• Nenhum resultado encontrado

Speculum principum: considerações sobre o gênero nas letras portuguesas dos séculos XV e XVI

N/A
N/A
Protected

Academic year: 2021

Share "Speculum principum: considerações sobre o gênero nas letras portuguesas dos séculos XV e XVI"

Copied!
15
0
0

Texto

(1)

235

SPECULUM PRINCIPUM: CONSIDERAÇÕES SOBRE O GÊNERO NAS LETRAS

PORTUGUESAS DOS SÉCULOS XV E XVI

‘SPECULUM PRINCIPUM’: CONSIDERATIONS ON GENRE IN PORTUGUESE LITERATURE OF THE FIFTEENTH AND SIXTEENTH CENTURIES

Flávio Antônio Fernandes Reis Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia

_________________________________________________________________________________________________________

Resumo: Apresentamos considerações acerca do repertório de obras dirigidas à educação de príncipes compostas em Portugal. Assim, buscamos verificar os argumentos de força da matéria presentes em algumas fontes e em alguns importantes estudos, tentando delinear aspectos do assunto e apontar perspectivas de pesquisas.

Palavras-chave: Letras quatrocentistas e quinhentistas; Portugal; Livros de Corte.

Abstract: Present considerations about the repertoire of works directed to the education of princes made in Portugal. Thus, we seek to verify the strength of arguments present in some sources and in some important studies, trying to delineate aspects of the subject and point out prospects for research.

Keywords: Fifteenth and sixteenth century literature; Portugal; Courtly Books

__________________________________________________________________________________________________________

Recebido em: 14/04/2016 Aprovado em: 14/07/2016

(2)

236

É com muito prazer que trato de um dos assuntos mais caros de meus estudos e que há algum tempo me anda instigando a curiosidade e a vontade de conhecer mais. Não porque haja ainda príncipes para serem educados ou porque a matéria seja facilmente aplicada aos nossos usos recentes, mas porque o conjunto de textos compõe, por meio de discursos de notória elaboração em diferentes tempos e conjunturas históricas, instrumentos políticos e éticos de grande interesse para aqueles que se dedicam ao conhecimento das matérias antigas, sobretudo as obras que operam com outros modos de pensar a organização dos homens, modos diversos de valores preconizados, operações diversas de composição de forma mentis que não são as nossas atuais. De modo mais imediato, no que diz respeito às obras dedicadas à educação de príncipes, há momentos em que não há textos ou monumentos (segundo etimologia latina: aquilo que deve ser lembrado) cujo interesse não esteja em função da educação do Infante ou aristocrata. A razão é facilmente compreensível se nos atentamos ao fato de que, numa sociedade de corte, na razão de estado em que o rei é a cabeça da governação e de onde emana todo poder e bem público, não há quem deva ser mais virtuoso que o herdeiro por direito do topo da governação. É um mundo no qual a certeza da ordem e do bem comum está na continuidade dos reinados, de geração a geração, legitimados pelos direitos constituídos, pela tradição e por uma série de protocolos de corte que visam à dignificação da figura real, das suas prerrogativas e do seu poder.1 Ademais, há de ter o cuidado crítico de, antes de tratar dos textos, ou melhor, ao tratá-los, verificar não apenas a interpretação mais imediata que inspiram, mas, sobretudo, cavar os sentidos mais a fundo numa historicidade das próprias noções, uma historicidade dos sentidos, uma hermenêutica dos pressupostos coetâneos à publicação e o modo como provavelmente

1 Sobre essa noção de que o príncipe deve superar seus pares principalmente nas qualidades e, por que também

não, na fortuna e no poder que detém, faço menção ao belíssimo conjunto de aulas de Michel Foucault reunidas com o título Hermenêutica do sujeito. Foucault discute a noção de “cuidado de si” (epimeléia heautoû) e, para isso, analisa o diálogo Alcibíades de Platão. O jovem, interpelado por Sócrates, diz-se adequado ao poder pela família de que provém e pela riqueza que possui. Sócrates refuta-o, questionando-lhe a preparação ética e política, mostrando a sua ignorância como ocasião de vulnerabilidade e fracasso do poder: Este foi o benefício do diálogo e o efeito do seu movimento: “definir para Alcibíades aquilo com que deve ocupar-se – sua alma; explicar a Alcibíades como deve ocupar-se com sua alma – voltando seu olhar para o divino onde se acha o princípio da sabedoria; [de sorte que] quando ele olhar na direção de si mesmo, descobrirá o divino; e nele descobrirá, consequentemente, a própria essência da sabedoria (dikaiosyne); ou, inversamente, quando olhar na direção da essência da sabedoria, verá ao mesmo tempo o elemento divino; elemento divino que é aquele em que se conhece e se reconhece, pois que é no elemento da identidade que o divino reflete o que eu sou. Por conseguinte, ocupar-se consigo ou ocupar-se com a justiça dá no mesmo e todo o jogo do diálogo, partindo da questão “como poderei tornar-me um bom governante?”, consiste em conduzir Alcibíades ao preceito “ocupa-se consigo mesmo” e, desenvolvendo o que deverá ser este preceito e o sentido que lhe será necessário atribuir, descobrir que “ocupar-se consigo mesmo” é ocupar-se com a justiça.” (Cf. FOUCAULT, Michel. A hermenêutica do sujeito. Curso dado no Collège de France (1981-1982). Edição Fréderic Gros, direção François Ewald e Alessandro Fontana. Tradução Márcio Alves da Fonseca e Salma Tannus Muchail. São Paulo, Martins Fontes, 2006, p. 90-91) .

(3)

237

integrou aos valores e práticas de seu tempo e, noutra direção, o modo como foram apropriados e interpretados pela crítica posterior. Termos como “educação”, “infância”, “política”, “discurso” são noções absolutamente atravessadas de historicidade e já se impõem como um primeiro cuidado ao estudioso dos textos antigos.

Nas letras portuguesas dos séculos XV e XVI, é custoso pensar uma obra que de algum modo, em alguma medida, não esteja integrada seja na educação áulica, na edificação aristocrática, seja na exaltação da monarquia e dos seus membros, muitas vezes modelares das virtudes prescritas nos tratados. Uma passagem rápida por algumas obras portuguesas quatrocentistas e quinhentistas evidencia o vigor das matérias de filosofia moral e de edificação nas práticas letradas de corte: a Corte Enperial; o Boosco deleitoso; o Orto do Esposo; composições laudatórias e mesmo as satíricas, presentes no Cancioneiro Geral; a história composta por Fernão Lopes ou Zurara; a narrativa de cavalaria, seja a anônima Demanda portuguesa, seja a primeira narrativa publicada em Portugal no século XVI: O Clarimundo de João de Barros, “donde os Reys de Portugal descendem”; a épica de Camões, de Jerónimo Corte-Real; a poesia laudatória atribuída a Camões, a Antônio Ferreira, Pero de Andrade Caminha; a encenação áulica e a correção dos fidalgos indecorosos de Gil Vicente; o modelo de príncipe no teatro e na narrativa de cavaleiros de Jorge Ferreira de Vasconcelos; os escritos de Damião de Góis; a Crônica de D. João II, o príncipe perfeito de Garcia de Resende; as vulgarizações de obras de Cícero, Sêneca, Plínio, e tantas outras autoridades das letras latinas antigas, transpostas para a língua vulgar portuguesa e amiúde, nos prólogos e dedicatórias, oferecidas como modelos éticos à fidalguia. Nesse sentido, o que se lê nas preceptivas e obras dirigidas especificamente para a edificação política do monarca e de seus súditos, os lugares e argumentos nelas mobilizados, enfim, os ensinamentos preconizados são, muitas vezes, argumentos transpostos para as obras de deleite, que hoje universalizamos pelo termo “literatura”.

De fato, nas práticas políticas de antigo regime, a educação dos “melhores”, dos aristocratas, dos delfins, primos inter pares, demandava grandes cuidados na escolha dos mestres preceptores e na definição das obras de edificação e ensinamento dos futuros reis. Outras são realizadas, não com o fim de educar nos prolegômenos do poder, todavia, dirigidas aos reis entronados, lembravam-lhes os preceitos da filosofia moral dos antigos gregos e latinos convenientes à governação excelente. De modo que

(4)

238

as obras são dirigidas a príncipes e reis, com finalidades diferentes, discursos adaptados a cada caso, matérias convenientes a cada leitor, com modelos, exemplos e recursos retóricos decorosos com o leitor virtual. Há obras, ademais, que se dirigem à aristocracia mais achegada do rei e do príncipe, os livros dirigidos aos conselheiros que, de modo semelhante àqueles dirigidos aos príncipes, ensinam os preceitos de filosofia moral e política para os privados do rei e integrantes da Casa Real.2

Um primeiro aspecto necessariamente notável é a aparente semelhança entre as obras que trataram da matéria, diga-se de passagem, de longa fortuna3: desde o De Clementia, dirigido a Nero por seu preceptor, Sêneca 4; passando pelos escritos de Santo Ambrósio, colaborador do imperador Teodósio, sobretudo o De officiis ministrorum, imitação de obra homônima ciceroniana; pelos capítulos acerca do imperador cristão, na

2 Quanto ao debates acerca do gênero “espelho de príncipe” ou “Arte de governar”, remeto o leitor ao

livro SENELLART, Michel. As artes de Governar: do regimen medieval ao conceito de governo. Tradução de Paulo Neves. São Paulo, Ed.34,; nas letras portuguesas, aludo a pelo menos dois estudos: SOARES, Nair de Nazaré Castro. Príncipe Ideal no século XVI e a obra de D. Jerônimo Osório. Coimbra: Instituto Nacional de Investigação Científica - Centro de Estudos Clássicos e Humanísticos da Universidade de Coimbra, 1994; e a tese de doutoramento de MUNIZ, Márcio Ricardo Coelho. Leal

Conselheiro de D. Duarte à luz da traditio dos espelhos de príncipes até o século XV. Tese de

Doutoramento Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo. São Paulo, 2003 . Nesse último, Ricardo Muniz verifica a fortuna do gênero nas letras ibéricas, os modelos dirigidos aos conselheiros preconizados no livro de D. Duarte e as virtudes referidas pelo monarca português. Em outro trabalho, artigo publicado (MUNIZ, Márcio Ricardo Coelho. Reordenando a História: aproximação ao "Livro dos conselhos de El-Rei Dom Duarte". Românica, Lisboa, v. 14, p. 159-178, 2005), Muniz analisa outra obra portuguesa, intitulada Livro dos conselhos ou Livro da Cartuxa, também atribuída a D. Duarte. Trata-se de uma obra pouco estudada e que contém apontamentos das práticas de governo de D. Duarte, constitui-se, segundo Muniz, como um dos mais interessantes documentos para o estudo do século XV português.

3 Sobre essa longa duração e fortuna do gênero de parenética régia, ver a extensa e abonada introdução do

livro de SOARES, Nair de Nazaré Castro. Op. cit., p. 16-96.

4 O De Clementia de Sêneca é um modelo de Speculum principum dirigido ao rei em exercício. Trata-se

de uma preceptiva dirigida a Nero, já então imperador de Roma. No tratado, Sêneca defende a clemência como virtude fundamental para o exercício da governação que, segundo Ingeborg Braren, no texto, o termo assume diferentes sentidos, todos eles úteis para a manutenção do governo: 1. A clemência é uma virtude do soberano absoluto, já que exerce suprema autoridade sobre todos e a clemência distinguiria o rei do tirano: “A clemência é a temperança de espírito de quem tem o poder de castigar, ou a brandura de um superior perante o inferior ao estabelecer a penalidade.”(Sen. Clem., II, 1, 1.) 2. A clemência garante a unidade do reinado, a coesão entre a cabeça e os membros do corpo do reino, no caso romano, a ideia de ser o rei a mens imperii: é a inclinação do espírito para a brandura ao executar a punição. (Sen., Clem., II, 1, 1.) 3. Partindo do princípio de que o rei desempenha na terra funções divinas e se os deuses são pacíficos e justos, cabe ao rei sê-lo do mesmo modo para garantir a serenidade do reino: “A clemência é a moderação que tira alguma coisa de uma punição merecida e devida.” (Sen., Clem., II, 1, 2) 4. A clemência, em algumas passagens, aproxima-se da noção de misericórdia: “É a clemência que faz desviar a punição pouco antes da execução que poderia ter sido estabelecida por merecimento.” (Sen., De

Clementia, II, 1, 2). Ingeborg Braren entende que a clemência seria uma espécie de ajuste da justiça pelo

poder do soberano, dando ao peso da letra, a leveza da humanidade do monarca. (Cf. BRAREN, Ingerborg. Introdução. In: SÊNECA. Tratado sobre a clemência. Petrópolis: Vozes, 1990, p. 21-23).

(5)

239

Cidade de Deus de Santo Agostinho 5; pelo célebre Epitome rei militari de Flávio Vegério Renato, do século IV; pela obra de Isidoro de Sevilha; pelos livros do gênero da corte carolíngia, como por exemplo: a obra De via regia de Esmaragdo e a De institutione regia de Jonas de Orleans; o Polycraticus de John de Salisbury; pelo Speculum regum de Godofredo de Viterbo, do século XII; pelo De regno ou De regimine principum ad regem Cypri de são Tomás de Aquino; o Speculum doctrinale, o De eruditionem filiorum nobilium e o De morali principis instructione de Vincent de Beauvais, dirigido à instrução dos filhos do rei são Luís, de França; também o Speculum regum, do franciscano Álvaro Pais, bispo de Silves, do século XIV; pelo Leal Conselheiro português do século XV, pela tradução em português do livro de Paulo Vergério: De ingenuis moribus et liberalibus studiis realizada por Vasco Fernandes de Lucena e dirigida a D. Afonso V; indo para o século XVI, em Portugal: o De republica gubernanda per regem, de Diogo Lopes Rebelo; o Breve doutrina e ensinança de príncipes, de Frei Antonio de Beja; a “Doutrina” de Lourenço de Cáceres ao Infante D. Luís, filho de D. João III; até a monumental obra de D. Jerônimo Osório, dedicada a D. Sebastião, intitulada Da ensinança e educação do rei, em todas e muitas outras obras de “parenética régia” há uma homogeneidade de assuntos, um cerne de virtudes que ao rei pertence, uma aparente semelhança entre os textos, alguns nominalmente ditos “espelhos”, outros com o mesmo fim desse gênero, sem o termo que os designe assim. O fato é que, como nos esclarece João Adolfo Hansen, diferente de uma noção de progresso que define as categorias pós-iluministas, os livros dirigidos à educação dos príncipes e reis regem-se por uma noção outra de tempo e permanência, fundamentando-se em categorias da metafísica cristã e escolástica. O que leva à “repetição do costume tradicional”, que se evidencia por formulações éticas ordenadas pelos costumes, pela retórica, pela filosofia moral antiga, pelos autores antigos gregos, latinos, patrísticos, pelos livros bíblicos, cuja autoridade adapta-se às vicissitudes do príncipe em questão nas obras. 6 Essa recorrência

5 As passagens da Cidade de Deus e a autoridade de Santo Agostinho são lugares comuns dos livros que

tratam da figura do monarca nos livros dirigidos à educação áulica ou naqueles que tratam da matéria, seja por menção direta pela transcrição de passagens da obra, seja pela menção indireta, aludindo à autoridade já tida por necessariamente reconhecida e legítima do Doutor da Igreja. Cf. SANTO AGOSTINHO. Cidade de Deus, Livro 5, cap. 24: “A verdadeira felicidade dos imperadores cristãos”.

6 Cf. HANSEN, João Adolfo. Educando príncipes no espelho. Floema Especial, a. II, n. 2, p. 133-169,

2006. Nesse artigo, Hansen analisa as especificidades de alguns livros dirigidos à educação de príncipes compostos nas letras portuguesas do século XVII, analisando-os segundo os ditames políticos e culturais seiscentistas, tais como a razão de estado católica, o antimaquiavelismo, as categorias neoescolásticas de ética, bem-comum, virtudes do rei etc.

(6)

240

das matérias tratadas, das noções políticas preconizadas, do tratamento das relações entre Igreja e o poder secular, aspectos que em maior ou menor medida, acabam por ser analisados nas obras, enfim, essa permanência de assuntos dá-se principalmente porque a esses livros é estranha a noção moderna de originalidade, resultando que as matérias com poucas variações, sejam recorrentes e centradas numa imagem modelar de excelência régia, figuração essa composta segundo escritos autorizados dos antigos:

Esta imagem situa-se na convergência de modelos clássicos (Isócrates, Xenofonte, Plutarco) e de uma apropriação medieval das doutrinas aristotélicas que, tendo como paradigma o De Regimine Principum (c. 1287) de Egídio Romano, constitui um elemento determinante para a afirmação e extraordinária fortuna do gênero no âmbito da produção de um discurso político-retórico em torno do príncipe e da monarquia na Europa moderna. 7

Nesse sentido, a tratadística recompõe os modelos éticos convenientes ao príncipe, adaptando ao rei ou príncipe em questão os mesmos aspectos metafísicos, teológicos, e políticos duradouros segundo um longo costume de parenética régia. Como lembra Buescu, nos tratados e espelhos, a construção da imagem do monarca baseia-se na existência de modelos, quais sejam: “o modelo “bíblico”, o modelo aristotélico-medieval e o modelo clássico, que conduz a estratégias de adequação retórica e simbólica que não procuram originalidade, mas a aproximação de paradigmas.” 8

Retrocedendo um pouco, o século IX é bastante conhecido pela figura de Carlos Magno, sobretudo porque há uma notória afirmação do poder do monarca, do rei como força política centralizadora e poderosa, apoiado por segmentos religiosos, diferentemente dos poderes locais e variados de senhores de terras. Certamente pela legitimação e manutenção do poder régio, o gênero “Espelho de príncipe” tenha tido seu prestígio mais acentuado nessas cortes que se estabeleciam no que hoje seria a França. Nesse sentido, há obras modelares como a Via Regia, composta em 813, pelo abade Smaragdo Verdum. Também o De instituitione regia, oferecido por Jonas, bispo de Orleáns a Pepino da Aquitânia. Outras obras notáveis são o Liber institutionis de auctoribus christianis, de Sedúlio de Liège, De regis persona et regio ministerio e o De ordine Palatti, de Hincmar de Reims. Segundo Artur Moreira de Sá, esses livros

7 BUESCU, Isabel. Um discurso sobre o príncipe: a “pedagogia especular” em Portugal no século XVI.

Penelope: gênero, discurso e guerra, n. 17, 1997, p. 35.

(7)

241

inspiram-se em Santo Agostinho e Santo Isidoro, ocupando-se dos deveres do soberano e das relações entre o poder secular e o eclesiástico.9 A hipótese de Artur Moreira de Sá é bastante plausível e consiste em conceber os livros de ensinamentos de príncipes como lugar de definições jurídicas e éticas, em face das lutas entre o império e o papado, tão comuns em vários momentos da história europeia. Assim, o caráter dos Espelhos de príncipe compõe-se não apenas de finalidades didáticas básicas, mas cuidam de ministrar conselhos morais e políticos aos príncipes, tratando de questões elevadas e com caráter de universalidade. 10 Nesse sentido, os livros que se tornaram modelos para o gênero ulteriormente são: o Secretum secretorum, de autor anônimo, atribuído a Aristóteles, do qual existe uma tradução quatrocentista em português e figura entre os livros do rei D. Duarte que o cita em sua obra, o Leal Conselheiro, de D. Duarte; De eruditionem filiorum nobilium, de Vicente de Beauvais, composto em meados do século XII para Margarida, mulher de Luís I de França, e os De regimine principum de São Tomás de Aquino e de Frei Gil de Roma. A maioria dos tratados de ensinamento de príncipe, sobretudo aqueles portugueses sobre os quais falaremos adiante, compartilham das matérias, dos exemplos e modelos éticos propostos nas obras de Beauvais, Tomás de Aquino e Gil de Roma. Dessas, a obras de Tomás de Aquino certamente foi aquela que mais serviu de autoridade na matéria nas apropriações ulteriores: São Tomás de Aquino concebe o estado como ordem moral, apoiada em fundamentos éticos e metafísicos, em normas universais que se apoiam na essência absoluta de Deus. Desse modo, explica a sociedade dos homens como consequência da necessidade humana de agrupar-se e compartilhar serviços e afetos. Nesse quadro, o poder público é parte do estado e também é uma exigência da lei natural, portanto, cabe ao rei refletir na lei dos homens a lei natural e a divina. Gil de Roma imita a obra de Tomás de Aquino e seu De regimine principum teve larga fortuna nas letras portuguesas, presente na relação de livros de várias livrarias de monarcas:

Esta obra de Egidio Romano foi muito lida, comentada, traduzida e glosada. Na livraria de D. João I existia o De regimine principum de Gil de Roma e o nosso monarca, aquando da tomada de Ceuta em 1415, citou esta obra aos seus cavaleiros. D. Duarte possuiu a mesma obra, certamente herdada de seu pai. Entre os seus livros de linguagem

9 MOREIRA DE SÁ, Artur. Introdução. In: REBELO, Diogo Lopes. Do governo da república pelo rei.

Lisboa: Instituto de Alta Cultura, 1951, p. XI-XII.

(8)

242

contava-se o Regimento dos Príncipes, de Gil de Roma, que o Infante D. Pedro de Coimbra tinha traduzido, embora se desconheça o paradeiro dessa tradução. Na livraria de D. Manuel existia o

Regimento dos Príncipes, “encadernado de tavoas, cuberto de veludo

roxo, ...ten? seu rotolo de prata.” 11

Além disso, devemos lembrar que a Corte de Avis notabiliza-se pelo cultivo dos livros, seja pelo fato de que seus principais membros, como o Rei D. Duarte, o Infante D. Pedro de Coimbra, até mesmo o fundador da dinastia, a todos eles são atribuídas obras que chegaram a nosso tempo, seja pela livraria que reunia. Ao monarca D. Duarte atribui-se o Leal Conselheiro e o Livro de Conselhos ou Livro da Cartuxa; D. Pedro de Coimbra compôs o Livro da virtuosa benfeitoria, traduzindo também o Livro dos Ofícios de Cícero e, a serviço da Casa Real, o letrado Vasco Fernandes de Lucena compôs várias obras, entre as quais destacam-se o Tratado das virtudes que ao Rey pertencem, além das traduções de textos de tratados morais de Cícero, de Plínio – o Panegírico de Trajano – e Vergério. Ou seja, no conjunto dos livros atribuídos a figuras áulicas, todas as obras têm utilidade política e se inserem no conjunto de textos chamados de livros de doutrinação moral e, mais ainda, ampliam o discurso da filosofia ética em língua vulgar portuguesa, adotando vocábulos antigos ou, mais comumente, adaptando os termos da tradição antiga grega e principalmente latina aos termos vernáculos. Com isso, D. Duarte refunde nos conselhos aos súditos e aos príncipes exortações geradas num conjunto extenso de autoridades antigas latinas e, sobretudo, escolásticas. Os conselhos fluem como dizeres legitimados pela autoridade de paradigmas antigos da filosofia moral, política e teológica. D. Pedro, calcado nos autores antigos, traz do latim, numa tradução idiossincrática, a voz de Cícero e Sêneca, paladinos por excelência da doutrina moral e política antigas, suficientemente legitimados pelos milênios de apropriações colocadas a serviço das diversas monarquias medievais. Os livros reivindicados ao letrado Vasco Fernandes de Lucena ampliam o escopo das leituras antigas e modernas aplicadas à monarquia portuguesa da Casa de Avis e refundem-se os conselhos políticos de Plínio e de Vergério. O que podemos concluir, por ora, é que as doutrinas políticas dos filhos de Avis preconizam os saberes das autoridades antigas como orientações legítimas seja pelo tempo seja pela força moral e os implementam nos seus escritos como exemplos de conduta individual e pública, uma necessariamente atrelada à outra dada a natureza da figura régia de então.

11 MOREIRA DE SÁ, Artur. Introdução. In: REBELO, Diogo Lopes. Do governo da república pelo rei.

(9)

243

Outro aspecto importante a ser tratado por ora é a notícia dos estudos mais recentes da matéria e, com isso, lembramos estudos decisivos, tais como os trabalhos de Martim de Albuquerque sobre o pensamento político em Portugal na época moderna, de Luís Reis Torgal, dedicado à questão no século XVII, os estudos de Diogo Ramada Curto sobre cultura política. Trataremos mais adiante, mas já lembramos o trabalho de Nair Nazaré de Castro Soares, tanto o estudo sobre a Virtuosa Benfeitoria de D. Pedro de Coimbra como os trabalhos sobre a tratadística de D. Jeronimo Osório. Lembro também o trabalho de Davide Bigalli sobre a imagem do príncipe na obra de Diogo de Teive. Destaco ainda Eugênio Asensio que estudou a tratadística de Lourenço de Caceres e José V. de Pina Martins e os estudos acerca da obra de Frei Antônio de Beja.

Qual deve ser o conceito de “espelho de príncipe” de que a crítica tem se valido? Michel Senellart, em As artes de governar, analisa um volume considerável de obras da tradição dos “espelhos de príncipes” e entende que o termo “artes de governar” designa “uma multiplicidade não apenas de artes, de técnicas, de sistemas de regras, de modelos de ação, mas também de definição de governo. Face a essa diversidade, Senellart defende que isso “não impede que se possa agrupar num gênero o conjunto dos textos, seja qual for sua forma literária (diálogo, discurso, tratado, sermão, poema, carta etc.), que ao final todas servem à mesma função de instrução monárquica com o fim de bem dirigir o Estado.” 12

O livro de Ana Isabel Buescu acerca das normatividades régias recolhidas em livros do gênero é decisivo para o estudo da matéria no século XVI português. Buescu analisa as imagens do príncipe no que chamou de “discurso normativo e representação” e entende que esses textos preconizam modelos de excelência áulica. Para tanto, propõe pelos menos dois entendimentos para os chamados “espelhos de príncipe”:

Discurso de caráter político, jurídico, filosófico, por vezes de difícil delimitação, os chamados espelhos de príncipe traduzem mais do que uma dimensão concretamente pedagógica, que também com frequência os integra, uma representação da função real tal como ela vai sendo

12 SENELLART, Michel. As artes de governar. Tradução de Paulo Neves. São Paulo, Ed.34, 2006, p. 47.

Se me permitem um adendo, embora o principal interesse dessa exposição sejam os estudos de espelhos de príncipe nas letras portuguesas, o livro de Michel Senellart é uma leitura necessária para o conhecimento do estado da questão no que diz respeito ao repertório das obras, dos principais conceitos tratados e da historicidade da matéria.

(10)

244

formulada e entendida. Daí a articulação que pode estabelecer-se entre esse tipo de literatura política e a propaganda régia. 13

Literatura de caráter político, moral e pedagógico que pretende estabelecer a “constelação” de virtudes necessárias ao ofício do rei, e fixar a imagem do perfeito governante, exemplo de virtudes morais do bom governo.14

Para o estudo dos documentos portugueses, Buescu apresenta os “percursos de continuidade de um gênero”, elaborando uma história dos “espelhos de príncipe” nas letras europeias e portuguesas. Trata, portanto, dos livros compostos em momentos políticos memoráveis, tais como a corte carolíngia, os reinos italianos dos séculos XV e XVI, as letras de filosofia moral da corte portuguesa de Avis, para em seguida tratar de obras capitais da parenética régia portuguesa, tais como: o Libro Primero del Espejo del príncipe Christiano, de Francisco de Monçon, preceptor da corte portuguesa entre 1535 e 1575, da Breve doutrina e ensinança de príncipes, de Frei Antônio de Beja; o Tratado Moral de Louvores e Perigos Dalguns Estados Seculares, de Sancho de Noronha; o opúsculo de Lourenço de Cáceres, dirigido ao infante D. Luís; o Relox de Principes, de Frei Antonio de Guevara, publicado em 1529. Não nos esqueçamos do célebre livro de Cristine de Pizan, dirigido às mulheres e intitulado: Livro primeiro de espelho de Cristina, impresso várias vezes na corte portuguesa do tempo de D. João III.

Nair de Castro Soares, no excelente livro O príncipe ideal no século XVI e a obra de D. Jerônimo Osório, revisa as obras capitais dedicadas à instrução do príncipe, desde a antiguidade até o século XVI, no qual analisa o notável tratado do letrado português, D. Jerônimo Osório. Para tanto, Soares declara que:

Desde o século IV a. C até ao século XVI parece realmente uma ininterrupta série de specula principum, dirigida a imperadores, reis, príncipes, detentores do poder senhorial ou citadino em que, à parte do elogio e o louvor dos dedicandos, se contém toda uma ética de funcionalismo laico, com a exaltação dos fundamentos e das relações do poder, enfim toda uma teorização política. Esta debruça-se sobre o ideal de governante, suas responsabilidades e deveres, sobre o bom governo e a melhor constituição, dos conselheiros e familiares do

13 BUESCU, Ana Isabel. Imagens do Príncipe: discurso normativo e representação (1525-49). Lisboa,

Cosmos, 1996, p. 30.

(11)

245

príncipe, as normas de boa administração, a formação e educação do príncipe, exemplo vivo de uma continuidade. 15

A obra de Nair de Castro prima pela erudição com a apresentação das obras, dos aspectos históricos de composição dos livros de ensinamento régio e, por fim, o grande objetivo da obra, com a análise do livro dedicado à educação do príncipe D. Sebastião, composto por Jerônimo Osório. Monumental preceptiva quinhentista que trata tanto da educação monárquica como preconiza exaustivamente o caráter excelente do monarca em exercício.

Ao tratar mais exatamente do século XVII, com modelos e afirmações válidas para os séculos anteriores, no artigo “Educando príncipes no Espelho”, João Adolfo Hansen entende os Espelhos ou as obras preceptivas como aconselhamento dirigido ao príncipe que visa a inculcar nele um conjunto de normas e práticas que o produzem e reproduzem no topo da hierarquia com a dignidade virtuosa de “discreto” ou “melhor”. Assim:

a característica principal desse gênero, conhecido na Idade Média como speculum ou specula principum, é apresentar o elenco completo das virtudes cristãs que permitem o bom governo. As categorias especificam as práticas simbólicas de uma racionalidade teológico-política que é irredutível aos modos iluministas e pós-iluministas de definição da experiência da história, do corpo infantil e da sua educação como progresso da razão ou crítica, pois fundamentam-se na metafísica cristã, escolástica e neo-escolástica. 16

Com isso, os juízos mencionados sobre o caráter dos livros dirigidos à educação dos príncipes assentam-se nas noções preconizadas pelos tratados éticos, livros de exemplos, a Bíblia e as autoridades antigas greco-latinas. Um estudo dos livros do gênero em Portugal do século XVI, aponta, a grande quantidade de obras desse tipo na corte de D. João III, como já se mencionou, como as matérias e argumentos tratados nas preceptivas régias são mobilizadas em obras de gêneros diversos da poesia e da prosa. Antes, para se ter uma ideia das obras compostas na corte joanina, vejamos: em 1525, Antonio de Beja publica a Breve Doutrina e ensinança de Príncipes; Lourenço de Cáceres, em 1528, publica as Condições e Partes, que ha-de ter um Bom Principe e o Tratado dos trabalhos do rei, além do opúsculo dirigido à instrução do Infante D. Luís;

15 SOARES, Nair de Nazaré Castro. O príncipe ideal no século XVI e a obra de D. Jerônimo Osório. Coimbra:

Instituto Nacional de Investigação Científica - Centro de Estudos Clássicos e Humanísticos da Universidade de Coimbra, 1994. p. 13-14.

(12)

246

em 1529, o Frei Antonio de Guevara publicou o Relox de Principes. Na imprensa portuguesa, em 1544 e 1545, Francisco de Monçon publica Libro primero del Espejo dl Principe Christiano e o Libro segundo dl Espeio del Perfecto Principe Christiano. Antonio Pinheiro publicou o fragmentário Da creação dos Principes. Sancho Noronha publicou, em 1549, o Tratado moral de louvores e perigos dalgus estados seculares. Buescu lembra ainda a tradução da Institutione del Principe Christiano de Mambrino Rodeo da Fabriano, de 1543, e uma notícia acerca de uma Doutrina e Estimulo de Principes, de 1550, obra de autor desconhecido e perdida.17 Essa relação e notícia das obras demonstra o vigor do gênero nas práticas letradas da corte de D. João III, bem como a necessidade de reforçar o caráter da excelência do soberano, necessariamente cristão e virtuoso. Além disso, Buescu observa que a maioria dos livros arrolados acima surgem em momentos decisivos da monarquia, tais como casamentos do soberano, alianças matrimoniais com Espanha, em ocasiões nas quais se reforçam os modelos de excelência do monarca e do herdeiro das coroas. 18

Com isso, tratamos agora de trazer algumas passagens de três livros fundamentais compostos na corte portuguesa de D. Manuel e D. João III. Trata-se do livro dedicado a D. Manuel, por Diogo Lopes Rebelo: o De republica gubernanda per regem (Do governo da república pelo rei); o tratado Breve Doutrina e ensinança de príncipes, do frei Antonio de Beja, dedicado ao rei D. João III e, por último, o opúsculo intitulado “Doutrina de Lourenço de Caceres ao Infante Dom Luís”. Não faço aqui considerações exaustivas, tanto pelo espaço, como pelo fim a que me proponho por ora. Recolho passagens, em geral dos proêmios, nas quais evidenciam-se os usos do livros que se apresentam. Lembro que se trata de uma escolha, ficando de fora muitas obras que igualmente demonstrariam a proeminência das preceptivas régias nos usos de corte, tais como: o Segredo dos segredos, o Tratado da perfeição da alma de Álvaro Gomes,

17 BUESCU, Ana Isabel. Um discurso sobre o príncipe: a “pedagogia especular” em Portugal no século

XVI. Penelope: gênero, discurso e guerra, n. 17, 1997, p. 39.

18 Buescu, ao analisar os textos mencionados, verifica que a Breve Ensinança e o Tratado Moral de

Sancho de Noronha preconizam uma imagem bíblica do monarca, ao passo que as obras de Lourenço de Caceres o Relox de Principes de Antonio Guevara, por meio de exemplos e herói, concebem a figura real como similar a modelos Greco-latinos antigos.

(13)

247

traduções de Cícero, Sêneca e tantas outras obras de filosofia moral de que as livrarias dos palácios estavam repletas.19

Acompanha o livro de Diogo Lopes Rebelo uma dedicatória dirigida ao “Serenissimo ac potentíssimo domino Emanueli portugaliae regi.” Como sói acontecer nessa espécie de discurso, proêmio de obras dirigidas a reis, o letrado articula tópicas de humilitas retorica, figurando a obediência e sobrelevando a utilidade do livro para o reino. No proêmio, segundo o costume do gênero, o letrado aponta os benefícios que seguem a obra oferecida:

Ego autem cum ego meditarer quid ad

Illustrissimam Dominationem Vestram

potissimum muneris mitterem, nichil profecto honestius videbatur aut utilius quam definire quibus intitutis ac artibus regnum vestrum Vestra Regia Majestas pulcherrime atque perbeate possit gubernare.

Pensando em que espécie de presente devia oferecer a vossa ilustríssima Senhoria, nada me pareceu mais belo e mais útil do que definir as instituições e artes com que Vossa Real Majestade poderá mui formosamente e felizmente governar o reino.

É necessário atentar para os termos utilizados por Rebelo contemplados na excelente tradução de Artur Moreira de Sá: trata-se de honestius e utilius, traduzido de modo feliz como “mais belo e mais útil”, termos nos quais se evidencia a tópica da utilidade, do proveito, necessária para a captatio benevolentiae do texto. Mais, os termos institutis e artibus demonstram o aspecto preceptivo da obra, tida por instituição e técnica, procedimentos que visam à habilidade nos saberes de governacão, tal como a arte da medicina, a arte retórica, a arte poética, etc. Pulcherrime e perbeate adjetivam o modo de governo e ambos os termos remetem à felicidade, à honra e à glória.

A utilidade da obra, outra tópica necessária nos proêmios, rememora a antiguidade do gênero e as autoridades gregas e latinas que dele se ocuparam e, face a tantos livros excelentes dedicados à matéria, Rebelo atribui à sua obra o caráter de recolha dos melhores conselhos:

19 Sobre as traduções de autores latinos antigos em Portugal e seus usos éticos, dirigimos o leitor a um

estudo recente sobre o Sonho de Cipião de Cícero, traduzido em Portugal por Duarte de Resende em 1528, e que foi publicado pela editora Humanitas: Cf. REIS, Flávio A. F. O sonho de Scipião: acerca da recepção de Cícero no Portugal quinhentista. São Paulo: Humanitas/ FAPESP, 2012.

(14)

248

Et licet fuerint complures qui ante me vários libros de republica scripserint, ut dignus Plato et Aristoteles, peripateticorum princeps, et nostri quamplures doctores christiani, ego tamen illos saepe evoluens velut in rosario multorum varietate florum redolentium bene culto refertoque haec legi documenta quae Vestrae mitto Pientissimae Dignatione.

E, embora muitos, antes de mim, tenham escrito diversos livros sobre a república, como o digno Platão e Aristóteles, príncipe dos peripatéticos e vários doutores da nossa cristandade, contudo eu, manuseando-os muitas vezes, colhi, como em roseiral bem tratado e cheio de muitas flores perfumadas, estes documentos que envio a Vossa Piíssima Dignidade.

A obra de Rebelo, segundo a própria dedicatória, mistura (immiscendo) às autoridades já mencionadas aquelas das Sagradas Escrituras e seus exemplos, com o fim de que a doutrina fique mais sólida e pesada: ut soldior esset doctrina et maioris ponderis quid haberet. O termo “doutrina” revela muito bem o caráter dessa escrita, dando aos preceitos e aconselhamento a universalidade do verdadeiro, já experimentado e legitimado pela autoridade e antiguidade dos autores que trataram do assunto, mais ainda pela autoridade dos escritos sagrados.

O segundo texto de que tratamos é a Breve doutrina e ensinança de príncipes de Frei Antonio de Beja, dirigido a D. João III. Podemos iniciar os comentários sobre o sentido do livro de Beja pela observação de que, assim como Rebelo, Antonio de Beja apresenta seu livro como “ajuntamento de preciosos esmaltes de virtudes”, obtido, “per nova composição de muytos antigos doctores”.20 O artifício de legitimação da obra é o mesmo: sustenta na fonte de autoridade dos antigos o valor dos preceitos preconizados. Todavia, na dedicatória de Beja, o aspecto preceptivo dos espelhos de príncipe fica mais patente, ainda mais que compartilham do mesmo efeito: pretende-se que o rei se veja figurado na obra: é “maravilhosa luz e claridade a que os seus olhem cada dia.” Mais, os livros dirigidos aos reis e príncipes ocupam o espaço de ócio do monarca e permitem preencher os momentos de descanso com o estudo honesto das virtudes praticadas na vida ativa:

E, se as vaãs e fingidas scrituras, em algu[m]a maneyra provocam a virtude, lendoas que faram as vidas dos virtuosos e nobres varões que postos em as dinidades e mandos reaes fizeram cousas dinas de toda memoria e louvor? Certo em elles, seguindo a doutrina de Socrates, deve vossa alteza sempre oulhar como em espelhos, porque os feitos dos feos e maaos avorreça, e ho gracioso gesto, parecer e obras dos virtuosos e boõs, ame e sigua.

20 BEJA, Frei Antonio de. Breve ensinança e doutrina de príncipes. Reprodução fac-similada da edição

(15)

249

A exemplaridade dos livros de ensinamentos observada por Beja é argumento muito recorrente nos tratados dirigidos aos monarcas e, muitas vezes, os preceitos são figurados ou amplificados pelos episódios da história antiga, pelo caráter de notáveis dessas mesmas histórias, pelos textos bíblicos. Desse modo, os reis da história antiga, os reis bíblicos, aqueles que foram dignos de memória são espelhos de virtudes e de sabedoria política.

O opúsculo de Lourenço de Cáceres dirigido à instrução do Infante D. Luís pretende-se breve, por ser leitura a que o príncipe se dedicaria nos dias invernais em que o tempo não permitisse ir à caça. Em todo caso, seu também breve prólogo dramatiza tópicas semelhantes já observadas nas obras anteriores com o fim de captar a benevolência do infante e, ao mesmo tempo, demonstrar a utilidade e autoridade da obra:

Affim que em quanto V. A. gastar os dias melhores no exercício da Caça escreverlhehey alguns concelhos da doutrina colhida dos livros que achey como lição feita em caza os dias que o tempo lhe não der lugar pera o campo. E posto que alguém queira repreender isto como atrevimento, ou estranhallo como couza nova, eu faço o que muitos escriptores fizeram com seos discípulos, e com grandes Senhores de sua idade; e pois a gloria da invenção nao pode ser minha, não o deve ser a culpa da repreensão, que de Pithagoras se lee dar concelho a muitos Princepes de Italia; e Solon a Cresto de Lidia; e Socrates a Alcebíades; e Isócrates a Niocles; e Plutarco a Antiocho: e Platão escreve a Dionizio Siracuzano; e Seneca a Nero: e outros muitos philosophos a Princepes de seu tempo.

As autoridades da invenção desses livros de ensinamento de príncipes preconizam o lugar do sábio filósofo como aconselhador do rei, autores de obras de notável filosofia ética, sobretudo Sócrates, Isócrates, Sêneca e Plutarco. Nesse aspecto, distinguem-se Frei Antonio de Beja e Lourenço de Caceres: para aquele, a exemplaridade da história é lugar de privilegiado ensinamento; para este, embora a história seja fonte de ensinamento, na formulação do tratado, privilegia-se a exposição de preceitos e razões dos filósofos que trataram das matérias éticas. De todo modo, os lugares insignes de ensinamento encontram-se nas obras das autoridades antigas, em cuja história e ensinamentos assentam-se as doutrinas de virtudes, de excelência ética e os modelos, espelhos para os espelhos de príncipes.

Referências

Documentos relacionados

Alguns das ideias enunciadas por Fodor já se encontram, de modo relativamente explícito, presentes nos textos de Peirce de 1868: por um lado, a lógica governa a acção mental, e

São Paulo 2014; 26(1): 23- 37, jan-abr Medeiros JMF Ferreira GS Habitante SM Von Dollinger CFA Rosa LCL Haddad Filho MS Análise da dureza vickers da superfície de dentes

Constatou-se que o uso das Tecnologias da Informação e Comunicação através de jogos e brincadeiras contribui para a aprendizagem na Educação Infantil.... Palavras chave:

Nele está não somente aquilo que você escreveu, como também:.. Diretivas para a apresentação

“...e levando cativo todo pensamento à obediência de Cristo” 2Co 10:5b RA 1)ENTENDENDO: Obediência e fidelidade estam muito ligados. Sabe o que significa obediência?

Silvia Rissin, que, no uso de suas atribuições legais, torna pública a realização de Processo Sele- tivo Público Simplificado visando a seleção de profissionais nível

No.: DN-D-09-00081R1 Title: Adenosine deaminase activity, lipid peroxidation and astrocyte responses in the cerebral cortex of rats after hypoxia ischemia neonatal International