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Aulus Graça & Renata Carvalho Kobus, “Utilitarismo: Alguns Apontamentos a Partir de Jeremy Bentham, John Stuart Mill e Michael Sandel”

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Academic year: 2020

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Ano 4 (2018), nº 5, 479-500

PARTIR DE JEREMY BENTHAM, JOHN STUART

MILL E MICHAEL SANDEL

Aulus Graça

1

Renata Carvalho Kobus

2

Resumo: O presente artigo propõe algumas reflexões acerca da corrente de pensamento denominada de utilitarismo, a qual parte do pressuposto de que a felicidade é o objetivo último a ser per-seguido pelo ser humano. Com vista à realização de um aparato geral a respeito das principais ideias utilitaristas, serão fixadas as suas premissas básicas, a partir das ideias dos expoentes clás-sicos desta corrente filosófica: Jeremy Bentham e John Stuart Mill. Após, será analisado um caso teórico utilizado de Michael Sandel, o qual exemplifica o pensamento utilitarista, ao demons-trar que nem sempre a felicidade geral pode ser atendida, sem que alguns interesses ou direitos sejam violados. Em seguida, serão expostas as principais críticas a esse modelo teórico, prin-cipalmente as desenvolvidas por Enrique Dussel. Por fim, de-monstrar-se-á que, apesar da existência de diversas críticas dire-cionadas ao utilitarismo, o pensamento desta corrente está pro-fundamente arraigado ao modelo do pensamento ocidental, ainda que a expressão “utilitarista” nem sempre esteja estam-pada.

1 Mestre em Direito do Estado pela Universidade Federal do Paraná – UFPR. 2 Professora de graduação e professora convidada de Pós-Graduação da PUC/PR, UNICURITIBA e do LLM em Direito Empresarial Aplicado do Sistema FIEP. Mestre em Direito do Estado pela Universidade Federal do Paraná - UFPR. Pós-graduada pela Fundação Escola do Ministério Público do Paraná. Foi intercambista do Conselho Administrativo de Defesa Econômica – CADE. Pesquisadora do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico. Parecerista de Revistas Científicas. Advogada.

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Palavras-Chave: Utilitarismo. Felicidade. Princípio da Utili-dade. Prazer e dor. Jeremy Bentham. John Stuart Mill. Enrique Dussel.

1 INTRODUÇÃO

ão é incomum usarmos a metáfora do “cobertor curto” para justificar ou defender as escolhas difí-ceis, seja nas decisões judiciais, seja na implemen-tação de políticas públicas, ou mesmo nas deci-sões da vida pessoal: “os recursos são escassos e as necessidades tendem a não ter fim, por isso, para atender a algumas necessidades, outras estarão, necessariamente, desas-sistidas”.

O raciocínio parte de uma relação entre custo e benefício dos meios em relação aos objetivos almejados. A este respeito, algumas questões poderiam ser colocadas de imediato: onde alo-car os recursos? Por quê? Como? Quem deve ter o poder de de-cisão? Qual deve ser o critério de escolha? O que deve ser prio-rizado? Quantidade ou qualidade?

A pretensão nesse artigo não é responder a essas pergun-tas, e nem abordar a centralidade dos direitos e garantias funda-mentais no Estado Democrático de Direito. O que se pretende é compreender a lógica e a origem dessas justificativas, germente utilizadas para imunizar ou amenizar as críticas sobre al-gumas decisões nem sempre populares e fáceis, mas que geral-mente são revestidas de uma racionalidade econômica, muitas vezes desenvolvida de forma fria e calculista.

Para que se possa melhor compreender essa racionali-dade subjacente, serão traçadas as linhas gerais do pensamento filosófico denominado de utilitarismo, que defende a supremacia da obtenção da felicidade pelos indivíduos.

Tendo em vista que o objetivo do presente artigo não é

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esgotar o tema, mas apenas apresentar ideais pontuais e reflexi-vas acerca do utilitarismo, será realizada uma breve análise das principais características dessa corrente de pensamento que teve em Jeremy Bentham e John Stuart Mill, seus principais precur-sores.

Ao final, serão expostas algumas críticas à ética utilita-rista com a finalidade de demonstrar que, apesar da existência tais oposições, esta corrente está arraigada está em nossa tradi-ção liberal e ocidental do modo de pensar, sendo que, mesmo sem saber, em muitas situações, argumentamos de acordo com a lógica utilitarista.

2 NOÇÕES PRELIMINARES SOBRE O UTILITARISMO O utilitarismo pode ser definido como uma corrente filo-sófica que parte da premissa de que o objetivo último do ser hu-mano é a felicidade, não somente a individual, mas também aquela de todos os indivíduos que poderão ser afetados pelas nossas condutas.

Esta corrente de pensamento está fortemente ligada à es-cola iluminista, tendo em vista que crê na razão como meca-nismo de compreensão do mundo que nos cerca. A sua grande marca consiste no uso de métodos utilizados pelas ciências na-turais às ciências morais (que analisam as condutas humanas) 3.

Uma primeira característica, ou premissa, do utilita-rismo é a de que o ser humano é um ser cognitivo, capaz de co-nhecer pela razão (mais no sentido empírico). Benigno Pendás García afirma que a doutrina utilitarista é, sem exagero, “a mais importante contribuição inglesa para a história da filosofia moral e também, ao menos no século XIX, para a filosofia jurídica e

3 Benigno Pendas Garcia sintetiza: “(...) el utilitarismo benthamita pretende convertir la moral em uma ciência emrpirica, ciência que, por supuesto, descansa sobre hechos reales y debe ser aplicada a cosas reales.” (PENDAS GARCIA, Benigno. Jeremy

Bentham: politica y derecho en los origenes del estado constitucional. Madrid: Centro

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política” 4.

A ideia é a de que existiria um princípio que, se adotado, tornaria possível uma espécie de teoria da conduta humana. Trata-se do princípio da utilidade ou princípio da felicidade do maior número.

No entanto, apesar de parecer um princípio de fácil assi-milação, de tão simples, acaba se tornando muito complexo. Simples indagações como “Em que consiste a felicidade? Até que ponto devemos promover a felicidade? Como a felicidade influência na escolha de nossas decisões?” podem apresentar respostas muito complexas ou que sejam até mesmo inalcançá-veis.

Enrique Dussel observa que, para os utilitaristas,

“O axioma fundamental é: a maior felicidade do maior número é a medida do bem e do mal. A natureza colocou a humanidade sob o governo de dois senhores soberanos, a dor e o prazer. Somente a eles cabe dizer-nos o que deveríamos fazer e deter-minar o que faremos”5.

3 O UTILITARISMO NA VISÃO DE JEREMY BENTHAM Jeremy Bentham é considerado o fundador da escola uti-litarista, a partir da publicação, em 1789, da sua obra intitulada “Introdução aos Princípios da Moral e Legislação”.

A premissa de Bentham é a de que o ser humano é go-vernado por dois grandes sentimentos: o prazer e a dor6. Entende que os indivíduos são guiados pelo prazer, que é o único bem, e pela dor, que é um mal em si, sendo que termos como “ética”, “lei” e” obrigações” são meramente ficcionais e devem ser

4 PENDAS GARCIA, Benigno. Jeremy Bentham: politica y derecho en los origenes

del estado constitucional. Madrid: Centro de Estudios Constitucionales, 1988, p.83

5 DUSSEL, Enrique. Ética da libertação na idade da globalização e da exclusão. 3ª ed. Petrópolis, Rio de Janeiro: Vozes, 2007, p. 110.

6 PENDAS GARCIA, Benigno. Jeremy Bentham: Tacticas parlamentarias. Madrid: Congreso de los Diputados, (Textos parlamentarios clasicos; v. 1). (Broch.). 1991, p.22.

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sempre alterados com o objetivo de suscitarem, necessaria-mente, mais prazer do que dor7.

Portanto o critério de decisão sobre uma possível con-duta, e mesmo sobre a elaboração de uma lei deveria, segundo os preceitos utilitaristas, somar todos os benefícios e subtrair to-dos os prejuízos dela decorrentes. A melhor lei ou a melhor de-cisão seria sempre aquela que permitisse um melhor saldo final8.

Esperanza Guisán9 sustenta que o hedonismo de Ben-tham era um hedonismo psicológico individualista, uma vez que não desejava que os indivíduos se sacrificassem demasiada-mente uns pelos outros, devendo haver a denominada economia do sacrifício.

Diante desta visão, ao legislador competiria a promoção da maior felicidade do maior número possível de indivíduos, o que seria concretizado mediante a utilização de punições, amea-ças e ofertas de recompensas, com o intuito de que os indivíduos não pensassem apenas em sua felicidade, nos casos em que a sua conduta fosse prejudicial à sociedade10.

Dessa forma, por exemplo, a obediência às leis seria

7 DIAS, Maria Cristina Longo Cardozo. As diferenças entre o conceito de moral no

utilitarismo de Bentham e John Stuart Mill: a moralidade como derivada das respec-tivas noções da natureza humana. Disponível em: http://www.princi-pios.cchla.ufrn.br/arquivos/32P-483-506.pdf, acesso em 14.02.2018, p. 05.

8 A respeito da função legislativa, Benigno Pendás García observa que “el principio

de utilidade viene a ser um axioma que riege la teoria de la accíon humana como una suerte de principio formal de validez universal, que oferece por sí mismo um critério rigurosamente científico (...) De este modo, legislar se convierte em um assunto de observación y cálculo y la utilidade garantiza a rationale for legislation, que racio-naliza y reconduce al orden los modos heterogéneos de comportamiento.” BENT-HAM, Jeremy. Tacticas parlamentarias. Madrid: Congreso de los Diputados, 1991 (Textos parlamentarios clasicos; v. 1). (Broch.), p.23.

9 GUISÁN, Esperanza. Utilitarismo. In: Dicionário Moral e Política – Instituto de Filosofia e Linguagem. Disponível em: http://www.ifl.pt/private/admin/fichei-ros/uploads/ 02260f474ec258a8a6512fb0779695df.pdf, acesso em 14.02.2018, p. 05. 10 GUISÁN, Esperanza. Utilitarismo. In: Dicionário Moral e Política – Instituto de Filosofia e Linguagem. Disponível em: <http://www.ifl.pt/private/admin/fichei-ros/uploads/ 02260f474ec258a8a6512fb0779695df.pdf>, acesso em 14.02.2018, p. 05.

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resultante da percepção de que a previsibilidade e a segurança permitiriam uma vida mais prazerosa e feliz. Bentham chega a dizer que aqueles que pretendem contrariar o princípio reitor da moral (princípio utilidade), em verdade o realizam na medida em que pressupõem derrubá-lo para obter maior prazer e felici-dade11.

A partir da aplicação do princípio da utilidade, Ben-tham12 propôs reformas sociais e políticas bastante audaciosas para sua época. A título exemplificativo, citem-se: a) a constru-ção do Panopticon, uma prisão em que haveria uma torre central, com visão total dos presidiários sem que estes pudessem se es-conder em canto algum – de quebra a sugestão previa ainda que a prisão fosse administrada por um empresário que estaria auto-rizado a utilizar a mão de obra dos detentos por até 16 horas di-árias e; b) a construção de abrigos para mendigos.

A explicação de pensador13 era a de que a existência de mendigos nas ruas gerava um desconforto (portanto uma espécie de dor) aos demais transeuntes, fosse por pena, fosse por repulsa. Ainda que algum mendigo argumentasse ser mais feliz na rua, a felicidade dele representava a infelicidade de inúmeros outros, pelo que deveria se submeter à política da reclusão ao abrigo.

Bentham foi além e sugeriu ainda que os mendigos tra-balhassem nos abrigos e que, os cidadãos poderiam, eles mes-mos, apreender e levar os desocupados para o abrigo mais pró-ximo. Como recompensa por isso, a cada mendigo recluso, seu condutor receberia 20 xelins. A justificativa era a de que o obje-tivo do projeto não era a punição dos mendigos, mas o bem estar

11 PELUSO, Luis Alberto. O utilitarismo: o projeto de construir uma ética racional. Disponível em:< https://www.youtube.com/watch?v=-PL-Pkn7vQU, acesso em 14.02.2018.

12 SANDEL, MICHAEL J. Justiça – O que é fazer a coisa certa. [tradução de Heloísa Matias e Maria Alice Máximo] 4ª ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2011, p. 51.

13 SANDEL, MICHAEL J. Justiça – O que é fazer a coisa certa. [tradução de Heloísa Matias e Maria Alice Máximo] 4ª ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2011, p. 53.

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geral da maior parte da população. Estas duas propostas não fo-ram aceitas à época, não obstante todo o empenho e sofisticação argumentativa.

Em síntese, a moral teria como função potencializar a fe-licidade, de modo a assegurar que o prazer prevalecesse sobre a dor, na maior medida possível. Assim, diante de uma situação concreta, o correto a se fazer seria algo que otimizasse a utili-dade – esta entendida como “qualquer coisa que produza prazer ou felicidade e que evite a dor ou o sofrimento” 14.

O prazer pode ser entendido como a sensação a que o indivíduo prefere em vez de sentir nenhuma. E dor pode ser en-tendida como a sensação que o indivíduo prefere nenhuma em vez de senti-la.

Nesse sentido, a ação boa é aquela que traz felicidade a um maior número de pessoas. A ação má é a que resulta em so-frimento. Portanto, o princípio é utilizado como critério de aná-lise de conduta e, em última anáaná-lise, das decisões das pessoas. Por outras palavras, “bem e o mal...não são outra coisa senão o prazer e a dor, ou aquilo que nos provoca prazer ou dor”15.

Assim sendo, o princípio da utilidade é um princípio que aprova ou desaprova as condutas humanas segundo a tendência que possui de aumentar ou de diminuir a felicidade das pessoas que possuam interesse nesta ação, sendo a felicidade entendida como sinônimo de prazer16.

Bentham17 propõe que alguns outros subprincípios

14 SANDEL, MICHAEL J. Justiça – O que é fazer a coisa certa. [tradução de Heloísa Matias e Maria Alice Máximo] 4ª ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2011, p. 48.

15 John Locke apud DUSSEL, Enrique. Ética da libertação na idade da globalização

e da exclusão. 3ª ed. Petrópolis, Rio de Janeiro: Vozes, 2007, p. 109.

16 DIAS, Maria Cristina Longo Cardozo. As diferenças entre o conceito de moral no

utilitarismo de Bentham e John Stuart Mill: a moralidade como derivada das respec-tivas noções da natureza humana. Disponível em:

<http://www.princi-pios.cchla.ufrn.br/arquivos/32P-483-506.pdf>, acesso em 14.02.2018, p. 06. 17 PELUSO, Luis Alberto. O utilitarismo: o projeto de construir uma ética racional. Disponível em:< https://www.youtube.com/watch?v=-PL-Pkn7vQU>, acesso em 14.02.2018.

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também fossem considerados. O primeiro deles seria o da iden-tidade de interesses. Por esse subprincípio, entendia-se que todo ser humano quer, em última análise, ser feliz. Pelo princípio da economia dos prazeres, o prazer poderia ser identificado e men-surado (a partir de critérios como intensidade, duração, certeza ou probabilidade do resultado, por exemplo).

Outro princípio a ser considerado seria o da comiseração, o qual defende que o sofrimento do outro gera sofrimento em mim. Por fim, de acordo com o princípio da simetria, a elimina-ção da dor gera prazer, e a eliminaelimina-ção do prazer gera dor. A par-tir desses princípios, norteadores das condutas de todos os seres humanos, a felicidade seria possível.

Por essas razões, é de se concluir que, todas as ações do indivíduo almejariam o prazer e a fuga da dor, sendo que a cada ação o agente procuraria um cálculo que considerasse a intensi-dade do prazer e da dor, cálculo este que acabaria por ser o cri-tério de escolha das regras que deveriam constar no campo da moralidade 18.

4 O UTILITARISMO NA VISÃO DE JOHN STUART MILL John Stuart Mill foi um dos grandes nomes da escola uti-litarista, tendo publicado no ano de 1861 o livro denominado “Utilitarismo”. Stuart Mill sofreu forte influência de Bentham em razão de seu pai, James Mill, ter sido um dos integrantes dos “radicais filosóficos”, grupo liderado por Bentham atuante na política da Grã-Bretanha19.

Insta salientar alguns aspectos sobre a vida de John Stu-art Mill que não podem ser passados em branco, porque

18 DIAS, Maria Cristina Longo Cardozo. As diferenças entre o conceito de moral no

utilitarismo de Bentham e John Stuart Mill: a moralidade como derivada das respec-tivas noções da natureza humana. Disponível em:

<http://www.princi-pios.cchla.ufrn.br/arquivos/32P-483-506.pdf>, acesso em 14.02.2018, p. 11. 19 MILL, John Stuart. Utilitarismo. Introdução, tradução e notas de Pedro Galvão. Portugal: Porto Galvão, 2005, p. 10-11.

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expressivos. James Mill, com o intuito de tornar o seu filho, John Stuart Mill, um grande intelectual, o submeteu a uma educação imensamente rígida20. De maneira simplificada, Stuart Mill co-meçou a aprender grego aos três anos, latim aos oito anos, sendo que aos 12 anos de idade já havia lido todos os diálogos de Pla-tão, além de já dominar os elementos básicos da economia, tam-bém possuindo significativos conhecimentos em história, mate-mática e lógica21.

Após sofrer uma forte depressão e conseguir superá-la, o que se deu com o auxílio da poesia, principalmente a de Wordsworth, Stuart Mill apaixonou-se e casou-se com Harriet Taylor, a qual foi uma fonte decisiva de estímulo intelectual, que veio a falecer em 1858, apenas dois anos após o casamento22.

Stuart Mill desenvolveu a doutrina de Bentham de modo a aprimorá-la e torná-la “mais humana e menos calculista” 23, através da inserção de critérios não apenas quantitativos, mas também qualitativos 24.

Assim sendo, apesar de tanto Mill quanto Bentham de-fenderem o prazer como o bem maior, para o primeiro, a análise da felicidade deixa de ser meramente numérica, uma vez que passa a ser analisada além da quantidade e intensidade da felici-dade, a qualidade dos prazeres.

Destarte, diferentemente do hedonismo de Bentham, no hedonismo de Mill defende-se a ideia de que existem prazeres superiores uns aos outros, sendo que para que haja a

20 MILL, John Stuart. Utilitarismo. Introdução, tradução e notas de Pedro Galvão. Portugal: Porto Galvão, 2005, p. 10-11.

21 MILL, John Stuart. Utilitarismo. Introdução, tradução e notas de Pedro Galvão. Portugal: Porto Galvão, 2005, p. 11.

22 MILL, John Stuart. Utilitarismo. Introdução, tradução e notas de Pedro Galvão. Portugal: Porto Galvão, 2005, p. 11.

23 SANDEL, MICHAEL J. Justiça – O que é fazer a coisa certa. [tradução de Heloísa Matias e Maria Alice Máximo] 4ª ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2011, p. 63.

24 TRINDADE, Sérgio Luiz Bezerra. A ética utilitarista de John Stuart Mill. Revista

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maximização do bem estar dos indivíduos, deveria haver uma forte preferência aos prazeres superiores, mesmo que estejam em menor quantidade em relação aos prazeres inferiores25.

Em relação à existência de tentações que, em muitas oca-siões influenciam na escolha de prazeres inferiores em prol dos superiores, Stuart Mill26 sustenta que:

Pode-se objectar que, sob a influência da tentação, muitos da-queles que podem aceder aos prazeres superiores preferem oca-sionalmente os inferiores. Mas isto é inteiramente compatível com um total reconhecimento da superioridade intrínseca dos prazeres superiores. Devido à fraqueza de caráter, os homens elegem frequentemente o bem que está mais à mão, embora saibam que este é menos valioso; e isto ocorre tanto quando a escolha é entre dois prazeres corporais como quando é entre prazeres corporais e mentais. Entregam-se a vícios sensuais que prejudicam a saúde, embora estejam perfeitamente consci-entes de que a saúde é o maior bem.

No utilitarismo de Mill o ato certo é sempre aquele que venha a maximizar o bem-estar, conduta esta que é sempre obri-gatória e não apenas permissível27. Desta forma, deve-se perse-guir o Princípio da Maior Felicidade, o qual preceitua que as ações são corretas na medida em que propiciem a felicidade, e incorretas na medida em que não realizem a felicidade, enten-dendo-se por felicidade o prazer e a ausência de dor e por infe-licidade a dor e a ausência de prazer28.

Todavia, Stuart Mill vai além do utilitarismo ao se pautar no caráter individual e no desenvolvimento humanos para tentar “consertar” as supostas falhas do pensamento de Bentham.

Para Mill, máxima e plena felicidade somente pode ser

25 MILL, John Stuart. Utilitarismo. Introdução, tradução e notas de Pedro Galvão. Portugal: Porto Galvão, 2005, p. 17.

26 MILL, John Stuart. Utilitarismo. Introdução, tradução e notas de Pedro Galvão. Portugal: Porto Galvão, 2005, p. 51.

27 MILL, John Stuart. Utilitarismo. Introdução, tradução e notas de Pedro Galvão. Portugal: Porto Galvão, 2005, p. 25.

28 MILL, John Stuart. Utilitarismo. Introdução, tradução e notas de Pedro Galvão. Portugal: Porto Galvão, 2005, p. 48.

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atingida se cada indivíduo tomar as próprias decisões e exercitar todas as faculdades humanas, sobretudo por meio das escolhas próprias. E, justamente por isso a minoria e a divergência deve-riam ser respeitadas, para que o indivíduo pudesse livremente exercitar suas capacidades.

Na busca de um equilíbrio entre o crescimento racional e o crescimento sentimental, Mill defende a ideia de que ao sen-tirmos a felicidade dos outros, devemos, igualmente, estar feli-zes. Ao Estado competiria a missão de seduzir aos cidadãos, a fim de que exerçam a sua autonomia e, ao mesmo tempo, desen-volvam a solidariedade 29.

Para que o utilitarismo de Mill seja atendido não se faz suficiente a felicidade do próprio agente, havendo a necessidade de que a felicidade envolva a todos aqueles que são atingidos pela conduta de determinado indivíduos.

No que condiz com a difícil escolha de determinados in-divíduos entre a sua própria felicidade e a felicidade dos outros, Mill assevera que “o utilitarista exige que ele seja tão estrita-mente imparcial como um espectador benevolente e desinteres-sado” 30, devendo sempre alcançar a multiplicação da felicidade.

Por fim, destaca-se que Stuart Mill defende que o poder da sociedade é apresentado como a sanção última da moralidade da maior felicidade, porque é capaz de conduzir os indivíduos a não adotar somente os seus próprios interesses31.

29 GUISÁN, Esperanza. Utilitarismo. In: Dicionário Moral e Política – instituto de Filosofia e Linguagem. Disponível em: <http://www.ifl.pt/private/admin/fichei-ros/uploads/02260f474e c258a8a6512fb0779695df.pdf>, acesso em 14.02.2018, p. 09.

30 GUISÁN, Esperanza. Utilitarismo. In: Dicionário Moral e Política – instituto de Filosofia e Linguagem. Disponível em: <http://www.ifl.pt/private/admin/fichei-ros/uploads/02260f474e c258a8a6512fb0779695df.pdf>, acesso em 14.02.2018, p. 09.

31 GUISÁN, Esperanza. Utilitarismo. In: Dicionário Moral e Política – instituto de Filosofia e Linguagem. Disponível em: <http://www.ifl.pt/private/admin/fichei-ros/uploads/02260f474e c258a8a6512fb0779695df.pdf>, acesso em 14.02.2018, p. 09.

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5 UMA REFLEXÃO “UTILITARISTA” PROPOSTA POR MICHAEL SANDEL

Michael J. Sandel32, em sua recente obra intitulada “Jus-tiça: o que é fazer a coisa certa”, ao pretender tecer alguns apon-tamentos e refletir sobre o que seja a justiça, parte de um caso histórico para explicar a linha de pensamento utilitarista.

Este caso consiste em um naufrágio ocorrido no verão de 1884 no Atlântico Sul. A bordo, 4 tripulantes: o capitão, o pri-meiro oficial, um marinheiro e um jovem taifeiro33 de 17 anos de idade. “Todos homens de excelente caráter”, noticiavam os jornais da época.34 No pequeno bote salva vidas à deriva, conta-vam apenas com algumas latas de nabo em conserva e nenhuma gota de água potável. A comida durou apenas 3 dias. No 4º dia, conseguiram pescar uma tartaruga, e isto lhes garantiu a subsis-tência por mais algum tempo. O Jovem taifeiro, desesperado, in-geriu água salgada e começou a passal mal.

Num ato de instinto de sobrevivência e temendo um mal pior, o capitão sugeriu um sorteio para definir quem se sacrifi-caria para que os demais pudessem sobreviver até que o resgate os localizasse. Tal possibilidade foi de pronto rechaçada por to-dos. Alguns instantes depois, o capitão indicou ao primeiro ofi-cial e ao marinheiro que o jovem taifeiro, desmaiado, seria a sal-vação de todos. Então, com um golpe de canivete no pescoço o jovem foi morto e serviu de alimento para os demais por 4 dias, até que o resgate, enfim, chegasse.

32 SANDEL, MICHAEL J. Justiça – O que é fazer a coisa certa. [tradução de Heloísa Matias e Maria Alice Máximo] 4ª ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2011, 33 sm (taifa+eiro) 1 Cada uma das unidades da taifa. 2 Serviçal de navios de guerra, ao qual, em postos de combate, pertencia parte do serviço da taifa. 3 Náut Criado dos navios mercantes. Dicionário Michaellis. Disponível na internet:< http://michae- lis.uol.com.br/moderno/portugues/index.php?lingua=portugues-portugues&pala-vra=taifeiro>, acesso em 14.02.2018.

34 SANDEL, MICHAEL J. Justiça – O que é fazer a coisa certa. [tradução de Heloísa Matias e Maria Alice Máximo] 4ª ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2011, p. 45.

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Ao relatarem como o jovem morreu, foram imediata-mente presos pelas autoridades, acusados de homicídio. Porém, alegaram como defesa o estado de necessidade.

A provocação do autor, Michel J. Sandel é: o que faria o leitor caso estivesse na condição de juiz do caso? Afastando as questões legais, sobretudo em relação ao direito penal, a pro-posta é analisar se seria moralmente justificável sacrificar uma pessoa para salvar outras três. E neste ponto é que o autor se vale do pensamento utilitarista para proceder à análise da situação.

O jovem taifeiro já estava bastante doente e fraco, era jovem, não possuía família e por isso não deixaria ninguém de-sassistido. Percebe-se, pois, a reflexão moral sobre a possibili-dade de se sopesar a vida por um critério meramente quantita-tivo: matar um para salvar três, ou não matar ninguém e morre-rem os quatro?

Jeremy Bentham tenderia a reputar moralmente justificá-vel e aceitájustificá-vel a conduta do capitão no caso anterior. Segundo Michel J. Sandel, ele “desprezava profundamente a ideia dos di-reitos naturais, considerando-os um ‘absurdo total’”.35

6 ALGUMAS CRÍTICAS POSSÍVEIS À LÓGICA UTILITA-RISTA

As principais críticas ao pensamento utilitarista podem ser sintetizadas em duas. A primeira delas é a de que esta cor-rente não respeita os direitos individuais e a segunda a de que os utilitaristas reduzem valores distintos a uma mesma moeda36.

Michael J. Sandel37 explora estas duas críticas e conclui

35 SANDEL, MICHAEL J. Justiça – O que é fazer a coisa certa. [tradução de Heloísa Matias e Maria Alice Máximo] 4ª ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2011, p. 48.

36 SANDEL, MICHAEL J. Justiça – O que é fazer a coisa certa. [tradução de Heloísa Matias e Maria Alice Máximo] 4ª ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2011, p. 63.

37 SANDEL, MICHAEL J. Justiça – O que é fazer a coisa certa. [tradução de Heloísa Matias e Maria Alice Máximo] 4ª ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2011.

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que o pensamento utilitarista mais sofisticado não seria de todo alheio à proteção das minorias e nem dos direitos individuais. Para desenvolver este argumento de defesa, utiliza a própria ló-gica utilitarista para rebater a primeira crítica. A imagem é a dos cristãos sendo perseguidos e jogados aos leões nas arenas roma-nas. Evidentemente que a morte cruel causa dor às vítimas, po-rém a diversão e o prazer dos telespectadores seriam em maior número, razão pela qual não haveria um problema moral na morte dos cristãos. Será mesmo?

Sandel reconhece que este é um argumento utilitarista raso. Caso se vá além, ainda dentro da própria filosofia utilita-rista, considerar-se-ia que os jogos incitariam a violência como comportamento usual das pessoas nas ruas e disseminaria o medo de que talvez um dia pudessem ser elas as acusadas de professar a fé cristã e serem jogadas aos leões. Portanto, a feli-cidade proporcionada pelos espetáculos talvez não fosse assim tão útil.

Em relação à segunda crítica feita ao utilitarismo, qual seja a de que atribui um mesmo denominador comum a valores e coisas de natureza distintas, Sandel anota que o utilitarista pre-tende pesar as possibilidades sem julgá-las 38. O pensamento uti-litarista reduz tudo a um mesmo tipo de moeda para calcular o que oferecerá a maior utilidade.

A grande questão é a de que essa redução não desconsi-deraria algo importante? A crítica é, portanto, a de que não se pode “transformar em moeda corrente valores de natureza dis-tintas”.39

Para tentar rebater a essa crítica– a de que o utilitarismo reduz todos os valores a uma única e mesma escala - Stuart Mill,

38 SANDEL, MICHAEL J. Justiça – O que é fazer a coisa certa.[tradução de Heloísa Matias e Maria Alice Máximo] 4ª ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2011, p. 55.

39 SANDEL, MICHAEL J. Justiça – O que é fazer a coisa certa.[tradução de Heloísa Matias e Maria Alice Máximo] 4ª ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2011, p. 56.

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defende que os utilitaristas saberiam distinguir os prazeres mais elevados dos menos elevados.40

7 A CRÍTICA DE ENRIQUE DUSSEL

Enrique Dussel41 também faz críticas contundentes. A primeira delas é a redução pretendida pelo utilitarismo de men-surar tudo numa escala objetiva de prazer e de dor. Ademais, o próprio conceito de felicidade seria vago o suficiente para ser apontado como a grande falha de toda a teoria.

Conforme observa o autor42, o problema e o risco de se adotarem os critérios utilitaristas para pautar as condutas em so-ciedade é que bens como a vida, dinheiro, liberdade e dignidade, por exemplo, seriam igualmente considerados, numa mesma es-cala, sem qualquer julgamento de valor ou de prioridade, algo que, para o atual estágio mesmo da teoria jurídica seria inadmis-sível.

Enrique Dussel 43 observa que a felicidade a que se refere Mill será atingida por preferências e padrões de consumo numa sociedade eminentemente capitalista. Além disso, nem Ben-tham, nem John Stuart Mill conseguiram esclarecer exatamente o conteúdo da felicidade (se é corporal ou mental, egoísta ou comunitário); ademais seria impossível um critério matemático capaz de aferir a intensidade e a duração do prazer, que variaria de indivíduo para indivíduo. Em terceiro lugar, Dussel observa que também não se pode afirmar categoricamente que o que é bom para o individual, também o é para o coletivo? Ou ao

40 SANDEL, MICHAEL J. Justiça – O que é fazer a coisa certa. [tradução de Heloísa Matias e Maria Alice Máximo] 4ª ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2011, p. 67.

41 DUSSEL, Enrique. Ética da libertação na idade da globalização e da exclusão. 3ª ed. Petrópolis, Rio de Janeiro: Vozes, 2007, p.112.

42 DUSSEL, Enrique. Ética da libertação na idade da globalização e da exclusão. 3ª ed. Petrópolis, Rio de Janeiro: Vozes, 2007, p.112.

43 DUSSEL, Enrique. Ética da libertação na idade da globalização e da exclusão. 3ª ed. Petrópolis, Rio de Janeiro: Vozes, 2007, p. 111.

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contrário, o que é bom (feliz) para a coletividade, o é também para o individual?

Outro apontamento feito ao pensamento utilitarista é que, nele (pensamento utilitarista) a felicidade é sempre alcançada pelo consumo do comprador– que pressupõe a circulação de ri-quezas num ambiente capitalista. Se tal é o pensamento utilita-rista, então este é falho ao supor que a felicidade só seria possível num ambiente onde impera tal sistema de trocas. As mercadorias seriam então as mediações necessárias ao atingimento do fim ético pressuposto.44

Outra crítica de Dussel é referente ao anúncio da utopia utilitarista ampliada, uma vez que “promove as instituições eco-nômicas necessárias para que a felicidade seja o efeito na totali-dade”.45 Tal ideia seria utópica porque é faticamente (empirica-mente) impossível que a totalidade da população mundial seja feliz ao modo utilitarista.

No modelo capitalista a riqueza é acumulada por parte dos proprietários dos meios de produção – e talvez estes possam ser felizes sob a ótica utilitarista – mas ao custo da pobreza (por-tanto da dor e da infelicidade) da maioria das pessoas. Dizendo de outro modo, “o utilitarismo não conhece a contradição de sua utopia, porque não conhece a essência do capital. Mas pelo me-nos, é sensível ao indicar a reação ente ética e economia”46 .

Dussel anota ainda que o utilitarismo pretende aplicar di-retamente às instituições, sobretudo econômicas, o critério da fe-licidade. Seriam boas as instituições capazes de gerar a felici-dade.47

44 DUSSEL, Enrique. Ética da libertação na idade da globalização e da exclusão. 3ª ed. Petrópolis, Rio de Janeiro: Vozes, 2007, p. 113.

45 DUSSEL, Enrique. Ética da libertação na idade da globalização e da exclusão. 3ª ed. Petrópolis, Rio de Janeiro: Vozes, 2007, p. 113.

46 DUSSEL, Enrique. Ética da libertação na idade da globalização e da exclusão. 3ª ed. Petrópolis, Rio de Janeiro: Vozes, 2007, p. P.113.

47 DUSSEL, Enrique. Ética da libertação na idade da globalização e da exclusão. 3ª ed. Petrópolis, Rio de Janeiro: Vozes, 2007, p. 115.

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Nas palavras do filósofo48: “O utilitarismo indica a im-portância de um aspecto do critério material subjetivo: a felici-dade (momento em que apenas as morais formais atuais negam sem nuanças); mas não chegou a definir um critério (que será para nós a ‘vida humana’ concreta) capaz de subsumir os outros aspectos materiais (tais como os valores, a lógica das pulsões, etc.) e que possa fundar-se ou desenvolver-se como um princípio ético universal.”

8 DE QUE FORMA O UTILITARISMO AINDA VIGE? Não obstante as inúmeras críticas, para demonstrar a atu-alidade do pensamento utilitarista ainda hoje bastante forte nos Estado Unidos, Sandel parte da indagação se seria justificável a tortura a um suspeito de terrorismo.

A hipótese ventilada seria sobre a possibilidade de que um “forte suspeito” de ter implantado uma bomba num prédio com centenas de pessoas pudesse ser torturado para confessar onde está a bomba e, por intermédio da informação obtida, evi-tar-se uma tragédia maior.

Tal raciocínio vem se tornando cada vez mais frequente, sobretudo após o atentado às Torres Gêmeas em 11 de setembro de 2001. Para alguns utilitaristas, a tortura nesta hipótese seria justificável, porque garantiria a integridade física de centenas de pessoas em detrimento da violência “justificada” a apenas uma.

Todavia, é de se advertir que nem todos os utilitaristas apoiariam a tortura como política de Estado. Primeiro porque as informações49 obtidas por intermédio da coação nem sempre são confiáveis. A dor causada ao suspeito não necessariamente pro-moverá a segurança e acrescerá utilidade ao grupo.

48 DUSSEL, Enrique. Ética da libertação na idade da globalização e da exclusão. 3ª ed. Petrópolis, Rio de Janeiro: Vozes, 2007, p. 115.

49 SANDEL, MICHAEL J. Justiça – O que é fazer a coisa certa. [tradução de Heloísa Matias e Maria Alice Máximo] 4ª ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2011, p. 52.

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Observe-se, entretanto, que eventual argumento utilitarista para rejeitar a tortura não se apoia em um alegado respeito à integridade ou dignidade do acusado. De toda a sorte, a conclusão de Sandel é a de que, para Bentham, os números (de vidas, por exemplo) possuem, sim, um peso moral diante de uma realidade concreta.

Sandel retoma o exemplo do naufrágio para dizer que mesmo os que seriam contrários à morte do jovem taifeiro para que os outros três tripulantes fossem salvos, já não teriam a mesma segurança para serem contrários à tortura de um terro-rista que implantou uma bomba que, caso explodisse, mataria centenas de pessoas inocentes.

Mesmo os mais apaixonados defensores dos direitos hu-manos, num caso desses, sentiriam dificuldades em pedir pela integridade do acusado em detrimento da provável morte de ou-tros tantos inocentes.

Com a clareza que lhe é notória, Sandel se vale de exem-plos atuais ocorridos em diversos governos para demonstrar o que se pode chamar de ‘calcanhar de aquiles’ do utilitarismo.

Num primeiro caso, o autor aponta uma pesquisa reali-zada pela Philip Morris, uma grande companhia de tabaco, na República Tcheca. O governo daquele país, ao se deparar com os altos custos de tratamentos de saúde dos portadores de câncer de pulmão, pretendia aumentar os impostos do tabaco e imple-mentar outras políticas públicas de desincentivo ao tabagismo.

A Philip Morris, pretendendo evitar tais medidas, elabo-rou um estudo que conclui que os lucros obtidos pelo governo com a venda de tabaco era superior aos custos finais com os des-pesas médicas para tratar os fumantes. Isso porque, ainda que os tratamentos de câncer de pulmão custassem caro, os pacientes viviam pouco e, com isso o governo economizaria com pensões, e demais custos típicos das populações idosas. A pesquisa foi amplamente criticada por desrespeitar a vida humana50. A conta

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não deveria considerar apenas aspectos fiscais e monetários. Sandel prossegue argumentando que um utilitarista não desconsideraria do raciocínio a dor e o sofrimento dos familiares das vítimas de câncer, e nem mesmo o sofrimento delas. Para Bentham, entretanto, o princípio da utilidade também atribuiria à vida humana um valor. Portanto, o estudo sobre o tabagismo apenas teria utilizado equivocadamente o modus operandi utili-tarista.

Alguns estudos históricos nos Estados Unidos chegam a atribuir valor pecuniário à vida humana. Um primeiro exemplo é o caso da explosão de tanques de combustível num modelo específico da Ford. Em caso de colisão pela traseira, o tanque explodiria. Muitas vítimas e seus sucessores processaram a Ford por falha no projeto. Os engenheiros esclareceram que sabiam do risco de explosão, mas que para corrigi-lo o carro custaria 11 dólares a mais. A Ford estimou que, ao longo de um ano, pudes-sem ocorrer 180 mortes e 180 casos de queimaduras. Estimou que cada morte lhe custaria 200 mil dólares e que cada caso de queimadura custaria 67 mil dólares. Acresceu a estes valores o preço de cada carro queimado e concluiu que o custo era de 49,5 milhões dólares por ano. Todavia, para preceder às alterações necessárias a cada um dos 12,5 milhões de unidades do modelo, ao custo de 11 dólares cada, o custo seria de 137,5 milhões de dólares. Logo, o custo para evitar o risco não compensaria à companhia.51

Esse panorama também permite dizer que as escolhas, sejam públicas ou privadas, talvez sejam feitas, em certa medida, sob influência, ainda que inconsciente ou involuntária, da racio-nalidade calculista e utilitarista.

Basta pensar, por exemplo, na discricionariedade

Matias e Maria Alice Máximo] 4ª ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2011, p. 57.

51 SANDEL, MICHAEL J. Justiça – O que é fazer a coisa certa. [tradução de Heloísa Matias e Maria Alice Máximo] 4ª ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2011, p. 58-59.

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administrativa. Onde alocar recursos públicos? Fazer uma ponte ou construir uma escola? Qual das obras promoverá maior feli-cidade? Ao governante? Ou à comunidade? Outro exemplo, para colocar a questão no âmbito jurídico. A questão dos medicamen-tos. Vários juristas argumentam que como os recursos públicos são escassos, garantir o tratamento de saúde caro a um único in-divíduo pode implicar na desassistência de inúmeros outros nos postos de saúde. Aqui o critério quantitativo parece mais evi-dente.

9 CONCLUSÕES

Evidentemente, o debate é muito mais complexo do que aqui se expôs. E, assim, como é comum, a aceitação ou não de uma corrente filosófica, pressupõe a aceitação ou não das pre-missas, das bases, ou mesmo do paradigma em que o pensa-mento é desenvolvido.

O utilitarismo parte da máxima de que todos queremos ser felizes e que a felicidade é o fim último a ser atingido. Dus-sel, ao adotar o paradigma da vida negada, aponta as falhas ba-silares do pensamento utilitarista, porque, reconhecendo as víti-mas do sistema, conclui que pensar dentro dos parâmetros utili-taristas implicaria em continuar negando a vida – e porque não, a própria felicidade àqueles não proprietários dos meios de pro-dução. E, por isso, a crítica é tão contundente.

Seja como for, a economicidade utilitarista é sedutora na medida em que estabelece como critérios únicos a busca do pra-zer (felicidade) e a fuga da dor como os objetivos das condutas humanas. Essa seria a moral a pautar as condutas dos indivíduos em sociedade, e não uma moral metafísica inatingível.

O problema é que, a partir do momento em que bens ju-rídicos igualmente importantes e, em tese, que dinheiro algum pode pagar, estão em risco, o critério quantitativo parece preva-lecer. O risco dessa frieza economicista e calculista pode

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acarretar na violação significativa a vários direitos constitucio-nais, fazendo com que diversas injustiças sejam cometidas em prol de uma suposta busca da máxima felicidade humana.

Diante do domínio do sistema capitalista e da limitação da racionalidade dos indivíduos, os quais, são fortemente influ-enciáveis por prazeres inferiores e que denotam interesses ego-ísticos, a probabilidade de que sejam realizadas ponderações adequadas de quais medidas devem ser tomadas a fim de que a felicidade geral seja, sempre, atingida, ainda é bastante distante da atual realidade humana.

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10 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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conceito de moral no utilitarismo de Bentham e John Stuart Mill: a moralidade como derivada das respectivas noções da natureza humana. Disponível em: http://www.principios.cchla.ufrn.br/arquivos/32P-483-506.pdf, acesso em 18.08.2014,

DUSSEL, Enrique. Ética da libertação na idade da

globaliza-ção e da exclusão. 3ª ed. Petrópolis, Rio de Janeiro:

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GUISÁN, Esperanza. Utilitarismo. In: Dicionário Moral e Polí-tica – Instituto de Filosofia e Linguagem. Disponível em:

http://www.ifl.pt/private/admin

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PELUSO, Luis Alberto. O utilitarismo: o projeto de construir

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PENDAS GARCIA, Benigno. Jeremy Bentham: politica y

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(Tex-tos parlamentarios clasicos; v. 1). (Broch.). 1991.

SANDEL, MICHAEL J. Justiça – O que é fazer a coisa certa. [tradução de Heloísa Matias e Maria Alice Máximo] 4ª ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2011.

TRINDADE, Sérgio Luiz Bezerra. A ética utilitarista de John Stuart Mill. Revista da FARN, Natal, v. 4, n. 1-2, p. 93-108, jul. 2004/ dez. 2005.

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