÇÕES PARA A FÉ RELIGIOSA

Esta questão está relacionada ao papel que cumprem os diferentes atores como represen-tantes de instituições neste contexto. Mais precisamente, tem a ver com os des-locamentos nestes papéis. Os exorcistas representam a nomenclatura eclesiástica e lutam pela legitimidade do discurso e do saber institucional. Há dois indícios do fracasso desta função: não conseguem enquadrar a estranha voz da possessão em seus códigos de sentido e perdem progressivamente o monopólio

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interpreta-tivo para a medicina. Ou seja, a referência do que seja verdadeiro neste contexto se desloca da religião para a medicina. Com isto, a igreja perde o que antes era tido por inquestionável: seu discurso era a autêntica e até então única forma de intermediação com a “realidade”. Ou seja, era a igreja que fornecia o funda-mento da realidade. O episódio de Loudum mostra que esta função perdeu sua credibilidade. “O episódio de Loudun mostra exemplarmente como esta preten-são lentamente perde consistência no confronto com a linguagem da possespreten-são, com os novos métodos da medicina e com as intenções da política, que aproveita o conflito de acordo com os seus interesses”. A religião perdeu o monopólio da verdade e com ele a capacidade de conferir sentido ao ser no mundo. Já não é mais a religião que institui credibilidade, mas sim, as ciências humanas, aqui representadas pela medicina (BOGNER, 2002, p. 58-9).

Que alternativas se abrem ao discurso religioso nesta nova conjuntura? Na transição para o mundo moderno, que o episódio em pauta evidencia exemplarmente, a religião não pode simplesmente retirar-se do cenário e entregar o campo a outros atores, porque este movimento não depende exclusivamente da Igreja, mas das redes sociais em que ela está envolvida. Uma possibilidade é aceitar aquilo que a nova conjuntura lhe oferece. Já que a religião não é mais uma referência daquilo que seja verdadeiro como fundamento do real, ela pode retornar pelas fissuras do sistema que a expulsa, como promotora do folclore. Este deslocamento Certeau percebe na maneira como a população de Loudun se relaciona com o episódio da possessão. Nos momentos iniciais do fenôme-no, ela se mostrava assustada e evitava o contato com as ursulinas, por medo de “contaminação”. No fim do episódio, o convento se transforma em local de peregrinação, cujos peregrinos eram atraídos pela curiosidade em relação aos relatos folclóricos das freiras. A instituição que antes era a garantia de uma verdade fundamental, agora se insere na nova conjuntura mediada pelos mecanismos de oferta e da procura (BOGNER, 2002, p. 60). A redução da religião para a satisfação de necessidades subjetivas de indivíduos inscreve-se na mesma lógica. Ou seja, a religião, antes um fundamento ordenador do ser no mundo, agora se transforma numa opção possível, num aspecto da cultura1.

Uma outra possibilidade se mostra na postura do jesuíta Jean-Joseph Surin. Ele se distancia dos tradicionais métodos do exorcismo, que invariavelmente têm por objetivo a confissão dos denunciados, e busca o diálogo com as freiras “enfei-tiçadas”. Ou seja, é possível identificar outro método no processo que estabe-lece o que seja verdadeiro. Deferente de um exorcista, Surin é um interlocutor que não emite ordens, mas se insere no episódio a partir da lógica das freiras. Com isto desqualifica o discurso religioso oficial como expressão cabal de uma realidade. Nesta postura também a confissão deixa de ser prova de verda-de. Assim, o discurso verdadeiro se descola da autoridade e de seus

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mecanis-mos de enunciação e abre espaço para a interlocução que instaura um processo de construção do que pode ser aceito como verdadeiro. O mesmo vale para a medicina, na medida em que expressões corporais e dados registráveis em protocolos deixam de ser evidências ou mesmo provas de verdades subjetivas. O caráter verdadeiro de tais expressões passa a depender dos códigos que lhe conferem tal status. Já não há mais lugar para verdades absolutas e para seus defensores infalíveis. Isto, consequentemente, abre a possibilidade de códigos plurais de verdade, respectivamente a verdades plurais. Abre-se assim o ca-minho da incerteza. A postura de Sorin revela um novo paradigma. Para ele, o mundo real deixa de ser imediatamente legível. Há uma diferença temporal entre significantes e significados, entre o discurso religioso que fundamentava a fé no passado, e o presente que pretende ouvir este discurso na atualidade. Esta diferença abre espaço para a ambiguidade. Ainda que não se questione a autoridade da palavra de Deus, sua necessária atualização imprime nela a ação dos sujeitos que a atualizam. Neste sentido, Surin possibilitou a reintegração das religiosas na sociedade e abriu uma nova perspectiva para o discurso reli-gioso na atualidade, na medida em que sua postura acolhe como pertinente a alteridade que se manifesta na voz das freiras e, assim, abre espaço para um agir religioso que tem relevância social (BOGNER, 2002, p. 62).

IMPLICAÇÕES PARA A HISTORIOGRAFIA DA RELIGIÃO

O que nos interessa aqui no diálogo com Certeau é seu método historiográfico apli-cado ao estudo da religião. Pela análise certoniana da possessão de Loudun, o historiador não descreve o que de fato ocorreu no passado. Ele estabelece uma operação historiografia, uma mediação entre passado e presente, em que o passado se inscreve como uma alteridade, como uma outra voz, que penetra pelas fissuras do presente e desequilibra sua pretensão de verdade absoluta. Historiografia, neste sentido, é necessariamente um exercício de estranhamen-to, na medida em que em que seu foco está nas vozes que dizem algo diferente do que ouvimos com nossas chaves de leitura. Se a hermenêutica tradicional decifra conteúdos, a operação historiográfica é uma referência à maneira que atores sociais concretos se apropriam de conteúdos e significados em con-textos históricas específicos. Assim fazendo, não produzem necessariamente um novo discurso, mas pervertem o discurso instituído como um sintoma que revela a inconsistência, as ambiguidades, as fissuras do instituído. Por isto, Certeau nos instiga a voltar o olhar às práticas cotidianas, aos usos e modos de agir como linguagens de um mundo que está além das regras hegemônicas, das retas doutrinas, da leitura culta e erudita de ritos, símbolos e mitos. Em outras palavras, a linguagem religiosa não se evidencia nos sentidos em si de

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um código religioso, mas nos usos destes códigos em circunstâncias históricas concretas e nos deslocamentos de sentido operados por estes usos.

Mas não se trata de opor simplesmente o popular ao erudito, a religião institucionali-zada às expressões populares da religião. O desafio reside na possibilidade de captar os sentidos da relação entre estes universos e os múltiplos dispositivos que regem esta relação. A interconexão da análise com o contexto histórico que a requer e possibilita é um pressuposto fundamental. Nesta relação, o instituído se caracteriza pela função organizadora, disciplinar e normativa. As vivências religiosas cotidianas, ao contrário, se regem por

outras práticas, sem número, que ficam como ‘menores’, sempre no entanto pre-sentes, embora não organizadoras de um discurso e conservando as primícias ou restos de hipóteses [...]. É nesta múltipla e silenciosa ‘reserva’ de procedi-mentos que as práticas ‘consumidoras’ deveriam ser procuradas... (CERTEAU, 1994, p. 115).

É possível exemplifica este uso popular da religião com a leitura que Certeau faz dos relatos de milagres de Frei Damião, contados no nordeste brasileiro. Num con-texto marcado pela divisão entre poderosos e pobres e numa relação de forças em que os ricos sempre vencem, relatos de milagres adquirem o sentido de um protesto ético a fissurar a realidade que sempre se repete. Na situação histórica de injustiça que se impõe como uma lei natural, o relato de milagres se inscre-ve na vida cotidiana como um horizonte utópico que se nega a aceitar a fata-lidade do fato histórico vivido. Não há, portanto, coincidência entre o fato e o seu sentido, pois a fatalidade que sempre se repete é fissurada pela expectativa do milagre: “numa linguagem necessariamente estranha à análise das relações sócio econômicas, podia-se sustentar a esperança que o vencido da história – corpo no qual se escrevem continuamente as vitórias dos ricos ou seus aliados – possa na ‘pessoa’ do ‘santo’ humilhado, Damião, erguer-se graças aos golpes desferidos pelo céu contra os adversários” (CERTEAU, 1996, p. 77).

É nesta perspectiva que a referência ao cotidiano se torna relevante. Não se trará, con-tudo, de uma categoria para realçar o privado em relação ao público, nem o particular ou o individual em relação ao social e coletivo. Trata-se de um recurso destinado a pensar mais as práticas e menos os conceitos geometri-camente fechados. Nas palavras de Certeau (1994, p. 172): “Escapando das totalizações imaginárias do olhar, existe uma estranheza do cotidiano que não vem à superfície, ou cuja superfície é somente um limite avançado, um limite que se destaca sobre o visível”.

Assim, as práticas populares, sejam elas religiosas, políticas ou simbólicas, nos reme-tem invariavelmente a formas específicas de operações, que não se orientam

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pela racionalidade dos discursos ou por critérios de coerência. São operações de ocasião, que jogam sempre de novo para dentro dos processos lógicos e co-erentes, aquilo que estes processos excluem e desqualificam. É a alteridade que se insinua e assim desequilibra aquilo que se pretendia coeso e estabelecido. Uma das contribuições significativas de Certeau é justamente a busca de uma metodologia para dar conta destas competências iletradas em matéria de fé, para assim reinscrevê-las na reflexão acadêmica como forma de empoderá-las e, quem sabe, até orientá-las criticamente.

Contudo, a aproximação ao cotidiano requer ainda outras mediações. Para explicitar o que pretendo dizer, valho-me das reflexões da autora Veena Das (2008) que, embora não tenha a religião como o foco principal de suas investigações, nos fornece chaves de leitura perfeitamente aplicáveis ao estudo do campo re-ligioso. Um dos pontos de contato entre as análises de Das e de Certeau é justamente o esforço em captar os sentidos de processos históricos a partir do lugar das vítimas, no caso de Das, das vítimas da violência. Neste recorte ela investiga temas como os limites da solidariedade e dos laços sociais, questões de gênero na geração de mitos e arquétipos sociais que autorizam a violência, imaginários coletivos que levam à discriminação de minorias, dentre outros. Um pressuposto importante nas investigações desta autora como um princípio a unir os diferentes meandros da vida cotidiana é a não passividade da vítima. Segundo a autora, para se ter acesso ao cotidiano, as aproximações estruturalistas que

abordam a violência a partir de uma relação de causa e efeito são insuficientes. É necessário atentar nos modos como as vítimas padecem, percebem, persis-tem e resispersis-tem à violência, como lembram suas perdas e as pranteiam, mas também as absorvem, assimilam e as articulam em sua cotidianidade, as usam para seu benefício, as desconsideram ou simplesmente coexistem com ela. Neste enfoque, o próprio conceito de vítima precisa ser problematizado, por se tratar de uma categoria abstrata e indiferenciada, que não atenta para a es-pecificidade do vivido e para a pluralidade dos sentidos atribuídos (ORTEGA, 2008, p. 21). De qualquer forma, a categoria da cotidianidade assume um lugar central para se pensar o caráter não passivo de atores sociais anônimos, dos perdedores não vencidos da história. Pois o cotidiano é visto como o espaço e o tempo em que as relações sociais se concretizam e se transformam em expe-riências de sentido: “a cotidianidade constitui a unidade que resolve na prática [...] a complexa relação entre agência e estrutura, subjetividade e objetividade, enunciados e gêneros discursivos” (ORTEGA, 2008, p. 22).

O lugar da cotidianidade é a comunidade com todas as suas ambiguidades, assimetrias e contradições. Pois é na comunidade à qual os indivíduos perten-cem que as teias da vida cotidiana são traçados. Mas, como observa Francisco Ortega (2008, p. 24):

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[...] a comunidade não é uma realidade simples e dada a priori, primeira, an-terior e inferior ao Estado e outros modos de organização mais complexa; não é tampouco o lugar de identidades fixas, primordiais ou transcendentes. Para seguir a fórmula wittgensteiniana próxima de Das, é na comunidade onde se levam a cabo e encontram guarida aqueles jogos de linguagem que constituem uma forma de vida, onde se define o repertório dos enunciados e das ações pos-síveis, onde se encontram os recursos socioculturais com os quais as pessoas enfrentam a adversidade.

Portanto, as redes de sentido que entrelaçam a vida cotidiana são o espaço do qual a comunidade extrai ferramentas que possibilitam a seus integrantes habitarem juntos. O espaço, contudo, não é um lugar delimitado, formalmente circuns-crito, em termos de uma confissão religiosa, com seus conteúdos doutrinários e seus referenciais de identidade. Espaço é sempre um lugar praticado, uma referência, não aos conteúdos que identificam estes lugares circunscritos, mas aos usos que os sujeitos fazem destes lugares, em circunstâncias específicas e de acordo com as ocasiões que se lhes apresentam. Não se trata portanto de delimitar um aspecto da cultura religiosa que poder-se-ia descrever como uma religiosidade popular. Trata-se, mais bem, de perceber as imbricações entre as dinâmicas do cotidiano e a religião instituída, ambas variáveis de um só processo histórico.

Aqui seria, pois, necessário uma revisão crítica dos estudos que articulam religiosidade e cultura popular, o que não será possível no espaço deste artigo. Anoto ape-nas, como indicativo de uma possível linha de reflexão, um alerta a partir de um texto provocativo de Michel de Certeau (2005), com o sugestivo título de “A beleza do morto”. Nele o autor demonstra como discursos sobre a “cultura popular” podem ser uma construção a partir de um lugar social hierarquizado que seleciona do popular aquilo que é palatável aos agentes deste discurso. Assim fazendo, esta apropriação seria também uma forma de matar o popular, transformando-o no rosto folclórico da cultura hegemônica, um processo ve-rificável, inclusive, nos estudos acadêmicos da cultura popular. Referindo-se aos estudos do folclore francês e aos usos políticos dos resultados destes estu-dos, o autor afirma: “O burlesco dá o alcance da derrota do povo, cuja cultura é tanto mais ‘curiosa’ quanto menos temíveis são os seus sujeitos” (CERTEAU, 1995, p. 57).

Penso que este questionamento pode ser aplicado perfeitamente à questão em pauta. Certeau defende a tese de que, independente da ideologia ou dos imaginários sócio-políticos que os sustentam, os estudos culturais precisam ser lidos como

operações a partir de relações de poder que lhe conferem legitimidade. Nas suas palavras: “O que está, portanto, em causa, não são ideologias nem

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op-ções, mas as relações que um objeto e os métodos científicos mantêm com a sociedade que os permite” (CERTEAU, 1995, p. 58).

Os estudos de Das, por seu turno, nos levam a refletir sobre possíveis consequências da destruição das convenções coletivas que dão sentido à vida cotidiana e que permeiam as relações comunitárias. Realidades marcadas pelo conflito e por tensões sociais podem abrir espaço para um fenômeno que a autora chama de conhecimento envenenado. É quando se instala o temor acerca de um Outro ausente, mas presente no rumor de um suposto perigo, ou de uma ameaça real de algo ou alguém cuja subjetividade é de antemão evacuada. Das extrai esta teoria dos conflitos étnicos e, principalmente, suas implicações nas relações de gênero na fronteira do norte da Índia com o Paquistão. Contudo, ressalva-das as diferenças de contexto e de intensidade dos conflitos penso que temos aí enunciados teóricos que podem ser úteis, por exemplo, para compreender determinados discursos do campo protestante brasileiro em relação aos pra-ticantes de cultos afro-brasileiros. Também aí o rumor se instala em relação a um Outro difuso, que de antemão é expropriado da subjetividade que lhe é própria: “O medo ao Outro se transforma no outro aterrador” (ORTEGA, 2008, p. 26-7).

Importante para os propósitos desta reflexão é novamente a questão metodológica. Para se captar a não passividade de agentes anônimos nos espaços da vida co-tidiana, explicações ancoradas nos grandes relatos, que decifram a lógica das estratégias hegemônicas, sejam elas na esferas culturais, econômicas, políti-cas ou religiosas, são insuficientes. Isto porque explicações generalizantes, sejam elas focadas nas estruturas, nas funções de macro sistemas, nas ca-racterísticas de supostos atores sociais coletivos, necessariamente requerem a aplicação de categorias a priori, que ocultam e simplificam as dinâmicas múltiplas e contraditórias que se processam no interior dos acontecimentos. Algo idêntico ocorre com a redução do vivido à dados quantitativos e estatís-ticos. Por mais relevantes que estes possam ser para acompanhar tendências e resultados de mudanças conjunturais, são informações que expurgam a vi-vência dos sujeitos e não captam os sentidos do vivido.

Certeau e Das, ao contrário, pressupõem uma lógica própria das táticas da vida coti-diana, cuja compreensão depende sempre da relação que estas estabelecem com as estratégias hegemônicas em curso. Em outras palavras, mais do que a lógica objetiva inerente aos fatos históricos, os deslocamentos no cotidia-no dependem dos sentidos atribuídos aos fatos, sentidos estes ancorados em redes de relações nas quais o vivido ou o imaginado se inscrevem. Ou seja, as vivências cotidianas desestabilizam categorias socialmente estabelecidas e geram contextos fluídos nos quais o reforço do sentido desempenha um papel fundamental na lógica de mudança.

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Contudo, o acesso às vivencias do cotidiano abre um capítulo à parte, que aqui só será levemente tangenciado. Historiadoras e historiadores qualificados em pesqui-sas qualitativas valendo-se da história oral, desenvolveram um amplo debate a este respeito, ainda não conclusivo. Aqui anoto apenas um alerta de Francisco Ortega que, em consonância com Das, aponta para os limites das ciências hu-manas em geral quando se trata de inscrever a dimensão do vivido no debate acadêmico. Pois o vivido implica sempre num dizer-se que as ciências captam como um dito, um dado. No dizer-se está implícito um Outro, a rigor, inaces-sível. O dizer-se captado como um dito, implica num deslocamento sutil mas decisivo. O dito se refere ao dado, ao conteúdo que é comunicado, que leva à certeza ou ao desacordo. Mas este foco tende a levar a uma “clausura ontológi-ca” que impede a abertura à alteridade. O dizer-se é irredutível à interpretação (ORTEGA, 2008, p. 49).

Em consequência, ouvir um testemunho implica sempre numa relação assimétrica, com implicações éticas, na medida em um sujeito de memória

[...] oferece um dizer (extraordinário, doloroso, polêmico, imponderável) e o outro oferece uma escuta (incerta, cética, crédula, ingênua, interessada); um solicita credibilidade e o outro, consciente do que está em jogo, não pode me-nos que duvidar. Assim, crer ou não crer jamais é assunto fácil; o ato de crer necessita discernir o que significa crer e como se crê. Neste caso, escutar um testemunho requer muito mais que um esforço de avaliação epistemológica; é um ato igualmente ético, pois em alguns casos o resultado não é dirimível entre duas afirmações contrárias (ORTEGA, 2008, p. 48).

Neste sentido, relatos do vivido não constituem partes de um mosaico que, uma vez identificados, podem ser encaixados perfeitamente em narrativas coesas e coe-rentes. Decorre daí um questionamento ao próprio alcance das ciências huma-nas e sua capacidade de produzir conhecimento a partir de sujeitos do vivido, de seus corpos e suas vivencias cotidianas. Das é enfática na reivindicação de uma ciência atenta, por exemplo, à dor social, como dimensão do vivido ge-ralmente desprezada na leitura, principalmente, de realidades marcadas pelo conflito social. Segundo a autora, os limites epistemológicos para conhecer a dor do Outro e as barreiras linguísticas para expressá-la, também revelam o descuido da sociedade e, em particular, das ciências sociais em relação à dor social. É possível duvidar da dor, mas é equivocado afirmar que ela seja incomunicável: “A dor é um jogo de linguagem que solicita meu reconheci-mento; assim como a experiência da minha dor clama pela possibilidade de poder residir em outro corpo” (ORTEGA, 2008, p. 54). Assim, o testemunho é um modo fundamental de conhecer a dor. Ela é um jogo de linguagem, uma

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reivindicação que pode ser acolhida ou ignorada. Para Das, “a negação da dor alheia constitui fundamentalmente uma falta espiritual, mais que intelectual”, mas ela também pode ser uma falta intelectual enquanto negação do reconhe-cimento (ORTEGA, 2008, p. 56).

IMPLICAÇÕES POSSÍVEIS PARA A HISTORIOGRAFIA DO CRISTIANISMO NA AMÉRICA LATINA

Ao finalizar estes apontamentos, gostaria de trazer à memória um texto que eu diria programático, escrito por Paulo Suess, em 1994, com o sugestivo título de “A história dos outros escrita por nós”. Trata-se de uma reflexão que celebra os 20 anos de produção historiográfica da Comissão de Estudos de História da Igreja na América Latina (CEHILA). Suess critica, por exemplo, a periodização ado-tada por CEHILA, presa, segundo ele, a esquemas a priori e não adequados à dinâmica histórica das culturas locais. Faz também uma crítica veemente à classificação de “pré-históricas” aplicada às culturas pré-colombianas, como se a história da América Latina apenas tivesse início com a chegada dos eu-ropeus. Constata ainda certo evolucionismo na historiografia de CEHILA e reivindica maior sensibilidade para a sobreposição de temporalidades, nos universos práticos e mentais dos povos.

Mas o que eu queria destacar realmente são dois conceitos que Suess apresenta em seu texto, que tem pontos de contato com o acima dito a partir de Das e Certeau. Um deles é a proposta de uma historiografia pós-colonial, voltada para as di-nâmicas internas e locais das comunidades “colonizadas”. Ou seja, como Das e Certeau, Sues percebe que não é suficiente, embora necessário, descrever e desmascarar processos de colonização, opressão e escravidão etc, cujo relato enfim silencia sobre o papel ativo dos/as colonizados/as, seja na forma de re-sistência, de assimilação, seja nas infinitas maneiras de rearticular suas vidas em novas redes de sentido. Ou seja, não se pode deixar de formular a pergunta sobre como as “vitimas” reagiram a estes processos, como se inscreveram neles. Na época, salvo melhor juízo, os estudos da religião na América Latina ainda não falavam de teorias pós-coloniais, mas é relevante que sua necessida-de já então era claramente percebida.

Outra provocação relevante no texto de Suess é um certo distanciamento da ideia de pobre como sujeito messiânico, na medida em que o papel da historiografia não deve ser nem arqueológico, nem apologético, nem futurológico. Não cabe a ela descobrir o sentido escondido da história, como ela é interpretada, por exemplo, pelo cristianismo, nem o destino ou a vocação de quem quer que seja (SUES, 1994, p. 13). Não se trata de questionar a escrita da história a partir dos vencidos da história, o que implica na opção ética por um lugar

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her-menêutico. Assim, a historiografia é a permanente busca da voz do OUTRO, enquanto excluído pelas dinâmicas históricas dominantes, sem transformá-lo, contudo, em sujeito messiânico. Uma historiografia pós-colonial seria então a “busca da palavra do Outro”, expressa em vozes e gestos situados no limite ou mesmo fora das instituições religiosas e rebeldes à apropriação do sagrado apenas pelos profissionais da religião ou por conceitos a priori elaborados. Mas também a busca da voz do Outro tem lá seus percalços. Quando o Outro é

percebi-do apenas a partir da sua diferença em relação ao lucus hermenêutico de quem elabora a narrativa, corre-se o risco de transformá-lo em objeto de folclore, como acima observado por Certeau, ou em um sujeito abstrato, descolado das dinâmicas locais em que articula seus modos de vida. Sues nos oferece al-gumas pistas que perguntam pelos sujeitos da história que narramos. Seus questionamentos podem apontar caminhos, não para superar a historiografia da “história dos outros escrita por nós”, mas para escrevê-la com a devida cautela, para não ocultar o Outro que se pretende visibilizar. Trata-se de uma cautela extremamente necessária, principalmente em nosso contexto, em que as/os excluídas/os da história apenas começam a pesquisar academicamente a sua própria história, embora estejam a lutar por ela, a seu modo, deste sempre.

RELIGION BETWEEN INSTITUTION AND DAILY EXPERIENCE: KEYS TO UNDERTAND IT FROM MICHEL DE CERTEAU AND VEENA DAS

Abstract: this paper synthesizes a well-known episode among religion scholars,

de-scribed by Michel de Certeau: the Possession at Loudun. More than the histor-ical description of the event, I am interested in the reading keys that this author applied to the study of the phenomenon. The synthesis is contained, grosso modo, in Daniel Bogner’s researches on Certeau’s works (Bogner, 2002, p. 39-120). If the Possession at Loudun exemplifies how, at the transition period to the modern world, religion loses credibility as the fundament of the being in the world, it also suggests useful reading keys for the analysis of religion’s persistence and importance in a world where religious truth is overcome by science and by politics. That is why the second center of attention of this spec-ulation is pointed at the everyday life dynamics, on the attempt of maintaining a dialogue between Veena Das and Michel de Certeau.

Keywords: Religion. Christianity. Daily Experience.

Nota

1 Há que se perguntar até que ponto grande parte da teologia cristã no mundo ocidental im-pactado pelo cristianismo pode ser lida como um esforço para falar de Deus, num contexto em que este discurso não é mais necessário. Mais que isto, poder-se-ia perguntar até que

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ponto, e ressalvadas as devidas diferenças no que tange ao grau de elaboração conceitual, a teologia liberal, por exemplo, com o seu encanto pelo mito do progresso, não seria uma espécie de precursora da teologia da prosperidade, na medida em que ambas podem ser consideradas a adaptação do discurso religioso à lógica política e econômica hegemônicas que, a rigor, dispensam o discurso religioso tradicional. Em outras palavras, estas teologias seriam uma espécie de estratégia para retornar ao palco dos discursos hegemônicos como coadjuvantes de um espetáculo que, a rigor, dispõe de fundamentos religiosos que lhes são próprios, mas aceita de bom grado a presença do discurso cristão, só na medida em que este não questiona os fundamentos da nova ordem vigente. Faço estas indagações a partir da leitura de questionamentos como os de Walter Benjamin, que suspeita que o capitalismo como parasita do cristianismo se transformou na religião do mundo moderno. Benjamin não conheceu a teologia do prosperidade. Se a conhecesse, talvez diria que este discurso pode ser caracterizado como uma espécie de parasita do capitalismo.

Referências

BOGNER, Daniel. Gebrochene Gegenwart: Mystik und Politik bei Mischel de Certeau. Mainz: Matthias-Grünewald-Verlag, 2002.

CERTEAU, Michel de. Cultura no plural. 4.ed. Campinas: Papirus, 2005.

CERTEAU, Michel de. A invenção do cotidiano: artes de fazer. nova edição, estabelecida e apresentada por Luce Giard. 2.ed.. Petrópolis: Vozes, 1994.

CERTEAU, Michel de. A escrita da história. 2.ed. Rio de Janeiro: Forense, 2007.

DAS, Veena. Sujetos del dolor, agentes de dignidad. Bogotá: Universidade Javeriana; Instituto Pensar, 2008,

ORTEGA, Francisco A. Reabilitar la cotidianidad. In: DAS, Veena. Sujetos del dolor, agentes

de dignidad. Bogotá: Universidade Javeriana; Instituto Pensar, 2008. p. 15-69.

SUESS, Paulo. A história dos outros escrita por nós: apontamentos para uma autocrítica da historiografia do cristianismo na América Latina. Encarte do Boletim CEHILA, São Paulo, n. 47-48, p. 1-14, outubro de 1993 a março de 1994.

Referências

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