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Discurso Religioso, Legitimidade e Poder: algumas considerações a partir de Bourdieu, Foucault e Heller

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Academic year: 2020

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(1)DISCURSO RELIGIOSO, LEGITIMIDADE E PODER: ALGUMAS CONSIDERAÇÕES A PARTIR DE BOURDIEU, FOUCAULT E HELLER Rodrigo Portella. Resumo: este artigo pretende definir, a partir de Pierre Bourdieu e Michel Foucault, a questão da autoridade institucional-religiosa e a pretensão de oficialidade de seu discurso. Pretendemos, também, apontar questionamentos sobre a produção religiosa e a questão da verdade nela e de sua (re)significação pelos indivíduos, este último ponto com base em alguns pressupostos de Agnes Heller. Palavras-chave:instituição religiosa, discurso, normatividade, poder, leigos. A. instituição religiosa (mas não só) tem em seu corpo de especialistas e hierarcas o monopólio da produção do discurso religioso e doutrinário, que se quer verdadeiro e normativo. A doutrina é sempre regulamentada pelo discurso autorizado e dito legítimo da instituição. E, por outro lado, o pensamento e prática religiosa dos indivíduos leigos devem se coadunar com o que diz e regula a doutrina religiosa de sua instituição, portadora do discurso correto e da norma verdadeira. Mas, será que é assim que acontece? Até que ponto a produção que se quer oficial de um discurso ou doutrina não é uma ideologia que seqüestra dos leigos (a própria palavra leigo, aqui, é ideologicamente depreciativa) seu direito e possibilidades de construir o discurso religioso? E até que ponto o discurso oficial chega, realmente, a modelar a vida e idéias dos leigos? Perguntas que queremos perseguir neste artigo.. FRAGMENTOS DE CULTURA, Goiânia, v. 16, n. 7/8, p. 567-576, jul./ago. 2006.. 567.

(2) SABER, DISCURSO, VERDADE: A ALIENAÇÃO DA LEGITIMIDADE DO CONHECIMENTO E SUA APROPRIAÇÃO POR UM CORPO INSTITUCIONAL E NORMATIZADOR Procuraremos dialogar brevemente com dois pensadores franceses: Pierre Bourdieu e Michel Foucault. A intenção é que ambos possam acender algumas luzes no caminho do decifrar o porquê do conhecimento normativo ser privilégio de grupos localizados e a razão pela qual os conhecimentos e discursos populares são desqualificados ou desconsiderados nos quadros institucionais. A religião, segundo Bourdieu, pode ser interpretada como uma linguagem, instrumento de comunicação e conhecimento, que é, então, um veículo simbólico-estruturante a possibilitar um consenso acerca de certos signos e seus respectivos sentidos (BOURDIEU, 1999). Assim, ela é um feixe de signos da linguagem que vem a construir um determinado imaginário de mundo com seus sentidos. Numa comunidade religiosa específica, por exemplo, se pressupõe um acordo lingüístico básico acerca de significados religiosos norteadores para a comunidade. Assim, a doutrina religiosa se difundiria pela partilha de tais significados. Esta partilha, entretanto, é condicionada pela exigência de que se reconheçam as mesmas verdades e se aceitem as regras de conformidade com os discursos oficiais. Assim, a doutrina liga as pessoas a certos enunciados, lhes proibindo outros (FOUCAULT, 2000). Há, entretanto, neste quesito da doutrina e verdade oficiais, uma acumulação de saber (capital de bens simbólicos) na mão de alguns especialistas na medida em que se forma uma casta sacerdotal, isto é, quando há, de fato, uma divisão do trabalho acerca do lidar com os bens simbólicos, quando o corpo sacerdotal se constitui como aquele autorizado, por meio de sua racionalidade tornada oficial, de dizer o que legitimamente significam os signos da linguagem religiosa. Há a institucionalização da legitimidade do discurso que é apropriada pelo corpo de especialistas, alienando o povo/leigo de legitimidade normativa em seu discurso. Este corpo de especialistas, portanto, é aquele que, em seu trabalho exegético-interpretativo, dirime confrontos ou dúvidas quanto à clareza das assertivas religiosas (BOURDIEU, 1999). E uma das formas de se controlar a produção e circulação do discurso é limitar o número daqueles que têm acesso oficial a ele. Assim, se impõe a tais indivíduos alçados à casta sacerdotal, regras e exigências e, para preenchê-las, é preciso estar qualificado (FOUCAULT, 2000). É a divisão social do trabalho intelectual de dizer a verdade dos signos. Assim, a produção do discurso é sempre controlada com o intuito de que se domi568. FRAGMENTOS DE CULTURA, Goiânia, v. 16, n. 7/8, p. 567-576, jul./ago. 2006..

(3) ne, no discurso, seu acontecimento aleatório, para que ninguém se aproprie dele de forma não controlada pela instituição. Conforme Marilena Chauí, citada por João Frayze-Pereira (1983), o discurso proferido pelo especialista é o discurso competente, socialmente permitido, autorizado, verdadeiro. Assim, se constituem duas instâncias num mesmo campo religioso, isto é, a do povo leigo, com seu domínio prático-vivencial das relações com os bens religiosos e praticados numa modalidade pré-reflexiva; e o domínio erudito de teologias, conceitos e normas instituído pelos especialistas e suas respectivas instituições reprodutoras do capital religioso oficial mediante ação pedagógica para com os leigos (BOURDIEU, 1999). São, como se observa, tipos opostos de distribuição e relação com o capital religioso, tantas vezes conflitante. Portanto, temos, estruturada nas sociedades religiosas, uma oposição entre a manipulação legítima da religião – pelo corpo de especialistas oficiais – e a manipulação profana ou ignorante da religião, feita pelos desprovidos do saber oficial. O corpo sacerdotal (instituição) é quem tem o direito de educar o povo sobre a ortodoxa forma de se conceber ou praticar um conceito religioso. A religião é vista como um corpo de discursos e verdades conceituais e práticas cujo acesso interpretativo legítimo pertence à instituição. Este é o princípio de um corpo doutrinário ou dogmático. As proposições, aquilo que concerne ao escopo de um discurso (aqui, religioso), devem preencher exigências complexas para pertencer ao corpo discursivo oficial, para ter o status de verdadeiro (FOUCAULT, 2000). Tal conferência de status é privilégio dos entendidos. A religião dos leigos – usemos tal expressão – é, no entanto, sempre uma pedra no sapato da instituição. Como crença dominada e tutelada pela religião oficial, ela se torna, no entanto, mesmo sem querer, uma contestação objetiva ao monopólio da gestão oficial do sagrado, pois, em suas práticas e formas não autorizadas de vivências e (re)apropriações de conceitos, é uma resistência e recusa em se deixar alienar da produção e gestão dos bens religiosos (BOURDIEU, 1999). A instituição, no entanto, diante da concorrência religiosa a respeito dos bens simbólicos que se dá em suas bases leigas, se prevalece de um monopólio que vincula a ela o capital da distribuição da graça, controle de acesso aos bens simbólicos e de sua distribuição, delegações estas dadas ao corpo eclesiástico que regulamenta a concessão dos bens simbólicos (BOURDIEU, 1999). Ou seja, a instituição se constitui como a única e legítima depositária do tesouro da fé (ortodoxia) e sua autêntica produtora e reprodutora. O princípio de autoridade é evocado. Assim, a conservação e a restauração do mercado simbólico religioso são asseguradas por meio de FRAGMENTOS DE CULTURA, Goiânia, v. 16, n. 7/8, p. 567-576, jul./ago. 2006.. 569.

(4) um aparelho burocrático que exerce autoridade e controle normativo sobre tais bens, oferecendo ao mercado religioso (leigos) seus produtos oficiais. A instituição, mediante o sacerdócio qualificado e reconhecido pelos leigos como tal, tem a intenção de possibilitar uma ação homogênea e homogeneizante (BOURDIEU, 1999), isto é, não plural e que evita o escape de seu controle. Assim, tenta-se criar, nos leigos, um habitus religioso mínimo que possibilite a assimilação, mínima que seja, da produção oficial. É preciso inculcar no leigo “uma disposição duradoura, generalizada e transferível de agir e de pensar conforme os princípios de uma visão sistemática do mundo e da existência” (BOURDIEU, 1999, p. 88). Para ver sua autoridade normativa respeitada, a instituição tende a separar ortodoxia de heresia. E heresia é aquilo que não está concorde com o pensamento da instituição. Busca-se, assim, desqualificar e condenar todo ato que não se coadune com o pensamento oficial, visando, assim, sua dissolução. Portanto, de certa forma, toda religião ou igreja constituída, por mais ecumênica ou tolerante que seja em nível interno, para se manter, no entanto, precisa colocar, de forma clara, as fronteiras entre ortodoxia e heresia, pois, caso contrário, tenderá a se esfacelar e perder a unidade. As doutrinas religiosas querem ser exclusivistas ao passo que reivindicam o serem verdadeiras. E o conceito de verdade que costuma norteá-las é aquele que exclui, isto é, se a verdade é ‘A’ ela não pode ser também ‘B’. Usa-se a noção corrente de contradição, onde duas verdades diferentes não podem ocupar o mesmo espaço, e status. A verdade é sempre singular. O discurso oficial precisa de interdições, supressões, fronteiras e limites para dominar, levar à coesão e impedir a proliferação não autorizada do discurso (FOUCAULT, 2000). Porém, toda rigidez corre o risco, igualmente, de se tornar contra si. É assim que, mesmo com o espectro do monopólio e as estratégias de coesão, coerção e monopolização na produção e distribuição dos bens religiosos, a instituição, se quiser sobreviver, necessita fazer, mesmo que extraoficialmente, concessões. Essas concessões são trocas simbólicas entre o clero e os leigos, quando os conceitos ou práticas da oficialidade são (re)apropriados pelos leigos em suas lógicas próprias. É quando se adere ao signo oficial, dando-lhe novo significado. Se o corpo institucional não permite tais brechas ou trocas simbólicas, corre o risco de perder espaço para forças religiosas concorrentes não oficiais disseminadas no campo religioso popular (o feiticeiro, na conceituação de Bourdieu). A religião oficial, para exercer-se entre o povo leigo (seu mercado consumidor), precisa se acomodar às demandas desse mercado-povo, fazendo concessões e permitindo permutas 570. FRAGMENTOS DE CULTURA, Goiânia, v. 16, n. 7/8, p. 567-576, jul./ago. 2006..

(5) simbólicas entre o campo oficial e o popular. Conforme Weber (apud BOURDIEU, 1999, p. 96), “quanto mais o clero se esforça para regulamentar a conduta de vida dos leigos de acordo com a vontade divina [...] tanto mais vê-se obrigado a fazer concessões em suas teorias e ações”. Interessante, neste ínterim, é constatar, com Bourdieu, que também os “sacerdotes”, os representantes e especialistas do oficial, responsáveis pela correta gestão dos bens simbólicos, podem usar, aqui e acolá, da “magia” (MENDONÇA, 2002, p. 25), isto é, das formas não-ortodoxas e oficiais da religião. Isto evidencia que não existem tipos fixos ou ideais de papéis sociais. Há, sim, papéis demarcados, mas, conforme a ocasião, é possível um intercâmbio de práticas ou mentalidades entre os atores sociais. O LUGAR DA VERDADE COMO DISCURSO: QUESTIONAMENTOS E PROPOSIÇÕES Após a explanação acima, buscaremos, agora, a ajuda do pensador francês Michel Foucault para adentrarmos um pouco mais no polêmico conceito de verdade e de sua produção legítima. Foucault fala da verdade do discurso mapeando três momentos do desenvolvimento de sua noção na história. Na antigüidade clássica, por exemplo, o discurso verdadeiro era aquele que inspirava respeito e terror, porque dito por quem de direito. Era discurso ritualizado e ligado ao poder de quem falava. O poder e a força são o lastro da verdade deste discurso. Mais tarde a verdade do discurso passa a ser referenciada pelo próprio enunciado em seu sentido, forma e em sua relação com a sua referência. A partir do Renascimento o discurso verdadeiro passa a ter seu lastro na observação, mensuração, classificação. A verdade é verificável e útil. Assim, surge uma vontade de verdade que é excludente daquilo que não se encaixa no verdadeiro. A verdade-discurso, finalmente, é institucionalizada através da pedagogia, bibliotecas, sociedades, laboratórios (FOUCAULT, 2000). A questão, levantada por Foucault, é que o discurso, o discurso que se quer verdadeiro, é objeto de luta, pois é poder, e poder que lutamos para dele nos apoderar. E esta busca tem relação com o desejo. Discurso é poder. Verdade é poder. E o desejo é o impulsionador da vontade de poder que o discurso, o discurso-verdade, confere. Saber e poder estão relacionados, onde o poder necessita do saber e o saber é gerador do poder (BERGSCH, 2000). Assim como no caso das prisões, pode-se aplicar às instituições (igreja) a questão da vigilância e punição na questão do zelo pela ortodoxia contra a heterodoxia do discurso e ação. De acordo com o filósofo, se “combinam as técnicas de FRAGMENTOS DE CULTURA, Goiânia, v. 16, n. 7/8, p. 567-576, jul./ago. 2006.. 571.

(6) hierarquia que vigia e as da sanção que normaliza [...], controle normalizante, uma vigilância que permite qualificar, classificar e punir” (FOUCAULT, 1977, p. 154). Há alternativa a este tipo de circulação e imposição de verdades, comportamentos ou discursos que se querem oficiais e se beneficiam de tal poder? Quanto ao discurso e sua pretensão de verdade reivindicado por certo grupo, talvez seja preciso ousar com Foucault e dizer que é preciso questionar nossa vontade de verdade e restituir ao discurso seu caráter de acontecimento (FOUCAULT, 2000). Portanto, lá onde se inscrevem as fontes do discurso oficial e suas condições disciplinares para que seja verdade, é preciso reconhecer, ao contrário, um recorte e uma rarefação do discurso. O que é isto? A questão é que, se encararmos o discurso, qualquer discurso, até o religioso-doutrinário, como acontecimento, circunscrito a épocas, contextos, grupos, interesses ou sentimentos, não poderemos, de forma coerente, petrificar este ou aquele discurso como referencial e normativo para todos, em todas as épocas, lugares ou situações. Toda consagração de um determinado discurso como sendo o discurso é um recorte do(s) discurso(s) e de seus signos e significações. É pinçar um solo na polifonia do discurso. E, pior, limitar sua execução e interpretação a um número limitado e especializado de solistas. O mais grave, porém, é que verdades tidas como referenciais normativos costumam gerar violência, de fato ou simbólica. Toda verdade, especificamente aquela tida como revelada e para todos, é, por sua própria natureza de verdade, algo que reivindica ser aceita por seu status de verdade. Portanto, tende a gerar oposição, por ser excludente daquilo que não é verdade. Assim, a verdade (dogmática, fechada, imposta) leva a um certo grau de violência e espoliação, ainda que simbólica. Por tudo isso é preciso dar ouvidos à polifonia polissêmica da orquestra da vida. E, em tal ausculta, se perguntar onde está a verdade, ou melhor, as verdades que dão sentidos às vidas. Na exclusividade de um som ou na harmonia (ou desarmonia plural) dos sons? Então, o que é verdade? Todo discurso é verdadeiro, porquanto expressa uma visão de mundo real, sentida, vivida, interpretada? Ou o discurso, por mais que sentido, vivenciado e crido pode ser falso, se comparado a um discurso que se quer normativo e normatizador-regulador dos discursos? É uma questão de opção hermenêutica e epistemológica. E, por ser opção – quem tem uma tendência pela valorização do discurso normativo como sendo o verdadeiro talvez não veja aqui uma opção – é inútil, ao menos para as limitações deste artigo, ir além do que já foi e será discutido sobre a questão do que é verdade e sua manifestação. Basta que se diga que o autor destas linhas opta, conforme suas convicções, em conferir relevância e verdade 572. FRAGMENTOS DE CULTURA, Goiânia, v. 16, n. 7/8, p. 567-576, jul./ago. 2006..

(7) (no sentido de autenticidade e de valor) aos discursos recolhidos da boca do povo. Verdadeiros são não no sentido de conformidade com o real (o que é o real?). Verdadeiros porquanto expressões reais de fé, e relevantes e de valor porque, uma vez expressões daquilo que se vive e se sente, não são estórias, mas histórias. E aqui se parte do pressuposto de que algo que foi pensado, sentido e construído simbolicamente é real, é História. Real que, então (esta é nossa opção), é tudo aquilo que veio a existir, mesmo que simbolicamente ou conceitualmente, pela vida, sentimentos e reflexão das pessoas. Todo conhecimento, portanto, é relativo, provisório, parcial e influenciável. Conhecer é verbo, ação, é, portanto, um caminhar, não necessariamente um chegar. AS RELAÇÕES ENTRE O INDIVÍDUO E A INSTITUIÇÃO COM SEU DISCURSO NORMATIVO: OS DRIBLES DA VIDA No entanto, resta uma pergunta: se o indivíduo, o leigo, o povo alijado da produção oficial das instituições oficiais, não sendo agentes da produção normativa das verdades veiculadas por suas instituições, têm alguma autonomia no elaborar ou (re)elaborar e (re)significar as verdades e doutrinas que lhe passam ou inculcam? A resposta parece ser óbvia: claro que sim, que há autonomia ou (re)significação das verdades e doutrinas que as instituições e seus especialistas legislam para seus adeptos. Prova disso é a religiosidade popular no Brasil, que (re)interpreta discursos oficiais, fazendo um uso próprio deles, transformando-os em seu interior e lhes dando um novo rosto, sentido e significado. Exemplo clássico disso também é o Candomblé, religião que surge da (re)interpretação e (re)significação dos símbolos e doutrinas católicas impostos aos escravos. Assim, como explicar que a autoridade que se quer legítima na produção e legislação de seu discurso é tantas vezes driblada em seu intento de regular as verdades e doutrinas entre seus adeptos? Por que o povo, embora pareça aderir à legitimidade do discurso institucional e normativo, em verdade o transforma e o (re)significa? A filósofa da história, Heller, pode nos ajudar a dar uma resposta a esta questão. Embora num grupo (religioso, por exemplo), o ser humano é alguém particular, singular, único. E, assim, vive a dinâmica desta particularidade, do eu. No caso, é esse eu que reflete acerca das coisas (HELLER, 1972). O grupo, a igreja como grupo de pertença, tradição e memória, por mais que fomente a coesão de identidade e seja esteio (religioso) do ser humano, não consegue fazer dele, do indivíduo na singularidade solitária e autônoma de seu eu, alguém que encarne o grupo/instituição como modelo pronto, acabado, pensado. Assim, por mais que o grupo possa, aqui e ali, influir e formar, é na FRAGMENTOS DE CULTURA, Goiânia, v. 16, n. 7/8, p. 567-576, jul./ago. 2006.. 573.

(8) individualidade que o ser humano se faz, se exerce, nas possibilidades de sua liberdade. E esta liberdade exercida, jamais reprimida por mais repressora e modeladora que seja a instituição à qual a pessoa faça parte, se vive e exerce no cotidiano, nas experiências de vida, nos contatos sociais. O ser humano do cotidiano, real, prático, não costuma orientar-se ou medir-se por teorias: A unidade imediata de pensamento e ação implica na inexistência de diferença entre ‘correto’ e ‘verdadeiro’ na cotidianidade. O correto é também ‘verdadeiro’. Por conseguinte, a atitude da vida cotidiana é absolutamente pragmática (HELLER, 1972, p. 32). Assim, embora a religião institucional pressuponha a comunidade coesa em fé, em termos da construção da fé o indivíduo torna-se um ser não necessariamente comunitário. Ele é pragmático e identifica o correto que entende em sua vivência diária com a verdade. Verdade é o que tem sentido para o indivíduo em sua vivência particular. O ato de dar sentido é independente (HELLER, 1993). Desse modo, a fé, antropologicamente falando, nasce da particularidade individual, satisfazendo suas necessidades (HELLER, 1972). Ela é resultado de interpretações individuais e opções realizadas no contexto da cotidianidade, de suas relações e necessidades, sejam práticas ou de caráter mais psicológico. E, assim, nesse contexto, para o indivíduo cotidiano não importa tanto a verificação ou correspondência da verdade de uma coisa, pois “o que revela ser correto, útil, o que oferece ao homem uma base de orientação e ação no mundo, o que conduz ao êxito, é também ‘verdadeiro’” (HELLER, 1972, p. 45). Geralmente, verdade é aquilo que é concebido como mais próximo de um real concreto, verificável. Verdade é o útil, o prático, o que faz sentido valendose das vivências cotidianas e das interpretações e opções inerentes a elas. Quanto a isso Heller (1993) argumenta que, quanto à verdade, só temos versões, pois só temos versões sobre a realidade. Numa briga, por exemplo, em que os dois contendores dizem, um ao outro, que o oponente é quem, por algum motivo, começou a cizânia, temos apenas versões sobre a realidade. Para o contendor ‘A’ foi o contendor ‘B’ que iniciou a confusão, e vice-versa. E os dois crêem resolutamente estarem com a razão e próximos à realidade dos fatos. E, mesmo se um tribunal chega a uma conclusão sobre a origem e o iniciante da briga, ele apenas acatou como mais verossímil e perto da realidade uma das versões contadas. Porém, a realidade objetiva é sempre vedada. Não existe, neste caso, realidade objetiva, mas versões sobre a realidade. E as versões, claro, são de um modo aqui e de outro acolá, conforme 574. FRAGMENTOS DE CULTURA, Goiânia, v. 16, n. 7/8, p. 567-576, jul./ago. 2006..

(9) são as vivências, interesses e pontos de vistas de cada indivíduo sobre a realidade. As versões são interpretações e opções em relação a um fato ou idéia. Ora, da mesma forma a fé do indivíduo cotidiano. Sua fé é sempre versão sobre um fato, idéia, crença, doutrina. E sua versão é crida, é identificada como verdade, pois é seu olhar interpretativo, vivencial e prático que o diz. Sua vida o diz. Mesmo que a versão seja uma subversão da crença oficial que, algum dia também, foi uma versão de crenças já estabelecidas e, quem sabe, uma subversão delas. Tudo isso vem a revelar uma evidência: a verdade, para o indivíduo em sua vida diária, trivial, não é singular, mas plural. E quem diz, em última instância, o que é ou não verdade, é o indivíduo em sua vivência prática e cotidiana. É claro que, no entanto, o caráter público ou privado da esfera de ação e pensamento do indivíduo influi naquilo que ele vai externar. Quando em público, haverá a tendência dele reproduzir aquilo que o ambiente pressupõe e espera. Cumpre-se, assim, a postura de um papel e ritual social público. Quando na privacidade, entretanto, o indivíduo, não tendo a coação do ethos social em que está inserido, tende a ter um tipo de atitude e pensamento que não necessariamente tenha que se adequar ou responder ao grupo (HELLER, 1993). Assim, podemos conhecer apenas aspectos isolados das personalidades. A manifestação de uma pessoa em sua exterioridade (o que mostra ao mundo) e interioridade (o que vela, mas sente ou pensa) depende dos papéis que a pessoa exerce nos contatos e nos lugares em que se encontre (HELLER, 1993). Portanto, a relação do indivíduo com a doutrina normatizada como verdadeira e, por outro lado, com sua versão pessoal/vivencial da doutrina oficial é sempre ambivalente, pois o indivíduo, em sua capacidade adaptável de sobrevivência, revelará, como sua, a versão oficial ou pessoal de algo conforme as circunstâncias. E, neste ínterim, a pessoa não se vê como contraditória ou infiel. Apenas assume a ambigüidade da vida, do ser humano e de suas estratégias de sobrevivência num mundo ao mesmo tempo plural e impositivo de modelos, onde o ser humano se acha na dialética do ser ou não ser e do ser sem ser. A busca da individualidade e de sua expressão em meio às verdades ou comportamentos impostos e prescritos por instituições se dá nesta ambigüidade, onde o caráter humano do indivíduo transparece em toda sua pujança de um nó de relações, idéias, posições, sentimentos e crenças. CONCLUSÃO Percebemos como o poder do discurso e da normatividade religiosa é aparente e poroso. Para as pessoas leigas, por mais que os referenciais FRAGMENTOS DE CULTURA, Goiânia, v. 16, n. 7/8, p. 567-576, jul./ago. 2006.. 575.

(10) institucionais ditados pelo discurso especializado dos especialistas ou hierárcas seja importante como ponto de identidade e pertença a um grupo, e respeitado porquanto dito por quem de direito (e essa hierarquia é reconhecida), o uso que se faz dos discursos e doutrinas da instituição é sempre um uso pessoal gerido pelas necessidades e experiências de vida. As pessoas costumam estar submetidas a uma instituição religiosa a partir de sua liberdade, e não de um domínio cego. Tal fato é importante para que descortinemos que todo poder, até mesmo o religioso ou divinamente autorizado, não pode se arrogar a ser senhor das vidas daqueles que sob ele estão ou parecem estar. O indivíduo é quem sempre acaba dando as cartas a partir daquilo que, para ele e para sua experiência, faz ou precisa fazer sentido.. Referências BERGSCH, K. Poder e saber em Michel Foucault. São Leopoldo: Sinodal, 2000. BOURDIEU, P. A economia das trocas simbólicas. São Paulo: Perspectiva, 1999. FOUCAULT, M. Vigiar e punir: história da violência nas prisões. Petrópolis: Vozes, 1977. FOUCAULT, M. A ordem do discurso. 6. ed. São Paulo: Loyola, 2000. FRAYZE-PEREIRA, J. O que é loucura. São Paulo: Brasiliense, 1983. HELLER, A. O quotidiano e a história. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1972. HELLER, A. Uma teoria da história. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1993. MENDONÇA, A. G. de. Uma macro-reflexão sobre o campo religioso brasileiro: variações sobre dois temas bourdieuanos – a propósito da morte de Pierre Bourdieu (23/01/02). Estudos de Religião. São Bernardo do Campo, ano XVI, n. 23, p. 22-40, dez. 2002.. Abstract: the present article intends to define, starting from Pierre Bourdieu and Michel Foucault, the subject of the authority institutional-religious person and officiality of his/her speech. We intended, then, also to point on the religious production and the subject of the truth in her and of his/her reverse-significance for the individuals, this last point starting from some presuppositions of Agnes Heller. Key words: religious institution, speech, officialiy, power RODRIGO PORTELLA Mestre em Ciências da Religião pela Universidade Metodista de São Paulo (Umesp). Licenciado em História pela FFSD/RJ. Bacharel em Teologia pela EST/RS. E-mail: rodrigo@portella.com.br.. 576. FRAGMENTOS DE CULTURA, Goiânia, v. 16, n. 7/8, p. 567-576, jul./ago. 2006..

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