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PODER E GOVERNAMENTALIDADE NO PENSAMENTO POLÍTICO DE MICHEL FOUCAULT

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PODER E GOVERNAMENTALIDADE

NO PENSAMENTO POLÍTICO

DE MICHEL FOUCAULT*

MARCOS VINICIUS DA SILVA GOULART**

M

ichel Foucault não elaborou uma teoria do poder embora ao longo de sua obra seja possível perceber alguns traços de sua maneira de compreendê-lo. No entanto, ele pode ser considerado um dos pensadores mais importantes sobre o tema, por deslocar o foco e analisar o poder não como uma estrutura ou institui-ção, mas como um “[...] nome dado a uma situação estratégica complexa numa sociedade determinada” (FOUCAULT, 1988, p. 103). Essa formulação tem como base uma crítica a duas noções clássicas de poder, a saber, uma que diz que ele é um atributo do Estado, tendo como princípio a lei, e outra que atribui o poder a indivíduos ou grupos de indivíduos, sendo uma espécie de propriedade: algo que alguém poderia possuir.

Resumo: o intuito deste texto é analisar as noções de poder e governamentalidade no pensa-mento político de Michel Foucault. Para isso, apresenta-se a crítica desenvolvida pelo filósofo a o que ele chamou de Teoria Jurídica Clássica do Poder, segundo a qual, entre outras coisas, o poder seria um atributo, algo que pertenceria a alguém. Nesse caso, a crítica se dirige ao Leviatã hobbesiano, no qual o poder soberano seria a constituição de uma unidade a partir do conjunto das vontades cedidas pelos súditos. Em função disso, a noção de governamen-talidade aparece como um importante analisador das práticas de governo, de modo que com ela Foucault introduz uma forma de analisar o Poder que leva em consideração toda a complexidade da trama social. Essa noção emerge como uma forma de analisar o poder em uma perspectiva distinta daquela que aparece na teoria jurídica clássica.

Palavras-chave: Foucault. Hobbes. Poder. Governo. Governamentalidade.

* Recebido em: 20.09.2018. Aprovado em: 21.12.2018.

** Doutor em Educação pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Mestre em Psicologia Social e Institucional e licenciado em Filosofia. E-mail: mvinicius.goulart@gmail.com.

DOI 10.18224/frag.v29i1.6726

ARTIGO

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É importante ressaltar, todavia, que Foucault, ao criticar essas concepções, não está argumentando no sentido de dizer que elas são falsas. Ele quer mostrar que elas não podem ser tomadas como um princípio do poder, e sim como o efeito de relações de força que as precedem. Por sua vez, não há um único ponto de emergência do poder, e sim, uma trama de relações dinâmicas e instáveis de forças que compõe o tecido social. Longe de seguir o caminho em que o poder é visto como algo centralizado, o olhar foucaultiano desloca-se do centro para as margens.

Levando em consideração isso, a ideia central deste texto é apresentar as proble-matizações que Foucault elabora ao analisar o que ele chamou de Teoria Jurídica Clássica, mais especificamente, o pensamento de Thomas Hobbes e, em seguida, apresentar o que ele denominou de governamentalidade, uma maneira de analisar práticas de governo. Por fim, apresento algumas considerações sobre a importância desse tipo de analítica do poder apre-sentada por Foucault no sentido de refletir sobre seus limites e possibilidades. Indicando o que há de potente nesse tipo de análise.

CRÍTICAS À TEORIA JURÍDICA CLÁSSICA

Na teoria jurídica clássica, diz Foucault (1999, p. 20), o poder é considerado […] um direito do qual se seria possuidor como de um bem, e que se poderia, em conse-quência, transferir ou alienar, de uma forma total ou parcial, mediante um ato jurídico ou um ato fundador de direito […] que seria da ordem da cessão ou do contrato Ora, essa maneira de encarar o poder tem como base a ideia de que ele seria um atributo de alguém e, por conseguinte, poderia ser cedido a outrem. Dessa maneira, o ato inaugurador do poder político seria o momento em que os indivíduos abririam mão de seu poder para um soberano, instituindo uma espécie de contrato: todo poder social é transfe-rido a uma pessoa que agora poderia exercê-lo visto possuí-lo. Os indivíduos que cederiam o seu poder, por outro lado, apenas veriam a força soberana agir sobre eles mesmos, por terem intencionalmente alienado o seu poder num ato fundador político. Tem-se, portanto, uma análise que estaria mais direcionada aos aspectos legais do exercício do poder, perguntando-se por quem pode possuir o poder e, a partir disso, quais condições seriam necessárias para que fosse possível uma organização política centralizada em um soberano.

Foucault não quer seguir esse caminho, para ele não interessa conceber o poder como um atributo e, tampouco, analisar o seu exercício a partir deste ponto de vista. Cen-trar a análise nessa linha seria simplificar o problema, algo insuficiente para compreender os meandros das relações de força imanentes a um corpo social. O poder que interessa ao filósofo é aquele que, enquanto força, age sobre o corpo dos indivíduos. É por isso que a sua pesquisa, em um primeiro momento, se deslocou para os mecanismos de punição, pois o ato de punir é a materialização do poder sobre os indivíduos. Ora, partir do momento em que os indivíduos cedem o poder a um soberano – um a priori político - não serviria para analisar as forças que estão em jogo quando esse poder se encontra com os corpos a serem punidos.

Segundo Dussel (2004, p. 51), “o poder deve ser analisado não no nível das deci-sões ou das intenções, mas no dos corpos, no das condutas e atuações materiais”. Devemos, então, fugir de qualquer análise que parta de um suposto momento em que os indivíduos

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racionalmente escolhem se submeter a alguém. Tampouco iniciar a nossa análise a partir dos objetivos do poder, isto é, não tomarmos como base a ideia de que ao centralizá-lo nas mãos de um soberano ou de um Estado, instituiríamos a segurança para todos, algo que aparece na filosofia política de Hobbes, que veremos mais adiante.

A autora está dizendo que é necessário, para se conceber a visão política de Fou-cault, fugir da normatividade do pensamento filosófico, centrado sempre no deve ser e não na descrição do que é. Em muitos momentos de sua trajetória, o filósofo rechaçou qualquer restrição do seu pensamento ao campo da filosofia. Mas isso não significa que o seu trabalho não seja filosófico. Na realidade a sua preocupação era constituir uma maneira de analisar a realidade de forma interdisciplinar, utilizando a história, sociologia, psicologia e filosofia a seu favor.

Em A Arqueologia do Saber (FOUCAULT, 2007), ele usa o termo “positividade” para referir-se ao aspecto efetivo dos discursos, analisando-os como práticas, como elementos que compõem não apenas o nosso dizer, mas o nosso fazer. A positividade de um discurso, por exemplo, está na sua capacidade de formar o modo como nos conduzimos enquanto sujeitos. Ele quer fugir do normativo da filosofia política, seguindo uma linha de análise centrada na descrição de como as coisas acontecem e pautam as nossas formas de ser e de encarar o mundo em que vivemos. Faz sentido pensar que ao não seguir o caminho da normatividade, Foucault vai se preocupar com o poder no corpo dos indivíduos, na materialidade que os tornam su-jeitos, transformando pensamentos e atitudes.

É inútil, para Foucault, de outro modo, investigar a “substância” do poder, perguntar, por exemplo, “o que é o poder?” ou “quem é legítimo para ter o poder?”. A ideia é fugir de uma reflexão que busque a sua natureza, como algo estanque e a-histórico. Nas teorias que Foucault critica, a noção de poder está quase sempre ligada a de Estado. Analisar o conceito de poder seria chegar a uma ideia de Estado, por conseguinte, deduzir daí uma noção de governo, governante e súdito. Aquele sujeito que tivesse as características explicitadas pelo conceito de poder, seria a figura legítima para governar. Para Foucault, essa abordagem é pro-blemática pois não conseguiria ligar a teoria política à experiência social.

Quando Foucault se refere à teoria jurídica clássica, tem em mente uma visão de poder hobbesiana, em que o soberano é constituído por uma junção de todas as vontades dos indivíduos de uma dada sociedade. O que animaria o Leviatã seria a soberania, a alma que concentra em si uma multiplicidade de vontades. Foucault, ao invés de seguir nesse caminho, propõe “[…] estudar os corpos periféricos e múltiplos, esses corpos constituídos pelos efeitos de poder, como súditos” (FOUCAULT, 1999, p. 34). Se pensarmos na figura do Leviatã, um corpo formado por uma multiplicidade de indivíduos – súditos –, em que o soberano é a cabeça, podemos dizer que Foucault pretende fazer o caminho mais “sujo”, buscando o poder na correlação de forças de um contexto social. A cabeça da figura utilizada por Hobbes para explicar a sua visão de soberania e Estado, não é o mais importante para a análise do poder, mas o corpo. Deve-se perguntar, portanto, como se formou essa figura chamada de súdito?

Como determinados indivíduos, em função de determinada lógica política, ganharam essa atribuição?

O Leviatã hobbesiano “[...] tem como objetivo dar conta da gênese ideal do Esta-do; [...] faz da lei a manifestação fundamental do poder” (FOUCAULT, 1997, p. 71). Ora,

Foucault não quer formular uma teoria do Estado e, por conseguinte, um conjunto de leis a serem seguidas para que este funcione. Além disso, pensar em um Estado ideal é pensar em

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indivíduos ideais, dos quais as características naturais fundariam um contrato entre soberano e súditos. A questão é que quando pensamos na relação súditos e soberano dessa maneira, temos dois termos isolados cujo poder simplesmente passaria de um para o outro. A lei seria, assim, a garantia de que o poder passado ao soberano pelos súditos só poderia ser utilizado por ele.

Hobbes (1983, p. 77), em seu Leviatã, é muito claro: “onde não há poder comum não há lei [...]”. Isto significa que a transferência do poder para um soberano é uma condição para que a lei opere como um mecanismo de coerção. O poder, como já disse, torna-se um elemento jurídico, visto reduzir-se ao ponto de vista legal. Outro ponto importante é que a redução do poder à lei, decorre da ideia de que ele é um meio para a obtenção de algo. Nesse sentido, pode ser considerado força, capacidade ou qualidade. Aqui o poder aparece como uma capacidade e um atributo, algo que pertence a alguém e que pode lhe gerar algum be-nefício.

De outro modo, embora o poder se apresente como algo que alguém possui, Hob-bes considera a constituição de um contrato o maior dos poderes humanos,

[...] aquele que é composto pelos poderes de vários homens, unidos por consentimento numa só pessoa, natural ou civil, que tem o uso de todos os seus poderes na dependên-cia de sua vontade: é o caso do poder de um Estado. Ou na dependêndependên-cia da vontade de cada indivíduo: é o caso do poder de uma facção, ou de várias facções coligadas. Con-sequentemente ter servidores é poder; e ter amigos é poder: porque são forças unidas (HOBBES, 1983, p. 53).

Se o poder é algo que alguém possui, quando somado com o poder de outros, ele se torna maior, é por isso que a constituição do contrato é um ato fundador político importante para Hobbes, pois emerge como a soma de todos os poderes dos indivíduos. Ademais, esse momento tem a sua importância, pois é o instituidor da lei e, por consequência, do Estado Ideal. Não devemos esquecer que o filósofo inglês, num experimento mental (a hipótese do Estado de Natureza), fundamentou a importância de os indivíduos transferirem o seu poder para um soberano para que se evite aquilo que ele chamou de uma guerra de todos os homens contra todos os homens (HOBBES, 1983). A constituição da Lei e do Estado na figura da soberania serviria para evitar as tensões geradas pela natureza humana, sempre desejante, que faz com que os homens entrem num constante conflito de interesses. Assim, o poder nesse modelo jurídico garantiria a paz e a segurança de cada um:

reconhecendo que eu preciso ter paz, vou deixar de ter um desejo poderosamente forte de poder, glória e qualquer outra coisa que eu tenha anteriormente desejado. Vou passar a querer apenas o quanto me permita coexistir com outras pessoas que têm um conjunto de desejos similarmente limitado (SCHNEEWIND, 2005, p. 117).

O maior de todos os poderes humanos é justamente um ato fundador em que todos os indivíduos envolvidos abrem mão de seus desejos e força para a sua própria sobrevivência. Em suma, é preciso limitar-se para que o outro se limite, porém, essas limitações só seriam ga-rantidas com o poder ilimitado do soberano. Deste ponto de vista, evita-se um eterno conflito social e legitima-se a força irrestrita do tirano. O poder comum, garantia do Estado e da Lei,

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tem como objetivo restringir o poder de cada indivíduo. Tratá-lo desta forma é vê-lo como repressão, negação e, por fim, como aquilo que produz apenas privação.

De outro modo, “a verificação da legitimidade do poder, realizada pelos modelos jurídicos, supõe a comparação de um ordenamento jurídico específico com as manifestações concretas daquilo que se entende por poder, no âmbito deste próprio ordenamento jurídico”

(FONSECA, 1995, p. 27). Percebe-se, com isso, ao pensar sobre o modelo proposto por Hobbes, que a noção de poder e as suas consequências surgem a partir de uma idealização de sujeitos específicos com qualidades particulares deduzidas de uma teorização que ele chamou de Estado de Natureza, ou melhor, do homem nesta condição. A guerra de todos contra todos é uma suposição e o ordenamento jurídico surgiria deste receio. O próprio Leviatã seria um artifício criado por homens que desejam sair desta condição de conflito permanente. Contu-do, a emergência do EstaContu-do, o produto do poder comum dos indivíduos que querem a paz e a segurança, é uma espécie de racionalização das práticas concretas inferidas de uma situação natural idealizada.

Para Foucault, essa concepção de poder, na figura do Estado e da Lei, carecem de uma conexão com as práticas efetivas de um contexto social. Se há um esforço das instituições para conduzir a vida dos indivíduos, isto não decorre do fato de que eles aceitam se subme-ter e abrir mão de seu poder em prol da segurança, não é um aspecto meramente racional. Segundo ele:

a estrutura do Estado, no que ela tem de geral, de abstrato, mesmo de violento, não chegaria a manter assim, contínua e cautelosamente, todos os indivíduos, se ela não se enraizasse, não utilizasse, como uma espécie de grande estratégica, todas as pequenas táticas locais e individuais que encerram cada um entre nós (FOUCAULT, 2010, p. 231).

Mesmo que haja um domínio do Estado sobre as pessoas, isto não se dá em função de suas escolhas, mas de modos de pautar as nossas condutas individuais que estão para além da racionalidade. Restringir o poder, assim, ao modelo jurídico e filosófico, não é em si um erro, não é isso que Foucault diz. Para ele esse modelo é insuficiente para lidar com a mul-tiplicidade de forças que tensionam as práticas cotidianas das pessoas, criando modos de se conduzir e maneiras delas relacionarem-se consigo mesmas.

É preciso pensar, a partir da agora, na leitura que Foucault faz da noção de dominação, que é um elemento fundamental da sua análise do poder. Ora, a dominação, nesse caso, não é exercida apenas pelo Estado ou pela Lei, e sim, por um conjunto de instituições, regulamentos e aparelhos que transformam o poder num conjunto de relações espraiadas por toda sociedade. Não se deve analisar o poder a partir do “[...] rei em sua posição central, mas os súditos em suas relações recíprocas; não a soberania em seu edifício único, mas as múlti-plas sujeições que ocorreram e funcionam no interior do corpo social” (FOUCAULT, 1999, p. 32). Enfim, Foucault nos convida a compreender o poder não como um foco central que emana para todos os lados e domina todos os cantos. Nada disso, o centro é apenas a parte mais superficial do poder.

Trata-se de assimilar

[...] o poder em suas extremidades, em seus últimos lineamentos, onde ele se torna capilar; ou seja: tomar o poder em suas formas e em suas instituições mais regionais, mais locais,

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sobretudo no ponto em que esse poder, indo além das regras do direito que o organizam e o delimitam, se prolonga, em consequência, mais além dessas regras, investe-se em instituições, consolida-se nas técnicas e fornece instrumentos de intervenção materiais, eventualmente até violentos (FOUCAULT, 1999, p. 32).

Ir além das regras do direito é atribuir a esse poder uma materialidade que extrapola as intenções da lei. Nesse ponto o que importa é pensá-lo como uma relação de forças que encontram efetividade nas instituições que organizam a sociedade. Seria pensar, em certo sentido, em como a lei incorpora-se nos mecanismos que visam torná-la práticas. Há uma diferença entre as intenções da jurisdição e as técnicas que organismos políticos prescrevem aos indivíduos. A linha que se segue do Estado para as práticas sociais é atravessada por efei-tos de dominação complexos e múltiplos que podem se exercer sobre o louco, a criança, o criminoso, as mulheres, etc., porém, esse “se exercer” também é o criador desses sujeitos. No fundo, o analisador do poder, na perspectiva foucaultiana, é a constituição de sujeitos nesses jogos em que relações de força formulam modos de existir: há modos corretos e incorretos de se conduzir em sociedade, o que cria tanto o sujeito normal, quanto o anormal.

Há certas fórmulas precisas que definem bem o que pode ser considerada essa noção jurídico-filosófica que Foucault critica. Segundo ela, quando falamos em poder, sempre bus-camos um foco central ou alguém que o possui. Se pensarmos em termos de Estado, podemos dizer que pensar o poder é vislumbrar uma relação em que um sujeito A submete um sujeito B e, por conseguinte, um sujeito B se submete a um sujeito A. Por outro lado, é possível per-ceber outra fórmula que insere essas relações em certa ordem social: um sujeito A possui força para submeter um sujeito B a uma finalidade X. Isto significa que nessas relações existem lugares a serem ocupados: os Reis e os súditos, o Estado e os cidadãos, etc. Nesta perspectiva, há sempre um poder que orienta por inteiro as condutas dos indivíduos que, em função disso, são presas dessa força obscura chamada de poder. No entanto, eles não estão completamente submetidos, já que em toda relação de força há resistência.

Existe nessa noção jurídico-filosófica um tipo de operação em que o detentor do poder, que está no centro de um ordenamento social, irradia a sua força para as margens deste ordenamento e, depois disso, volta ao centro com o domínio constante destas margens. Em suma, é sempre do centro que se domina, e é sempre das margens que se obedece. Questionar os fundamentos deste tipo de análise é pensar em como esta figura central que detém o poder ganha legitimidade. Segundo argumentei, ela recebe uma espécie de autorização, uma trans-ferência de poder do qual um B aceita se submeter a um A. A relação é extremamente vertical, iniciando de cima para baixo e voltando de baixo para cima.

Esse parece o ponto fundamental da crítica foucaultiana, que não quer negar esse tipo de abordagem, mas propor outro caminho mais ligado à experiência social, menos filosófica e mais sociológica, ou, quem sabe, as duas ao mesmo tempo. Cabe re-lembrar que o filósofo não constituiu uma teoria do poder ou um sistema de análise do mesmo. No seu caso, a sua preocupação era com a constituição de sujeitos que eram pro-duzidos na tensão das relações de dominação. Fugindo da rigidez da filosofia tradicional

- muitas vezes encerrada em seus próprios cânones - Foucault, elaborou o seu pensamen-to num mosaico de áreas do conhecimenpensamen-to no qual o seu modo de encarar determinada problemática se constrói na medida em que a sua pesquisa se desenvolve. Chegando a uma noção singular de poder:

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assim, em vez de coisas, o poder é um conjunto de relações; em vez de derivar de uma superioridade, o poder produz a assimetria; em vez de se exercer de forma intermitente, ele se exerce permanentemente; em vez de agir de cima para baixo, submetendo, ele se irradia de baixo para cima, sustentando as instâncias de autoridade; em vez de esmagar e confiscar, ele incentiva e faz produzir (ALBUQUERQUE, 1995, p. 109).

Não se deve pensar, portanto, o poder apenas como repressão, que se legitima a partir de um ato inaugural ou em função de uma força que alguém possui, e sim, como um conjunto de relações que, inclusive, atravessam o poder do Estado, do Rei ou de um soberano. Sem a sustentação de uma teia de relações sociais, essas formas políticas jamais se sustenta-riam. É por isso que o poder está em toda parte, não como algo que aglomera tudo e todos, porém, porque provém de vários lugares. São os seus efeitos nas margens, na complexa trama social, que fazem com que o poder seja inteligível (FOUCAULT, 1988). Os seus efeitos, de outra maneira, não são sempre os mesmos, são sempre instáveis, criando, na medida em que se exerce, novas relações de força.

Pode-se perguntar, no entanto, como dar conta dessas relações de força na perspec-tiva dos sujeitos, isto é, como as pessoas constituem a si mesmas nessas relações em que ação age sobre ação, sendo conflitivamente produtivas? Até agora não abordei a noção de governo, elemento importante para compreendermos a crítica de Michel Foucault às análises clássicas do poder. Para fazer isso, será preciso adentrar mais precisamente nas suas análises históricas para compreender como ele lida com as relações de poder. Para isso, a meu ver, há uma noção importante a ser estudada, governamentalidade (tradução para português do termo francês

gouvernementalité, neologismo criado por Foucault). Uma noção extremamente particular

que opera na intersecção entre o Estado e a vida das pessoas.

A GOVERNAMENTALIDADE COMO INTELIGIBILIDADE DO PODER

No curso Segurança, Território, População, ministrado no Collège de France, Fou-cault (2008) anuncia que vai analisar a noção de governo, visto essa ser uma consequência da análise do problema da população. Segundo o filósofo, a problemática do governo no século XVI é uma espécie de atualização do velho problema do governo de si estoico. Para

Foucault, a ideia de atualização tem relação direta com o momento em que algo se presenti-fica, retornando diferente sem deixar de ser o mesmo. Seria como se ficássemos sem ver uma pessoa durante muito tempo, e quando ela retornasse, nos parecesse estranha, irreconhecível; contudo, esse estranhamento não seria permanente, ele se dissiparia aos poucos. Assim, re-conheceríamos essa pessoa, aparentemente irreconhecível, que retorna diferente. Ora, nesse sentido, dizer que o problema do governo no século XVI é uma atualização do problema do governo de si estoico, é dizer que esse “desconhecido” voltou e quer conduzir a população. Mas como pensar esse governo de si que se metamorfoseia em uma articulação com o governo dos outros, isto é, de uma população?

Estas questões ajudam a pensar em um deslocamento do pensamento de Michel Foucault a partir do seu curso no Collège De France de 1978, quando ele se depara com a problemática do governo, com o problema da condução de condutas. Todavia, ao invés de se voltar ao problema do governo da população, vou analisar o modo como a temática do autogoverno aparece em Foucault. Por que fazer isso? Por julgar que esse é o caminho que

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Foucault seguiu para compreender o que ele chamou de era da governamentalidade (FOU-CAULT, 2008). Para ilustrar, penso na trajetória do próprio filósofo, seja nos seus cursos ou nas suas obras tardias, nas quais a sua preocupação cada vez mais se orientou para as relações que um sujeito estabelece consigo mesmo. Nesse caso, pode-se pensar na ideia de autogover-no que, do ponto de vista de Foucault, é a maneira pela qual um sujeito se constitui enquanto um sujeito moral, como ele se relaciona com um código ou costume, as maneiras como ele se constitui enquanto um sujeito que se conduz num contexto social. Constituir-se enquanto sujeito moral não é apenas pensar-se ou tornar-se objeto de pensamento para si mesmo, mas exercer em si mesmo uma série de práticas que passam pelo controle do corpo, dos afetos e dos desejos - um cuidado de si.

Esse cuidado de si, enquanto uma espécie de autogoverno do qual os sujeitos se transformam naquilo que são, na perspectiva filosófica antiga, a partir da ideia de Hadot (2004), em conexão com Michel Foucault, é a base para se compreender a intersecção, a meu

ver, do Poder Político e a vida das pessoas, visto qualquer relação de “dominação” passar por um exercício em que o sujeito age sobre si mesmo. Pensando na modernidade, temos um tipo de governo orientado para a ordenação social de uma população. Ora, esse tipo de orientação surge a partir de uma série de transformações econômicas, políticas, científicas, etc. A mo-dernidade, segundo Foucault, tem a biopolítica como maneira de conduzir os indivíduos agrupados como população. É preciso entender que as intervenções sobre a população se dão a partir de práticas biopolíticas, que visam orientar a conduta das pessoas a partir de pesqui-sas que buscam intervir sobre a vida dos indivíduos subsumidos em uma população. Nesse sentido é importante ressaltar que:

Nos mecanismos implantados pela biopolítica, vai se tratar sobretudo, é claro, de previsões, de estimativas estatísticas, de medições globais; vai se tratar, igualmente, não de modificar tal fenômeno em especial, não tanto tal indivíduo, na medida em que é indivíduo, mas essencialmente, de intervir no nível daquilo que são as determinações desses fenômenos gerais, desses fenômenos no que eles têm de global (FOUCAULT, 1999, p. 293).

Podemos perceber que já não é mais possível pensar os problemas políticos mo-dernos estritamente a partir do velho governo de si da antiguidade. Porém, podemos pensar esse velho problema com outra roupagem, com outra nuance. Assim, é essa a razão que leva Michel Foucault a introduzir uma noção nova no seu pensamento, a governamentalidade que, inicialmente, é

[...] o conjunto constituído pelas instituições, os procedimentos, análises e reflexões, os cálculos e as táticas que permitem exercer essa forma bem específica, embora muito complexa, de poder que tem por alvo principal a população, por principal forma de saber a economia política e por instrumento técnico essencial, os dispositivos de segurança. (FOUCAULT, 2008, p. 143).

Como é possível perceber, a noção de governamentalidade é uma espécie de ope-ração do biopoder, visto essa estar direcionada a objetivação de um conjunto de indivíduos como população. Por isso, esse conjunto de coisas, ou de estado de coisas, que Foucault cha-mou de governamentalidade, é complexo, por articular uma série de mecanismos de saber

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(economia política) e de poder (polícia, instituições políticas, etc). O Estado, a partir disto, se torna governamentalizado, a sua força articula-se na relação entre tecnologias de poder que determinam a conduta dos indivíduos e tecnologias do eu, que permitem com que os indiví-duos, por conta própria ou com ajuda dos outros, operem certos exercícios sobre o seu corpo e sua alma, sobre os seus pensamentos, etc. (FOUCAULT, 1990). Analisar o poder, nesta perspectiva, é justamente pensá-lo como uma relação de forças que não estão centradas no Estado, mas sim, num campo social em que indivíduos se constituem como sujeitos morais e relacionam-se diretamente com o Estado e as suas estratégias.

A noção de governamentalidade é importante para pensarmos justamente nesse encontro entre as estratégias de governo e a relação que os sujeitos estabelecem consigo mes-mo, sendo fundamental para compreendermos a crítica que Michel Foucault faz da noção corrente de poder, enquanto algo repressivo, algo que alguém pode possuir. Ao contrário, ao analisar o poder, a partir da noção supracitada, ele o pensava

[...] como um domínio de relações estratégicas entre indivíduos ou grupos – relações que têm como questão central a conduta do outro ou dos outros, e que podem recorrer a técnicas e procedimentos diversos, dependendo dos casos, dos quadros institucionais em que ela se desenvolve, dos grupos sociais ou épocas [...] (FOUCAULT, 1997, p. 110).

A noção de governo nos ajudaria a compreender o que significa a maneira de operar do poder tal qual Foucault a pensa. Voltando-se ao início deste texto, vê-se que o filósofo afirma que o poder é um nome dado a uma situação estratégica complexa, ou seja, diz respeito a uma relação em que objetivos estão em jogo, extrapolando a mera relação dominante e do-minado, sendo uma rede de relações que constituem o campo social. Nesse sentido, o poder não é algo que alguém possui ou que alguém possa alienar, ele é exercido. Isto significa que referir-se a poder é mencionar relações de força e, consequentemente, a ação sobre ação. A noção de governamentalidade, que tem como base a ideia de governo, é justamente a conexão em que o governo de si (exercício em que os indivíduos se constituem como sujeitos morais) e o governo estatal (em que eles são conduzidos por estratégias do Estado).

Em suma, pensar o poder na perspectiva da governamentalidade é uma alternativa e não uma solução ao problema do modelo jurídico-filosófico do poder. Michel Foucault intro-duz algumas noções importantes, que servem para pensarmos naquela conexão entre o Poder Político e a vida das pessoas, as tecnologias do eu e de poder. A ideia de tecnologia, aqui, deve ser pensada como algo que produz. Portanto, tecnologias do eu, são os modos de agir dos in-divíduos em que eles produzem a sua subjetividade. No entanto, o eu não está desconectado das tecnologias de poder que se fundam nas estratégias do Estado. É fato que nós, enquanto sujeitos, somos atravessados por políticas públicas, campanhas de conscientização, controles, e coisas afins, que visam orientar os nossos passos. Não somos sujeitos atomizados, que deci-dimos o que devemos fazer e pronto. Somos orientados e, ao mesmo tempo, nos orientamos, na tensão entre aquilo que nos dizem que devemos ser e aquilo que queremos ser e somos. ALGUMAS CONSIDERAÇÕES

Ao criticar o que chamou de Teoria Jurídica do Poder, mais especificamente, tendo como foco a perspectiva hobbesiana de poder, Foucault introduz uma maneira de pensar o

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poder de forma um pouco mais complexa. Para ele - e isso não significa dizer que essa teoria é falsa -, a perspectiva que se centra numa análise do poder tendo como princípio a consti-tuição de um Estado ideal ou de uma forma de governo que se funda na soberania. O poder, tal como pensa Foucault, no entanto, é muito mais da ordem da relação, uma ideia de ação sobre ação, de modo que, ao analisá-lo a partir deste prisma, abre-se mão de uma ideia de ver-ticalização das relações de poder, como se elas fossem uma linha de ação de cima para baixo: do soberano aos súditos.

Nesse sentido, a noção de governamentalidade se apresenta como fundamental para a análise do modo como os indivíduos seriam conduzidos por via do governo, uma conduta mediada por instituições, práticas sociais, discursos, etc. A governamentalidade é a racionali-zação do poder e do Estado Moderno, o que indica uma forma de pensar sobre o exercício de governo focado na população. O olhar sobre o governo de si, o cuidado de si, é um elemento importante pois ele estabelece o modo como os indivíduos percebem-se a si mesmos, como agem sobre si mesmos, indicando uma maneira potente de pensar na conexão entre poder e governo, tratando essa problemática de forma mais complexa, tal como é a nossa trama social, atravessa por um mosaico de práticas que formam nossas maneiras de se conduzir em socie-dade e sermos o que somos.

POWER AND GOVERNAMENTALITY IN THE MICHEL FOUCAULT’S POLITICAL THOUGHT

Abstract: The purpose of this text is to analyze the notions of power and governmentality in Mi-chel Foucault’s political thought. For this, the philosopher’s critique of what he called the Classical Legal Theory of Power is presented, according to which, among other things, power would be an attribute, something that would belong to someone. In this case, the criticism is directed to the Hobbesian Leviathan, in which the sovereign power would be the constitution of a unit from the set of the wills given by the subjects. Because of this, the notion of governmentality appears as an important analyzer of government practices, so that with it Foucault introduces a way of analyzing Power that takes into account the complexity of the social fabric. This notion emerges as a way of analyzing power in a perspective distinct from that, which appears in classical legal theory.

Keywords: Foucault. Hobbes. Power. Government. Governmentality. Referências

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FOUCAULT, Michel. História da sexualidade I: a vontade de saber. Rio de Janeiro: Edições Graal, 1988.

FOUCAULT, Michel. Tecnologías del yo. In: MOREY, Miguel (org.). Tecnologías del y o y otros textos afines. Barcelona: Paidós/ICE-UAB, 1990.

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Referências

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