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Doenças entre indígenas do Brasil nos séculos XVI e XVII

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Academic year: 2020

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DOENÇAS ENTRE INDÍGENAS DO BRASIL

NOS SÉCULOS XVI E XVII

Rosangela Baida

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Acadêmica do curso de Ciências Sociais

Cándida Graciela Arguello Chamorro

2

Professora de História Indígena FCH/UFGD

RESUMO: O presente artigo é resultado de uma revisão bibliográfica e de uma consulta a

fontes sobre as doenças que afetaram os povos indígenas da costa do Brasil, nos primeiros

séculos da colonização. Primeiro apresentamos um listado descritivo dessas doenças,

especificando aquelas enfermidades que se tornaram epidêmicas; na sequência,

consideramos o paradigma da compreensão e as etiologias dessas doenças, especialmente

o hipocrático, padrão explicativo que acompanhou o processo civilizatório no Ocidente. Os

dados levantados sugerem que, concomitante à visão considerada científica à época,

prevaleceu uma compreensão mítico-religiosa das doenças inclusive entre os missionários e

demais agentes civilizadores.

PALAVRAS-CHAVE: doenças, epidemias, história indígena

ABSTRACT: The present paper is the result of a bibliographical review and of a consultation

with documents concerning the diseases which affected indigenous people from Brazilian

coast in the first centuries of colonization. First of all, a descriptive list of those diseases is

presented, specifying the infirmities that became epidemic. Secondly, the paradigm of

comprehension and etiology of those diseases was considered, especially the Hippocratic

paradigm, that is, the explicative pattern which followed the process of civilization in the

West. The data selected suggest that, concurrently with the period’s scientific point of view,

the disease mythical-religious understanding prevailed even among the missionaries and

other civilizing agents.

KEYWORDS: diseases, epidemic, indigenous history

1

Bolsista de Iniciação Científica PIBIC/CNPq 2

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2

À época da chegada dos europeus, os povos indígenas da costa do Brasil eram

experimentados em certas doenças e práticas curativas. Os conquistadores introduziram

novas doenças, que acabaram se tornando uma das armas letais que mais impactou a

forma de viver e de morrer dos povos indígenas. O conhecimento destas doenças e

daquelas às quais a população índia tinha se adaptado é de grande relevância no âmbito de

uma investigação, que atente para um mapeamento dos aspectos fundamentais da vida dos

povos indígenas guarani falantes no século XVII

3

. Nesse sentido, neste artigo procuramos

caracterizar e, na medida do possível, diferenciar as doenças sofridas pelos indígenas da

costa do Brasil, para uma posterior comparação com a experiência que se deu neste campo

nos povos chamados grosso modo de guaranis nas áreas colonizadas por espanhóis.

1 - “Naturalmente sadios”, mas doentes

Segundo Santos Filho (1977: 96), em sua obra História Geral da Medicina Brasileira,

os indígenas eram “naturalmente sadios” e “suportavam, sem prejuízo para a saúde, as

intempéries e os inconvenientes da vida nas selvas”. O autor ainda nos remete à afirmação

do calvinista francês Jean de Léry

4

que no século XVI descreveu os povos indígenas da

costa do Brasil dizendo: “não são maiores nem mais gordos do que os europeus; são porém

mais fortes, mais robustos, mais entroncados, mais bem dispostos e menos sujeitos a

moléstias, havendo entre eles muito poucos coxos, disformes aleijados ou doentios”.

Como Léry, outros conquistadores seiscentistas e setecentistas registraram a “boa

saúde” indígena e, um tanto contraditoriamente também, alguns dados referentes às

doenças existentes nas regiões que eles iam ocupando. Nesse sentido, Catharino (1995, p.

430) observa no registro de Claude d’Abbeville

5

que, como nos povos indígenas “não havia

doentes”, eles não precisavam de médicos nem de remédios. Para D’Abbeville, esses povos

3

Este artigo é resultado de uma pesquisa auxiliar vinculada ao projeto “Etnografia histórica dos povos guarani: Aporte lingüístico para os estudos histórico-antropológicos a partir dos léxicos de Antonio Ruiz de Montoya”, n° 7.05.00.00-2 / 7.03.00.003 no CNPq.

4

Esteve no Brasil em 1557, “como narrador” da expedição enviada pelo reformador suíço João Calvino. Sua obra Historie d´un Voyage fait en la Terre du Brésil (1578), é considerada importante “documento etnográfico de história natural e civil” por José Honório Rodrigues (1979, p. 41), autor do livro História da História do Brasil uma historiografia colonial comentada.

5

Religioso e entomólogo francês, participou em 1612 da expedição enviada ao Brasil (Maranhão), é autor da obra Historie de la mission dês pèpres capucins en l’isle de Maragnan et terres circonvoisines (1614).

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índios não eram doentios nem padeciam em seus órgãos nobres ou internos; eram, ao

contrário, muito fortes, bem dispostos, e em geral gerados de pais em idênticas condições.

Já o compatriota e contemporâneo de D'Abbeville, Jean de Léry (1598), observou

que a população índia era “menos sujeita a moléstias” subentende-se que a população

europeia, mas acabou também registrando a bouba e as febres, entre as doenças

indígenas. Léry ainda detalha que, se acontecer de um selvagem adoecer, ele dá logo a

conhecer em que parte do corpo lhe doe, sendo esse lugar chupado com a boca por algum

amigo ou pelo pajé (Ap.: Catharino, 1995: 518).

Para Santos Filho (1977: 39), a mais confiável fonte para conhecer as patologias que

afetavam a vida dos povos indígenas no Brasil do século XVII é a obra escrita por Willen

Piso (Guilherme Piso), botânico, farmacólogo e médico holandês da expedição de Maurício

de Nassau. Embora os dados de Piso sejam do século XVII, portanto mais de 100 anos

depois de iniciada a conquista, ele se refere também a indígenas recentemente contactados,

pois, à medida que a população índia da costa ia se acabando, outros grupos índios foram

sendo contactados e “descidos”

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para a costa.

Outras fontes indispensáveis para o estudo do tema nos dois primeiros séculos da

colônia são as obras de George Marcgraf, Gabriel Soares de Souza, André Thevet, Jean de

Léry, Yves d’Evreux, Claude d’Abbeville. Os documentos coletados e editados por Serafim

Leite também são elucidadores sobre o tema. Nos registros destes conquistadores,

missionários, exploradores, colonizadores ou viajantes, encontramos dados relevantes

sobre as doenças sofridas pela população índia, assim como, a compreensão que delas

tinham os indígenas e os europeus. Neste artigo, essas fontes são recepcionadas sobretudo

através dos escritos de Lycurgo Santos Filho, José Gregório, José Martins Catharino e

Cristiane Brandt Friedrich Martin Gurgel.

7

6

Descidos eram os povos índios deslocados dos “sertões” para as novas aldeias próximas aos estabelecimentos portugueseses, supostamente para sua própria conversão, proteção e bem-estar. Na prática, porém, mediante os descimentos a colônia reabastecia regularmente a população indígena morta sob o peso da servidão (Perrone-Moisés, 1992: 118).

7

Lycurgo de Castro Santos Filho (1910-1998), médico fluminense, historiador da medicina brasileira e estudioso interessado na genealogia campineira, é considerado ao lado de Carlos da Silva Lacaz e de João Amílcar Salgado, um dos maiores especialistas em história médica brasileira. Irmão José Gregório (1912-), marista nascido em Minas Gerais, estudioso da língua tupinambá e do nhe'êngatu. Fez parte da Associação Brasileira de Linguística. Deixou uma grande obra lexicográfica, sua Contribuição Índigena ao Brasil (1980), utilizado neste artigo. José Martins Catharino, advogado baiano, estudando o trabalho indígena, compilou dados valiosos nas fontes seiscentistas e setecentistas sobre as doenças e as terapias no Brasil indígena. Cristiane Brandt Friedrich Martin Gurgel, professora no curso de medicina na Pontifícia Universidade Católica de Campinas, pesquisa a história da medicina e a medicina indígena no Brasil colônia.

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Em todo caso, uma consulta mais demorada a qualquer uma das fontes revela que

ao tempo do registro havia muitas doenças na costa do Brasil. Em sua maioria, elas foram

registradas de acordo com a nomenclatura corrente na Europa e conforme o paradigma da

medicina da época. Segue um resumo das principais doenças.

2 - Doenças indígenas à chegada dos colonizadores europeus

Evocando a autoridade do médico Guilherme Piso sobre as doenças indígenas na

colônia, Santos Filho (1977: 39) resolve o impasse indicado acima ao afirmar que as

doenças mais frequentes no “Brasil-holandês e, por extensão, sem a menor dúvida na parte

territorial dominada pelos portugueses” eram “lues, maculo, disenteriais, ‘ar de estupor’,

catarros, opilação, dermatoses, verminoses, febres, espasmos, bouba, tétano, tosses,

verminoses, hemaralopia, a parasitose provocada pelo ‘bicho-de-pé’, e doenças, próprias

das mulheres e crianças”. Segue uma breve descrição dessas doenças, sendo que as

epidêmicas serão descritas posteriormente.

Lues: Era no passado um dos tantos nomes dados à sífilis, também conhecida

como cancro duro, avariose, doença-do-mundo, franga, napoles,

mal-de-santa-eufêmia, pudendagra, etc.. A lues ou sífilis [causada por um espiro (bactéria)

chamada Treponema pallidum] era classificada em primária, secundária, terciária,

congênita, decapitada e latente. Sobre sua origem, há divergências. Há quem defenda ser

ela originária da América, sendo difundida na Europa através dos conquistadores. Outros,

porém, entendem que ela é oriunda do Velho Mundo.

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Em relação a tal divergência,

observe-se a consideração de Lycurgo Santos Filho:

Admitem os tratadistas que a sífilis teria sido levada da América para a Europa pelas tripulações das naus de Cristovão Colombo (1493). Difundindo-se entre as tropas francesas de Carlos VII na campanha para a conquista de Nápoles, provocou uma vasta epidemia no continente europeu (1494). Foi chamada então, de morbo gálico, numa alusão aos soldados franceses que a veicularam. Quanto ao Brasil, os antigos cronistas e os autores contemporâneos, notadamente os nacionais, acordaram em que a lues aqui não existiria antes da descoberta,

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Gilberto Freyre (2006: 110) escreveu que embora se afirme que “a civilização e a sifilização andam juntas”, o Brasil se sifilizou “antes de se haver civilizado”. Para ele “os primeiros europeus aqui chegados desapareceram na massa indígena quase sem deixar sobre ela outro traço europeizante além das manchas de mestiçagem e de sífilis”.

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5 cabendo aos brancos a introdução e a estes e aos negros a disseminação através do contacto sexual com as fêmeas índias e negras (Santos Filho, 1977: 183).

Guillerme Piso chama lues gálica a sífilis, introduzida pelos europeus entre os

aborígines, e lues índica à doença endêmica no Brasil, com sintomas semelhantes à sífilis.

Em sua História Natural e Médica da Índia Ocidental ele registrou:

É doença que se contrai não só pelos contágios proveniente do coito, ou por mal hereditário transmitido de pais a filhos, mas também pelo mais leve contato e por si mesma; oriunda, sobretudo, do alimento estragado e salgado, da bebida râncida e deteriorada. Faz devastações não só entre os africanos e americanos, como também entre os lusitanos e flamengos; infesta todo o corpo com tumores cirrosos e úlceras virulentas. Esta lues é endêmica nesta região; chamada também Bubas pelos espanhóis, e Miá pelos brasileiros. Como rapidamente sara, somente com remédios indígenas, assim mais rapidamente contamina que a chamada lues gálica, introduzida aqui entre os aborígenes (Piso, 1957: 118).

É relevante considerar que, segundo as fontes, a sífilis entre os indígenas fazia com

que os infectados, desesperados, fugissem para as matas de onde não mais se tinha

notícias de sua cura. Desde o século XIX, a constatação da inexistência da doença entre

indígenas não contactados é um argumento que pesa em favor da sífilis ser uma doença

introduzida pelos europeus no Brasil.

Catarros/Tosses: Nos relatos constam que os povos indígenas eram acometidos de

afecções catarrais, que podiam estar associadas ou não às gripes introduzidas pelos

europeus. Esses sintomas, no entanto, podem ser também de outras doenças. As afecções

catarrais, por exemplo, são desenvolvidas na esfera intestinal e se manifestam por

complicadas diarréias, pleurisias, inflamações dos olhos, garganta e ouvido, ou também por

parotidites. A relação entre catarro e diarréias é atestada já na época por Guilherme Piso.

Este mesmo médico observou que os indígenas mais velhos muito raramente sofriam por

catarros; mas que os estrangeiros jovens e as crianças indígenas eram-no com muita

frequência.

Piso registrou que para diminuir a acidez dos humores e acalmar a agitação, eram

apreciados os “julepos de caldo de cana de açúcar, de romãs, de Ianipapa“ e as decocções

de Iupicánga e salsaparrilha, para provocar suores (Piso, 1957: 86). No começo do

tratamento eram evitados medicamentos fortes, submetendo-se a pessoa doente a

reiteradas sangrias que supostamente enfraquecia a doença. O médico-pesquisador

aconselha que se a indicação terapêutica fosse purgar e sangrar, devia ser priorizado o

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sangramento “para que se dissolvam os humores revolvidos e se detenham os fluxos

profluentes do cérebro” (Piso, 1957: 86- 87).

Dermatoses: Santos Filho (1977: 106) fala de ulcerações, boubas, ferimentos,

dermatoses e frialdades que acometiam os indígenas. Esses males podem ser agrupados

aqui sob dermatose. A bouba, no entanto, consideramos à parte pela atenção diferenciada

que ganhou no século XVI e XVII. Essas doenças são mencionadas nos estudos que

descrevem as propriedades da copaíba (Copaifera officinallis), da capeba ou pariparoba

(Piper rohrii), da maçaranduba (Mimusops elata, Lucuma procra), da cabriúva (Myrocarpus

fastigiatus) e da caroba (Jacaranda caroba, Jacaranda brasiliana). André Thevet,

9

por

exemplo, registra o poder da andiroba no tratamento de ferimentos, em especial das

flechadas e relata que o vegetal, “segundo afirmam os selvagens, é maravilhosamente

indicado para curar chagas” (Catharino, 1995: 444).

Bouba: manifestava-se como uma ferida na pele, e ao se assemelhar a uma

framboesa era também chamada de franboesia trópica. Segundo Santos Filho (1977: 186),

André de Thevet foi o primeiro autor a registrar a doença nas populações indígenas

americanas,

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associando-a indevidamente “às desordens sexuais”.

A doença era, na visão de alguns autores, endêmica no Nordeste do Brasil já antes

de 1500, sendo designada na língua tupi de ‘piã’ e ‘miã’ ou ainda de parangi ou patek. De

forma que Santos Filho, apoiado em Gabriel Soares de Sousa,

11

afirma que o piã

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já existia

no Brasil antes da colonização. Ele encontra na fonte seiscentista a suspeita de que a

doença era transmissível, sendo os índios muito propensos a adquirí-la: “Muito sujeitos a

doenças das boubas, que se pegam de uns aos outros, mormente quando são meninos”.

Gabriel Soares de Souza “chegou mesmo a apontar um agente transmissor, o mosquito

9

Frade franciscano francês, explorador, cosmógrofo e escritor que viajou ao Brasil no século XVI. Esteve no Rio de Janeiro de novembro de 1555 a janeiro de 1556, quando escreveu Les singularitez de la France Antarctique, autrement nommee Amerique, & de plusieurs terres et isles decouvertes de nostre temps (Paris, 1558).

10

Talvez seja prudente lembrar que o registro de Thevet se refere às populações indígenas do Rio de Janeiro. Há que se observar também, que Jean de Léry descreveu já em 1563 o pian como sinônimo de bouba.

11 Colonizador, dono de engenho, comerciante, sertanista e navegador português, seu Tratado descritivo do Brasil (1587), constitui um dos primeiros relatos sobre o Brasil colonial e contém importantes dados geográficos, botânicos, etnográficos e linguísticos. É dividido em duas partes: Roteiro geral e Memorial das grandezas da Bahia, que descreve informações sobre geografia, costume dos índios, agricultura, animais e plantas brasileiras. Fonte:

http://www.dec.ufcg.edu.br/biografias/, acessado em 20/01/09 12

Nota-se uma diferença na grafia da palavra piã entre os autores consultados, sendo a mesma encontrada escrita como pian.

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‘nhitinga’”, que, segundo Artur Neiva - na sua obra Medicina no Brasil (Santos Filho, 1977:

186, Nota de Rodapé n° 49), - era um díptero do gênero Hippelates, que através de sua

peçonha também enche as pessoas de boubas. A doença era tratada ainda, segundo o

registro de Gabriel Soares de Souza, com a aplicação do jenipapo nas áreas afetadas, de

modo que, a tinta da fruta secava as feridas das pessoas doentes.

Jean de Léry também se deteve na descrição e avaliação da bouba. Ele escreveu:

“sofrem os índios uma moléstia incurável, o pian, oriunda da lasciva, apesar de que vi meninos atacados dela. São póstulas mais grossas que o polegar, espalhadas por todo o corpo e rosto. Os que saram (então, era curável) ficam toda vida cobertos de marcas, como os nossos variolosos, cancerosos e engalicados” (Catharino, 1995: 430).

Tudo indica que as associações da bouba com a relação sexual (atos venéreos e

lascívia) identificaram erroneamente a doença com a sífilis. A respeito desse assunto, é

esclarecedor a avaliação de Santos Filho (1977: 186) “A propagação pelo coito foi citada

pela maioria dos autores, todos unânimes em confundir a bouba - causada pelo Treponema

pertenue (Castellani, 1905) - com o morbo gálico, devido este ao Treponema pallidum

(Schaudinn e Hoffmann, 1905). E essa confusão contribuiu bastante para a crença de que a

sífilis era originária da América”.

Verminose/Máculo: O máculo era uma parasitose intestinal que criava úlcera e

inflamação do ânus. O Prof. J. M. Rezende, médico e historiador da Universidade Federal

de Goiás e membro da Sociedade Brasileira e Internacional de História da Medicina

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escreveu que a doença era “comum entre os escravos africanos no Brasil colonial e que,

eventualmente, podia acometer também os indígenas e os colonizadores brancos”. A

doença tinha várias denominações populares como "achaque do bicho", "enfermidade do

bicho", "corrupção do bicho", ou simplesmente "corrupção", "mal-do-sesso", "relaxação do

sesso". Os indígenas a chamavam de Teicoaraíba, e, entre os hispanoparlantes, era

conhecida por ‘el bicho’, ‘mal del culo’, ‘bicho del culo’, ‘enfermedad del guzano’. Dentre as

denominações eruditas encontramos ulcus et inflammatio no jargão de Guilherme Piso,

inflammatio ani em von Martius, e retite gangrenosa epidêmica em Manson.

O máculo não deve ser confundido com as hemorroidas, sobretudo, segundo Piso,

porque ele provoca forte dor de cabeça, fissuras no orifício do ânus, e ainda em alguns

casos leva à morte em pouco tempo. As hemorroidas, porém, eram curadas com os

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medicamentos, usados na Europa, “e até apenas com as sanguessugas brasilienses” eram

mitigadas com o líquido da polpa da noz Coco putrefada, aplicada reiteradas vezes. Sobre

as dores de cabeça e febre ardente causadas pelo máculo, transcreve Catharino (1995, p.

486) os dados registrados por Knivet: “os doentes entravam a suar, sentiam-se desfalecidos,

apareciam vermes no recto, os quaes lhes devoravam os intestinos, de modo que os

enfermos, sem saberem o que lhes causava o mal, morriam de langor a consumpção”. O

missionário português Fernão Cardim, por sua vez, ao escrever que com a erva tareroquig

se perfumam os índios doentes para não morrerem da “doença do bicho”, refere-se

provavelmente a esta verminose.

Segundo Piso (1957: 114), esta verminose já era conhecida na Angola e em outras

terras quentes das índias. Outrora, os habitantes do Brasil teriam sido totalmente imunes a

ela. A doença podia ser precedida de fluxos diarreicos, com calor intestinal, ou podia

aparecer por si, sem alguma doença prévia. Piso (1957: 115) conferiu que frequentemente

essa verminose causava prisão de ventre, que provocava dores atrozes seguidas de febres,

lassidões, insônias, perturbações do estômago, principalmente dores e ardores na cabeça.

Ele aconselha que, nesses casos, antes que o mal se espalhe, resista-se-lhe com remédios

internos, laxantes e refrigerantes.

Febres: Com o lema “febres” aludia-se provalvemente a várias doenças, inclusive às

novas patologias. Assim, há registros de enfermos com febre, de meninos aos quais,

quando têm febre, lhe sarjam as pernas, de pessoas vítimas da varíola atormentadas por

“forte dor de cabeça” e consumidas por “temperatura ardente” (Métraux. 1979, p. 75). O

próprio máculo é uma doença que começava com dores de cabeça e febre ardente

(Catharino, 1995, p. 486). Além do máculo, a varíola e o sarampão também impunham

febres que flagelavam os povos aborígenes.

Observe-se que na língua indígena, febre é akãngnundu, que literalmente significa

‘cabeça latejante’, indicando, portanto, um componente da febre. Nas fontes e nos estudos

sobre o tema constam diversos tipos de febres. Guilherme Piso (1957: 65, 66) os classifica

em febres ardentes e febres pútridas ou pituitosas, ou seja, relacionadas ao humor da bílis e

da cabeça, acompanhada de vômitos e excreções. As primeiras, próprias do tempo seco,

são ardentes e efêmeras; decorrentes “do ardor dos espíritos ou do sol a pino”, eram

curadas “fazendo muita burrifação de água fria por todo o corpo, como aos atletas fizeram

os empíricos, mais pelo instinto natural do que pelos preceitos de Hipócrates ou Galeno”.

As febres pútridas são associadas ao tempo chuvoso, são longas e muitas vezes fatais.

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várias espécies) são elencados nas fontes para combater a febre.

A goma extraída da andiroba ou da ietaiba foi indicada por Piso (Catharino (1995:

446) para dores de cabeça, “cefaléia ou hemicrania; simples fumigação é capaz de

corroborar não só a cabeça mas também as outras partes do corpo afectadas pelo frio”.

Tétano: As mordeduras de cobra e animais venenosos acarretavam grandes riscos

para a vida e prostrava os índios, vítimas de tétano, dores, infecções e mutilações. Há

que se levar em conta a hostilidade da natureza sobre a pele e o corpo indígena. Junto às

mordidas de animais peçonhentos e aos acidentes na mata e na luta com animais maiores,

devem ser consideradas também as picadas de insetos. Nesse sentido, o vocabulário

organizado pelo irmão José Gregório (1980: 1213-1214) ressalta que os povos chamados

genericamente, tupi e guarani, se defendiam da luz solar e evitavam a picada dos mosquitos

untando seus corpos com urucum.

Hemeralopia ou vista turva: Também chamada “gota serena”, gutta serena ou

“amaurose”. Santos Filho (1977: 224) a explica como “diminuição da vista” e “cegueira sem

lesão aparente”. Piso, ao tratar das “doenças dos olhos”, escreve que “as oftalmias duras e

veementes são comuns aos habitantes das regiões meridionais” e que “entre as

calamidades do Brasil, não ocupam último lugar as doenças dos olhos” (Santos Filho, 1977:

224).

Piso (1957: 89), apoiado em Hipócrates, entende que os males dos olhos, em

especial as oftalminas duras e veementes, eram próprias das “plagas meridionais” e

acometiam mais “aos que tem as carnes quentes e secas”. Assim, os recém-chegados às

Índias sofriam com frequência desse mal, que começando com uma constante dor de

cabeça, podia levar à cegueira total.

Parasitose provocada pelo ‘bicho-de-pé’: Santos Filho (1977: 203) aponta que a

parasitose era “uma das pragas do país”. “Própria dos continentes americano e africano, e

de outras regiões tropicais”, os indígenas brasileiros a conheciam como “tunga” a

“pulga-de-areia”, “cuja fêmea, com o abdome repleto de ovos, introduz por sob a pele provocando

rubor, prurido, inflamação e ulcerações”. Segundo Gabriel de Souza Soares, “no princípio da

povoação do Brasil, vieram alguns homens a perder os pés e outros a encherem-se de

boubas” por causa do bicho de pé (Santos Filho, 1977: 203).

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segundo, Gurgel (2005) “os indígenas untavam a lesão com o óleo” da hibourouhu”.

Sobre as lombrigas em geral, Piso (1957: 117) escreveu que elas costumavam

infestar tanto as vísceras das crianças quanto dos adultos, as feridas e úlceras segundo ele

eram em consequência do ambiente cálido e úmido.

Doenças próprias das mulheres: Entre elas consta o tenesmo, uma “doença muito

comum e com razão temível para as mulheres grávidas, porque mata lastimavelmente o feto

e a gestante”. O tenesmo se manifesta com uma sensação dolorosa na bexiga ou na região

anal, com desejo contínuo, mas quase inútil, de urinar ou de evacuar. Guilherme Piso o

explica como decorrente de um humor acre e ulcerífero aderente ao ânus, que produz

espuma, sangue e pus ou por “outros fluxos disentéricos”. No século XVI e XVII entendia-se

que sua cura era mais fácil quando causada por excreções da úlcera do intestino reto, o que

era tratado com fomentações e clisteres. Mas, quando a matéria crua escorria das partes

superiores do ventre, isto é, do estômago, do mesentério e dos intestinos, devia-se extirpar

a causa determinante, eliminando-a por meio do vômito; e isto com um remédio muito

usado: a raiz de Ipecacuánha. Além disso, deve se aplicar nas partes externas fumigações

anódinas e fomentações adstringentes e cálidas, obtida das folhas das árvores Aroeíra,

Araça, Acajá e semelhantes, se o ânus se tornar proeminente ou hiante (Piso, 1957: 108).

Remédios internos adstringentes eram ingeridos para coibir a fluxibilidade dos humores.

Ingeria-se suco do fruto verde de Ianipaba, raspa do pau Iacarandá e as amêndoas do fruto

Gueticorói, “trituradas e bebidas, em jejum, com licor apropriado” (Piso, 1957: 109)

Doenças próprias das crianças: Nessa categoria inserem-se hoje sarampo,

varicela, caxumba, escarlatina, rubéola, exatema súbito, coqueluche, infecções respiratórias

agudas, entre outras. Não sabemos quais dessas doenças acometiam as crianças na época

aqui estudada. Há uma referência explícita à bouba (Gabriel Soares de Souza registrou que,

mormente os meninos eram sujeitos a essa doença) e ao pian (Jean de Léry escreveu que

inclusive os meninos eram atacados por esse mal supostamente oriundo da lasciva). Os

meninos eram também vítimas de febre, atormentados por dores de cabeça e consumidos

por “temperatura ardente” por causa da varíola (Métraux). Segundo Piso, eles são as

maiores vítimas das afecções catarrais.

Opilação: São assim denominadas as doenças caracterizadas por um parasitismo

intenso de vermes do gênero Ancylostoma e Necator. Mencionada em vários textos de

cronistas e naturalistas do período colonial, passou para as gerações seguintes com o nome

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de amarelão, cansaço e anemia tropical.

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Guilherme Piso (1957: 96) escreveu que as

opilações hipocôndricas, juntamente com as perniciosas diarreias, eram “tidas, não sem

razão, por pestes das índias” e, “entre as doenças populares”, nenhuma dominava ou

matava com tanta violência, quanto elas. Segundo ele, originavam-se, sobretudo, pelo

impedimento da transpiração. As descrições feitas por Piso sugerem uma associação da

opilação com as obstruções das fezes. Segundo ele, os meninos holandeses eram

frequentemente acometidos por esse mal, sendo que “os hipocôndrios duros, a pouco e

pouco definham, antes de atingirem a puerícia”. Contra este mal eram indicados “ungüentos

desobstruentes; e mais que tudo se afastada a mãe, as amas brasileiras e etiopisas os

criarem com seu robusto leite por cerca de dois anos” (Piso, 1957: 100).

Espasmos: As doenças assim chamadas caracterizam-se pela perda da faculdade

de respirar e deglutir, creditada a uma “convulsão do diafragma e do esôfago”, e pela

emissão de “um horrível murmúrio, ao modo dos epilépticos”. As pessoas atacadas pelos

espasmos primeiro rangiam os dentes, o que era seguido de “distorção da boca, que se

fecha de tal modo que é necessário abri-la à força e com uma sonda de ferro”. Então, não

raramente, as vítimas destes espasmos incorriam em perigo de asfixia e não podiam reter

os excrementos. Segundo Piso, os mais atingidos por esta doença eram os pescadores,

ferreiros, padeiros, supostamente, porque “molhados por muito tempo e banhados de suor,

não se acautelam suficientemente do frio noturno que os acomete, mas também porque,

acostumados a um alimento mais crasso e velho, incorreu em obstruções do baço um tanto

graves”. Não medicado a tempo, o doente sucumbia antes de vinte e quatro horas após a

convulsão. O tratamento, sem nenhuma grave contraindicação se opusesse, consistia no

seguinte: “a veia deve ser incisada imediatamente; a seguir, devem-se aplicar clisteres

acres, repetidos algumas vezes. Depois, devem-se dar sudoríferos de contravenenos”.

Persistindo a doença, Piso recomendava “uma cocção de salsaparrilha, de cascas de

guajaco, Iupicánga, sassafrás, Iaborandi, Betis, Nhambi, e outras ervas nativas (...) banhos

úmidos e secos, sufumigações de estêrco de cavalo com a goma Anime, e aromáticos

semelhantes”. Depois, “enxugados profundamente os suores”, ele indicava fortes fricções e

“unção de óleos e bálsamos adequados, nativos e exóticos, sobretudo do óleo de cascas de

laranjas com suco de tabaco fresco, no pescoço, na espinha dorsal e partes vizinhas”.

14

A personagem Jeca Tatu é retratado por Monteiro Lobato como um indivíduo parasitado pelo verme. O Laboratório Fontoura se serviu dessa personagem para a propaganda de seus medicamentos indicados para o tratamento da doença.

(12)

12

Cubra-se bem o doente, enquanto do corpo manar contínuo suor.

Alimenta-se repetidas vezes e aos poucos, por causa da perda das forças,

e tome bebidas quentes. Não raro se vencerá a dificuldade, se observadas

as recomendações precitadas; principalmente, sobrevindo febre ou

diarréia, que evacue a matéria convulsiva passada dos nervos às veias”

(Piso, 1957: 92, 93).

Do estupor dos membros: Entre as doenças crônicas comuns no Brasil, no tempo

dos holandeses, consta o chamado estupor, que atacava os nervos e causava “profundo

torpor aos membros”. Considerava-se proceder

“da inclemência do ar e da incompleta obstrução e intempérie fria das partes nervosas. Pois a pituíta lenta e glutinosa, em lugar dos espíritos, ora promanando da cabeça, ora gotejando da medula espinhal para os membros, se apodera facilmente dos nervos e ataca os tendões dos braços ou dos pés, ou simultaneamente os ambos, sobrevindo o resfriamento não só dos nervos como das veias, artérias, carne, membranas e pele” (Piso, 1957: 94).

Esta grave doença, que invadia suas vítimas “aos poucos e por graus”, devia ser

combatida “com fortes e generosos remédios”. De dia, somente era admitido “o ar purificado

dos raios solares”. De noite, a pessoa doente devia ser beneficiada com o ar aquecido por

fumigações. Piso (1957: 95) recomendava: “beba-se vinho diluído, aquecido no ato, uma

decocção de pau de sassafrás nativo. A comida seja ótima de nutrimento, porém seca”. As

fumigações deviam ser secas,

“mormente da erva Ambiaembó queimada, ou de estêrco de cavalo com goma Anime e outras cousas semelhantes, queimadas durante dez dias mais ou menos. Depois de bebida uma decocção de salsaparrilha e sassafrás, enxuguem-se os suores com profundas fricções; unte-se bem o pescoço, as espáduas e toda a medula espinhal ao calor do fogo; ajunte-se gordura de cobras misturada no espírito de vinho misturado com pimenta brasiliense”.

Piso relata ainda que se aconselhava “atrair os espíritos com fortíssima sucção por

meio de ventosas córneas” e “sobretudo livrar a parte afetada por meio de profundas

escarificações”. Se houvesse necessidade de urgir, devia-se “furar a pele com ferro em

brasa, fortificar os membros enfraquecidos” até que “a lenta pituíta dos nervos” se

dissolvesse. Convalescendo o doente, por dias e noites cobriam-se as partes afetadas, de

sorte que não recebessem nenhum ar (Piso, 1957: 95-96).

Outras doenças não especificadas por Piso constam nos tópicos dos estudos

analisados e das fontes que tratam da terapêutica das doenças, proveniente do

(13)

13

conhecimento dos pajés das plantas medicinais e de outros produtos de origem orgânico e

não orgânico. Assim, vasculhando os registros das propriedades curativas e o uso

terapêutico de vegetais e animais, descobrem-se outras doenças.

Outras doenças: O caju (Anacardium occidentale), o ananás (Ananas sativus), o

jaborandi (Pilocarpus pinnatus) o sargaço (alga do gênero Sargassum) o miolo de lampreia

(Petromyzon marinus), a cana-do-mato ou cana-de-macaco (Costus pisonis) eram usados

como diuréticos, o que indica a existência de doenças relativas às vias urinárias.

Santos Filho (1977: 222) ao escrever sobre as doenças do aparelho urinário, aponta

que a calculose urinária é “uma das mais frequentes, afetou os indígenas, negros e

brancos”, e que o “ananás verde” usado pelos pajés foi “adotado pelos jesuítas” para aliviar

o mal da dor-de-pedra

15

.

Os registros da propriedade purgativa do anda-açu (Johannesia princeps), da

ipecacuanha ou poaia (Psychotica emética, Cephaelis ipecacuanha, e outras espécies) da

batata-de-purga (Ipomoea altíssima), da umbaúba (Ceropia peltata) e do guaraná (Paullinia

cupana) mostram a prisão de ventre como moléstias sofridas pelas populações indígenas.

O fato de Guilherme Piso ([1648] 1948) ter sido incumbido de fornecer informações

concretas sobre a planta ipecacuanha de propriedade purgativa indica que as obstruções

intestinais eram comuns na época. A prisão de ventre era tanto, causada por outras

doenças, quanto responsável por outros males.

Catharino (1995: 450) cita George Marcgraf

16

que descreveu que a raiz mechoação

batata de purga tem a “virtude de purgar os humores flegmáticos e serosos” assim como, “a

bílis” e ainda, segundo Marcgraf, é indicada para os "sofrimentos do estômago e intestinos;

contra inveterada dor de cabeça, contra hidropesia e falta de apetite“.

Diversas moléstias, sem especificar as doenças, Métraux (1979: 81-82) ao estudar

nas fontes algumas terapias faz referência a diversas moléstias.

3 - Doenças epidêmicas na América

15 In nota Santos Filho (1977: 222) Diálogos das Grandezas do Brasil, 119. 16

Georg Marcgraf (1610 - 1644). Pintor, cartógrafo, aquarelista, astrônomo, naturalista e desenhista. integrou a expedição científica e militar de Maurício de Nassau, como ajudante do médico Willem Piso. Nesse período, dedicou-se também à atividade científica, classificando plantas e animais, fazendo a descrição do clima, habitantes e idiomas brasileiros e estudando as estrelas do hemisfério sul. É co-autor, com Willem Piso, da Historia Naturalis Brasilae (1648), obra para a qual realiza aquarelas. Fonte: http://www.itaucultural.org.br

(14)

14

Guilherme Piso (1957: 68) escreveu que o Brasil conhecido por ele, portanto, o

Nordeste, era imune às epidemias: “Esta terra sempre foi tida por imune das doenças

chamadas epidêmicas e que flagelam em certos tempos”. Ele contou que “no ano de mil

seiscentos e quarenta e três, num verão muito seco, apareceram antrazes não fatais” e que

“as varíolas pestíferas” não existiam na região. No entanto, ele também registrou que

“somente uma vez, no decurso de trinta anos, os escravos africanos, importados já

variolosos” teriam contaminado “os que nunca dantes o havia sido, com grande mortandade

dos bárbaros”.

Por outro lado, na memória das gerações que conquistaram o continente americano

estava ainda impregnada a imagem das grandes epidemias com centenas de milhares de

vítimas, marcando assim profundamente a história da sociedade europeia. Rondava,

consequentemente, segundo o historiador Antonio Dari (2007: 34), o medo no Velho

Continente. “Temia-se a peste e seus contágios”, entre outras coisas.

Mas as epidemias não afetavam só o imaginário, ela dizimava as populações.

Grande parte dos europeus que desembarcaram na América trouxeram consigo organismos

infecciosos, uma vez que, saíam de cidades que estavam em pleno surto epidêmico e, sem

tratamento devido, percorriam o oceano em barcos sem condições sanitárias adequadas e

péssima alimentação. Eles acabaram “disseminando enfermidades que se tornaram

doenças epidêmicas, por atingir grande número de pessoas ao mesmo tempo, doenças

antes desconhecidas no Mundo Novo, tal como gripe, sarampo, varíola, tuberculose, ‘mal de

câmaras’ (disenteria), febre amarela, pneumonia epidêmica, cólera, tifo, etc.” (Noelli &

Soares, 1997).

Assim, foi através do contato com os conquistadores europeus que as doenças se

desencadearam de forma arrebatadora na América indígena, pois os íncolas eram

totalmente vulneráveis às novas doenças europeias, africanas e asiáticas que foram

introduzidas após 1500. Seus organismos não possuiam os anticorpos específicos para se

defenderem das enfermidades. Iniciou-se dessa forma, uma das principais fases de

degradação do corpo indígena. Nas palavras de Ribeiro & Moreira Neto (1992: 28), com a

introdução dos patógenos, houve uma “verdadeira guerra biológica” (Ap.: Noelli & Soares,

1997: 166).

A seguir, uma breve especificação de algumas dessas doenças e dos seus efeitos

sobre as comunidades indígenas.

(15)

15

A varíola (peste das bexigas):

17

Veio da Europa ao continente americano com

Colombo. É considerada uma das principais responsáveis pela destruição das populações

nativas da América. Alguns historiadores acreditam que a varíola tenha sido introduzida

propositalmente por Hernán Cortés e Francisco Pizzaro, a fim de derrotar os povos

indígenas comandados pelos astecas e incas. Ainda no século XIX, por ocasião das viagens

de von Martius (1979: 75) essa doença causava as mais desumanas consequências, entre

indígenas do Brasil Central. Segundo o autor, a varíola,

alastra-se até aos mais remotos ermos, e cada tribo conhece e teme essa doença, como se fora o mais pernicioso veneno para seu sangue. Na língua tupi é chamada – Mereba-ayba = doença maligna. [...] O índio, por sua natureza já descrita, é pouco resistente ao desenvolvimento da varíola. A erupção do exantema se processa lenta e dificilmente. Atormentado por forte dor de cabeça e consumido pela temperatura ardente, costuma isolar-se amedrontado por qualquer golpe de ar, aumentando desse modo a febre; ou, também, apressa-se em procurar água corrente, onde supõe poder apagar o calor interno. Freqüentemente, ai morre de apoplexia.

O sarampo:

18

Segundo, Santos Filho o sarampo era encarado até o século XVI

como “uma variedade da varíola, confundido até o século XVII com a escarlatina, quando

Thomas Sydenhan (1624-1689) por primeiro diagnosticou a febris scarlatina.” O sarampo fez

a sua aparição no Brasil desde o início do povoamento e colonização. Trazido pela

população negra africana e europeia, o “sarampão”, como foi chamado, geralmente

mereceu descrições e alusões por parte dos cronistas seiscentistas.

O Pe. Manuel Gomes, em carta de 1615, narrou sobre a epidemia de sarampo que

irrompera a bordo entre os índios que combatiam contra os franceses. Outros cronistas

relataram “que no Brasil morria muita gente dessa enfermidade eruptiva” (Santos Filho.

1977: 164). Araújo (1997: 58) baseado em Viagem filosófica de Alexandre Rodrigues

17

George Rosen (1994: 33), baseando-se nos estudos de M.A. Ruffer, afirma que a varíola foi encontrada no Egito, já por volta do ano 1000 a.C. Outros afirmam ter surgido na Índia ou na China, pois ela é descrita na Ásia e na África, já antes da era cristã. Hipócrates nada diz sobre a varíola, embora ela seja a principal epidemia responsável pela morte de um terço da população de Atenas, segundo o historiador da Grécia Antiga, Tucídides, no ano de 430 a.C.. O fato é que na história não constam registros da varíola em determinados períodos ou épocas, juntamente com o sarampo e a varicela (CORBIN, COURTINE & VIGARELLO (2008: 483).

18

De origem virótica, o sarampo ataca principalmente crianças até 10 anos, é altamente infecciosa e transmitida por secreções respiratórias como espirros e tosse. Era desconhecido antes da era cristã. A primeira descrição reconhecível do sarampo, ou Rhazes na Europa, é atribuída ao médico árabe Ibn Razi (860-932).

(16)

16

Ferreira, descreve que o sarampo matou “índios aos milhares, e a situação piorou de 1750 a

1758, quando ao sarampo somou-se a varíola; pouco depois, em 1762, ainda no Pará, foi tal

o contágio que não bastavam quatro hospitais para receber o número de índios doentes. A

mortandade foi tanta que raras vezes se abria sepultura para um só cadáver (Em Alexandre

Rodrigues Ferreira, Viagem filosófica..., p. 77). E a dupla epidemia ali continuou até 1772”.

Como a varíola, entre indígenas recentemente contactados no século XIX, o

sarampo fazia grandes estragos (Von Martius (1979: 77). A Mixua-rána ou falsa varíola

atacava de preferência as crianças, antes da estação quente das chuvas. Ela se estendia

impetuosamente e matava geralmente com sintomas de violentíssima febre inflamatória.

Gripe: Embora Hipócrates tenha descrito seus sintomas

19

, é muito difícil levantar

dados históricos exatos sobre a gripe, uma vez que seus sintomas são semelhantes aos de

outras doenças, como a difteria, febre tifoide, dengue ou tifo.

Um dos primeiros surtos epidêmicos de gripe registrado data de 1580 inicialmente na

Ásia, se espalhando rapidamente pela Europa via África. Ao longo dos séculos XVII e XVIII

não poucas vezes ela se tornou verdadeira pandemia.

Entre os povos indígenas as referências às afecções catarrais e às doenças febris

podem ter sido associadas à gripe.

A febre amarela

20

é doença característica de regiões silvestres, florestas e cerrados.

Encontrada tanto na América Central e América do Sul como na África, entre seus sintomas

estão febre alta, diarreia de mau cheiro, convulsões e delírio, hemorragias internas e

coagulação intravascular disseminada, com danos e enfartes em vários órgãos. As

hemorragias manifestam-se com sangramento do nariz e gengivas e equimoses (manchas

azuis ou verdes de sangue coagulado na pele). Ocorre também hepatite e por vezes choque

mortal devido às hemorragias abundantes para cavidades internas do corpo.

Doença também conhecida por crupe, a difteria

21

é considerada infecto-contagiosa.

Era uma das doenças mais temidas antes da era das vacinas. Muito conhecida também na

literatura médica clássica. Ela era identificada por dores de garganta. A doença é referida

19 Gripe é uma designação moderna que engloba uma doença infecciosa aguda, causada pelo vírus ARN. Seus principais sintomas são calafrios e febre, dor de garganta, dores musculares, dores de cabeça, tosse, fadiga e mal estar.

20

Doença infecciosa transmitida por mosquitos (Aedes aegypti ou Aedes albopictus) contaminados pelo vírus da família flavivirus

21

Causada pela toxina do bacilo Corynebacterium diphteriae, o qual provoca a inflamação da mucosa da garganta, do nariz, e às vezes da traqueia e dos brônquios.

(17)

17

como epidêmica, pois numerosos relatos de graves dores de garganta terminavam em

morte.

Disenterias ou câmaras:

22

Eram uma das doenças mais comuns do Brasil antigo.

Sua existência era relacionada à falta de asseio corporal e de procedimentos higiênicos.

Eram também denominadas de “cãibras de sangue”, “cursos de sangue”, “ventre solto”,

“fluxos de ventre”. As disenterias tinham como principal sintoma a diarreia.

Nos registros de Piso consta que, no tempo muito chuvoso, os fluxos de sangue

eram das doenças mais comuns, pois, sobretudo o fígado, o estômago e as vísceras

costumavam sofrer mudanças de acordo com as estações do ano (Piso, 1957: 66). Como

nas Índias o tempo quente era muito longo, as afecções do fígado eram mais freqüentes do

que em terras frias, estando as pessoas mais sujeitas a recaídas do que em outros lugares

(Piso, 1957: 101). Piso distingue a diarreia simples de fácil cura e oriunda de alguma acidez

e malignidade da matéria morbífica ou das partes que se chamam disenterias, fluxos

hepáticos ou cóleras, que costumam ser sintomáticas e fatais (Piso, 1957: 105).

Entre as terapias usadas contra a disenteria, o médico holandês registrou lavagens e

xaropes purgativos. A raiz Ipecacuánha, como nenhum outro remédio, era considerada

excelente para estancar a maioria das disenterias, com ou sem sangue (Piso, 1957: 106). O

xarope de tabaco é uma substância à base do óleo de Copaiba, açúcar e ovo mole, podiam

ser ingeridos pela boca ou introduzidos no ânus por meio de um clister. Sementes de rícino

macerado com vinho, uma decocção da madeira Iacaranda e sassafrás indígena, uma dieta

de fácil digestão e pouco adstringente, aplicação sobre o estômago de emplastro feito de

goma icicariiba, de bálsamos de Cabureiba e Copaida, de massa de Tipioca, vinho de Acajú,

polpa das ameixas Araça, da flor de Nhambu, e de gemas de ovos são outras medidas

terapêuticas mencionas por Piso (1957: 107).

Baseado em Piso, (Santos Filho, 1977: 179-180) escreveu por sua vez que as

disenterias eram tratadas com “infusões,” a base de “vegetais nativos tidos como

antidiarréicos, adstringentes e constipantes”, tais como o “mata-pasto, a umbaúba, a

calunga, a ratânia, o guaraná, a ipecacuanha ou poaia, a goiabeira, o araçá, buranhém”. O

missionário português Fernão Cardim relacionou a disenteria a um determinado tipo de

verme. Ele registrou que a erva tareroquig era o “único remédio para câmaras de sangue” e

22 Santos Filho (1977: 180, nota) esclarece baseado no, Diálogos das Grandezas do Brasil que “fazer câmaras” significava defecar, pois “as vias ordinárias” têm a função de “fazer câmaras” e “(fazer) ourinas”.

(18)

18

que nessa erva se perfumavam os índios doentes “para não morrerem,” concluindo ser esse

um grande remédio para a doença do bicho, a qual é comum em terras brasileiras (Ap.:

Catharino, 1995: 503). Para mitigar os efeitos das diarreias, o médico holandês ainda

registrou: o uso de óleo de cascas de laranja, aplicação de uma ninhada de vespas

brasileiras em vinho e ervas castas ou mimosas fritas em vinagre sobre a barriga. Para

ajudar a pessoa convalescente desta doença, usavam-se os frutos da Bacóba ou Banána

semitostadas ou ressecadas, com vinho de Acaju, fruto verde de Ianipába; raspa de casca

de tartaruga fluvial tostada, pelo seu valor adstringente; fígado de cabra tostado e castanha

da árvore Cedro Brasiliense (Piso, 1957: 107).

A malária ou paludismo

23

é uma doença infecciosa aguda ou crônica, familiar

também aos médicos gregos do século V a.C., segundo consta nos escritos hipocráticos.

Santos Filho (1977: 176) considera o paludismo como “doença universal, denominada

também ‘calentura’ pelos espanhóis, ‘sezões’, ‘terçãs’, ‘quartãs’ e ‘maleitas’, pelos

portugueses e ‘malária’ ou ‘febre palustre’ pelos ‘italianos’ e ‘paludismo’ no Brasil. Esta

doença já era considerada endêmica “nos primeiros anos da colonização”.

Segundo Piso (1957: 68), as terçãs e quartãs “são menos graves que na Europa;

mas atingem o término mais depressa e com maior agudeza”.

O Tifo

24

, transmitida por piolhos ou pulgas e caracterizada por febres e queda da

pressão sangüínea, segundo Nava (2003: 122) foi muitas vezes confundido com a malária,

pela dificuldade da época em diagnosticar e distinguir doenças seguidas de febres.

A Tuberculose

25

é uma doença grave que atinge todos os órgãos do corpo,

principalmente os pulmões. Segundo Santos Filho (1977: 190), ela é de procedência

europeia e africana:

depois de 1500, veiculada pelos brancos e pelos negros. E os índios, ainda virgens do contacto, foram presas indefesas, morrendo aos milhares de “febre hética” ou “lenta”, consuntiva. Chamada também “fraqueza do peito”, “chagas nos bofes”, “sangue pela boca” e “tísica”, a tuberculose a todos atingiu, porém mais acentuadamente aos pretos e mulatos, tidos estes como particularmente recptíveis.

23

Causada pelo parasita do gênero Plasmodium, é transmitida pela picada do mosquito Anoplheles. 24

O tifo é uma doença provocada por rickettsias. Dois tipos de organismos provocam a doença: Rickettsia prowazekii (tifo epidêmico e doença de Brill) e Rickettsia typhi (tifo murino).

25

Causada pelo microorganismo bacilo de Koch cientificamente chamado de Mycobacterium tuberculosis.

(19)

19

E sobre a pneumonia epidêmica não conseguimos especificar dados. No entanto, a

exposição das doenças acima citadas, nos leva a crer que ela também faça parte das

doenças epidêmicas na América pós-contato.

4 - Concepções ou natureza das doenças

A teoria humoral hipocrático-galênica

26

foi o principal corpo de explicação coerente

do que eram saúde e enfermidade entre o século IV a. C. e o XVII d.C.. Em sua versão

galênica, a fisiologia humoral sustentou o exercício médico europeu medieval e

renascentista. Não podemos esquecer que, durante a Idade Média no Ocidente, esse

corpus explicativo foi objeto de pesquisa e aperfeiçoamente entre os médicos árabes.

27

Um

desses médicos, Avicena (980-1037), se tornou o mais famoso médico da época medieval.

Sua obra o CANON, escrita a partir do legado de Galeno, teve ampla circulação na Europa

até o século XVII. Com cerca de um milhão de palavras, ela era uma enciclopédia médica.

Continha uma descrição das doenças “da cabeça aos pés”, um catálogo das drogas usadas

no tratamento das doenças, especificando suas propriedades e modos de conservação,

uma lista de fármacos e as suas virtudes terapêuticas, bem como, a preparação e

manipulação de medicamentos e ainda uma longa lista de receitas e fórmulas medicinais e

venenos.

Nessa perspectiva, entendia-se que o corpo era constituído por quatro humores

fundamentais: o sangue, a pituíta ou fleugma, a bílis amarela e a bílis escura, de cuja

coexistência em doses adequadas dependia os fenômenos vitais. Trata-se, pois como nos

aponta Corbin, Courtine & Vigarello (2008: 438-439) de uma rede de interações e de

diálogos entre substâncias, de comunicações entre o interior e o exterior do corpo. Os

humores, formando uma rede de interações mútuas, eram os responsáveis pela saúde ou

doença. Assim, acreditava-se que

(...) a doença sobrevinha quando um desses humores se acumulava (tornava-se “pletórico”), ou secava. Se o corpo fabricava muito sangue, seguiam-se “perturbações sangüíneas” – ou, segundo uma expressão moderna, a pressão

26

Hipócrates de Cós, o “pai da medicina”, viveu no século V a.C., no auge da efervescência cultural ateniense. Ele deu os primeiros passos em direção à compreensão e ao tratamento das doenças através dos seus sintomas. Sua teoria, baseada nos quatro humores corporais, foi aperfeiçoada por Galeno, médico grego que viveu de 123 a 200 d.C. e que propôs uma teoria racional e sistemática chamada “fisio-patológico-humoral”.

27

(20)

20 sangüínea subia. Daí o excesso de calor ou a febre. Devia-se, conseqüentemente, sofrer uma hemorragia, ter uma crise, um ataque de apoplexia, ou uma crise cardíaca. Por outro lado, uma falta de sangue ou um sangue de má qualidade significavam (sic) uma perda de vitalidade (CORBIN, COURTINE & VIGARELLO, 2008: 445).

Guilherme Piso catalogou e avaliou as doenças e as terapias das doenças pelo crivo

da concepção hipopcrático-galênica. No Livro Primeiro da sua História Natural e Médica da

Índia Ocidental, ele trata “dos ares, das águas e dos lugares” e inicia afirmando que “não se

pode inventar mais adequada norma para ordenar ou instituir a Medicina, entre gentes

remotas, do que a transmitida por Hipócrates” (Piso, 1957: 29). Nesse esquema, o calor do

ambiente aquece o sangue, o que produz, por exemplo, impigens rebeldes, pruridos,

disenterias, hemorroidas, inflamações do ânus e dos olhos, etc. Em outras palavras, “as

bruscas mudanças de temperatura, os ‘constantes ventos’, o ‘ar da noite’, o ‘ar da

madrugada’, o ‘luar’, o ‘sereno’, ‘a umidade’, são as principais causas das afecções

respiratórias” (Santos Filho 1977: 217).

Mas, a medicina hipocrático-galênica não era a única chave de compreensão das

doenças. Ela dividia espaço com a concepção religiosa - a indígena e a católica - das

doenças, tanto na Europa como no continente americano.

28

O cristianismo medieval

ensinava que as doenças eram causadas pelo pecado - da pessoa doente ou de seus

parentes -, sendo, portanto, castigo divino. A cura viria então pelo arrependimento e a

conversão da pessoa doente; o que era demonstrado cumprindo ou pagando a penitência. A

igreja exigia fé do indivíduo para lhe administrar a cura, através de ritos, sacrifícios,

confissões e penitências. Isso criou um sentimento de “desconfiança” de alguns setores da

sociedade para com os médicos e de confiança para com as pessoas que gerenciavam ritos

considerados “mágicos”. A instituição igreja via o doente como “impuro” e devia ser

“evitado”. Um bom exemplo dessa discriminação é o “isolamento dos leprosos”. Como a

doença era considerada castigo e fonte de purificação e redenção, “o sofrimento era amigo

da alma”.

O processo terápico baseado na teoria humoral divergia das terapias baseadas na

astrologia, na fé religiosa e nas ditas crenças e superstições, mas frequentemente ambos os

procedimentos são utilizados numa mesma comunidade e época. Como afirma Nava,

(...) as grandes idéias médicas não pertencem a este ou àquele século, não são sucessivas e sim coexistentes. Tanto existe um naturismo hipocrático, como um

28

No continente americano ou Índias Ocidentais existia igualmente uma terapêutica nativa que coincidia em parte com os métodos usados na Europa, como sangria, sucção e o uso de plantas medicinais, etc..

(21)

21 naturismo galênico; um naturismo arabista, como um naturismo contemporâneo. Ao seu lado existiu e existirá sempre um dogmatismo ou um empirismo; um humorismo ou um solidismo, um metodismo ou um ecletismo (2003: 10).

Nava prossegue alertando que o exercício da arte médica vai estar relacionado com

as concepções filosóficas e religiosas, com as mudanças e permanências dos costumes e

das crenças, com as descobertas do funcionamento da psique e do corpo humanos e das

propriedades medicinais de substâncias de origem animal, vegetal e mineral, entre outros.

De modo que, a medicina iniciada por Galeno conviveu com práticas anteriores ao próprio

Hipócrates, assim como, na Renascença, as práticas esotéricas conviviam com o

pensamento científico e médico do século XVII, do qual ainda faziam parte tradições e

costumes do medievo (Gesteira, 2004: 80-81). Portanto, no Brasil colônia, as causas das

doenças e as buscas da cura se orientavam nas tradições científicas da época, nas crenças

mágico-religiosas entre indígenas e não indígenas.

O próprio Piso (1957: 72; 73; 77) seguidor da medicina hipocrático-galênica explica,

por exemplo, as epidemias como oriundas de qualidades funestas ou dos malignos astros.

Ele entende que no verão muito seco “passam mal os biliosos e melancólicos, pelo

excessivo calor”, pois “o calor aniquila e resseca o que lhes fica de umidade no corpo,

restando às partes viscosas e mais crassas. Para ele, o céu, as estações do ano, a

diversidade da águas e dos alimentos e o gênero de vida diferente “mudam sem dúvida os

temperamentos” e fazem surgir doenças aparentemente novas, simplesmente “porque não

observam bem o período, o tempo e os mesmos acidentes; contudo, nem sempre diferem

na maneira de serem curadas”.

Considerações finais

Da análise realizada gostaríamos de considerar alguns aspectos: 1) A enorme

quantidade de dados existentes nas fontes sobre as doenças que afetaram a vida dos povos

indígenas do Brasil no período colonial. As caracterizações aqui apresentadas sobre as

enfermidades são apenas uma amostra desse vasto material. Tais doenças, especialmente

na obra de Piso, foram registradas via de regra de acordo com a nomenclatura médica em

voga na Europa dos séculos XVI e XVII. Não nos é, portanto, possível discriminar quais

dessas doenças teriam sido em seus sintomas apenas semelhantes ou mesmo idênticas às

que existiam na Europa.

(22)

22

práticas curativas, de plantas, de substâncias de origem animal, de minerais, etc., da

farmacopeia e da arte indígena de curar,

29

que, sendo incorporado pelos conquistadores

certamente reduziu a atitude depreciativa em relação aos povos indígenas, como bem

aponta Eliane Deckmann Fleck (2004: 658), ao estudar o tema nas reduções

jesuítico-guarani do antigo Paraguai.

Os registros da época nos permitem finalizar este artigo com a ideia de que a

compreensão mítico-religiosa das doenças conviveu com uma compreensão de vertente

mais racional, inclusive entre os missionários e demais agentes civilizadores. Essas duas

concepções influenciaram por sua vez a terapêutica usada para combater os males. Pode

se observar, nesse sentido, que a medicina praticada pelos povos indígenas combinava o

mágico-religioso com o empírico, não se diferenciando muito do que era a medicina

europeia à época, lugar de convivência da teoria dos quatro humores com padrões

explicativos metafísicos, que incluiam a noção de doença como castigo divino e

consequência de comportamentos considerados lascivos, assim como o uso de rezas e

fórmulas milagrosas para conseguir a cura. O fato de certas doenças serem atribuídas à

lascívia deriva, por um lado, do imaginário europeu, no qual o corpo nu ou “precariamente”

vestido era associado a excessos sexuais e a promiscuidade. Os povos indígenas e os

africanos eram considerados propensos à lascívia e todas as pessoas que não resistissem

aos prazeres da carne e não vivessem castamente gerariam doentes ou doenças venéreas.

Por outro lado, as doenças indígenas são atribuídas repetidas vezes à lascívia porque o

autor das fontes confunde várias doenças com a sífilis.

Com relação às epidemias pôde-se observar certa ambiguidade nas fontes. Piso, por

exemplo, registrou que as populações índias eram imunes às doenças que flagelavam em

certos tempos. Contudo, ele também caracterizou algumas das doenças epidêmicas, mas

sem contextualizar ou relatar os estragos que elas causavam na sociedade indígena. Destes

temos notícias em outras obras.

Recapitulando frente à questão inicial, cabe dizer que, se por um lado a simples

continuidade geracional da população indígena mostra que os povos índios tinham se

adaptado à intempérie, aos perigos da selva e às doenças do seu meio; por outro lado, essa

adaptação não os livrou de experimentarem e transmitirem tais doenças e de serem vítimas

de mordeduras de animais peçonhentos que igualmente podiam lhes transmitir

29 Esse tópico é desdobrado num outro artigo, Práticas curativas indígenas: Contribuição para o estudo do tema no Brasil Colônia, assinado por Gabrielly Saruwatari e Graciela Chamorro.

(23)

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enfermidades. Como bem expressa o jurista José Martins Catharino (1995: 80), em sua obra

Trabalho índio em terras de Vera ou Santa Cruz e do Brasil: Tentativa de resgate

ergonlógico, a exposição indígena às severidades e mudanças do meio ambiente foi tanto

responsável pela resistência indígena quanto pela sua vulnerabilidade às doenças.

Quanto ao uso dos dados levantados nesta pesquisa cabe dizer que esses dados

serão, em primeira instância, de muito proveito para o estudo das doenças nos povos

indígenas guarani falantes dos séculos XVI e XVII, assim como para um estudo comparativo

das doenças nas comunidades kaiowá, guarani e mbyá na atualidade com grupos indígenas

guarani parlantes chamados históricos.

Referências Bibliográficas

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urbana colonial. 2ª ed. – Rio de Janeiro: José Olympio, 1997.

CATHARINO, José Martins. Trabalho índio em terras da Vera ou Santa Cruz do

Brasil: tentativa de resgate ergonlógico. Rio de Janeiro: Salamandra, 1995.

CHAMORRO, Graciela. Etnografia histórica dos povos guarani: Aporte lingüístico

para os estudos histórico-antropológicos

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Referências

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