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A Química das Relações Familiares

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Academic year: 2020

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ARTIGOS

A QUÍMICA DAS RELAÇÕES

FAMILIARES*

ÚRSULA MEIRELES NASSER**, ROGÉRIO JOSÉ DE ALMEIDA***, VERA LUCIA MORSELLI****

Resumo: o presente trabalho tem como objetivo observar as relações que as famílias das pessoas que abusam do consumo de álcool e outras drogas estabelecem ao longo de seu desenvolvimento, ao configurar um contexto paradoxal de risco e de proteção, e como a metodologia do grupo multifamiliar permite a elas resgatarem suas competências, utilizando-se da comunidade de conversação. Para tal, adota a metodologia da pesquisa ação participante, do grupo multi-familiar e das redes sociais. A discussão aponta para a importância de envolver a família no tratamento dessas pessoas.

Palavras-chave: Drogas. Grupo Multifamiliar. Relações Familiares.

A

família tem sofrido com os impactos das mudanças sociais que exige dela novas

formas de se relacionar, de exercer práticas educativas e de expressar sentimentos, com dificuldades em se reunir para trocas afetivas e de experiências. Assim, ela desenvolve padrões relacionais que podem representar tanto fatores de proteção, como de risco, e este último gera a possibilidade do aumento no uso de drogas por parte de um ou mais de seus membros, uma vez que a droga preenche o vazio socioafetivo. Por fatores de risco entende-se as condições que aumentam a probabilidade de afetar a saúde e o bem-estar em aspectos biológicos, psicológicos e sociais, ao contrário disto, fatores de proteção seriam aqueles que diminuem essa probabilidade (TOSCANO JR., 2001).

* Recebido em: 26.01.2015. Aprovado em: 10.02.2015.

** Psicóloga pela PUC Goiás. Trabalha como psicóloga comunitária no Instituto Coca Cola Brasil, no Projeto Coletivo Coca Cola. Este foi seu TCC. E-mail: ursulameirelesnasser@gmail.com.

*** Sociólogo. Professor do Departamento de Medicina e do Programa de Pós-Graduação em Ciências Ambientais e Saúde da PUC Goiás. Membro do Programa de Extensão em Nome da Vida – PNV/PUC Goiás. E-mail: rogeriopucgo@gmail.com.

**** Psicóloga. Professora do Departamento de Psicologia da PUC Goiás. Membro do Programa de Extensão em Nome da Vida – PNV/PUC Goiás. E-mail: vmorselli@uol.com.br

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A família como fator de proteção possibilita a construção de vínculos entre seus membros. Os laços afetivos e o clima de amor e diálogo favorecem a construção de regras e limites, que auxiliam as negociações necessárias e o desenvolver de cada etapa do ciclo de vida familiar. As práticas disciplinares inconsistentes ou coercitivas, dificuldades de estabelecer limites aos comportamentos infantis e juvenis, aprovação do uso de drogas pelos pais, confli-tos familiares sem desfecho e negociação, são aspecconfli-tos, que quando combinados, funcionam como fatores de risco para o uso de drogas (SCHENKER; MINAYO, 2003).

Segundo Fleming (2001), as famílias dos dependentes de álcool e outras drogas criam um vácuo e um isolamento emocional, não havendo um suporte afetivo entre seus membros. O outro não é respeitado como tal, pois tomam as decisões por ele. Cria-se um modelo familiar em que a mentira e a manipulação estabelecem a forma de comunicação.

O Programa em Nome da Vida (PNV) é um programa institucional de Extensão da Pontifícia Universidade Católica de Goiás (PUC Goiás), que ao abordar o abuso do álcool e outras drogas acredita que é necessário trabalhar com as pessoas em seus contextos familiares e em suas redes mais amplas (MINUCHIN; COLAPINTO; MINUCHIN, 1999). Com essa crença, atua na perspectiva da Psicologia Comunitária, que surgiu para responder às ne-cessidades sociais marcadas por desigualdades, e que concebe o indivíduo em uma realidade histórico-cultural e participante de uma rede de relações sociais complexas, em uma sociedade historicamente determinada (GÓIS, 2005; MONTERO, 2004).

O trabalho realizado nas comunidades segue a abordagem sistêmica, que amplia o foco e contextualiza o fenômeno, visto em uma teia de relações, portanto assume a complexi-dade do sistema em questão. O mundo passa ser percebido em constante mudança e evolução num processo de “tornar-se”, que possibilita a aceitação da instabilidade, da imprevisibilidade e do não controle do sistema. Acredita-se que o observador é partícipe ativo na constituição da realidade com que trabalha e que ele se inclui no sistema que distinguiu num espaço de conversação. Deste modo, pensa-se nos contextos, nos processos e nas relações (VASCON-CELLOS, 2002). Neste tipo de trabalho o profissional torna-se parte integrante do sistema abordado, atua e sofre a ação deste e cria um espaço no qual todos os sujeitos envolvidos na interação possam construir soluções, manter uma atitude auto reflexiva e repensar sua atuação (AUN; COELHO; VASCONCELLOS, 2005).

Utiliza-se a metodologia do grupo multifamiliar, por considerar esse tipo de grupo um espaço que oportuniza as famílias complementar suas experiências por meio de contatos diretos, interpessoais, viabiliza a conversação, a troca de ideias e de informações, onde se oferece tempo, diálogo rico e disponibilidade para a relação (PAIVA apud COSTA, 2003).

O foco está na interação humana e mobiliza-se a rede natural de contatos para o desen-volvimento e mudanças, tanto individuais, como familiares e para a resolução de crises na família e na comunidade (COSTA, 2005). A mobilização da rede social é parte da crença na rede de solidariedade entre pessoas e no potencial que elas possuem para compartilhar os problemas e as soluções em comum, afinal, para a intervenção bem-feita é aquela que se torna dispensável (DEMO apud COSTA, 2005).

O trabalho da equipe não ocorre sobre certezas, mas joga-se com a incerteza, como princípio de ação, que nos remete à posição de “não-saber” proposta por Anderson e Goo-lishian (1993). Ao assumir esta posição o profissional desconhece como as pessoas da comu-nidade pensam, sentem e vivem um determinado problema, pois cada um tem sua forma par-ticular de experienciar uma situação. Portanto, ele deve se manter atento e curioso, aprender

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com a comunidade, em um movimento de resgate do conhecimento teórico prévio. A ação é calcada nas competências de todos, na polarização da saúde e no investimento das possibili-dades (COSTA, 2003).

Buscou-se com este estudo observar as relações que as famílias das pessoas que abu-sam do álcool e outras drogas estabelecem ao longo de seu desenvolvimento, que configuram um contexto paradoxal de risco e proteção, e como o grupo multifamiliar permite a família resgatar suas competências e ressignificar suas relações, sendo o psicólogo comunitário, cor-responsável pela criação, desenvolvimento e qualidade das relações que ali se estabelecem.

MÉTODOS

A metodologia qualitativa da pesquisa-ação participante, do grupo multifamiliar e das redes sociais foram os instrumentos utilizados. Estas alternativas metodológicas possibili-taram que todos os envolvidos no processo, isto é, pesquisadores e pesquisados fossem sujeitos ativos na produção coletiva de conhecimento (SAWAIA, 1989).

Participaram desse estudo a equipe do PNV, composta estagiárias de Psicologia Comunitária, a coordenadora do programa, psicóloga e supervisora de estágio e um professor, membro do programa. Familiares e abusadores de drogas, conforme quadro 1, que passaram por internação em uma clínica de recuperação e que estavam em alta hospitalar, também integraram a equipe.

Quadro 1: Participantes do grupo multifamiliar

Família A Família B Família C Família D Família E Daniel, 32 anos, pai de um menino de 7 anos, alcoolista Sandro, 26 anos, maconha, cocaína, merla, lança perfume, álcool. Diagnóstico de esquizofrenia (DSM-5) Camila, 19 anos, não compareceu aos atendimentos. Lara, 19 anos cocaína João, não participou do grupo Roberto, 66 anos

(pai) Carlos (padrasto) Neide, 42 anos (mãe) Mário (pai) Jonas (pai) Divina, 66 anos

(mãe) Fernanda (mãe) Júlia, 11 anos, (meia irmã) Claudia (madrasta) Bruna (mãe) Maria, 19

anos (amiga). Compareceu a um encontro.

Legenda: * Todos os nomes foram alterados, preservando o anonimato dos sujeitos da pesquisa.

O número de participantes nestes encontros oscilava entre cinco e doze pessoas, com idades entre 11 e 60 anos, pertencentes à classe socioeconômica baixa e média.

O estudo teve a periodicidade de dois semestres. Tratava-se de um grupo aberto, em que novas famílias, a qualquer momento poderiam ser acolhidas. Realizou-se 12 encontros quinzenais, com hora e meia de duração, em uma clínica de Psicologia que atua na área social, conveniada com uma Casa de Recuperação de dependentes de drogas, responsável pelos enca-minhamentos das famílias ao atendimento. Ao chegar, preenchiam uma ficha com seus dados

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pessoais e assinavam um termo de consentimento para que suas histórias pudessem compor trabalhos a serem divulgados, via artigos, congressos e outros meios.

Os participantes sentavam-se em círculo para propiciar maior integração. A equipe, ao final de cada reunião, discutia suas percepções, sentimentos e impressões tecendo comen-tários sobre o ocorrido. As experiências trocadas foram registradas através de relatórios que serviram de sustentação à elaboração de trabalhos.

RESULTADOS E DISCUSSÃO

As famílias que participaram do estudo demonstraram manter padrões de relacio-namento em um contexto que pode representar tanto proteção, como risco aos seus mem-bros, e ao adotarem uma conduta paradoxal, na tentativa de proteger, na maioria das vezes, oferecem risco.

Se a dependência se torna um padrão relacional que a família mantém, os pais não conseguem redimensionar esses padrões quando os filhos apresentam comportamentos mais autônomos. O uso de drogas oferece a essas famílias uma solução paradoxal ao dilema. O filho, cuja ‘tarefa’ é manter a estabilidade da família ao drogar-se, se oferece em sacrifício pela manu-tenção do equilíbrio do sistema familiar. Essa solução, embora traga sofrimento para o indivíduo e sua família, é bem-vinda, pois a independência do filho é uma ameaça mais destrutiva para a família do que a dependência de drogas (MOWATT apud PENSO; SUDBRACK, 2004).

O ato de drogar-se pode ser um subterfúgio que o indivíduo encontra para evitar a loucura, pois mantém uma aparência de rebeldia, liberdade e independência, ao mesmo tempo em que permanece plenamente dependente (OLIVERSTEIN, 1997; 1983). Em uma viagem ao Pantanal, com seus pais, Sandro relatou que só ficou dentro da barraca drogando--se e que “no último dia foi que eu percebi que tinha perdido o passeio”. Metaforicamente, não seria as drogas seu verdadeiro passeio? E que a sensação de liberdade não é proporcionada pelo passeio ao Pantanal, mas pela “viagem” através das drogas.

A maioria das pessoas dependentes de álcool e outras drogas permanece morando com seus pais, sendo mantidos financeiramente por eles e os pais aceitam a situação, ou im-pedem os comportamentos autônomos. Essa dependência pode ser observada na família A, pois Daniel, mesmo tendo um filho, se mantém preso a relação com seus pais.

Falar de dependência é falar de paradoxos, pois a conquista da autonomia ocorre por intermédio do outro. Assim, dependência supõe codependências (COLLE, 2001). A co-dependência refere-se a uma situação compartilhada com, pelo menos, uma ou mais pessoas da família, que abre mão de sua vida para viver em função do outro que muitas vezes é visto como incompetente para cuidar da sua própria vida, gerando assim uma série de dependên-cias relacionais que impedem o surgimento da autonomia necessária. (SUDBRACK, 2001).

Este aspecto ficou evidente na fala da Fernanda: “Agora onde ele (seu filho Sandro) for eu vou, aonde eu vou ele vai, nós não desgrudamos mais um do outro. Combinei com ele que seremos companheiros inseparáveis. Eu sei do que é bom para mim, agora eu preciso saber o que é bom para ele”.

As famílias, muitas vezes, assumem uma postura preconceituosa, negando a exis-tência do problema, insistindo em permanecer cega frente à situação (HALLAL; HALPEN, 2002), mantêm segredos e mentiras como um mecanismo de proteção, acobertando e negan-do o comportamento negan-do dependente.

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Quando Bianca relatou como foi o processo de descoberta da dependência do filho, evidenciam-se os aspectos acima citados: “Notei que o João estava diferente, falei para o meu marido e para meu outro filho. Ambos disseram que eu estava ‘pegando no pé’ dele. Passado algum tempo meu marido perguntou pra ele se isso era verdade. E ele confirmou, e disse que não queria que nós interferíssemos, porque no dia que ele quisesse parar, ele pararia. Nessa época ele tinha 16 anos. E realmente nunca mais voltamos a tocar no assunto. Agora ele está com 19 anos e passou a ter umas crises estranhas”.

No caso das famílias atendidas, a figura paterna aparece como pouco presente, não atuante e distante emocionalmente, mantém com o filho uma relação bastante perturbada (PENSO et al., 2004; OLIVERSTEIN, 1983). Essas situações são relatadas pelas famílias com muito pesar, como nos mostram as falas a seguir.

Divina relatou: “Roberto foi um pai presente, mas nunca foi um pai atuante, que se envolveu muito com o problema dos filhos, nunca colocou limites!” Neide complemen-ta: “O pai da Camila sabe de tudo o que acontece com ela, mas pra ele o que eu resolver está bom! E ela também não liga muito pra ele não, ela sabe que não dá pra contar com ele!”.

Nessas famílias os pais, têm dificuldades em estabelecer normas e limites claros, exercendo uma postura permissiva e negligente, gerando obstáculos no estabelecimento dos vínculos familiares. Isso dificulta o caráter educativo que a família possui, pois isso só é possí-vel quando existem boas relações afetivas (SCHENKER; MINAYO, 2003).

Divina revelou: “Quando eu e Roberto nos separamos e ele ia lá em casa todos os dias e tirava minha autoridade. Se eu não deixasse o Daniel fazer algo, ele chegava e falava pra ele fazer e dizia que eu era chata!” Carlos relatou a falta de limites de Sandro: “Lá em casa ele tem liberdade pra fazer o que ele quiser e para ele não existe um equilíbrio, um limite em nada na vida dele. Se ele fica dois ou três dias sem fumar, no outro dia ele fuma três ou quatro carteiras de cigarro sem parar; se ele começa a tomar um Danone, ele não para enquanto não acabar tudo.

No empobrecimento das relações interpessoais doses de tristeza fazem calar a voz, e a droga, aparece como “um amortecedor do homem diante do mundo” (SANTOS, 1998, p. 24), em que ele busca o prazer, a alegria e a emoção que ele não encontra na vida. Daí, a importância de se trabalhar a dependência química em uma visão relacional e contextual, observando não os efeitos das substâncias, mas a relação que o sujeito estabelece com a droga e a função que ela ocupa na sua vida e na da família.

Esse aspecto evidenciou-se na fala de Daniel: “Eu bebia para anestesiar o que estava doendo, e aí toda a dor se transforma em prazer, a gente fica relaxado, esquece dos problemas. O problema é depois, quando você volta pra realidade e vê tudo o que fez, e a dor continua!” Sandro complementou: “Sempre fui muito tímido, aí pra desinibir, bebia, usava drogas e aí eu ficava alegre, dançava, arrumava namoradas!”

Daniel esclareceu: “É uma coisa louca, eu bebia porque estava mal, e depois eu ficava mal porque eu tinha bebido e visto que tinha dito e feito coisas que não devia, prin-cipalmente prá minha mãe. Aí eu não dava conta de olhar pro meu pai e prá minha mãe, aí eu ficava mal e bebia de novo, e tudo começava novamente”. Esta fala revela a dificuldade de Daniel em expressar sentimentos e dizer o que pensa e sente, e a forma que ele encontrava para colocar suas angústias para fora era através da bebida. Assim, acredita-se que a droga vem denunciar uma situação que precisa ser mudada, e assume a função positiva de redimensio-nar as relações familiares, tornando-se um aspecto favorável, ao abrir novas possibilidades de mudança na família (PENSO et al., 2004).

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Quando as famílias chegam ao grupo multifamiliar, trazem histórias de desavenças e conflitos que são dolorosos e mantidos por questões não resolvidas, por sentimentos feridos, por frustrações de esforços que parecem não levar a lugar algum (MINUCHIN; COLAPIN-TO; MINUCHIN, 1999). Fernanda disse: “Já tomei tantas atitudes, já saí de casa e deixei-o só, já fui brava, já fui mansa. Já nem sei mais o que fazer, então eu soube do grupo e vim, porque tudo o que pode apontar um caminho, dar uma luz, abrir um horizonte pra mim, eu estou procurando”.

Frente a tantas tentativas, internações e recaídas dos filhos as famílias solicitam da equipe soluções mágicas para seus problemas. Entretanto, encontram no grupo uma proposta inovadora, em que a família é envolvida em um esforço conjunto e otimista com relação à mobilização e resgate de suas competências, para a construção de um contexto conversacional onde todos podem dar vez a voz, compartilhando suas experiências. As famílias percebem isso à medida que o trabalho se realiza: “Para mim é sempre precioso estar aqui, gosto muito do grupo, eu sei que aqui não tem uma receita para os nossos problemas, mas vamos construindo juntos e é muito bom!”.

A equipe estimula a reflexão individual e coletiva, possibilitando a conscientiza-ção de seus membros a respeito da sua identidade psicossocial, trabalhando a criaconscientiza-ção de um espaço para a problematização do cotidiano, de expressão de opiniões e sentimentos e do surgimento de novas relações e vínculos.

As famílias mostram os resultados do trabalho realizado quando dizem: “É sempre muito bom estar aqui e ouvir outras famílias que passam pelo mesmo problema, a gente se sente mais amparado”. Ou quando expressam: “Foi muito bom estar aqui hoje, foi a primeira vez que eu consegui falar sobre o assunto”.

Pautados nos objetivos do PNV, a equipe valoriza a saúde e a qualidade de vida das famílias, que aos poucos vão aprendendo a lidar com a situação, quebrando os padrões repetitivos de comportamento, quando comunicação e reciprocidade são encorajadas e pais e filhos expressam suas necessidades em palavras.

Assim constroem-se juntos novas possibilidades para viver as separações sem fazer rupturas, resgatando a autoridade dos pais sem impedir a autonomia dos filhos, recuperando a funcionalidade do sistema na sua nova etapa do ciclo de vida familiar e reconstruindo os vínculos de confiança e afeto e reestabelecendo limites e normas no convívio familiar.

Roberto relatou que aprendeu a lidar melhor com a situação do filho: “Antes eu me confrontava com ele, hoje já não faço isso mais. Hoje ele teve uma recaída, chegou em casa bêbado e eu não disse nada, só pedi que ele me desse um abraço. Ele me abraçou forte, e aque-le momento foi um aprendizado pra mim”. Divina compaque-letou: “Antes, quando eaque-le chegava bêbado em casa e começava a me agredir, eu pegava a minha bolsa e ia pra casa da minha irmã e não voltava pra casa naquele dia. Hoje, eu consigo ficar e enfrentar o problema!”

Divina relatou a mudança que percebeu no marido, que passou a exercer uma postura mais presente, exercendo seu papel de pai: “Roberto, no meio da noite, colocou o Daniel para fora de casa, disse que se ele quisesse viver essa vida que ele queria tudo bem, mas que nós não íamos participar dessa loucura. Fiquei com o coração partido, afinal para a mãe estas decisões são sempre mais difíceis de tomar, mas, fiquei firme, apoiei a decisão dele. E ele me surpreendeu com essa atitude, pois ele nunca foi um pai que colocou limites nos filhos, nunca imaginei que ele pudesse fazer isso. Depois disso o Daniel por vontade própria, se internou”.

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Nesse espaço de conversação as mudanças ocorrem a partir da criação dialógica de uma nova narrativa que oportuniza novos meios de ação à medida que conseguem relatar os eventos de sua vida, atribuindo a eles novos sentidos (ANDERSON; GOOLISHIAN, 1998). Várias são as falas dos participantes que relatam a ressignificação que fazem de suas vidas.

Percebeu-se que os participantes desistem das buscas por soluções prontas sob for-ma de receitas e partem para soluções coconstruídas no contexto grupal e familiar, compre-endendo a complexidade das situações que exigem saídas diversificadas e específicas a serem inventadas de forma coletiva e participativa (SUDBRACK, 1999). O que a equipe oferece é a capacidade de refletir sobre suas vidas para que elas recuperem sua capacidade de autonomia, sendo o que são, no espaço que esteja garantindo o respeito por si mesmo. Esse tipo de atu-ação é gerador de responsabilidade à medida que as pessoas se tornam responsáveis pelo seu fazer e pelo seu viver (DIAS; CARICATI, 2004).

Daniel expressou, em seu relato, a reflexão feita sobre sua vida: “Eu perdi muito tempo da minha vida! Poderia estar terminando a faculdade, estar em uma condição melhor. E eu me cobro muito porque hoje não posso dar uma condição melhor para o meu filho, para minha família. Não tenho um bom emprego, porque o emprego bom que tinha, eu perdi. Fui muito ausente na vida do meu filho e da mãe dele. Mas estou correndo atrás! Tô procurando um emprego, tô estudando pra concursos, dando mais atenção para o meu filho e para a mi-nha esposa, pois agora estamos morando juntos”. Seu pai, Roberto, complementou: “Hoje vejo que o Daniel está com atitudes mais seguras, ele está tocando a vida dele pra frente, mas nem que ele vire o papa, eu não deixo de frequentar o grupo, pois aprendi muito nesse tempo e agora posso ajudar outras pessoas”.

Desta forma, as próprias famílias transformam o grupo em um fator de proteção para elas e para outras famílias e vão fortalecendo e ampliando suas redes sociais. A construção de redes está associada ao rompimento do isolamento e do esgotamento das pessoas, para a busca de novas soluções e práticas em espaços informais de suporte e apoio, buscando auxílio de outras pessoas pertencentes ao seu meio social e afetivo, ao mesmo tempo em que dão suporte a outros (SUDBRACK, 1999). As pessoas se acolhem e se fortalecem.

Divina disse: “Nós sabemos como é ruim quando eles têm as recaídas e têm que se internar novamente, mas no que for possível ajudar vocês, nós estamos aqui! Depois vamos trocar telefones para nos falarmos durante a semana”. Daniel auxiliou a outra família dizendo: “Eu vou te passar meu telefone. Se você quiser ‘continuar limpo’, e caminhando bem, conte comigo!”

Maria, amiga de Lara, mostrou sua disponibilidade para ajudar: “Eu sou amiga da Lara, ela me chamou e eu vim. Estou gostando de estar aqui! Não conheço muito sobre o assunto, na minha casa não tem nenhum dependente químico, mas eu quero muito ajudá-la, mas, além disso, foi muito bom estar aqui, isso vai servir de exemplo pra minha vida”.

As famílias, a partir do momento que estabelecem relações mais solidárias e éticas, desenvolvem uma consciência crítica e passam a questionar a questão das drogas lícitas e ilícitas, a atuação das clínicas de recuperação, os diagnósticos que são dados, dentre outros aspectos que representam risco a elas. Pais e filhos conversam sobre álcool, drogas, fármacos e diagnósticos de patologias, com conhecimento de causa.

“Existe uma facilidade muito grande em se adquirir o álcool, se encontra em qual-quer parte. E eu vejo aí muitos pais se preocupando porque o filho usou maconha, não estou dizendo que não tem que se preocupar, tem sim, mas a grande maioria desses pais não se

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preocupa quando sabem que o filho está tomando cerveja com os amigos. Outra coisa é que qualquer adolescente compra uma bebida alcoólica em qualquer lugar e nada acontece, mas se for pego com um cigarro de maconha, vai preso!”

Carlos questionou os medicamentos receitados pelos médicos: “Acho que o Sandro está se enganando achando que o remédio vai resolver o problema dele. Porque do mesmo jeito que a maconha, a cocaína são drogas, a Olanzepina que ele toma todos os dias também é. Ele precisa é tomar consciência que ele é normal, e buscar os sonhos dele”. Além da questão medicamentosa, refletem sobre os diagnósticos estigmatizantes que são dados pelos médicos. Fernanda questionou: “Além dos problemas que a gente já tem, o médico deu um diagnóstico que eu não concordo. E o Sandro se conformou com esse diagnóstico de esquizofrênico”.

Sandro respondeu à mãe dizendo: “Eu estou aposentado como esquizofrênico. En-tão eu recebo um auxílio do INSS por tempo indeterminado. O médico disse que eu sou uma pessoa esquizofrênica desde os três anos. Eu já falei pra minha mãe que eu vejo almas, é um caso bem grave”, mas Daniel interfere dizendo: “Acho que esse benefício que você recebe, só denigre você. Acho que você não tem nada de esquizofrênico”.

Considera-se que a questão das drogas merece estudos que busquem compreender o fenômeno no seio da própria sociedade, que em decorrência de seu modo caótico e injusto de se organizar, se comunicar e se valorizar, pode levar o sujeito à dependência delas. E que as drogas seguem a ordem social à medida que participa da alta lucratividade e das regras mercantis, financeiras e comerciais como todos os outros ramos de produção e distribuição (BUCHER, 1996).

O trabalho realizado por meio do grupo multifamiliar levou a equipe a refletir o quanto esses momentos assumem uma função positiva para a atuação junto à comunidade, pois são os conflitos de opinião que rompem o equilíbrio da rotina, mobiliza a energia do sis-tema, desafia a acomodação de ideias, aguça a percepção e o raciocínio, estimula a criatividade e a recriação do trabalho. A comunicação entre os membros é verdadeira, as opiniões diver-gentes são respeitadas e existe um clima de confiança onde todos assumem juntos, os riscos. A equipe pode participar do sistema em mudança, coconstruí-lo com novas regras de relações, com novas narrativas que contenham a solução e depois sair dele sem que o siste-ma se desintegre, pois, ele é capaz de continuar resolvendo seus problesiste-mas sem a presença da equipe (AUN et al., 2005).

Nessas constantes reflexões, acredita-se cada vez mais que as instituições são de ex-trema importância para o desenvolvimento de projetos que envolvam a comunidade. Por isso, considera-se que o estágio realizado no PNV, através da Extensão, proporcionou um momen-to muimomen-to importante, e possibilimomen-tou o encontro entre o conhecimenmomen-to adquirido na graduação e a realidade social, ao mesmo tempo em que favoreceu a ressignificação dos conhecimentos aprendidos e aquisição de outros novos.

Desta forma, pode-se estabelece uma relação triádica fechada entre Ensino, Pesquisa e Extensão, pois para que uma dessas estâncias exista, é necessário que as demais estejam pre-sentes, criando um contexto de aprendizagem e de permanente transformação (OLIVEIRA et al, 2006).

Embora trabalhar com a comunidade tenha trazido uma série de incertezas e desa-fios sobre o que fazer e como fazer diante de paradigmas clássicos e clínicos aprendidos duran-te todo o processo de formação, em oposição a um novo paradigma sistêmico, essa experiência foi extremamente rica, quando se percebeu que, por mais que se estude e se especialize em um

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determinado assunto, não existem critérios objetivos para validar qualquer afirmação que seja superior a verdade do outro.

Quanto ao trabalho realizado com as famílias observou-se que ela tem um papel fundamental na melhoria da autoestima, no encorajamento de sentimentos favoráveis à vida de seus integrantes por meio de uma atitude de maior aproximação afetiva. Isso vem se tor-nando um grande desafio em uma sociedade onde as relações afetivas não têm mais tanta im-portância. Acredita-se que frente a tantos desafios as soluções coletivas, o potencial dos laços afetivos e as relações de solidariedade ainda são as melhores armas em face da proliferação do uso de drogas pela sociedade.

A comunidade abre um espaço de existência para o outro, em coexistência comigo, possibilitando o compartilhar e o cooperar com o outro, não porque esteja escrito em algum código de ética ou declaração de direitos humanos, mas porque se passa a “[...] reconhecer o outro, como legítimo outro no meu espaço de convivência” (MATURANA apud AUN; COELHO; VASCONCELLOS, 2005, p. 114)

Este trabalho proporcionou observar e concluir que no palco do grupo multifa-miliar, as famílias são os atores, os autores e diretores de um espetáculo cheio de emoções, sentimentos, pensamentos e sensações, que estão em constantes transformações, onde eles a cada encontro escrevem novas histórias, reescrevem outras e assumem seus papéis onde todos são os protagonistas, e a equipe os coadjuvantes.

THE CHEMISTRY OF FAMILY RELATIONSHIPS

Abstract: it aims to observe the relationships that the families of people who abuse alcohol and

other drugs set along its development, to set up a paradoxical context of risk and protection, and how the methodology of multifamily group allows families to rescue her skills using the chat com-munity. It adopts the methodology of participatory action research, multifamily group and social networks. It points to the importance of involving the family in the treatment of these people.

Keywords: Alcoholism and Other Drugs; Multi-group; Family Relations. Referências

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Referências

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