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O espaço da arbitrariedade

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Academic year: 2020

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Carlos Eduardo Dias Comas, arquiteto Carlos Eduardo D ias C om as

(FAU-UFRGS), mestre em arquitetura e em desenho urbano (Universidade da Pensilvânia). Além de desenvolver prática privada, é professor

adjunto da UFRGS, onde atualmente acumula o cargo de chefe do departamento de Arquitetura com o de coordenador de ensino do curso de especialização em arquitetura habitacional mantido pelo Programa de Pesquisa e Pós-Graduação em Arquitetura — PROPAR.

O espaço da arbitrariedade

O espaço da arbitrariedade:

considerações sobre o conjunto

habitacional BNH e o projeto da

cidade brasileira

Desde a criação do B N H , em 1964, os p ro d u ­ tos mais co nspícuos de sua atividade têm sido os conjuntos habitacionais para população de baixa ren­ da, im plantados em larga escala na rede urbana bra­ sileira. A expressão c o n ju n to habitacional BNH evo­ ca hoje bem mais que o seu significado e strito de co n ju n to de habitações. Prim eiro, e m preendim en­ to s im obiliários de p o rte considerável — co n ju n to s de q u in he n ta s unidades habitacionais para 2.000 a 2.500 pessoas são mais a regra que a exceção. ' Se­ gu n d o , localização em periferia ou a n tig o vazio ur­ bano de dim ensões avantajadas. Terceiro, duas fó r­ m ulas de p ro je to usados isoladam ente ou em ju sta ­ posição. U m a é o c o n ju n to de blocos repetitivos de apartam entos, usualm ente sem elevador, não ultra­ passando quatro pavim entos. C om plem entados por e q u ipa m e n to s recreativos e /o u assistenciais c o n s­ tituindo construções térreas isoladas, os blocos iden­ tifica m -se num erica m e n te ; suas portas de ingresso não guardam relação consistente co m as ruas inter­ nas ou periféricas ao c o n ju n to . Os espaços abertos entre edificações não ocupados por ruas ou estacio­ n a m entos d e scobertos são sem pre co le tivo s e n u n ­ ca c o m p a rtim e n ta d o s , p e rm itin d o livre acesso a to ­ dos os m oradores e à vizinhança. Na maioria das ve­ zes, não recebem tra ta m e n to algum que os diferen­ cie em lugares d istin to s, em bora ocasionalm ente registre-se a presença de play-ground ou quadra es­

portiva em seu interior. Os apartam entos são peque­ nos; áreas de serviço m inúsculas induzem os m ora­ dores a instalar estendedores de roupa retráteis,

pro-jetando-se para fora das fachadas rebocadas. A construção é de alvenaria, geralm ente de nível bai­ xo. A outra fórm ula não se distingue de um a u rb a ­ nização m odesta de casas unifam iliares isoladas, a não ser pela repetitividade dos telhados de fib ro c i­ m ento sobre lotes entre 160 a 240m2, que c o n fo r­ m am quarteirões estreitos e com pridos.

Em qualquer uma dessas fórm ulas, podem os pensar no co n ju n to habitacional BNH c o m o um t i­ po arquitetônico. Um tipo arquitetônico constitui es­ quem a m ental co m p le xo , c u ltu ra lm e n te co fid ific a - do por interm édio de uma prática social, que asso­ cia determ inadas configurações físicas a um proble­ ma usual de projeto do am biente co n stru íd o . Pode- se vê-lo co m o um veículo de inform ações c o n d e n ­ sadas, onde a definição genérica da natureza das fi­ nalidades, disponibilidades e lim itações que ca ra c­ terizam o problem a é dada sim ultaneam ente c o m a d efinição genérica das características geom étricas, técnico-construtivas e figurativas de sua solução ar­ q u itetônica. Por um lado, o tip o é in stru m e n to clas- sificatório a posteriori, que ressalta as características

c o m u n s de obras a rquitetônicas já executadas. De o u tro , o tipo funciona c o m o um in stru m e n to aprio- rístico de projeto, princípio norm ativo c o m u m de rea­ lizações fisicam ente similares, ainda que não neces­ sariamente idênticas. O tip o se viabiliza co m o tal pe­ las evidentes vantagens de tem po, esforço e dinheiro que decorrem do em prego de soluções semelhantes.

Infelizm ente, porém , um tip o pode ser consa­ grado prem aturam ente por meio de mecanismos ins­ titu cio n a is e ideológicos, sem escrutínio crítico su ­ ficiente da adequação entre problema e solução p ro ­ m ovida. Tal parece ser o caso do c o n ju n to h a b ita ­ cional BNH . Três aspectos corriqueiros e insatisfa­ tó rio s do c o n ju n to de a partam entos BNH nos

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inte-ressam aqui: as possibilidades lim itadas ou nulas de uso e fe tiv o de espaços abertos percebidos co m o 'terras de ninguém ' residuais entre edificações; a au­ sência de privança dos apartam entos térreos que de­ fro n ta m esses espaços; as dificuldades de o rie n ta ­ ção, parciais ou globais, que podem se creditar, em prim eira instância, à repetitividade de blocos iguais em grande escala e à ausência de diferenciação cla­ ra e consistente de suas entradas, legível desde ruas e ca m in h o s do c o n ju n to . A ocorrência sistem ática dessas deficiências de habitabilidade ou desecono- mias pertuba. O silêncio da intelligentsia a rq u ite tô ­

nica brasileira a seu respeito intriga, ta n to mais que esta, inúmeras vezes, cham ou a atenção para as de- seconom ias evidentes do c o n ju n to de casas B N H , a b s o lu ta m e n te p e rd u lá rio se c o n s id e ra rm o s a infra-estrutura viária que exige.

Ocorrência e silêncio só são compreensíveis se lem brarm os que, para a intelligentsia arquitetônica

brasileira, o co n ju nto de apartam entos BNH não pas­ sa da versão abastardada, po r injunções e c o n ô m i­ cas especulativas, do tip o ideal de m oradia que sua fo rm a çã o preconizou e que a superquadra residen­ cial de Brasília materializa. Nos seus 400 x 400m , blocos repetitivos de apartam entos c p m elevador se destacam do solo p or m eio de pilotis, procu ra nd o não ser mais que instrusões discretas num jardim c o ­ letivo luxuriante. Prédios baixos isolados para recrea­ ção e serviços adicionam -se aos blocos de aparta­ m entos, quase desaparecendo em meio à exuberân­ cia vegetal. Os a u tom óveis abrigam -se em subsolo, após percorrer ruas internas sinuosas sem saída. Co­ m ércio para abastecim ento diário ocu p a cabeceira de superquadra, que não se pretende a u to su ficie n - te porque é co m p o n e n te básico de uma cidade ideal moderna, por sua vez ilustrada quase literalm ente

pelo plano p ilo to de Brasília.2

Form ulada e defendida pela vanguarda a rq u i­ te tô n ic a européia em m eados da década de 1930, é a cidade planejada de solo to ta lm e n te público. Zo- neada m o n o fu n c io n a lm e n te , suas superq u a d ra s c o n stitu e m unidades m ínim as de divisão e interven­ ção te rrito ria l, o n d e torres cristalinas ou barras em pilo tis para habitação, co m é rcio e serviços sobres­ saem de u m parque natural. O parque não está na cidade; a cidade está no parque. A co n tin u id a d e e a hom o g e n e id a d e do verde só é in te rro m p id a por edificações baixas para o 'c u ltiv o do c o rp o e do es­ p írito ', ca m p o s de jo g o e um a rede viária hierarqui­ zada, feita sob m edida para o a u to m ó ve l privado. O fo rm a to da 'cid a d e ideal m o d e rn a' pode ser descri­ to c o m o a acum ulação de o b je to s co n stru íd o s em um c o n tín u o tra ta d o c o m o parque basicam ente in­ diferenciado, cortado por autopistas e cam inhos. Em c o n tra p o s iç ã o , o fo rm a to da cidade tra d icio n a l p o ­ de ser d e scrito c o m o a a cum ulação de espaços va ­ zios — ruas e praças configuradas por fachadas co n ­

tínuas alinhadas - den tro de um a massa c o n stru í­ da predom inantem ente indiferenciada, perfurada por pátios e quintais privados. Desde o p o n to de vista p erceptivo, no fo rm a to tradicional, a figura é o es­ paço, o fu n d o é co n stru çã o . No fo rm a to m odernis­ ta , a fig u ra é o edifício, o fu n d o é paisagem (R owe;

1978).

A 'cidade ideal m oderna' é a etapa final de um processo de duas décadas. Nela, a vanguarda arqui­ te tô n ica européia do entre-guerras afirm a a neces­ sidade im periosa de rejeitar as especificações q u a n ­ titativas e qualitativas de um urbanism o de rua, pra­ ça, quadra, lote, fachada, alinham ento, pátio e q u in ­ tal. Proclama e celebra incisivam ente sua su b s titu i­ ção por uma paisagem de autopistas, cam inhos, par­ ques e edificações isoladas em superquadras, par­ tin d o -se da percepção de c o n flito s e lacunas na c i­ dade burguesa desenvolvida de então.

Suas ruas congestionadas não conseguiam a tender às dem andas de um trá fe g o m o torizado de intensidade crescente, gerador de ruídos, gases no­ civos e acidentes. Suas quadras estavam ocupadas por edificações cujos com partim entos eram ilum ina­ dos e ventilados por poços e pátios de dim ensões in co m p a tíve is c o m padrões h ig iê n ico s m ínim os. Seus bairros populares centrais, superpovoados, ca­ reciam de espaço aberto e equipam ento para esporte e recreação. Q uando indústrias poluentes vizinha- vam co m a m oradia, colocava-se em risco a saúde das massas urbanas. Se estas alojavam-se em lotea- m entos suburbanos, as viagens entre moradia e tra ­ balho co n ve rtia m -se em sacrifícios diários. O cres­ cim e n to físico in controlado da cidade burguesa ser­ via prim ariam ente aos interesses im ediatistas da es­ peculação im obiliária, em d e trim e n to de sua e co n o ­ mia e funcionalidade globais. A situação requeria c i­ rurgia radical, que utilizasse plenam ente o potencial de u m p ro g re s s o te c n o ló g ic o e c ie n tífic o sem precedentes.

A prescrição de superquadras e tram a viável hierarquizada perm itiria m aior econom ia e eficiência no trá fe g o . A co m p a n h a d a de organização vertical d o m o v im e n to veicular, reduziria o núm ero de c ru ­ zam entos em nível, possibilitando maiores velocida­ des e m inim izando co n flito s entre diferentes tipos de tráfego e entre m ovim ento veicular e m o vim e n to pe­ destre. O in te rio r de superquadra tornar-se-ia recin­ to privilegiado de pedestres, que não tardariam mais de dez m in u to s em percorrer o tra je to entre seus p o n to s mais distantes. A ausência de parcelam en­ to interno da superquadra endossaria tendências per­ cebidas de co n ce n tra çã o de capital no se to r im o b i­ liário; incentivaria a fo rm a çã o de grandes empresas c o n stru to ra s, capazes de reduzir cu sto s de c o n s tru ­ ção graças à aplicação intensiva de m é to d o s e té c ­ nicas industriais. Os edifícios a lto s viabilizados pelo elevador e pela c o n s tru ç ã o em c o n c re to ou aço p o ­

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deriam distribuir-se livrem ente sobre as superqua- dras, obtendo-se, ao m esm o tem po, densidades ele­ vadas e altas percentagens de espaço aberto. As condições de insolação, ilum inação e ventilação na­ turais resultariam excelentes.

Sobraria espaço para esporte e recreação ju n ­ to à moradia. A satisfação das necessidades am bien­ tais do h o m e m -tip o anô n im o da sociedade de m as­ sas não reclamaria mais que um reduzido núm ero de tipos de acom odação residencial, com ercial e indus­ trial, p e rfe ita m e n te adequáveis à lógica interna de um a pro d u çã o em grandes séries pré-fabricadas. O planejamento racional centralizado da produção e do território perm itiria estender a todas as classes os pri­ vilégios am bientais tra d icio n a lm e n te reservados às m inorias d o m in a n te s. A propriedade pública do s o ­ lo impediria a especulação imobiliária. Levantada so­ bre terreno virgem ou arrasado, a 'cidade ideal m o ­ derna' evitaria qualquer c o m p ro m isso co m a c o m ­ plexidade social, econôm ica e física do co n te xto can­ ceroso que substituiria.

O c o n ju n to de a p a rta m e n to s BNH é c o m p a ­ rável à superquadra residencial m odernista no p o r­ te, na divisão p rogram ática entre habitação c o le ti­ va e seus com plem entos, no em prego de edificações isoladas dissociadas da rua e dispostas sobre espa­ ço aberto contínuo, coletivo, indiferenciado. Faltam, porém , o elevador, os pilotis que elim inariam a a u ­ sência de privança registrada nos a partam entos té r­ reos, os estacionam entos em subsolo e o tratam ento do espaço aberto c o m o ja rd im inglês tropicalizado á la Burle M arx - que a superquadra de Brasília o s­

tenta. É claro que a ausência desses elem entos é cre- ditável a lim itações de o rça m e n to . A s superquadras de Brasília abrigam fam ílias de classe média alta em a p a rta m e n to s cuja área é, pelo m enos, o d o b ro dos 50m 2 do a p a rta m e n to da fam ília entre três e doze salários m ínim os de renda que m ora no c o n ju n to BNH. C ontudo, seriam o elevador, os estacionam en­ to s em subsolo, os pilotis e o ja rd im indispensáveis ou prioritários para qualificar a moradia? O senso c o ­ m u m obriga a responder co m um não ro tu n d o . Cer­ tam ente, o elevador e o estacionam ento co b e rto em subsolo a u m e n ta m o c o n fo rto p ro p o rc io n a d o por bloco de a p a rta m e n to s — a um preço substancial. Escadas até q u a tro p a vim e n to s e e sta cio n a m e n to s ao ar livre são s u b s titu to s pe rfe ita m e n te aceitáveis. A lém disso, uma extensa literatura sobre edifícios al­ to s de ap a rta m e n to s reduzidos sugere que eles não são ta m b é m a c o m o d a çã o satisfatória para famílias co m crianças pequenas. A intensidade de uso dos pilotis e do ja rd im à la Burle M arx de Brasília d ific il­

m ente recom enda o seu e m p re g o n o rm a tiv o : são itens de luxo, não gênero de prim eira necessidade. A e co n o m ia no p ro je to da habitação p o p u la r é re­ querim ento fundam ental. Não se trata de mera ques­ tão de especulação. M esm o a d m itid o que os m eca­

nism os só cio -e co n ô m ico s que c o n d ic io n a m a sua produção devam ser discutidos e m odificados, o v u l­ to do d é fic it a ser superado torna plausível pensar que, a c u rto e m édio prazo, a escassez de recursos contin u a rá co n d icionando-lhes projeto e realização. Enfim , a partam entos térreos não são inabitáveis por princípio; se sua situação acarreta problem as de p ri­ vança a resolver, ta m b é m oferece o p o rtu n id a d e de a c e s s o e / o u c o n ta t o c o m o e s p a ç o a b e rto adjacente.

É claro que, para so lu cio n a r esses problem as ou a p ro ve ita r essas o p o rtu n id a d e s, o espaço a b e r­ to adjacente a a p a rta m e n to térreo teria de ser p ro ­ te g id o ou privatizado. Proteção ou privatização exi g iriam a in tro d u çã o de algum a espécie de barreira no espaço aberto; se isso ocorresse, po ré m , sua continuidade sofreria interrupção, ou m esm o ele ces­ saria de ser coletivo em sua totalidade. Desobedecer- se-iam as prescrições no rm a tiva s m odernistas. En­ tre ta n to , p or que to d o espaço residencial urbano de­ veria necessariam ente ser c o le tiv o e co n tín u o ? A in ­ da que se adm ita a desejabilidade da propriedade p ú ­ blica do solo u rbano, dire ito de propriedade não se c o n fu n d e c o m dire ito de uso. Não decorre daí que seja sem pre indesejável a inexistência de c o n tro le s de acessibilidade ao espaço aberto residencial e que, c o n s e q ü e n te m e n te , seja sem pre indesejável sua co m p a rtim e n ta ç ã o . Cercas altas fazem os bo n s v i­ zinhos, afirm a um velho d ita d o , reco n h e ce n d o que liberdade de co n d u ta não equivale a espaço livre de barreiras físicas. Paradoxalm ente, sua ausência p o ­ de m esm o c o n s titu ir fa to r de repressão de c o m p o r ta m e n to . A 'cid a d e ideal m o d e rn a' reduz os m ú lti­ plos níveis e escalas de interação c o m u n itá ria u rb a ­ na — que dem a n d a m expressão e id e n tifica çã o ter ritorial - à polaridade espaço aberto coletivo do par­ q u e /e s p a ç o co b e rto privado do bloco e unidade h a ­ bitacional. É proposição sim plista a que ignora ser a caracterização de te rritó rio um a necessidade h u ­ m ana básica (S o m m e r; 1969).

A lé m disso, a prescrição m od e rn ista de tratar q u a lqu e r espaço abe rto urbano c o m o parque ta m ­ bém suscita reservas fu n c io n a is e e co n ô m ica s. Pa­ ra a n im a r as q u antidades ilim itadas de parque que a 'cidade ideal m oderna' propõe, a população urbana teria de dedicar-se à recreação ao ar livre em re g i­ m e de te m p o integral (Jacobs; 1961), a b a n d o n a n ­ do o u tro s interesses e o cu pações. Parques são n e ­ cessários na cid a d e, m as o repe rtó rio de tip o s d e ­ sejáveis de espaços a bertos u rbanos não se reduz a ele; parques ta m b é m não são h a b itu a lm e n te d á d i­ vas da natureza. C om o q u a lqu e r o u tro espaço des­ tin a d o ao uso h u m a n o , sua im p la n ta çã o e c o n s e r­ vação custam dinheiro; sua raridade relativa estimula a freqüência e faz mais sentido do p o n to de vista da relação e n tre c u s to e uso e fe tivo .

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A ssim , não causa surpresa que o parque da 'cidade ideal m oderna' degenere e fo rm e um des­ cam pado de gram a rala no c o n ju n to habitacional m odesto. Associado a blocos repetitivos de desenho m o n ó to n o , não estranha que seja percebido co m o 'terra de n inguém ' pública, oferecendo o p o rtu n id a ­ des mínim as de identificação territorial. A o desola- m ento patético soma-se uma vulnerabilidade fla ­ grante; o efeito resultante é inibidor, pouco co n v i­ dativo a uma apropriação de uso. É vio le n to o c o n ­ traste visual com superquadras mais atingas da Asa Sul em Brasília, ou com em preendim entos im obiliá­ rios recentes em São Paulo e outras capitais brasi­ leiras, projetados para classe média alta ou classe al­ ta, de acordo co m princípios m odernistas. Em tais exem plos, um o rçam ento generoso perm ite tanto tratam ento paisagístico elaborado dos espaços aber­ tos coletivos co m o sua manutenção impecável. Não im porta que seu uso efetivo seja lim itado, que sua fu n çã o primária seja ornam ental. A fin a l, trata-se de um sím bolo exclusivo de status, garantido quer pe­

las cercas, guaritas e guardas fo rte m e n te enfatiza­ dos na prom oção desses em preendim entos, quer pela barreira de verde e distância que segrega as c i­ dades satélites do Plano P ilo to 'd e Brasília... Para co m p le ta r, não deixa de ser curioso que o m orador d o 'co n ju n to habitacional BNH deva pagar - do seu 'bolso fa rto ' — não só a im plantação mas tam bém a m anutenção do espaço recreativo púb lico da vizi­ nhança. Em Brasília, ao m enos, é o poder público quem conserva o verde de superquadra.

Ironias à parte, a ausência de c o m p a rtim e n - tação territorial na superquadra não pode ser ju s tifi­ cada co m o im perativo funcional, nem sequer co m o imperativo técnico-econôm ico. È correto afirm ar que a eficiência e econom ia do m ovim ento da cidade au­ m entam c o m a hierarquização de ruas por capaci­ dade e tip o de tráfego e é certa m e n te valiosa co rre ­ lação entre velocidade da m archa pedestre e uma área de 400 x 400m. È im p o rta n te dar-se co n ta de que o planejam ento de áreas dessas dim ensões o fe ­ rece o p ortunidade na distribuição de volum es cons­ truídos, espaços abertos e canais de m o vim e n to mais am plos que as resultantes de um parcelam en­ to da mesma partindo-se de pequenos lotes co nven­ cionais. E ntretanto, daí não se segue que a unidade m ínim a de divisão territorial urbana deva ser a su ­ perquadra. A recíproca faz mais sentido: a superqua­ dra de 400 x 400m é a unidade m áxim a de divisão territorial urbana para fins residenciais que não é co r­ tada po r vias veiculares. No projeto de áreas habi­ tacionais de densidade elevada (o que não é o caso das superquadras residenciais de Brasília), exigên­ cias de acessibilidade veicular favorecem a sua de ­ sagregação em unidades menores. Por o u tro lado, m esm o que a lógica p ro d u tiva favoreça a c o n c e n ­ tração do capital no setor de construção, não decor­

re daí que o planejam ento unitário de gleba do ta ­ m anho de superquadra não possa nem deva c o n ­ tem plar sua desagregação em m ódulos de interven­ ção menores, parcial ou totalm ente limitados por vias veiculares, sem prejuízo de uma correta hierarquiza­ ção viária. Não precisaríamos de m uita im aginação para batizá-los: 'quadra' seria designação bem apro­ priada. Note-se que a desagregação seria mais co m ­ patível com uma im plantação em etapas te rrito ria l­ m ente definidas, prestando-se m elhor a eventuais m odificações do program a de co n stru çã o no te m ­ po. O fa to relevante a observar é que a quadra não deve ser o resultado da adição de lotes de qualquer tam anho, mas da consideração sim ultânea de exi­ gências externas de acessibilidade e econom ia viá­ rias e de exigências internas de organização físi- c o -fu n c io n a l de e d ific a ç õ e s e e spaços a b e rto s , apoiada em constatações tão simples c o m o a de que, para uma mesma área, o quarteirão quadrado tem o perím etro m enor que o de quarteirão retan­ gular, resultando em m enor requerim ento de espa­ ço de rua. Em qualquer caso, existe correlação en ­ tre infra-estrutura viária, co n figuração e dim ensões de quadra e parcela e tip o s de edificação e espaço aberto no interior das mesm as, que deve ser vista de m odo abrangente.

Do p o n to de vista do uso e c o n ô m ico do solo urbano, essa correlação não apóia taxativam ente a prescrição m odernista de edifícios altos sobre a su­ perquadra, co m o o indicam estudos com binados de uso do solo e edificação realizados na Universidade de C am bridge e publicados por Leslie M a rtin e Lio­ nel March (1972) sob o título Urban space and struc­ tures. C onsiderando um universo de form as retan­

gulares (que se recom endam po r fácil dem arcação e registro legal, elevado grau de potencial associati­ vo, simplicidade construtiva, resultados satisfatórios na organização da tram a viária urbana e tc .), a m u l­ tiplicidade de volum es edificáveis pode ser reduzida a três tipos plani-altimétricos básicos. Estes são o pa­ vilhão ou torre, a barra e a cruz. O pavilhão ou to rre é vo lu m e fin ito ; a barra é edificação p o te n cia lm e n ­ te infinita ao longo de um eixo; a cruz é edificação p otencialm ente infinita ao longo de dois eixos per­ pendiculares. Destes tip o s se podem derivar m a tri­ zes form ais retangulares; as barras paralelas geram uma m atriz de ruas, as cruzes geram um a m atriz de pátios. P odem os considerar essas matrizes co m o pontos definidos em um processo contínuo de trans­ form ações m o rfo ló g ica s, no qual pavilhões ou to r­ res isoladas alongam-se até form arem fitas contínuas paralelas, que, por sua vez, se m odificam até fo rm a ­ rem uma malha quadrada prism ática. Foram elabo­ rados e analisados m odelos m a te m á tico s teóricos, descrevendo a variação do índice de a p ro ve ita m e n ­ to — isto é, a área construída p o r área de terreno

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riável de andares, em um m esm o terreno. A análise desses m odelos m ostra que o índice de a p ro ve ita ­ m e n to do c o n ju n to de pavilhões ou torres decres­ ce, partindo-se de um ce rto núm ero de andares — a cidade das torres descontínuas é intrinsecam ente ineficiente em te rm o s de a p ro ve ita m e n to do solo. Examinando o co m portam ento em uma mesma área de terreno das três m atrizes e supondo-se c o n s ta n ­ tes a p ro fu n d id a d e edificada, o a fa stam ento entre lados o p o sto s da edificação, levando-se em conta a m esm a altura to ta l e a m esm a altura entre pisos, verifica-se que, q u a n d o o índice de ap ro ve ita m e n to do c o n ju n to de pavilhões ou torres atinge o seu va­ lor m á xim o , o índice de a p ro ve ita m e n to de barras paralelas é duas vezes m aior e o índice de aprovei­ ta m e n to de uma m atriz c ru c ifo rm e é três vezes su­ perior. Em ou tra s palavras, para um m esm o índice de a p ro ve ita m e n to , a altura de barras paralelas é duas vezes m e n o r que a altura de um c o n ju n to de pavilhões ou torres, a altura de um a m atriz c ru c ifo r­ me é três vezes m enor; um a m atriz anelar qu a d ra ­ da, com parável à uma edificação co m pátio central, co m p o rta -se de maneira análoga à m atriz de barras paralelas. A inda que os estudos acim a resum idos partam de hipóteses sim plificadoras, é in su ste n tá ­ vel qualquer defesa econôm ica de torres isoladas so­ bre o parque.

A pro m o çã o de edifícios altos pela va n g u a r­ da m odernista européia apóia-se num ensaio fa m o ­ so de W a lte r G ro p iu s.3 Este m ostra que, m an tid o c o n s ta n te o â ngulo de o b stru çã o solar entre barras paralelas iguais, em um sítio retangular plano de área dada, a área edificável aum e n ta co m o núm ero de andares; dada um a área to ta l de co n stru çã o a dis­ trib u ir h o m o g e n e a m e n te po r barras paralelas iguais de afastam ento contro la d o po r ângulo de obstrução solar co n sta n te , a área do terreno necessário d im i­ nui c o m o núm ero de andares; dada um a área total de construção a distribuir hom ogeneam ente por bar­ ras paralelas iguais em um sítio retangular plano de área dada, o ângulo de o bstrução solar dim in u i com o núm ero de andares. G ropius defendia edifícios de dez a doze andares.

C ontudo, M arch (1972) aponta que uma apre­ ciação cuidadosa do m odelo m a te m á tico m ostra que, após ce rto nú m e ro de andares, os g a nhos são desprezíveis, porque sua variação é hiperbólica. Uma observação mais calibrada favoreceria soluções mais baixas, quer em fo rm a de barras paralelas, quer em fo rm a de pátio central.

C onvém reparar que, de m odo algum , as co n ­ clusões anteriores são e xtrapoláveis para torres iso­ ladas ou referendam a disposição 'livre' de blocos em superquadra. Faz-se m ister respeitar uma geom etria o rto g o n a l de base. Esta ge o m e tria im plica, no m íni­ m o, a lin h a m e n to parcial de barras paralelas co n

tí-nuas em face das ruas lim ítrofes de superquadra. Do p o n to de vista de uma geom etria eco n ô m ica do es­ paço urbano, é discutível a regra m odernista que prescreve transform ar necessariamente a rua de fe i­ ção tradicional em estrada ou cam inho dando acesso a edificações descontínuas e desalinhadas. Certa­ m ente, ruas e edificações estão sujeitas a pressões funcionais distintas. A rua é canal de m ovim ento p ú ­ blico, a edificação abriga atividades localizadas de acessibilidade co n tro la d a . Essa distinção não refe­ renda, todavia, o tra to a u tô n o m o dos problem as de projeto respectivos. Quaisquer que sejam as espe­ cificações qu a n tita tiva s e qualitativas de um a tram a de ruas e quadras sobre as quais se im p la n te m edi­

ficações, o m o vim e n to nm as ruas te m o rigem ou ^ destino nas edificações, em prim eira instância. Fo­

cos e canais de m o v im e n to são sem pre in terdepen­ dentes do p o n to de vista funcional. Rigosamente fa­ lando, liberar a edificação da rua é um contra-senso lógico. Por o u tro lado, ruídos e gases gerados po r trá fe g o veicular intenso não são m inim izados ou eli­ m inados a u to m a tica m e n te pela de sco n tin u id a d e e desalinham ento das edificações; problem as de ilu ­ m inação, insolação e ventilação se resolvem após consideração judiciosa da interação entre c o n d ic io ­ nantes de situação e c o n d icio n a n te s de fu n c io n a li­ dade. Um a fachada resulta de pressões internas e pressões externas, q uando mais não seja porque considerações econôm icas prem iam a redução de sua área. Á o m esm o te m p o , a experiência m ostra que não há dete rm in ism o fu n cio n a l na geração da fo rm a a rq u ite tô n ica ; em regra, o m esm o c o n ju n to de requerim entos pode ser satisfeito em diferentes volum es.

Se a hierarquização da tram a viária urbana é recom endação sensata, o m esm o não pode ser d i­ to da rejeição da rua tradicional. A observação da realidade de sua utilização na cidade brasileira reve­ la um a riqueza e co m p le xid a d e que a sua definição co m o c a m in h o p ú b lico flan q u e a d o p o r edificações está longe de to rn a r explícita. P ontos de e n c o n tro , de co m é rcio , de b rin q u e d o , de celebração coletiva, de socialização, elas são ta m b é m unidades p ercen­ tuais de nossa leitura do espaço urbano, elem entos básicos para a elaboração do m apa m ental que per­ m ite nossa orientação através do m esm o. É claro que essa m u ltifu n cio n a lid a d e é positivia (Jacobs, 1961), ainda que encerre co n flito s .

A resposta adequada à com p a tib iliza çã o de funções diversas, entretanto, não é necessariamente a segregação e especialização, espaciais absolutas. Entendido e aceite o papel recreativo da rua residen­ cial, caberia verificar, por exem plo, a validade de pa­ drões para áreas recreativas urbanas endossados ho ­ je sem q u e stio n a m e n to . A rejeição da rua tra d ic io ­ nal e a p ro m o çã o irrefletida de blocos isolados, 'li­ vre m e n te ' disp o sto s em relação à m esm a, pela 'c

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i-dade ideal m oderna' tem induzido a desprezar as re­ lações de interdependência funcional e figurativa en­ tre rua e edificação. O espaço da rua passa a ser re­ síduo. A té m esm o em mãos dotadas, a liberdade de im plantação equivalente ao abandono da disciplina do a linham ento pode se co n ve rte r em aleatorieda- de arbitrária de im plantação. Não estranha, p o rta n ­ to , que a orientação seja difícil no co n ju nto de apar­ ta m e n to s BNH .

S ugerim os anteriorm ente que a repetitividade em larga escala de blocos idênticos desempenha tam bém um papel nessas dificuldades de orientação. Tal repetitividade não deixa de ser um eco longín­ quo da prescrição m odernista de redução de tipos de acom odação residencial na cidade, partindo-se da convergência entre requerim entos de industriali­ zação e um núm ero reduzido de necessidades m í­ nim as do h o m e m -tip o anô n im o da sociedade de massas. A regra concebia a construção co m o um processo análogo à produção de autom óveis ou na­ vios. Esquecia, porém , que m uitas partes dos edifí­ cios eram já, de certa maneira, pré-fabricadas em 1930, sem dar lugar ao fe n ô m e n o da industrializa­ ção; que as grandes séries repetitivas adequavam - se à p rodução de co p o s ou parafusos, nunca à de locom otivas ou aviões; que a indústria tende a re­ duzir ao m ínim o o arm azenam ento de peças de re­ posição de co n su m o freqüente; e, finalm ente, que os flu x o s de trabalho na indústria não dependem c o n ce itu a lm e n te do p ro d u to fabricado, mas sim de um m odo específico de program ação de atividades. A produção industrial de com ponentes co nstrutivos de pequeno e m édio porte, tirando plena vantagem das econom ias de escala de uma produção em mas­ sa, não requer a u to m a tica m e n te a cartelização das empresas responsáveis po r sua m o n tagem no ca n ­ teiro. A centralização física e financeira da produção de com ponentes construtivos não impede a descen­ tr a liz a ç ã o fís ic a e fin a n c e ir a d o s a g e n te s construtores.

T udo isso posto, torna-se difícil defender a 'ci­ dade ideal m o d e rn a', em term os de desem penho fu n cio n a l. Embora ostensivam ente ela se pretenda norma apoiada em critérios de higiene, eficiência téc­ nica e racionalidade econôm ica, q uando exam ina­ da mais a fu n d o revela-se dependente de p roposi­ ções discutíveis, que não estão lógica e indissoluvel­ m ente relacionadas. Na m elhor das hipóteses, c o n ­ figura um a alternativa de p rojeto, nunca uma regra categórica. O seu apelo básico é sim bólico. Ela ce­ lebra um adm irável m u n d o novo, onde o progresso científico e tecnológico garantiria a concretização do sonho revolucionário de liberdade, igualdade e fra ­ ternidade, em to ta l harm onia c o m a natureza. Em decorrência de um a hom ogeneização e integração c u ltu ra is su postam ente inevitáveis, desapareceria a necessidade de qualquer elaboração protetora entre

dom ínio público e dom ínio privado, entre liberdade individual e autoridade coletiva. A lógica interna do avanço técnico-científico im poria a dem ocratização econôm ica, a justiça e a paz sociais, a reconciliação entre cam po e cidade, artefato hum ano e paisagem natural. A verdade e a ordem prevaleceriam , trans­ parentes, porque, co m o na utopia clássica, no ad ­ mirável m undo novo os homens não teriam outra es­ colha senão a bondade. Cristalina, brilhante, in co r­ ruptível, a 'cidade ideal m oderna' se coloca fora do tem po e da História, fu n d in d o , numa só im agem , o m ito da perfeição fu tu ra e o m ito da perfeição pas­ sada: a Nova Jerusalém secular e o Jardim do Eden ancestral (Rowe; 1978).

Não im porta que, em retrospecto, a in genui­ dade dessa am álgam a de dete rm in ism o té c n ic o - e conôm ico e idealismo naturalista apareça falacio­ sa. A força em ocional do ícone era avassaladora. Prestava-se a m últiplas conotações. No país de Ca- panema e Kubitschek, tornou-se emblema desenvol- vim entista e afirm ação de ufanism o nacionalista, do gênero 'm ais uma vez a Europa se curva ante o Bra­ sil'. Entretanto, irônica e paradoxalm ente, a cidade justificada co m o p ro d u to de um dinam ism o te c n o ­

lógico sem precedentes só m antém a sua coerência físico-funcional se concebida do zero, regida pelos ditam es de um plano de massa unitário, rigoroso e im utável em suas linhas gerais. A reivindicação de liberdade anula-se no im obilism o de um con tro le to ­ talitário do projeto urbano, ta n to mais insidioso po r­ que se arroga benévolo e ilum inado. A visão iguali­ tária que anim a a 'cidade ideal m oderna' mal disfar­ ça, afinal de contas, o endosso de uma sociedade dom inada p or um a elite te cn o crá tica , na qual o ar­ quiteto teria papel de destaque. Quando, por im pos­ sibilidade de um controle co m p le to do projeto urba­ no, os princípios m odernistas forem institucionaliza­ dos em regras m atem áticas aplicadas a um tecido urbano existente para prem iar a m enor ocupação do solo e o afastam ento das divisas do lote, a c o n s tru ­ ção do espigão se tornará inevitável — e os espa­ ços abertos residuais ju n to à trama viária urbana, um fenôm eno banal. A cidade tenderá a transform ar-se num a coleção de intervenções singulares aleatoria­ m ente justapostas. A redução da paisagem urbana

harm onia m onocórdia que não adm ite desvio se­ rá substituída pela cacofonia desorientadora da mais desbragada perm issividade. A rb ítrio e arbitrarieda­ de c o m a n d a m o espetáculo. Em sua c o m p a n h ia instala-se o desperdício. P rom ovendo a co n vicçã o de que só o novo é a u tê n tico , a 'cidade ideal m o ­ derna' le g itim o u , na fo rm a çã o a rq u ite tô n ica , uma a titu d e de desconsideração da herança urbana bra­ sileira, que constitui extravagância econôm ica e cu l­ tural. È perdulário o desprezo do investim ento c o n ­ siderável em capital e trabalho que essa herança re­ presenta. É em pobrecedora a caracterização pejo­

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rativa dos valores culturais nela cristalizados. A o pre­ te n d e r libertar-nos da m em ória, a 'cidade ideal m o ­ derna' esqueceu que, sem m em ória, não há nem co­ m unicação, nem com unidade.

Por c o n tra s te , o urbanism o de rua, praça, quadra, fachada, alinham ento, esquina, pátio e quin­ tal revaloriza-se. Suas virtu d e s salientam -se: a clara caracterização de dom ínios p úblicos e privados ur­ banos m ediante a adoção norm ativa da edificação contínua alinhada ao longo da rua e da praça; a ve r­ satilidade do plano de fachadas alinhadas que, ao m esm o te m p o que ordena e estabiliza a paisagem pública, a dm ite a coexistência de ritm os diversos de evolução fu n cio n a l e estilística no dom ínio privado; a disciplina geom étrica de um sistem a razoável de regras m o rfo ló g ica s sim ples. Essa possibilita e m es­ m o estim ula o diálogo entre ordem coletiva e inicia­ tiva particular, estabilidade e m udança, constância e im previsibilidade, regularidade e acidente, porque reconhece a conveniência de níveis diferenciados de controle e liberdade no processo de renovação e a m ­ pliação do espaço urbano.

É ó b vio que não faz sentido p ro p u g n a r a re­ pro d u çã o historicista de tip o s anacrônicos no c o n ­ te x to té c n ic o -e c o n ô m ic o e c u ltu ra l de hoje, nem abandonar reivindicações legítim as de c o n fo rto a m ­ biental. A p o n ta r inconsistência de uma fetichização do espaço aberto não significa a firm a r que o espa­ ço aberto é dispensável. Indicar a conveniência de um a desintegração territorial urbana em unidades m enores que a superquadra, não equivale a e n d o s­ sar o quarteirão e streito e c o m p rid o do loteam ento convencional ou co n ju n to de casinhas B N H . A e co ­ nomia urbana requer densidades elevadas. A predo­ m inância da habitação coletiva no tecido residencial urbano c o n tin u a sendo a resposta mais adequada para tal re querim ento. A 'cid a d e ideal m o d e rn a' re­ tém interesse e valor, se entendida racionalm ente co ­ m o proposta que detalha, de m odo dim ensional- m ente e xp lícito , um a a rticu la çã o p o te n cia l entre c o m p o n e n te s físico -fu n cio n a is urbanos, a p artir de prem issas co n cre ta s ou inferíveis co m facilidade. C o nseqüentem ente, está aberta a um exam e c ríti­ co. P odem os c o n c lu ir que suas prem issas são sim - plificadoras ou irrealistas, que as soluções e n ca m i­ nhadas tê m alcance d im in u to . E n tretanto, q uando nos in form am os do que é teoricam ente possível rea­ lizar — via o exercício com binado de especulação ra­ cional e in tu içã o criadora — , ela é exploração que am plia nossa liberdade de opções q u a n to à c o n fig u ­ ração do a m b ie n te co n stru íd o .

Não é m enos verdade, porém , que suas d e fi­ ciências e lim itações intrínsecas im pelem a rejeitá- la c o m o referência n o rm a tiva ou in s tru m e n to aprio- rístico de p ro je to da cid a d e e da m oradia brasileira, a firm a n d o a necessidade de superar a id e n tificaçã o

tácita entre c o n ju nto habitacional e habitação p o p u ­ lar que hoje prevalece no país. Em tem pos não m uito distantes, c o n ju n to planejado de habitações p o p u ­ lares nom eava-se vila. 0 te rm o é s im p á tico : usado ainda hoje para designar co n ju nto espontâneo de ha­ bitações populares, evoca uma urbanidade perdida pelo c o n ju n to BNH . C onjugado c o m o c o n c e ito de bairro, cujas conotações são mais ricas e com plexas que as da asséptica zona m o n o fu n c io n a l m o d e rn is­ ta, poderia alim entar o u tra postura no tra to do p ro ­ blem a de projeto da habitação de baixa renda, fa ­ zendo entendê-lo c o m o problem a de projeto das v i­ las e bairros populares brasileiros. Sejam pro d u to de operações de expansão ou renovação urbana, e m ­ preendimentos de recuperação de áreas faveladas ou urbanização de vazios cita d in os de qualquer p orte, bairros e vilas populares podem e devem ser c o n c e ­ bidos co m o com ponentes físico-runcionais positiva­ m ente integrados à cidade o nde se assentam . Suas ruas, travessas, becos e ca m in h o s devem conetar- se co n siste n te m e n te co m a tram a viária m unicipal. Suas praças devem ser elem entos de um a rede m u ­ nicipal de recreação. A m u ltifu n cio n a lid a d e p o te n ­ cial da rua deve ser plenam ente considerada e v ia ­ bilizada. Os espaços habitacionais p ro p ria m e n te d i­ tos devem coordenar-se física e funcionalm ente com os equipam entos, serviços e locais de trabalho exis­ tentes no e n to rn o ou cuja im plantação se faz o p o r­ tuna e conveniente. D om ínios pú b lico s, sem ipúbli- cos e privados precisam ser claram ente caracteriza­ dos e co n siste n te m e n te articulados. A adoção n o r­ m ativa de edificações alinhadas defro n ta n d o ruas ao lon g o dos lim ites de quadra facilita a o b te n çã o de boas co n d içõe s de identificação e a propriação te r­ ritoriais, fo rn e ce n d o evidência im ediata de re sp o n ­ sabilidades de m a nutenção e gerência espaciais. A repetividade induzida p or m o tiv o s e co n ô m ic o s p o ­ de ser tem perada pela arborização variada de ruas e praças, bem c o m o pelo a p ro ve ita m e n to ju d icio so de todas as o p o rtu n id a d e s legítim as de d ife re n cia ­ ção fo rm a l que decorrem de variações situacionais ou funcionais: acessos, esquinas, coberturas, térreo e assim p o r diante.

A lém do mais, nem a densidade elevada nem a predom inância da habitação coletiva re co m e n dá ­ veis p o r questão de e conom ia p re fig u ram inexora­ v e lm e n te a m o n o to n ia na vila ou bairro popular. A idéia de habitação coletiva pode ser expandida para incluir tam bém o co ndom ínio horizontal - form a de propriedade jurídica já consagrada ju rid ica m e n te no país. Pensar a habitação coletiva c o m o c o n d o m ín io residencial sugere não apenas um a lim ita çã o de es­ cala que constrasta c o m o g ig a n tism o do c o n ju n to habitacional típ ic o , c o m o am plia a gam a de o p ções tipológicas visualizáveis para as unidades h a b ita cio ­ nais propriam ente ditas. Quadras con d o m in a is à ba­ se de casas térreas e /o u assobradadas em fita p o ­

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dem atingir uma densidade líquida da ordem dos 300 a 400 h a b /h a , sem qualquer prejuízo de habitabili- dade, aliando atrativos da residência unifam iliar (co­ m o acesso indivdualizado, vinculação direta com pá­ tio p rivativo, possibilidade de am pliações), com a possibilidade de dispor de espaços e equipam entos e co n o m ica m e n te inviáveis na residência unifam iliar m odesta. Elim inando a obrigatoriedade de coletivi- zação de to d o espaço aberto, apartam entos térreos ta m b é m poderão ser dota d o s de pátios privativos e até m esm o de acessos individualizados. A casa de altos e baixos em fita poderá ser considerada nova­ m ente co m o alternativa: não há razão algum a que im ponha com o necessidade universal a posse de es­ paço aberto, particularmente quando não se tem au­ tom óvel — o que é regra e não exceção nas cam a­ das de m enor poder aquisitivo. Igualm ente, mesmo em regim e de propriedade individual, é possível o b ­ ter densidades razoáveis com casas de porta-e-janela e sobrados em fita. Um quarteirão quadrado pode­ ria co m p o rta r tanto pequenos condom ínios horizon­ tais co m o casas unifam iliares em fita de testa redu­ zida: pode-se co n stru ir sobrado em 4,5m de testa­ da, em ótim as condições. Usando raciocínio similar em sentido inverso, urbanizações à base de casas- em brião ou lote-e-serviços resultarão mais econôm i­ cas em infra-estrutura viária, se concebidas a partir de quarteirões quadrados parcelados em superlotes, condom iniais, o nde se individuem espaços p riva ti­ vos e coletivos, ou em com binação de pequenos lo­ tes unifam iliares e superlotes condom iniais. A diver­ sidade potencial de soluções não é ilim itada, mas não se esgota no c o n ju n to a n tie co n ô m ico de casi­ nhas isoladas e no c o n ju n to habitacional m odernis­ ta co rro m p id o .

O exam e que aqui fizem os do c o n ju n to habi­ tacional BNH c o m o referência norm ativa do proje­ to da habitação popular brasileira não se pretendeu exaustivo; as alternativas sugeridas devem ser e n ­ tendidas c o m o um esboço de possibilidades a de­ senvolver. Suas im plicações técn ico -e co n ô m ica s e culturais m erecem ser exam inadas co m m aior rigor e com paradas co m o desem penho correspondente de co n ju n to s habitacionais já realizados. A dissocia­ ção recom endada entre co n ju n to habitacional e ha­ bitação popular, e n tretanto, perm ite que sejam per­ cebidas relações entre o problem a de projeto da ha­ bitação p opular e o u tro s tipos que fazem parte de um rico acervo de co n fig u ra çõ e s a rquitetônicas c o ­ nhecidas e já testadas em outros m om entos no país. Permite pensar na recuperação de uma m em ória ar­ q u ite tô n ica e urbanística desprezada levianam ente em benefício de um fu tu ris m o em pobrecedor. Se­ ria ingênuo, porém , subestim ar os form idáveis m e ­ canism os institucionais e ideológicos que sustentam a realização do c o n ju n to habitacional BNH e c o n tri­ buem para inviabilizar estratégias inovadoras no pro ­

jeto da habitação popular. Entre eles está a legisla­ ção arquitetônica e urbanística vigente, que perpe­ tua preconceitos tipológicos associados ao sonho da 'cidade ideal m oderna', co m o a exigência de baixas taxas de ocupação, recuos frontais e laterais, e as­ sim por diante. De uma maneira geral, ela não dis­ tingue entre os elem entos e relações físicas urbanas cuja conservação, materialização ou alteração in te ­ ressam obrigatoriam ente à co m unidade e aqueles que podem licitam ente ser deixados à iniciativa par­ ticular. Sua tendência é dar excessiva liberdade ao projeto do espaço público e excessiva rigidez ao pro­ jeto dos dom ínios privados. A lém disso, a legislação peca dem asiado fre q ü e n te m e n te po r irrealism o, aplicando-se sem discernim ento, num c o n te xto no­ toriam ente carente, critérios, norm as e especifica­ ções mais exigentes dos países mais ricos. A des­ proporção se torna mais sensível à m edida que se baixa na escala econôm ica da população. N orm as, critérios e especificações irrealistas reduzem o n ú ­ mero de soluções oferecidas legalm ente e fo rm e n - tam invasões e loteam entos clandestinos de baixa qualidade urbanística. Seguram ente o problem a da escassez das soluções habitacionais não se eliminaria som ente co m a dim inuição de cu sto s gerada por normas mais austeras baseadas no conceito de uma qualificação progressiva por etapas de vilas e bair­ ros populares. Todavia, é possível presum ir que se lograriam avanços substanciais (Trujillo, Gnecco et alü), quando a realidade do subdesenvolvim ento fos­ se reconhecida e aceita com o o ponto de partida pa­ ra o uso eficiente e imaginativo de recursos limitados.

Notas

1. 601 hab/ha é a ordem de grandeza média dos 40 conjuntos ilus­ trados em B N H : projetos sociais, publicado pelo próprio banco em 1979.

2. A cidade ideal m oderna pode ser cham ada tam bém de 'cida­ de da Carta de A tenas' — relatório-manifesto urbanístico, produto final do 4? Congresso Internacional de A rquitetura M oderna rea­ lizado em Atenas no verão de 1933.

3. O ensaio de Gropius está descrito no livro citado de M artin e M atch.

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Referências

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