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O tema do deserto e da vida ascética no monaquismo feminino na Igreja cristã primitiva: os monges e as monjas do deserto.

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Academic year: 2021

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O TEMA DO DESERTO E DA VIDA ASCÉTICA NO MONAQUISMO FEMININO NA IGREJA CRISTÃ PRIMITIVA: OS MONGES E AS MONJAS DO DESERTO

THE THEME OF THE DESERT AND ASCETIC LIFE IN WOMEN´S MONASTICISM IN THE EARLY CHURCH: THE DESERT MONKS AND NUNS

Paulo Augusto Tamanini

Professor Pesquisador PNPD-CAPES no Programa de Pós-Graduação em História da UFPR

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Resumo: O interesse pela vida e escritos de

monges e monjas do cenobitismo oriental subsidiou uma coleção de relatos, composições literárias chamadas de ‘fontes monásticas’ e que hoje se deixam ofertar aos interessados no aprofundamento do assunto. Este artigo objetiva discorrer sobre a redescoberta e releitura do monaquismo oriental focando o gênero feminino mostrando uma dadivosa área a ser explorada e que pode, e muito, contribuir para a compreensão mais ampla do rosto eclesial, talhado pelo tempo, pelo lugar de expansão, pelas formas de organização desses grupos de mulheres

Palavras-chave: Monaquismo Feminino,

Patrística, Igreja Oriental.

Abstract: The interest for the life and

writings of monks and nuns of the Eastern cenobitism subsidized a collection of stories, literary compositions called 'monastic sources' and that today allow researchers who are interested in the subject to deepen such a research project. This article aims to discuss the rediscovery and reinterpretation of Eastern monasticism focusing on women due to the fact that there is a bountiful area to be explored and that can certainly contribute to the broader understanding of the Church's structure, carved by time, by its expansion and by the forms of organization of these groups of women.

Keywords: Female Monasticism, Patristic,

Eastern Church.

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Recebido em: 22/12/2015 Aprovado em: 16/06/2016

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Introdução

As nomenclaturas escondem um caminho e, para melhor compreensão das perguntas que no presente sobre a mística feminina da era cristã primitiva se fazem, o passado deixa-se outra vez revisitar. A História da Igreja, a Filosofia e a Teologia dão, segundo seus pressupostos metodológicos, conceitos e objetivos, contribuições específicas para o enriquecimento desse saber abrangente, ainda aberto às investigações. Se por detrás das terminologias há um construto, um percurso, a trajetória de feitura deixa seus rastros através dos quais o conhecimento pode chegar à luz, dando às perguntas surgidas a possibilidade de fazer calar as curiosidades investigativas. Uma vez expostas ao raciocínio e à acadêmica curiosidade, pode provocar uma discussão acesa sobre esse tema tão candente e suscitar uma maior abertura para uma questão que, até então, ocupava lugar acanhado nas universidades.

No regime moderno de historicidade, o homem e a mulher deixam de ser analisados somente pelo crivo da razão, para serem percebidos também em suas subjetividades e em seus pertencimentos abrindo ao pesquisador novas maneiras de compreendê-los. Atualmente, às ciências humanas, também à Teologia, interessa compreender o homem e a mulher em sua totalidade, em seus papeis culturais de gênero, em sua dimensão mística, e, porque não, em seu aspecto relacional com o Transcendente.1 Assim, torna-se importante entender não somente que tanto o monaquismo masculino como o feminino existiram, mas que passaram por vários processos de adaptação, conforme o tempo e lugar, do que decorreu o surgimento de algumas peculiaridades. Em consequência disso, o Oriente e o Ocidente guardam duas vertentes próximas da vida monástica cristã, cada qual com seus valores, suas regras, riquezas espirituais, ligadas ao mesmo objetivo: buscar atingir a perfeição, a deificação humana, através dos votos professos.

Como o monaquismo Oriental e Ocidental, em suas porções masculinas e femininas, não pode ser entendido como realidade estanque, investigá-lo neste permanente intercâmbio de tempo e lugar oportuniza não só conhecê-lo em suas contínuas recomposições e rupturas, em suas aproximações e finalidades, mas na maneira como se anunciara e se apresentara ao mundo, dando outra identificação àquilo que acreditavam ser um desdobramento da

1 NISSA, Gregório de. La mujer como evangelizadora. Buenos Aires: Lumen Editorial, 1990;

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verdadeira filosofia. Segundo Peter Brown, os monges do cristianismo primitivo, ainda que

vivessem afastados do mundo, dele não prescindiam totalmente, uma vez que retiravam, no contato social com os mundanos, o seu sustento. Trocavam por um pouco de alimento alguns trabalhos manuais, aconselhamentos espirituais, receitas de chás de ervas para cura de algumas enfermidades etc.2

As obras do monaquismo antigo, em particular os Apophtegmas, não só condensam os relatos sobre a vida de Antão (ou Santo Antônio), Ammonas, de Pacômio, Basílio, Orsieso, Teodoro, Teodoro Alexandrino, Evagrio, Paládio e de Cassiano3 como sublinharam a existência de uma porção que estava à margem dos interesses das pesquisas acadêmicas, mas que a partir do século XIX, ganhou notoriedade: o monaquismo feminino de tradição bizantina.4

1. O interesse acadêmico pela história do Monaquismo

A origem do monacato cristão está rodeada de densas sombras. Talvez o velamento, a falta de certezas e as inúmeras probabilidades que expliquem as raízes dessa forma de vida regrada tenham aguçado as curiosidades investigativas. Não só historiadores, como sociólogos, teólogos, filósofos se debruçaram sobre as mais diversas possibilidades investigativas, como também aqueles que procuravam imitar suas práticas. Independentemente de perscrutar o início do monaquismo cristão, a preocupação de alguns pesquisadores, no entanto, atualmente recai sobre a tentativa de elucidar a vida de pessoas em sua inteireza que também estavam inclinadas às suscetibilidades humanas e que lutavam contra demônios, buscando a perfeição. O monaquismo não é uma realidade exclusiva do cristianismo, tampouco um modo de vida ascético inaugurado por ele. Anterior ao modelo cristão, havia comunidades pré-cristãs de raízes gregas, israelitas e indús, que praticavam formas comunais de asceticismo.5

Como em cada surgimento há uma longa série de antecedentes, talvez por afinidade, o Oriente cristão tenha herdado do judaísmo a tipologia monástica praticada

2 BROWN, Peter. The Rise and Function of the Holy Man in Late Antiquity. Journal of Roman Studies, v.

61, 1971, p 80-101.

3 COLOMBAS, Garcia M. El monacato primitivo. Madri: Biblioteca de autores cristianos, 2004, p. 3. 4 KNITTER, Paul F. Introduzione alle Teologie delle Religioni. Roma: Queriniana, 2012, p. 8.

5 MASOLIVER, Alejandro. Historia del monacato cristiano. III. El monacato Oriental. El monacato

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no primitivo cristianismo e organizada pelos santos padres. Atualmente não há impedimento para afirmar que muito antes de aparecer o monaquismo cristão, muitos outros existiram, o que vem a confirmar que se trata de um fenômeno humano e que as religiões souberam muito ardilosamente se apropriar. Palavras usuais nas comunidades cristãs com muita probabilidade foram compiladas em território não-cristãos, demonstrando raízes pertencentes a outras realidades de fé já experimentadas: askesis (ascético); anakoresis (separação), koinobion (vida comum).6

O interesse dos pesquisadores europeus - que editaram, traduziram, agruparam, catalogaram o que os religiosos medievais anteriormente coletaram acerca da vida e escritos de monges e monjas do cenobitismo oriental - subsidiou uma coleção de relatos, composições literárias chamadas de fontes monásticas e que hoje se deixam ofertar aos interessados, levantando questões prementes. Como a temática mostrou-se muito diversificada, observa-se que em diferentes Escolas acadêmicas surgiam novas leituras, outros enfoques de abordagem, deixando que outras faces do monaquismo viessem à baila. A redescoberta ou releitura do monaquismo oriental focando o gênero feminino mostrou uma dadivosa área a ser explorada e que pode, e muito, contribuir para a compreensão mais ampla do rosto eclesial, talhado pelo tempo, pelo lugar de expansão, pela forma de organização desses grupos de mulheres.7

Se as primeiras informações sistematizadas acerca da vida dos monges vinham de Santo Atanásio e São Jerônimo, muitas outras se sucederam discorrendo sobre os monges anacoretas do Egito que se dedicavam à oração, composição, transcrição de textos. As fontes revelam que, diferentemente do que se cria, às monjas orientais não só couberam os trabalhos manuais, mas a algumas delas lhes eram entregues a função de serem copistas das composições litúrgicas, o que era uma novidade e a quebra de uma barreira instituída pela cultura de gênero.8

Isto posto, os monges e as monjas na Igreja primitiva mais que identificações eclesiásticas, eram expressões e reflexos de identidades, revelando de que maneira esses

6 COLOMBAS, Garcia M. El monacato primitivo. Madri: Biblioteca de autores cristianos, 2004, p. 11-14. 7 MASOLIVER, Alejandro. Historia del monacato cristiano. I. El monacato desde los origines hasta san

Benito. Madri: Encuentro ediciones, 1994.

8 LEVALOIS, Christophe. Prendre soin de l’autre: une vision chrétienne de la communication. Paris:

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religiosos se entendiam, como detentores de uma missão e como membros de uma igreja. O isolamento, norteado pela motivação filosófica, manifestava a fuga mundi, o que credenciava o surgimento de modos de vida na solidão e contemplação. Esses modos de se relacionar com o conhecimento, com a “verdadeira filosofia” e com o “eterno”, contribuíram para o processo de formação da própria Igreja como instituição detentora do sagrado. A busca desses ideais, contudo, caracterizaram fortemente o modo contemplativo de existir das comunidades cristãs do Oriente grego e do Ocidente latino.9

De um grupo que manifestamente ia de encontro ao modo instituído de se portar em uma sociedade, ou que fugia das perseguições, os primeiros movimentos monásticos ou “movimentos de fuga para o deserto no Egito” ou “de rejeição do mundo” eram vistos pelos pesquisadores como um reflexo e uma adesão à vida pelo avesso.10 Seguindo esse rastro, a rejeição do mundo, o isolamento e o distanciamento social eram então seguidos qual uma resposta de obediência àquelas expressões e sentimentos de pensamento, nada então ainda que ligasse os fundamentos de adesão a um grupo religioso.11 Aquela dissidência ou reclusão social, regrada por um saber filosófico, então preparava um caminho para que posteriormente tais experiências fossem reaproveitadas e incorporadas pela Igreja cristã, legitimando-a como um modo de viver de busca pela perfeição e santidade, porque justificada e baseada, a partir de então, por pressupostos teológicos.

Do lugar de protesto, da reclusão e da materialização de um não a um modo de se sentir no mundo que se oferecia às experimentações e desejos materiais, com suas estruturas e cadeias de organização, o deserto tornou-se por primeiro o lugar emblemático para que se cultivasse nos homens e nas mulheres a propensão à santidade, um lugar de cultivo e de resposta afirmativa a um jeito de se viver que a comunidade nascente cristã se propunha.

O deserto constitui, na revelação do Antigo e do Novo Testamento, um tema de atração particular. Sabemos que dentro da mitologia hebreia os Hebreus teriam tido no deserto as experiências mais imediatas da presença de Deus, e que neste teve que lutar pela pureza de sua entrega, pela fidelidade a seu Deus. Mas também foi no deserto que o

9 AMARAL, Ronaldo. A santidade habita o deserto: hagiografia à luz do imaginário social. São Paulo:

Ed UNESP, 2009.

10 KNITTER, Paul F. Introduzione alle Teologie delle Religioni. Roma: Queriniana, 2012, p. 2. 11 GUIGNEBERT, Ch. El Cristianismo primitivo. México: Fondo de Cultura Económica, 1988, p. 65.

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povo eleito experimentou o pecado e a ofensa ao Criador, a tal ponto que em certo momento aquele lugar chegou a ser símbolo da ausência, da solidão, cheio de perigos e tentações. O Novo Testamento é igualmente devedor dessa dupla visão. É no deserto que São João Batista começa o anúncio do Reino de Deus, e para onde foge a Igreja perseguida do Apocalipse (12,5-6)12. É também a montanha solitária lugar preferido por Jesus para sua oração íntima. Mas o deserto é, além disso, morada do demônio, símbolo do obscuro e sem vida. Jesus foi tentado no deserto e, segundo seu próprio ensinamento, esse é o lugar próprio da tentação. Seja qual for a origem dessa dupla imagem do deserto, o essencial é que participa do paradoxo de tudo o que conforma a relação de Deus com o homem. Também o deserto recorda ao homem sua pobreza e solidão essenciais, sem as quais não se pode compreender nem a riqueza da criação nem a graça que significa a comunidade e o serviço aos homens.

Se era um lugar de despojamento, um espaço de desapego e de substituição de valores, também aparecia como um espaço de aprendizagem e de autoconhecimento para as mulheres e homens que se atreviam a atravessá-lo. O deserto como mestre daquilo que era essencialmente humano, tornava-se aos poucos um propício endereçamento para a contemplação, uma referência para centros de peregrinações, lugar de culto e aonde se podia descobrir e exercitar uma espiritualidade individual. A construção da imagem-símbolo do desdobramento do deserto, instituídos e chamados eremitérios, monastérios, lavras, foram ganhando força e legitimação graças às investidas, organização, regramento e discursos dos Pais da Igreja (também conhecidos como “Padres da Igreja” ou “Santos Padres”, em sua grande maioria Bispos), primeiramente gregos, depois latinos.

2. As primeiras chamadas ao serviço da Igreja nascente

Os Santos Padres gregos da Igreja insistiam em que a Bíblia não foi um amontoamento de escritos sui generis, mas a história da relação de Deus com uma comunidade de fé. Logo, entendem as Escrituras como um elemento essencial da Santa Tradição. O testemunho apostólico oferecia uma nova perspectiva sobre a forma como a Palavra de Deus deveria ser compreendida no desenvolvimento do que se tornou a doutrina da própria Igreja. Estas doutrinas refletiam claramente como a Escritura tomava

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forma na tradição, ao especificar as suas abrangências e hermenêuticas, os seus entendimentos acerca do papel do homem e da mulher no plano de salvação.13

Relatam as Sagradas Escrituras que o número das famílias em que a mulher foi a primeira a confessar a fé no Ressuscitado era muito grande.14 Paulo fala de Timóteo cujo pai era pagão, grego, e a mãe, Eunice, junto com a avó, Loida, sendo judias, abraçaram a fé e despertaram no filho e neto uma “fé sincera” (2 Tim., 1, 5). Outro exemplo relatou Paulo nos Atos dos Apóstolos, quando guiado pelo Espírito Santo, tinha chegado a Tróade nas margens ocidentais da Ásia Menor. Indeciso a respeito da região que deveria escolher para evangelizar, sentiu-se chamado a se deslocar para a Europa, onde começou a trabalhar com um pequeno grupo de mulheres a cristianização do Ocidente. Dentre essas, o Apóstolo das Nações nomeou Lídia de Tiatira, a comerciante de púrpura, que se converteu ao cristianismo, junto com os de sua casa que receberam o batismo. Prosseguindo na sua viagem de missão, Paulo obteve grandes êxitos na conversão de mulheres, tanto em Tessalônica como em Bereia. (Atos 17, 12). Como Lídia em Filipos, também Cloé, em Corinto, cedo aderiu com a sua família à fé em Jesus Cristo. Paulo faz saber aos cristãos de Corinto que teve notícias das contendas havidas entre eles “pelos da casa de Cloé” (I Cor., 1, 11). Por ser responsável pela comunidade nascente não se absteve de revelar a fonte das informações. Em outra passagem, Paulo fala em seguida de vinte e seis nomes de irmãos e irmãs em Jesus Cristo, aos quais, desde Corinto, envia saudações. Encabeça a lista um casal, e a mulher ocupa o primeiro lugar, o que fere a atenção, tratando-se daqueles tempos: “Saudai Prisca e Áquila, meus cooperadores em Jesus Cristo” (I Cor 15, 3-5).15

Facilmente à igreja nascente reportou-se a figura materna, da mulher de oração que estava de pé junto à Cruz, e que, em atitude silenciosa, estava preparada para receber, no cálice das suas mãos erguidas, a missão evangelizadora de seu Filho.16 Aos poucos, o rosto materno da Igreja deixou-se revelar no modo como Paulo se reportava à comunidade dos gálatas: “Filhinhos meus, por quem eu sinto de novo as dores do parto, até que Jesus Cristo se forme em vós; bem quisera eu estar agora convosco” (Gl 4, 19-20). Como “Apóstolo de

13 BRECK, John. L'écriture dans la tradition. Paris: Cerf, 2013.

14 GUIGNEBERT, Ch. El Cristianismo primitivo. México: Fondo de Cultura Económica, 1988 15 BÍBLIA DE JERUSALÉM. São Paulo: Paulus Editora, 2008.

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Cristo” teria podido falar com autoridade aos tessalonicenses. Preferiu, porém, tratá-los “como a mãe que cerca de ternos cuidados os seus filhos” (Ts 2,7).17

Segundo Christophe Levalois, alicerçados nas Sagradas Escrituras, as Constituições Apostólicas do século IV e a Didascalia Apostolorum, do século III, prescreviam que os bispos escolhessem também uma diaconisa fiel e santa para servir às outras mulheres nos batismos, por exemplo.18 De auxiliares no Batismo a colaboradoras do bispo na prática da caridade, prontas à obediência, se dedicavam a visitar os enfermos, os inválidos, viúvas, órfãos. Estavam a serviço da Igreja desde que reservadas, discretas no falar, sempre amáveis, equilibradas, não podendo tomar decisões sem a autorização do bispo.19 Contudo, diferiam da Ordem sacerdotal masculina, pois eram assistentes do bispo.20 E prestavam o serviço nas ocasiões em que o bispo não poderia estar.21

Tornou-se difícil averiguar se, desde o princípio, as diaconisas se distinguiam das viúvas, e qual era o ponto ou a função que as diferenciava umas das outras. Paulo fala várias vezes das viúvas. À “irmã Febe” chama ele “diakonos da Igreja de Cencris” (Rom., 16, 1). Portanto, naquela ocasião não existia ainda a forma feminina da palavra. Os auxiliares de ambos os sexos se designavam com o mesmo título, assim como ainda hoje se aplica em muitas línguas a forma masculina indistintamente a homens e mulheres. O fato de o Apóstolo exigir das viúvas empregadas as mesmas condições (I Tim., 3, 11-13) que primeiro havia exigido dos diáconos parece indicar que no princípio o ofício de diaconisa se confiava principalmente às viúvas que tinham alcançado a idade prescrita, ao passo que numa fase posterior se fazia distinção entre viúvas e diaconisas e se admitia também virgens para o desempenho do dito cargo.22

17 BÍBLIA DE JERUSALÉM. São Paulo, Paulus Editora, 2008.

18 LEVALOIS, Christophe. Prendre soin de l’autre: une vision chrétienne de la communication. Paris:

CERF, 2012.

19 Didascalia Apostolorum. In.: GIBSON, Margaret Dunlop (ed. trad.). The Didascalia Apostolorum in

English. Cambridge: Cambridge University Press, 2011, p 1-13.

20 SÃO CLEMENTE DE ALEXANDRIA, Pedagogo, 1, 4, 1-2. In: BOEHNER, Philotheus, GILSON,

Etienne. História da Filosofia Cristã: Desde as Origens até Nicolau de Cusa. 7 a ed. Trad. Raimundo Vier. Petrópolis: VOZES, 2000.

21 SPINELLI, M. Helenização e recriação de sentidos. A Filosofia na época da expansão do Cristianismo

- Séculos, II, III e IV. Porto Alegre: Edipucrs, 2002, p. 63-78.

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Assim como São Paulo, os Evangelistas Marcos e João registram a presença das mulheres como discípulas e seguidoras de Jesus (Mc 15,40-41; Jo 2,4;19,26). Além das discípulas, outras chamadas “viúvas” pareciam ter função na Igreja dos primeiros séculos e, ainda que não houvesse uma legislação clara quanto às suas funções e responsabilidades, viviam em oração e praticavam a continência. Eram merecedoras de respeito, ajudavam os pobres, assistiam aos doentes. Faziam votos de castidade como as virgens, teriam que ter mais de 50 anos para que o bispo as recebesse formalmente na Igreja (Cf. Didascalia Apostolorum).23

Além das viúvas, um outro grupo de mulheres teve lugar na Igreja: as virgens. A virgindade era uma forma de vida perpétua. Era abraçada por amor a Deus e era um reflexo da vida eterna, não existindo mais a necessidade de matrimonio.24 Tais mulheres se consagravam diante do bispo; renunciavam os bens temporais, a riqueza, o luxo, as vaidades, os banquetes. Acreditava-se que quem se consagrasse a Deus em sua virgindade se punha em estreita relação com o Senhor (2 Cor. 11,2). Contudo, era preciso vigilância para não cair no orgulho. Acreditava-se que a mulher que renunciava o matrimônio estava mais próxima do Espírito Santo, pois era esposa de Cristo.25 No entanto, na vida monástica feminina sobressaíram as mulheres que eram mães e, em alguns casos, mães e filhas viviam na mesma comunidade, como no exemplo de Santa Paula e sua filha Eustóquia, no século III.26

O Santos Padres inspirando-se na pessoa da Mãe de Deus ensinavam que toda mulher que professasse sua virgindade era também mãe, pois, ainda que não tivesse relações carnais gerava filhos espirituais para Deus. Por isso tanto a mulher casada quanto a virgem consagrada eram necessárias e tinham seu lugar na História da Salvação.27 Se as virgens estavam geralmente sob as ordens de um bispo ou de um sacerdote delegado, vivendo comunitariamente sob a direção espiritual de uma “Madre” (mestra

23 Didascalia Apostolorum In.: GIBSON, Margaret Dunlop (ed. trad.). The Didascalia Apostolorum in

English. Cambridge: Cambridge University Press, 2011, (Tertuliano, De exhort. 13, 4)

24 PATRÍSTICA. Ambrósio de Milão. São Paulo: Paulus, 1996.

25 TREVIANO, Ramón. Patrología. Série Sapientia Fidei. Madrid: BAC, 1994. p.233

26 GUIGNEBERT, Ch. El Cristianismo primitivo. México: Fondo de Cultura Económica, 1988. 27 SÃO CLEMENTE DE ALEXANDRIA. Stromata. 3,86,1 e 88,2.3

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experimentada na vida religiosa) outras, contudo, buscavam a aproximação com Deus através da vida solitária e exigente do deserto.

Os lugares do esconderijo do mundo, ainda que por primeiro fossem abraçados por homens, não obstaculizaram a presença e atuação femininas. Somados ao esforço de credenciar tal modo de vida incluindo as mulheres, os santos padres de Antioquia, expoentes dos saberes da teologia mística sob a influência dos capadócios, baseavam-se no e tomavam como referências o Novo Testamento. Souberam extrair dos escritos paulinos, além da mera admiração que o Apóstolo das Nações remetia às primeiras mulheres evangelizadoras do cristianismo, o substrato que explicaria a inusitada façanha de dar espaço e visibilidade na igreja às mulheres.28

O surgimento da vida contemplativa feminina na comunidade cristã era então explicado por uma documentação, por narrativas escritas que posteriormente foram meticulosamente estudadas em sua historicidade pelos pesquisadores do sagrado. Assim, graças ao cuidado das fontes e às análises desenvolvidas pelos teólogos e místicos da Antiguidade, os tempos apostólicos eram por excelência uma fonte que se prestava a responder às questões de surgimento, que tangenciava qualificar o lugar da mulher nos espaços monásticos. Assim, os Atos dos Apóstolos e as Epístolas de São Paulo são preciosas fontes de conhecimento da doutrina do primitivo cristianismo acerca também das mulheres e do serviço prestado por elas às comunidades cristãs nascentes. Se a missão de Cristo não terminou com a sua vida terrena, conforme reza a Tradição e os Evangelhos, se presentificava nos frágeis instrumentos humanos em que homens e mulheres eram representados para levar a cabo a tarefa a quem cabia a Igreja continuar.

3. As duas feições do monaquismo feminino no Oriente

Após o Edito de Milão continuavam os grupos, em sinal de protesto, a se retirar para o deserto, sobretudo na Síria e no Egito. onde os conquistadores gregos haviam aos poucos sufocado a cultura autóctone.29 Contudo, não se pode negar que a incidência religiosa de clérigos orientais gregos deu certa condição para que o movimento tivesse

28 NISSA, Gregório de. La mujer como evangelizadora. Buenos Aires: Lumen Editorial, 1990, p. 4. 29 MARAVAL, Pierre. Constantin le Grand: Empereur romain, empereur chrétien (306-337). Paris:

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continuidade e legitimação à medida que os clérigos atribuíam àquela forma de vida uma inspiração evangélica.

No desdobramento e organização de vida, esses movimentos do deserto levavam avante uma exigente concepção ascética do batismo fundada na continência, na pobreza, na vida de oração e numa tradição profética judaico-cristã que na Síria se concretizava na instituição dos “filhos da aliança”. Para a designação daqueles que seguiam este modo de vida, a língua grega burilou o termo monakos, ou seja, aquele que vive sozinho. Depois surgiu uma porção dos que deixavam tudo e partilhavam os bens com seus coirmãos, os cenobitas. No século IV surgiu um misto das duas formas: semianacoreta e a semieremítica.30

Antão, Pacômio e Macário do Egito imprimiram uma organização, uma disciplina e um jeito clerical aos tais movimentos, despertando cada vez mais vocações, principalmente na Ásia Menor e Constantinopla. Mesmo no Egito, nem todos os monges se reduziam aos modelos eremítico e cenobita. Os testemunhos falam repetidamente de tipos irregulares que usam das fórmulas anárquicas primitivas, mais instáveis, tendentes à mendicância, não sem a pretensão de impor-se aos bispos e ao povo.

Em pleno século IV, a Ásia Menor e Constantinopla foram testemunhas de uma evolução que realmente não dependia do Egito. Já por volta de 340, Eustácio de Sebaste guia, no Ponto e, por meio do diácono Maratônio, até mesmo na capital, no tempo de Macedônio, um movimento que entra em conflito com Eusébio da Nicomédia e com a Igreja oficial (Concílio de Gangra). A adesão de Basílio Magno a este grupo permitiu uma evolução profundamente evangélica e eclesial, sob uma forma nitidamente cenobita, voltada para o serviço dos pobres, o trabalho disciplinado, a adoção normal do ministério sacerdotal e até mesmo do episcopado.

Contudo, não somente entre os homens se firmou um modo de vida monástico. São João Crisóstomo, descrevendo a Carta de São Mateus, afirmava existirem grupos de mulheres que viviam no deserto e travavam, igual aos homens, uma luta contra o mal, contra o demônio e os desejos da carne, e que se autodenominavam “filósofas”. Ο

Φιλοσοφος, para os gregos, particularmente para os estóicos, era considerado o homem

30 SPINELLI, M. Helenização e recriação de sentidos. A Filosofia na época da expansão do Cristianismo

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perfeito, livre das inclinações do mal porque contra elas sabia lutar. O termo, no cristianismo, ganhou semântica nova (gnosis) compreendendo aquele que tinha verdadeiro conhecimento da doutrina de Cristo.31

Os monges e os ascetas orientais cristãos se apropriaram desta terminologia para designar seu modo de vida, dizendo que seguiam a "verdadeira filosofia". Logo, conclui-se que os monges conclui-se denominavam "verdadeiros filósofos" para conclui-se distinguirem dos ‘pseudo-filósofos’ pagãos que cultivavam a filosofia do mundo, tida por vã e por isso considerada perigosa para os monges.32 São Basílio e São Gregório de Nissa não cansavam de afirmar que se os monges eram chamados ‘filósofos’ os monastérios, por sua vez, eram as "escolas de filosofia", no interior das quais se ensinava a suprema filosofia de viver a vida em Deus.

A filosofia cristã ensinava o autoconhecimento, a ponderação, a serenidade, o desprendimento das coisas materiais e incentivava a prática das virtudes (Filocalia). A função daquela ‘verdadeira filosofia’ era então levar o monge à percepção das coisas sensíveis, que elevavam a mente às alturas, que facilitava a meditação e que podia encontrar meios de unir o homem a Deus de maneira que já não podiam mais se separar.33

E, dentre o aprendizado monástico, alguns se sobressaíam, ora por cumprir com rigor as regras de vida, ora pela notável inteligência. O monge ou o abade era considerado perfeito quando conseguia alcançar a “verdadeira filosofia”, uma verdadeira riqueza, uma verdadeira glória e a plena felicidade, porque se tornava livre do poder dos bens materiais. Para o monge o pouco já lhe bastava e as sobras desse restritamente necessário deveriam ser dadas para o exercício da caridade. O “verdadeiro filósofo” dominava as inclinações, era senhor das paixões, falava com franqueza a todos, socorria os necessitados, evangelizava pelo exemplo; rezava, orava e trabalhava sem cessar, tendo como meta a perfeição.

O que aos seguidores da “filosofia do mundo” parecia um mero dever de humanitarismo, os discípulos de Cristo tinham que realizá-lo qual um serviço,

31 BROWN, Peter. Corpo e Sociedade: o homem, a mulher e a renúncia sexual no início do cristianismo.

Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1990.

32 SOZOMENO, História eclesiástica, 1,13, 6, 33.

33 SPINELLI, M. Helenização e recriação de sentidos. A Filosofia na época da expansão do Cristianismo

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impulsionado por mais altos motivos. Sua fé no Ressuscitado os levava à prática da caridade. Logo, a ‘verdadeira filosofia’ que homens e mulheres buscavam era a que se alcançava mediante um esforço heroico de praticar os conselhos evangélicos e a perfeição, o que incluía a renúncia total e completa das coisas do mundo, para amar somente a Deus. A busca pela ‘verdadeira filosofia’ não era exclusividade dos monges que se retiravam para os desertos ou decidiam viver em monastérios. Muitas mulheres também abraçaram este modo de viver.34

Entre elas estava santa Macrina, irmã de São Gregório de Nissa, autor de alguns escritos pelos quais mostrava como sua irmã Macrina conseguia chegar à ‘verdadeira filosofia’ e à verdadeira vida interior, o que anteriormente se acreditava que somente os homens poderiam alcançar. Macrina propagava e tinha como meta de pensamento que, se por causa do pecado, o homem e a mulher feriram a imagem de Deus, ela e todos os que chegassem a essa ‘verdadeira filosofia’ - os monges e monjas - tinham a obrigação de recuperar aquilo que lhes era originário da Criação. Para tanto, eram necessários o exercício contínuo, a serenidade e a tranquilidade (απαθεια) para se chegar à conversão interior (μετανοια). Segundo São Gregório, Macrina, que tinha como propósito o bem, a perfeição e a superação dos vícios até chegar a imperturbabilidade do corpo e da alma, aos poucos trouxe para perto de si outras mulheres que com ela formaram uma pequena porção das contemplativas do saber: as η παρθένές του Κυρίου (as virgens do Senhor). A virgindade a que aludia o termo grego, para além de uma acertada semântica, referia-se ao estado de pureza a que toda mulher precisava chegar para que a “verdadeira sabedoria” pudesse nela fazer morada.35 Encaixavam-se entre elas também aquelas que renunciaram ao matrimônio e guardaram sua virgindade, dedicando sua vida a trabalhar pelos outros, como já se referia Paulo na comunidade de Corinto (I Cor., 7, 36-38).

Santa Macrina e suas discípulas pontuavam que a incessante busca pela perfeição espiritual, ainda que se desse pelo abandono das vontades e pelo domínio das paixões, não podia sacrificar a feminilidade natural de cada mulher, ou negá-la. Era preciso enriquecê-la e fortalecê-la de modo a que a imagem de Deus pudesse ser recuperada e

34 DESEILLE, Placide. Le monachisme orthodoxe: les principes et la pratique Typicon (règle de vie) du

monastère Saint-Antoine-le-Grand. Paris: Cerf, 2013, p. 15.

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não adulterada. Segundo Gregório de Nissa, sua irmã era um modelo de santidade a ser seguido, pois, em Macrina a perfeição era decorrente da prática de filosofia que tinha como meta a recuperação daquilo que o pecado tentou destruir: a imagem de Deus em sua Criação.36

No cuidado de se manter feminina, as monjas de Macrina glorificavam as riquezas corporais da mulher não pela ótica da sensualidade, da corporeidade, mas da especificidade que cada mulher tinha em relação ao homem. Mulheres que eram sujeito de sua própria experiência de fé mística, contribuindo para que se formasse um perfil feminino do monacato tão específico quanto era aquele seguido pelas primeiras mulheres do cristianismo paulino.

Logo, a vida acética não tinha como objetivo alterar a essência da Criação, mas dignificá-la em sua vocação de mulher, colaboradora na missão de recobramento de um estado virginal. Se a criação era virginalmente imagem e semelhança de Deus, à essa

vernaculidade se deveria retornar. O estado de pureza da alma, alimentado pelo saber da

‘verdadeira filosofia’, não prescindia de que a beleza ou os adornos sustentados pelo corpo fossem obliterados. Era um reflexo e um jeito burilado de ascetismo experimentado por mulheres que estavam acostumadas à vida de corte e que, de maneira parcial, tentavam transplantar para o mundo monástico os costumes ali praticados, sob a égide de uma tradição régia. Esse modo de monaquismo feminino, herdado da tradição monárquica bizantina com todos os seus adereços principescos, se diferenciava, contudo, daquele que Maria do Egito, por exemplo, buscou para si.

Santa Maria do Egito viveu 47 anos no deserto em austera penitência, por volta do ano 270, no tempo do imperador Cláudio. Foi encontrada pelo abade Zózimo que fora ao deserto buscar conselhos de um eremita para sua vida espiritual. No momento do encontro, Maria estava nua e mostrava um corpo esquálido, sacrificado pela exposição ao sol e pelo intenso jejum. Se sua nudez era reflexo do desapego extremo, da inquestionável pobreza e da abnegação da vaidade feminina, era também a materialidade do avesso do que tinha sido quando menina. Os escritos sobre a vida de Maria do Egito falam sobre uma donzela de doze anos que foi para Alexandria, aonde se entregou à vida pública, servindo ao prazer

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dos homens. Foi para Jerusalém junto com um grupo de marinheiros que queria reverenciar a Cruz de Cristo, e como não tinha dinheiro para pagar a viagem, usou do seu corpo para honrar a dívida. Após entrar na Igreja e avistar a Cruz, converteu-se e foi para o deserto. Na vida austera do deserto, passou quase meio século a procura de si e de Deus, numa peregrinação constante em busca da santidade. Se viveu no deserto sozinha, se o lugar e o tempo arrancaram dela a juventude, o frescor de sua pele e a beleza com a qual seduzia, não arrebataram sua condição feminina: era uma mulher. “Santo abade não olhe para mim, porque estou nua, sou uma mulher”.37

O perfil monástico eremítico de Maria do Egito, com seus extremos quando comparado ao cenobita de Macrina, parece paradoxal. Contudo, revela as especificidades do mundo monástico feminino com suas nuanças, nas duas formas legítimas de credenciar à busca da perfeição e da “verdadeira filosofia”, ora pelo recrudescimento de uma vida pautada pelo desapego e abnegação, ora pelo conforto de uma vida comunitária na qual, por vezes, se podia usufruir das benesses de uma vida não tão radical. As duas faces do monaquismo feminino oriental se esboçavam para depois se desenvolver e ganhar cores e formas mais definidoras em outras paragens.

Parece, então, que o perfil monástico feminino, talhado nas brumas de uma igreja nascente se adequara conforme o lugar de surgimento; e assim, o modo de perceber a busca por Deus e pela vida de seus fundadores outra vez se readequava, conforme às exigências do tempo e espaços de atuação. Desde São Pacômio e Maria, sua irmã (século III), os eremitérios e monastérios cristãos testemunham a presença e atuação do rosto feminino do monaquismo oriental, que encontrou lastro para se desenvolver também nas terras do Ocidente.38

Santo Atanásio de Alexandria (295-373), por exemplo, levou o modelo de vida monástica às terras da Germânia, quando deu a conhecer as regras de vida monástica compiladas por S. Antão. Também Santo Agostinho quis repetir, em Hipona, uma vida de oração compartilhada com seus clérigos e, com isso, o monaquismo masculino e feminino se estendia pela África latina tendo como primeira Abadessa sua mãe Santa Mônica. Os

37 VARAZZE, Jacopo de. Legenda Áurea. Vida dos santos. São Paulo: Cia das Letras, 2003, p. 354. 38 GOBRY. Ivan. Les Moines en Occident. Tome II. De saint Martin à saint Benoît. Paris: Fayard, 1985.

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primeiros monges e monjas ocidentais seguiam o estilo de vida cenobita em Lerins, na Gália, tendo como expoentes São Paulino de Nola, Santo Ambrósio e São Martinho de Tours, que fomentaram o surgimento de comunidades femininas de oração e desprendimento.39

Já no século VI, São Bento de Núrsia, pai no monaquismo cenobita ocidental, propagava a vida monástica por todo o Ocidente, iniciando por Roma e Nápoles. Santa Escolástica, considerada irmã gêmea e filha espiritual de São Bento, fundou no Ocidente o ramo feminino da Ordem de São Bento, baseando-se nas regras do irmão para dirigir seu monastério.

A São Basílio, considerado Pai do monaquismo Oriental, coube ordenar e regrar a vida monástica, inspirado nas regras de São Pacômio. Uma vez reestruturadas e adequadas para a época, as regras de São Basílio serviram para a compilação e o ordenamento do modelo de vida feminino, guiada por Macrina, chegando até o Ocidente, nas diversas comunidades monásticas femininas.

Se na igreja primitiva o deserto era o lugar emblemático para a procura de si, os séculos posteriores mostraram que a vida comunitária, em companhia de seus pares, se mostrava tão desafiadora quanto a vivência no deserto. Porque conviver nem sempre é fácil e por vezes é um calvário que se apresenta para ser trilhado, sem espaços para qualquer exceção. Se o lugar da vida ascética contemplou o rosto de Deus pela aridez do deserto, muitas santas mulheres o experimentaram face a face, pelo convívio na comunidade, na observância conjunta de regras e de horários, tanto quanto na entrega coletiva da dedicação aos pobres e mendicantes. A face materna de Deus ganhava carne à medida que a monja, sem perder o que era específico de sua essência feminina, mostrava que o amor fraterno e sem medidas encontrara no rosto monacal um jeito de vir à luz.

O deserto não foi o lugar de predileção e o espaço que facilmente as mulheres cristãs dos primeiros séculos escolhiam para viver para Deus. Uma porção delas escolhia suas próprias residências, trazendo consigo suas filhas e parentes para formar uma comunidade de oração. Espanta-nos que São Pacômio tenha fundado uma centena de casas monásticas, totalizando sete mil monges e monjas. É preciso relativizar o cenobitismo e lançar os olhos

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para a realidade comum em que, por vezes, a vida cenobítica se dava na própria família, e não se pode afirmar que a santidade e vida de oração não acontecia.

Acerca dessa peculiaridade, Antônio Orbe mostra que esse modo de vida contemplativo era decorrente do costume pelo qual as famílias se reuniam para rezar, às escondidas, com medo das perseguições aos cristãos. O exercício constante da fuga, da reclusão em família, desdobrou-se em um arranjo devocional coletivo que veio a desenvolver o cenobitismo familial, tendo a mãe, quando viúva, como a grande Abadessa.40

Conclusão

Discorrer sobre a vida monástica feminina no Oriente foi observá-la, pelo uso das fontes e escritos patrísticos, qual um precioso caminho trilhado pela Igreja e que chegou aos tempos contemporâneos, para além de um contundente convite à santidade, redescobrir o papel da mulher na feitura e desdobramento da vida contemplativa. Diante da releitura da vida monástica feminina cabe aos pesquisadores reestruturar posições e credenciar valores a tantas mulheres que contribuíram a seu modo para a continuidade da vida monástica.

A proliferação da vida monástica feminina no Oriente cristão, desde a Europa ocidental até o Leste Europeu, sinaliza a existência de pessoas que ainda resistem ao apelo do mundo para responder livremente ao chamado de Deus. Nos países de maioria cristã de tradição bizantina, atualmente, sobressaem inúmeros monastérios femininos na Grécia, Romênia, Rússia, Ucrânia e Polônia que ainda guardam a regras cenobitas herdadas desde o tempo do fundador. Nesses monastérios, o hábito talar, ainda que esconda o corpo da mulher quase por completo, não deixa que esconda a feminilidade de cada mulher que ali está.

No Brasil, a vida monástica feminina de porção e tradição bizantina segue viva, mas, em poucos monastérios, sob a jurisdição da Igreja Católica Melquita, Igreja Ortodoxa da Polônia e da Sérvia, e Arquieparquia Ucraniana Católica. Contudo, foi o modo ocidental beneditino que encontrou mais vocações e terreno propício para se desenvolver, espalhando-se em quase todas as Dioceses do país. De tradição bizantina oriental ou de tradição latina ocidental, os monastérios femininos presentes no Brasil procuram, cada um

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com seus carismas e desafios, preservar o que herdaram dos Pais e Mães do Deserto: a sabedoria do tempo e da espera. Quantas santas mulheres que de forma silenciosa e constante testemunham que em “seus desertos” foi possível encontrar a ‘verdadeira filosofia’ ensinada pelo Cristo, a quem procuram ser sempre fiéis. Essa forma de evangelização, a do silêncio e a da oração, também traz seus benefícios para toda a Igreja, que um dia nasceu do Oriente, mas que se faz presente em toda comunidade de fé.

Referências

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