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UNIVERSIDADE FEDERAL DO MARANHÃO CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS CURSO DE MESTRADO EM CIÊNCIAS SOCIAIS PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM CIÊNCIAS SOCIAIS EMERSON RUBENS MESQUITA ALMEIDA

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UNIVERSIDADE FEDERAL DO MARANHÃO CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS

CURSO DE MESTRADO EM CIÊNCIAS SOCIAIS

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM CIÊNCIAS SOCIAIS

EMERSON RUBENS MESQUITA ALMEIDA

“SER COMO O BRANCO, NÃO É SER O BRANCO”: dinâmicas de controle e transgressão nas relações interétnicas

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2 Almeida, Emerson Rubens Mesquita.

“SER COMO O BRANCO, NÃO É SER O BRANCO”: dinâmicas de controle e transgressão nas relações interétnicas/Emerson Rubens Mesquita Almeida. – 2012.

– 150 f.

Impresso por computador (fotocópia).

Orientadora: Elizabeth Maria Beserra Coelho.

Dissertação (Mestrado) – Universidade Federal do Maranhão, Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Antropologia, 2012.

1. Política Indigenista – Tentehar – Maranhão 2. Políticas Públicas 3.

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EMERSON RUBENS MESQUITA ALMEIDA

“SER COMO O BRANCO, NÃO É SER O BRANCO”: dinâmicas de controle e transgressão nas relações interétnicas

Orientadora: Pr.ª Dr.ª Elizabeth Maria Beserra Coelho

São Luís 2012

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EMERSON RUBENS MESQUITA ALMEIDA

“SER COMO O BRANCO, NÃO É SER O BRANCO”: dinâmicas de controle e transgressão nas relações interétnicas

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Antropologia da Universidade Federal do Maranhão, como requisito para obtenção do título de mestre em Ciências Sociais

Aprovada em 24/02/2012

BANCA EXAMINADORA

______________________________________________

Profa. Dra. Elizabeth Maria Beserra Coelho

Universidade Federal do Maranhão

_______________________________________________ Profa. Dra Katiane Ribeiro da Cruz

Universidade Federal do Maranhão

_______________________________________________

Profa. Dra. Rose-France de Farias Panet Universidade Estadual do Maranhão

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AGRADECIMENTOS

Um trabalho que aparenta ter uma só autoria é feito a muitas mãos, posso até dizer a muitos cérebros. Neste sentido, é uma produção coletiva que deve ser lembrada como tal. Daí agradecer é imprescindível para não esquecer que até o mais singular dos pensamentos, sempre foi plural. Desta maneira agradeço a minha orientadora Elizabeth Maria Bessera Coelho, que se mostrou mais que uma professora, uma amiga que soube ter paciência e me apoiar neste difícil exercício que foi Mestrado.

Agradeço aos professores do Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Antropologia, por terem sido cúmplices desta tarefa, inclusive tolerando minha ausência em diversas ocasiões em virtude de minha vinculação com a causa indígena. Agradeço em especial aos amigos Marcelo Carneiro, que me visitou no exílio, e Igor Grill que deu conselhos importantes para seguir em frente.

Agradeço aos colegas de turma, Daisy, Bruno (Feto), Carol, João Gilberto, Carla, Antônio Poser, Marcos, Douruézia, Joelma, Ingrid, Cris, Jorge... por terem ouvido, discutido, discordado e respeitado minhas decisões.

Estes anos que passei no Mestrado foram cheios de mudanças, inclusive de cidade, de casa e de emprego. Devo, portanto, agradecer aos colegas de trabalho da FUNAI, que me acolheram muito bem e garantiram minha tranqüilidade para concluir o curso de mestrado. Agradeço aos colegas da SEDUC, pelos anos que passei em situações difíceis ao lado de pessoas maravilhosas.

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Agradeço aos meus sobrinhos que não citarei por falta de espaço (seriam necessárias uma duas folhas mais). Ao meu filho Auro Rubens, para quem continuo me esforçando para ser exemplo.

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8 RESUMO

O presente trabalho analisa situações dramáticas vividas pelos Tentehar no contexto da execução das políticas indigenistas de saúde e de educação, objetivando discutir como essas políticas inserem-se nos espaços Tentehar, no Maranhão, e como são percebidas por esse povo. Mais especificamente, objetiva captar as dinâmicas de controle, exercidas pelo estado sobre os tentehar e as estratégias de transgressão a esse controle, acionadas por esse povo. Busca compreender como dinâmicas de colonialidade do poder, postas em prática pelo estado brasileiro, são enfrentadas pelo jeito tentehar de ser e de fazer.

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9 ABSTRACT

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LISTA DE SIGLAS

ASPMI: ASSOCIAÇÃO DE PAIS E MESTRES INDÍGENAS

CIMI: CONSELHO INDIGENISTA MISSIONÁRIO

CNE: CONSELHO NACIONAL DE EDUCAÇÃO

CEEIMA: CONSELHO DE EDUCAÇÃO ESCOLAR INDÍGENA DO MARANHÃO

COAPIMA: COORDENAÇÃO DAS ORGANIZAÇÕES E ARTICULAÇÃO DOS

POVOS INDÍGENAS DO MARANHÃO

CVRD: COMPANHIA VALE DO RIO DOCE

DSEI: DISTRITO SANITÁRIO ESPECIAL INDÍGENA

FNDE: FUNDO NACIONAL DE DESENVOLVIMENTO DA EDUCAÇÃO

FUNAI: FUNDAÇÃO NACIONAL DO ÍNDIO

FUNASA: FUNDAÇÃO NACIONAL DE SAÚDE

FUNDEB: FUNDO NACIONAL DE DESENVOLVIMENTO DA EDUCAÇÃO

BÁSICA

INEP: INSTITUTO NACIONAL DE EDUCAÇÃO E PESQUISA

MEC: MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO

ONG: ORGANIZAÇÃO NÃO-GOVERNAMENTAL

PNAE: PROGRAMA NACIONAL ALIMENTAÇÃO ESCOLAR

PNATE: PROGRAMA NACIONAL DE APOIO AO TRANSPORTE ESCOLAR

SEDUC-MA: SECRETARIA DE ESTADO DA EDUCAÇÃO DO MARANHÃO

SECAD: SECRETARIA DE EDUCAÇÃO CONTINUADA, ALFABETIZAÇÃO E

DIVERSIDADE

SESAI: SECRETARIA ESPECIAL DE SAÚDE INDÍGENA

SPILTN: SERVIÇO DE PROTEÇÃO AO INDIO E LOCALIZAÇÃO DE

TRABALHADORES NACIONAIS

TI TERRA INDÍGENA

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LISTA DE QUADROS

I . NÚMERO DE ALUNOS NAS ESCOLAS INDÍGENAS

II. AUMENTO DO NÚMERO DE ALUNOS E DE ESCOLAS INDÍGENAS III. NÚMERO DE ESCOLAS INDÍGENAS POR POVO

IV. PROFESSORES DA EDUCAÇÃO BÁSICA NAS ESCOLAS INDÍGENAS V. COMPARATIVO DOCENTES INDÍGENAS E NÃO INDÍGENAS

VI. CONTRATOS DE TRANSPORTE ESCOLAR ENTRE SEDUC E ASPMI

VII. CONVÊNIOS CELEBRADOS TRANSPORTE ESCOLAR INDÍGENAS ENTRE 2006 E 2009

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SUMÁRIO

1. INTRODUÇÃO 13

1.2. Uma estrada sem volta: situando o pesquisador em seu universo de

pesquisa 21

2. OS TENTEHAR 29

3. DOS SOBRENATURAIS À SAÚDE INDIGENISTA

3.1. “As coisa botada vem do ar, da água, da terra...”: antecedentes para

compreensão das relações de adoecimento e cura entre os Tentehar 42 3.2. Protagonismo Tentehar: dinâmicas de participação nos serviços de

atenção a saúde 49

3.3.Adinâmicada família extensa na saúde indigenista 57

4

.

“E ELES SAÍRAM PARA SEMEAR”: EXPERIÊNCIAS DE

CATEQUIZAÇÃO/CIVILIZAÇÃO ENTRE OS TENTEHAR 69

4.1. A consolidação da Escola nas terras Tentehar 72

4.2.Experiências e representações tentehar sobre a escola 78 4.3 “... Ele não sabia que tinha que estudar”: a experiência de escola na

aldeia Zutiwa 92

4.4 “Meu sonho é contribuir maior”. 97

4.5. Poder, aliança e conflitos: elementos para compreender o mercado de

bens simbólicos Tentehar 105

5. O JEITO TENTEHAR DE SER E DE FAZER. 129

6. CONSIDERAÇÕES FINAIS

REFERÊNCIAS

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1. INTRODUÇÃO

Na introdução de sua obra A Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo, Weber (2006, p. 23) faz a seguinte pergunta: “a que circunstâncias se pode atribuir o fato de na civilização ocidental, e só nela, terem aparecido fenômenos culturais que, como queremos

crer, apresentam uma linha de desenvolvimento de significado e valor universais?” (Grifos meus).

A representação que este autor faz da posição do Ocidente no mundo, mas precisamente da Europa, é visivelmente orientada pela noção de superioridade desta em relação às outras sociedades. Segundo Castro-Gómez (2005, p. 177) este é o imaginário colonial predominante e amplamente reproduzido tradicionalmente pelas ciências sociais e pela filosofia, nos dois lados do Atlântico. Esta perspectiva, ainda segundo este autor, desconsidera a experiência do colonialismo como fator importante para o entendimento do fenômeno da modernidade e o surgimento das ciências sociais, pois entende a sociedade Européia como ascética e autogerada. A racionalização seria, portanto, uma prerrogativa das sociedades ocidentais. Dessa maneira:

[...] para os africanos, asiáticos e latino-americanos, o colonialismo não significou primariamente destruição e espoliação e sim, antes de mais nada, o começo do tortuoso mas inevitável caminho em direção ao desenvolvimento e à modernização. (CASTRO-GÓMEZ, 2005, p.177)

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institucionais de dominação e em particular do moderno Estado-nação (QUIJANO, 2002, p.04). Trata-se de uma perspectiva teórica e histórica sobre a questão do poder, sobre o qual o autor desenvolve a categoria analítica colonialidade do poder, isto é “a idéia de “raça” como fundamento do padrão universal de classificação social básica e de

dominação social” (QUIJANO, 2002, p. 04).

De acordo com essa perspectiva, a noção de “raça” adquire função taxonômica em relação à população mundial. Nascida há 500 anos, concomitantemente às noções de América, Europa e capitalismo, e junto com essas, passou a ser imposta a todo planeta no curso da expansão do colonialismo europeu (QUIJANO, 2002, p. 04) Quijano é categórico ao afirmar:

Desde então, no padrão atual mundial de poder, (tais noções) impregnam todas e cada uma das áreas de existência social e constituem a mais profunda e eficaz forma de dominação social, material e intersubjetiva, e são, por isso mesmo, a base intersubjetiva mais universal de dominação política dentro do atual padrão de poder (QUIJANO, 2002, p.04)(Grifos meus)

Por considerar a relação histórico-social entre culturas diferentes e os produtos gerados por essa relação levando em conta um novo padrão mundial de poder, a noção de Colonialidade do Poder me parece bastante adequada para observar como políticas públicas executadas pelo Estado, a exemplo da saúde e da educação,estão completamente impregnados – para usar o termo de Quijano – dos processos de dominação sobre sociedades indígenas no Brasil.

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p.04). Isto é, a racionalidade ocidental reproduz a si mesma a despeito de outras formas de produção de conhecimento. Conseqüentemente, a escola tornou-se peça inegociável nos processos de dominação e libertação, servindo tanto ao moderno Estado-nação, quanto aos seus críticos mais radicais. Uma vez que para jogar é preciso aceitar as regras do jogo.

Um processo semelhante ocorre com o que convencionamos chamar de saúde, bem como as políticas de estado para este setor. A linguagem médica, depositária da racionalidade ocidental, num exercício de colonialidade do saber, apresenta-se como a única capaz de explicar fenômenos de adoecimento, males do corpo e da mente, operando em campo semântico diferente daquele compreendido pelos índios. Dominique Buchillet (2004, p.58-59), analisando as relações entre cultura e saúde pública no âmbito do Distrito Sanitário Especial Indígena do Rio Negro, afirma que os indicadores usados para avaliar o estado de saúde de uma comunidade ou sub-região especifica do Alto Rio Negro, não levam em conta as percepções dos próprios índios com relação a esses problemas e suas causas eventuais. A ação dos órgãos de saúde no âmbito do Distrito Sanitário, segundo esta autora, provoca dissenso entre gerações, pois enquanto o anciãos, xamãs e rezadores atribuem o crescimento do número de doenças ao desrespeito dos jovens com relação as sanções alimentares, comportamentais ou sexuais, relacionadas às fases do ciclo biológico da vida (nascimento, puberdade, morte), os jovens entendem que ouve uma melhora nas condições sanitárias em função da melhor acessibilidade aos medicamentos e proximidades dos serviços de saúde. A autora completa:

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Em ambos os casos, atendimento à saúde e escolarização, as ações desenvolvidas configuram-se no exercício da colonialidade do poder e buscam suprimir outras formas de produzir conhecimento, diferentes daquelas construídas pela racionalidade ocidental. Deste ponto de vista, a escola e a saúde transformam-se em instâncias necessárias, das quais se questiona suas formas, nunca sua existência. Entendida como pilares na construção do Estado Nacional, as políticas de educação e saúde são percebidas como inexoráveis. Edgardo Lander (2002, p.33), argumenta que se trata de uma visão de mundo que tenta se sobrepor as demais, naturalizando uma “superioridade evidente” da sociedade ocidental, sobretudo no que tange aos conhecimentos (ciências) que esta produz com relação a outros conhecimentos. Diante da não aceitação de configurações outras, os conceitos de educação e saúde vêm sofrendo nas últimas décadas, no que tange à questão indígena, uma completa assepsia com relação à origem colonialista e o vínculo profundo com a noção de Estado-nação1.

Para Coelho (2008, p.26), tanto as diretrizes para a Política Nacional de Educação Escolar Indígena, quanto a Política Nacional de Atenção a Saúde dos Povos Indígenas podem ser compreendidas como estratégias de subalternidade dos saberes, ou, pensando junto com Edgardo Lander, novas formas de poder e de controle, mais sutis e refinadas numa dinâmica de colonialidade do saber/poder.

Coelho (2008) afirma que a educação escolar tem sido um dos veículos fundamentais que o estado moderno utiliza para homogeneizar a população, tendo em vista seu papel na reprodução e modificação da cultura. Acrescenta que nos países em que o estado e a nação coexistem, a educação e a generalização da alfabetização não só reforçam as possibilidades de comunicação entre as pessoas, como ajudam a desenvolver um forte

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senso de comunidade. Este não é, no entanto, o caso do Brasil, onde o estado tem procurando instituir a nação por sobre as diversidades nacionais preexistentes.

Após a Carta Magna2, um extenso arcabouço legislativo ajudou a construir novos cenários no Campo Indigenista. Segundo Coelho (2008, p.27) a novidade supostamente se centra no deslocamento de um discurso de eixo monocultural para uma perspectiva multicultural, esta última amparada nos princípios de respeito à diversidade dos povos indígenas. Por outro lado, chama atenção para ausência, no texto constitucional, da idéia de pluralidade, afirmando que não consta “entre os objetivos fundamentais da Carta Maior [...] o respeito à diversidade étnico cultural. Como já apontei, a diversidade étnica

coloca-se apenas de forma pontual, no artigo 231 [...]”. (COELHO, 2008, p.15)

A nova política do Estado brasileiro incorporou a idéia da multiculturalidade que trouxe consigo noções que compõem um complexo jogo de poder na relação entre indivíduos situados em campos semânticos diferentes (CARDOSO DE OLIVEIRA, 2001). Paradoxalmente, ao combater as formas assimilacionistas do passado, vários setores, do estado aos movimentos sociais, passando pela academia, ajudaram a construir, na maioria das vezes à revelia de sua vontade, as condições para os processos de dominação no presente. Estes segmentos construíram uma multiplicidade de perspectivas nos campos da educação e saúde, que foram ancoradas nas teorias em torno do multiculturalismo, transculturalismo, interculturalismo e outros “ismos” que constituem um campo de debate complexo. A esse respeito, argumenta Fleuri (2003, p.17) que um dos “mais espinhosos problemas de nosso tempo, é o da possibilidade de respeitar as diferenças e de integrá-las

em uma unidade que não as anule”.

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Nas novas políticas de educação e saúde, diferença e integração, que historicamente apresentaram-se de forma antagônica no âmbito da questão indígena, formulam-se como metas a serem alcançadas. Na prática, a polissemia que se formou em torno dos novos parâmetros adotados pela política indigenista brasileira, se mostrou incapaz de superar os velhos modelos, pelo menos até agora. Por outro lado, os argumentos nos quais se estruturaram tais propostas foram baseados em pressupostos de renovação dos paradigmas científicos e metodológicos anteriores, portanto considerados legítimos e tidos como emancipativos3em relação aos mesmos.

No campo específico da educação o efeito colateral desta política foi o aumento da violência simbólica (BORDIEU & PASSERON, 1992) exercida sobre os povos indígenas. O objetivo da escolarização compulsória é suplantar a multiplicidade de sistemas educativos próprios e autônomos, existentes nas culturas indígenas. Nesse sistema, a escolarização é obrigatória e a escola é o elemento central. Neste contexto, o que passa a ser disputado é a própria escola enquanto instrumento para dominação ou para emancipação. Repito: questionam-se suas formas, não a sua existência.

Coelho (2008, p.17), alerta para os conflitos acendidos por essa nova política:

Há uma grande tensão decorrente, num primeiro plano, da ambigüidade presente no discurso oficial, num segundo plano, da não implementação do que está disposto neste discurso e, num terceiro plano, e o mais importante, da diversidade de campos semânticos em operação.

O que as regras do jogo tentam abolir é a diversidade de sistemas educativos, com lógicas distintas. Assim sendo, ao inserir as escolas indígenas no sistema nacional de educação, determinando parâmetros nacionais para seus currículos e funcionamento das suas escolas, o Estado pretende obrigar os índios a jogar dentro de suas regras, fazendo da

3No campo da educação autores como Grupionni (2002), Silva (2002), Maher (2002), Matos & Monte (2002)

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escolarização a única ordem possível4 (LANDER, 2005, p.22). As conseqüentes perdas neste processo são entendidas como inevitáveis, necessárias para galgar sucesso diante dos novos padrões estabelecidos. Podemos associar esse mecanismo ao sétimo princípio mítico da Modernidade, interpretado por Dussel (2005, p. 65), segundo o qual “pelo caráter “civilizatório” da “Modernidade”, interpretam-se como inevitáveis os sofrimentos ou

sacrifícios (os custos) a “modernização” dos outros povos “atrasados” (imaturos), das

outras raças escravizáveis, do outro sexo por ser frágil [...]”.

A escola, portanto, é imunizada pelo Estado, e mesmo pelos seus críticos, em relação aos questionamentos sobre sua importância para os povos indígenas. Beneficia-se desta prerrogativa para repassar a idéia de desprendimento com seu passado colonizador. Apresenta-se asséptica e mais necessária que nunca. O paradigma emancipatório, afinal de contas, emancipa os índios em relação a que e/ou a quem? Sob rubrica da emancipação, tenta-se impor a racionalidade ocidentalizada.

As Secretarias de Estado da Educação passaram a capitanear a execução das políticas, ditas emancipatórias, para os povos indígenas. Todavia, as relações estariam sendo postas, ainda, sob bases homogeneizantes de pensamento. Como os povos indígenas têm se colocado diante desse cenário?

Howard (2002, p. 29) reconsiderando as relações entre os Waiwai e os brancos apresenta um ponto de vista a partir do qual os índios assumem papel protagonista nas relações interétnicas, deixando o papel de simples vítimas das forças colonizadoras:

Reconsiderar as questões das trocas interétnicas à luz de teorias da resistência parece ter potencial para resolver muitos dos problemas do paradigma anterior

4 A idéia de uma única ordem possível é refletida por Lander (2005) em relação aos processos de imposição

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que fazia dos povos indígenas personagens passivos em sua dramaturgia. Essa nova abordagem dá-nos acesso a um rico universo de significados, até aqui omitidos, e demonstra por que estratégias os povos indigenas vêm procurando conquistar um papel ativo em situações interétnicas, apesar das imensas pressões que existem para incapacitá-los. Relações de troca não são apenas mecanismos dos colonizadores para dominar os povos nativos; elas também constituem a arena onde estes desafiam a dominação e procuram afirmar suas próprias formas de controle. (grifos meus)

A abordagem de Howard nos permite analisar as relações interétnicas de um ponto de vista no qual as relações de força estão em constante oscilação, sendo favoráveis ora para o Estado, ora para os índios.

A presença da instituição escola em terras indígenas é resultante do contato interétnico. Os povos indígenas têm buscado se apropriar do processo de escolarização de diferentes maneiras, de acordo com a história de contato que vivenciam e com seus modos de vida. Nessa perspectiva, procurei construir minha investigação, tomando como campo empírico o povo Tentehar, buscando perceber, inspirado nas reflexões de Howard (2002), a tensão que se forma entre os propósitos das políticas de escolarização, promovidas pelo Estado, e a forma como os Tentehar se relacionam com tais políticas, tentando “pacificá-las”.

Dentro do sistema de relações interétnicas, sempre há espaço para driblar a dominação, abrir caminhos de protesto ainda que disfarçados de acomodação, fazer leituras alternativas de uma mesma situação e imprimir aos símbolos dos brancos novos significados criados pelo grupo indígena. Os povos indígenas podem até dar a impressão de imitar a cultura dominante ao adotar as roupas dos brancos, querer seus bens, referenciar seus deuses, ou empregar sua retórica para criticá-los, mas a resistência é sempre uma questão híbrida e contraditória, tanto na forma quanto no conteúdo. (HOWARD: 2002, p. 28)

Da mesma forma que a escola, o atendimento biomédico resulta das relações interétnicas, que introduziram agentes mórbidos, ocasionando doenças as quais os índios não sabiam como enfrentar.

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da Colonialidade do Poder (QUIJANO: 2002) por outro lado, a reconsideração das relações interétnicas à luz das teorias da resistência, como proposto por Howard (2006) restitui as bases necessárias para pensar as complexas relações vividas pelos Tentehar com as tentativas de escolarização e de medicalização impostas pelo Estado no Maranhão.

Essa tensão entre a tentativa de dominação e a resistência indígena compõe um campo empírico privilegiado no qual esta pesquisa se desenvolveu. Explorei, também, situações dramáticas vividas pelos Tentehar no contexto da execução das políticas de saúde e de educação, objetivando discutir como essas políticas inserem-se nos espaços onde vivem os Tentehar, no Maranhão e são percebidas por esse povo. Isto é, como se dão as relações sociais entre os Tentehar e tais políticas promovidas por órgãos de governo, nesse estado. Mais especificamente, captar significações da escola para os Tentehar e como eles se relacionam com essa instituição, e, cotejar esses elementos com a atuação dos Tentehar no campo da saúde indigenista no estado do Maranhão.

Dessa maneira, percebo esta dissertação como uma continuidade ao trabalho desenvolvido na monografia de conclusão de curso de graduação em Ciências Sociais, quando discuti a construção do que convencionei chamar de o “ser Tentehar” e suas relações com a alteridade.

1.2 Uma estrada sem volta: situando o pesquisador em seu universo de pesquisa

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trabalhar com índios, na ocasião, afirmou: “eu já sabia”. Então, contou-me a seguinte história:

quando você nasceu lhe dei o nome Ucijara. Nem precisa dizer que é nome de índio. Algumas pessoas acharam que o nome não era muito bonito, então mudei para Ubiratan. Após alguns meses de vida você adoeceu gravemente e passei vários meses num hospital no qual fui visitada por várias pessoas que se compadeciam da pequena criatura ali doente. Entre tantas visitas, uma em especial me aconselhou a procurar um pai-de-santo, pois sua doença não parecia “natural”.

Assim fez minha mãe e nesta ocasião recebeu a seguinte sentença: troque o nome do menino se não quiser perdê-lo para os índios. Segundo minha mãe, o dito curador se referia aos “encantados indígenas” que me solicitavam para ir com eles para sua morada no além, por ter recebido aquele nome e, portanto pertencer a eles. A partir de então passei a me chamar Emerson Rubens. Em sua representação, a profecia inicial iria se concretizar: eu partiria para não mais voltar.

Os desdobramentos desta história, consciente ou inconscientemente, conduziram-me a questão indígena. No ano de 1995 fui convidado a participar de um curso de formação social e política, oferecido pelo Centro de Documentação Comboniano5 a militantes de organizações sociais de várias partes do Maranhão. Naquele momento eu ocupava a coordenação da Articulação de Leigos Católicos da Área Itaqui Bacanga.

Minha qualificação como Técnico em Laboratório de Análises Clínicas, foi a porta de entrada para a questão indígena. A convite do Pe. Claudio Bombieri, adentrei no Conselho Indigenista Missionário - CIMI6 passei a compor uma pequena equipe de saúde constituída por funcionários da Fundação Nacional do Índio-FUNAI e Fundação Nacional

5 Combonianos: congregação de padres seguidores do carisma de Daniel Combonni, missionário italiano que

dedicou sua vida a evangelizar e fazer trabalhos sociais na África.

6 Órgão anexo a Conferência Nacional dos Bispos do Brasil, que tem como missão a “defesa da vida dos

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de Saúde-FNS, hoje FUNASA. Posteriormente, permaneci no CIMI como funcionário e, mais tarde, como membro efetivo da instituição7, desenvolvendo outros trabalhos.

A temática indígena, naquela década, era marcada por profundas mudanças no âmbito das políticas indigenistas ofertadas pelo Estado Brasileiro, ainda adaptando-se às novas exigências da Constituição de 1988. Entre tais políticas, surgiram propostas para novas modalidades de atendimento médico e sanitário e de escolarização que até então eram exclusivamente exercidas pela FUNAI.

Minha formação técnica, na área da saúde, fez com que me dedicasse mais às questões de saúde acompanhadas pela instituição. Mais que isso, buscava entender as políticas indigenistas do estado brasileiro para com os povos indígenas no Maranhão. Nos primeiros anos no CIMI conheci os Ka’apor e os Tembé da Terra Indígena Alto Turiaçú, com os quais trabalhei durante pouco tempo, realizando viagens esporádicas. Em 1998 já acompanhava várias aldeias discutindo políticas indigenistas nas terras indígenas Cana-Brava, Bacurizinho e Araribóia.

No ano 2000, após reformulação interna8 do CIMI no Maranhão, mudei minha residência para Amarante do Maranhão. Ali pude me dedicar mais exclusivamente a uma região e trabalhar mais intensamente junto aos índios. Meu trabalho, naquele contexto, consistia em realizar articulação política dos povos indígenas entre si e com outros setores militantes na causa indígena como, por exemplo, movimentos sociais da região e mesmo a

7 O CIMI faz distinção entre funcionário e missionário. Esta segunda categoria é destinada àquelas pessoas

que optam por uma “vida missionária”, a quem é atribuído o direito a voz e voto nas assembléias regionais e nacionais da instituição, bem como a participação nas diversas instâncias da mesma. Ao funcionário

reserva-se o direito de exercer sua função conforme sua colocação na instituição, como em qualquer empresa, inclusive com todos os direitos trabalhistas respeitados.

8 Aquele ano foi marcado pela morte do Pe. Carlo Ubbiali, membro fundador do CIMI no Maranhão, o que

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igreja local9. O objetivo era favorecer ações e reivindicações dos povos indígenas da terra indígena Araribóia em parceria com diversas organizações como Cáritas Brasileira, Comunidades Eclesiais de Base – CEB’s, Diocese de Imperatriz e mesmo a FUNAI10 que foram parceiros constantes em diversas ações realizadas em favor dos indígenas durante o período trabalhado naquela região.

Em agosto de 2005, pedi dispensa do CIMI e passei atuar como Assessor Político da Coordenação das Organizações e Articulações dos Povos indígenas no Maranhão – COAPIMA. Ali passei a viver mais próximo do movimento indígena propriamente dito. Isto é, no CIMI era um articulador, incentivador dos índios em busca de seus direitos. Na COAPIMA trabalhava como um assessor político, com opinião própria e com maior autonomia, não era a voz, nem as diretrizes de uma instituição, era a minha própria voz interagindo diretamente com os índios. Quando mais tarde fui convidado a fazer parte da equipe técnica da Supervisão de Educação Escolar Indígena – SUPEIND, setor da Secretaria de Estado da Educação do Maranhão, pude perceber outro lado da questão indígena e mesmo do indigenismo exercido no Maranhão, o lado de quem é responsável pela execução das políticas de estado direcionadas aos índios.

Neste lapso de tempo, estive sempre trabalhando junto aos povos indígenas, porém em diversas situações e a partir de diferentes pontos de vistas. Em 2005 ingressei no curso de Ciências Sociais da Universidade Federal do Maranhão, um novo universo onde minhas

9 A Igreja local atuava junto aos índios numa perspectiva evangelizadora que não se coadunava com os

objetivos do CIMI.

10 O termo mesmo pretende indicar o desafio que se constituía estabelecer uma parceria entre CIMI e FUNAI

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experiências passadas foram, pela primeira vez, organizadas de forma a fazer sentido lógico, constituindo significativamente o que podemos chamar de trajetória11.

Em março de 2010 iniciei o curso de mestrado em Ciências Sociais na UFMA. Antes mesmo de terminar os créditos das disciplinas fui aprovado no concurso da Fundação Nacional do Índio - FUNAI, o que acrescentou mais uma experiência aos diversos vieses do indigenismo maranhense que havia experimentado até então. No Mestrado novamente lançando mão do que aprendi com os índios e com as instituições indigenistas, no Maranhão, pude exercitar as técnicas apreendidas na academia. 12

Esta trajetória, portanto, me permitiu lançar olhares de diversos pontos rumo à questão indígena. Fui militante/missionário da Igreja Católica do Brasil, assessor político do movimento indígena, consultor técnico do Governo do Estado, gestor da FUNAI e pesquisador acadêmico da Universidade Federal do Maranhão. Todas essas passagens

11 Este período marca o início de pequenos trabalhos acadêmicos e de vinculações a grupos de estudo como o

Grupo de Estudos Antropológicos Saúde e Sociedade Contemporâneas-GEASC, no qual participei do projeto

Saúde e Doença: estudo antropológico sobre concepções e práticas de cura. Foi vinculado ao GEASC que iniciei minha primeira pesquisa junto aos Tentehar, lançando mão dos instrumentos apreendidos e aprendidos no curso de Ciências Sociais. Essa primeira experiência produziu frutos como o artigo Experiência de Alteridade: da assimetria sociocultural às concepções de saúde e doença, publicado por via eletrônica na Reunião Equatorial de Antropologia, em 2006, bem como o painel apresentado na Reunião Brasileira de Sociologia, em 2007, intitulado Onde nasce a pessoa Tentehar: a noção de pessoa, gravidez e nascimento.

Foram produzidos, também, trabalhos relacionados aos povos indígenas fora do contexto da pesquisa acima referida. Na 59ª Reunião da SPBC, em 2007, apresentei o trabalho O Maranhão vai virar Carvão: evolução do carvão vegetal no Maranhão segundo dados do IBGE, que consistiu em mapear as carvoarias nas proximidades de terras indígenas. Este trabalho contou com o apoio e financiamento da Associação Carlo Ubbiali. Em parceria com essa mesma instituição, já havia publicado um pequeno artigo em 2004, no livreto

Índios dos Maranhão, Maranhão dos Índios sob o povo indígena Pukobiê chamado Breves comentários a cultura Gavião (Pukobiê) e questões de gênero.

12Com auxílio das técnicas do curso de Mestrado em Ciências Sociais organizei, em parceria com

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estão presentes no escopo deste trabalho. São múltiplos olhares de um único observador que está imerso, de alguma maneira, no universo social que pretende entender.

É difícil contabilizar o tempo investido na pesquisa que fundamenta esse trabalho. Foram vários cadernos de campo rabiscados com observações e conversas realizadas num intervalo de tempo que somam cerca de onze anos. Nesse período estive envolvido em diversos movimentos dos Tentehar. Durante os cinco anos em que residi em Amarante, que dista apenas 20 km da Terra Indígena Araribóia, acompanhei o cotidiano dos índios nas aldeias e na cidade. Estive presente às discussões e mobilizações no âmbito da saúde e da educação, participei em conselhos específicos. Vi aldeias surgirem e desaparecerem do mapa das terras Tentehar. Observei conflitos internos para o controle de associações de saúde e de pais e mestres indígenas. Foram anos complexos que empreenderam muito envolvimento político em defesa das causas indígenas. Conflitos com madeireiros, caçadores e invasores de diversas sortes renderam-me momentos tensos e até perigosos ao lado dos índios.

De volta à São Luís e já envolvido com a academia, continuei a participar de diversos momentos dramáticos envolvendo índios no Maranhão, no âmbito do Conselho Distrital de Saúde Indígena e do Conselho de Educação Escolar Indígena, e mesmo como representante do CIMI na Comissão Intersetorial de Saúde do Índio – CISI13, na ausência do representante titular. Curiosamente, nos anos em que passei trabalhando na SEDUC-MA experimentei um lado diferente do protesto realizado pelos índios. O lado de quem está sendo cobrado pelas realizações não ocorridas, ou pelas promessas não realizadas da Secretaria. Fiquei detido pelo menos duas vezes em aldeias até que as solicitações fossem atendidas, como ocorreu entre os Ka’apor na terra Alto Turiaçú, e entre os Tentehar em

13 Comissão vinculada ao Conselho Nacional de Saúde com o papel de assessorar ou subsidiar o CNS na

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Amarante do Maranhão. Estas experiências demonstraram-me que os índios identificavam claramente minha posição no campo indigenista e tratavam-me conforme meu status representativo naquele momento. Isto é, quando CIMI fui tratado como CIMI, quando SEDUC-MA fui tratado como tal e assim por diante.

Tais experiências compõem a trajetória aqui descrita. Todavia, para esta dissertação, enfatizo as relações observadas durante o período transcorrido desde o ano de 2000 até 2010. Focalizo minhas análises na questão das políticas de educação e saúde por perceber que as relações da política indigenista nestes campos específicos, especificamente aquelas entre Estado e povos indígenas no Maranhão, compreendem um complexo jogo de poder, no qual estão em disputa discursos e representações acerca de tais políticas, que me permite compreender as dinâmicas de controle empreendidas pelo estado e as transgressões operadas pelos Tentehar com relação aos padrões atuais de poder.

No período supracitado pude observar situações e selecionar documentos que compõem a maior parte dos dados analisados neste trabalho. Relatórios técnicos, planilhas, entre outros documentos colecionados nestes anos, uniram-se aos depoimentos, conversas, entrevistas, observações de campo coletados nas terras indígenas Tentehar.

Este trabalho, portanto, está organizado em quatro tópicos específicos nos quais analiso as políticas de educação e saúde, separadamente. Posteriormente cotejo-as tendo como baliza o jeito de “ser e fazer” dos Tentehar frente às investidas dos órgãos de estado, e nas suas relações cotidianas com os processos de escolarização e saúde

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identidade a partir da sua relação com a alteridade. A terceira parte é dedicada à análise do protagonismo Tentehar frente as políticas públicas de saúde e a dinâmica da família extensa em meio as relações vivenciadas no modelo de assistência à saúde implantado pelo Governo. Antes de abordar esse protagonismo, faço uma breve análise das relações dos Tentehar com as diferentes experiências de saúde que vivenciaram ao longo do tempo. A partir do quarto capítulo traço uma perspectiva do caminho percorrido pela escola no interior das terras indígenas, iniciando por aquelas sob a égide das missões religiosas. Em seguida, apresento algumas experiências de escola em diferentes pontos do território14 tentehar e interpreto algumas representações surgidas a partir destas experiências. Exploro, ainda, a dinâmica de participação dos Tentehar nos processos de escolarização, aprofundando a questão do protagonismo e da criação de novos parâmetros simbólicos nesta participação.

Por fim, na quinta e última parte, apresento minha análise a respeito do jeito Tentehar de ser e de fazer as coisas frente às investidas dos órgãos de estado, e nas suas relações cotidianas com os processos de escolarização e de assistência à saúde.

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2. OS TENTEHAR

Os Tentehar são descritos como povo falante de uma língua classificada no tronco lingüístico Tupi (RODRIGUES, 1986). Ocupam extensa área cultural – que não corresponde necessariamente às terras demarcadas para seu usufruto – que se estende desde o vale do Pindaré até o Médio Mearim.

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As áreas pintadas de verde no mapa indicam a presença dos Tentehar na respectiva Terra Indígena. Observa-se que esse povo está presente em onze das dezessete apresentadas, sendo que em sete delas possuem usufruto exclusivo e em outras quatro dividem a terra demarcada com outros povos. Estas terras não correspondem à extensa ocupação que foi sendo construída gradativamente ao longo de séculos de expansões que foram motivadas por fatores diversos, entre os quais podemos destacar o contato com o homem branco no início do século XVII. Segundo Gomes (2002)

No início do século XVII, os índios Tenetehara viviam na altura do curso médio do rio Pindaré, no trecho onde desembocam os rios Caru, Zutiuia e o Buriticupu, numa área da floresta pluvial amazônica, estimados em cerca de 10 mil pessoas. Segundo Diniz (1988), ainda no século XVII os Tenetehara foram registrados ocupando mais de trinta aldeamentos localizados na extensão do leito dos rios Pindaré e Mearim, o que indica que: Os Tenetehara constituíam uma etnia distinta. Sua população era bem menos numerosa que a dos Tupinambá e se restringia a uma região mais ou menos delimitada. Suas aldeias eram autônomas, com liderança localizada, e continham talvez entre 200 e 300 habitantes, o que lhes dava um menor grau de coesão política. Essa característica social dava aos Tenetehara um poder de ação pequeno, mas lhes conferiam uma estrutura social mais flexível, oferecendo maior potencial para a formação de novos agrupamentos em caso de perda populacional e, assim, maiores chances de sobrevivência (GOMES, 2002).

A perspectiva de Gomes aponta para uma flexibilidade existente na sociedade Tentehar que possibilitava condições políticas mais autônomas em relação às grandes aldeias formadas pelos Tupinambá. Esta proximidade com os Karaiw está representada no depoimento de Cipriano Guajajara, coletado por Gomes (2002):

Maíra e seus filhos saem à procura de um lugar para morar. A essa altura, Maíra, por ter se casado com uma índia, deixa de ter poderes tanto quanto o seu filho Maíra-yr. Eles chegam a um lugar onde fazem o desjejum com café, bolo, tapioca e outras comidas à moda dos karaiw, e é Maíra-yr quem prepara, como se estivesse tomando conta da situação. Chegam a uma ilha e decidem ‘é aqui vamos morar’. Constroem uma casa grande, caiada de branco, e convidam os índios a virem morar com eles fazendo um grande povoado. Lá fabricam de um tudo: espingarda, roupa, sabão, facão, querosene, fósforo, enfim, bens manufaturados, ‘mercadorias’ de toda sorte, e fazem uso do dinheiro. Isto é, eles são os próprios civilizados. Maíra-yr vira São Pedro, Mykura-yr fica sendo Joãozinho, e o velho Maíra vira o Governo. [...]

O lugar que isso acontece é o Rio de Janeiro. Daí começam a chegar os màzàn

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perdem a disputa pelo Rio de Janeiro, abrindo mão de tudo para os portugueses invasores, inclusive trocando de língua. Isto é, deixam de ser civilizados e passam a ser índios, enquanto os portugueses, que eram como índios, passam a ser civilizados, donos agora da espingarda e das demais mercadorias. Os Tenetehara ficam com os arcos e sua cultura indígena e se retiram do Rio de Janeiro, da sede do Governo, sob uma condição, que é um acordo solene, uma concordata, segundo o qual o Governo [...] deve protegê-los para sempre, bem como lhes dar as coisas (que eles não sabem mais fazer) de que precisam. Então os Tentehara vêm para o Maranhão. Sua nova morada é também como se fosse uma ilha, com um rio grande ou um lago grande ao seu redor. Passados muitos anos, os karaiw começam a chegar de novo, pedem terra para morar e começam a incomodar. Um índio faz balsa de buriti e atravessa o rio, onde acha uma terra muito bonita, com muita caça, sem morador. Convida seus parentes para situar essa nova terra e aos poucos todos mudam. Os karaiw se achegam de novo, e os Tenetehara vão se afastando deles, sempre procurando um local tranqüilo para viver, sempre em retirada.

Ao longo dessa trajetória, que já tem localidades geográficas nomeadas, se batem com os Àwà, isto é, os índios Timbira, que viviam nos Rios Grajaú e Mearim Situam os lugares onde hoje estão as cidades de Pedreiras e Barra do Corda, no Rio Mearim, depois a Vila de Grajaú, no Rio Grajaú, onde não conseguem ficar por causa dos conflitos com os Àwà. Afinal, fazem as pazes com os Àwà, e aí já estamos em finais do século XIX. Desde então os Tenetehara vivem nos lugares em que estão, as matas frias e as matas secas, as quais amansaram das onças brabas, os zawaruhu, e dos capelobos, os àzàng. (grifos meus)

Esta narrativa constrói a trajetória vivida pelo povo Tentehar. Aquilo que foram e aquilo que gostariam de voltar a ser, como sugere Gomes (2002). Seu lugar de respeito fora tomado por outros personagens que não são os “verdadeiros seres da terra”. Até a chegada dos portugueses os Tentehar consideravam-se os “próprios” civilizados e eram senhores de todas as terras.

Os bens manufaturados dos quais dispunham os Tentehar eram por eles fabricados, sem precisar buscá-los fora de suas terras: a espingarda, o facão e até o dinheiro era usado naquele tempo presente na memória cultural Tentehar. A luta com os karaiw lhes retira todas as habilidades tecnológicas reduzindo-os ao status de “índios”. Além da manufatura e do dinheiro, perdem, inclusive, a língua e trocam de lugar com aqueles que, no passado, eram o que os Tentehar são hoje.

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narrador estabelece uma dicotomia entre o que chamou de índio x civilizado. Ao primeiro sugere aspectos de inferioridade em relação ao segundo que, pela persistência e pela luta, acaba por tomar o lugar do primeiro.

Esta representação acerca do contato interétnico entre os Tentehar e os não índios reforça a autodesignação Tentehar à medida que estes apresentam a especificidade de sua condição na terra. Eram donos de tudo, não eram índios e não são ainda hoje, são “gente verdadeira”. Por uma fatalidade perderam esse posto. Gomes (2002, p. 59) sugere que até a chegada dos portugueses só havia awa e zane, gente humana e nós todos, incluindo os demais povos indígenas, mesmo os inimigos, e nessas condições o que prevalecia era o sentimento de liberdade de estar no mundo.

Forçados a migrar a cada novo embate com os karaiw, os Tentehar carregam consigo a memória mítica do “acordo solene” (GOMES, 2002). Interessante perceber como o “governo”, que surge nesta narrativa como uma representação de Maíra, o pai de todas as coisas dos Tentehar, assume a função de cuidar de seus “filhos”. Assim, poderíamos supor que a relação de interdependência existente entre os atuais Tentehar e as várias instâncias governamentais inspira-se nesta memória mítica, ao mesmo tempo em que a constroem. Destarte, não raro ouvimos relatos de Tentehar que apelidam a FUNAI, o órgão oficial do Governo Federal para a questão Indígena, de “pai” e “mãe” dos índios.

A memória descritiva de Cipriano traz consigo representações que podem ser pensadas pela perspectiva de territorialização15 sugerida por João Pacheco de Oliveira (1998). As constantes migrações e disputas por espaços e terras, o acordo com o Governo e mesmo a perda das condições de civilizados implicou na conformação e demarcação de territórios administrativos, chamados de terras indígenas sobre a perspectiva estatal. Cada

15 É uma intervenção da esfera pública que associa, de forma prescritiva e insofismável, um conjunto de

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uma das terras indígenas pode ser percebida como uma “ilha”, envolta em processos de organização social que provocam a criação de novas unidades socio-culturais mediante a interação com agentes regionalizados e com características próprias. Neste sentido, os Tentehar adquiriram ao longo das últimas décadas particularidades em cada uma das terras indígenas que ocupam, assumindo estratégias de sobrevivência distintas, com alegorias próprias, que envolvem desde aspectos rituais até modificações lingüísticas16, tornando-se um todo heterogêneo. É possível observar aspectos que se diferenciam entre os Tentehar nas diversas Terras Indígenas que ocupam. Desta forma é comum ouvirmos expressões do tipo os Guajajara do Pindaré, ou os Guajajara do Amarante, da Barra do Corda, do Grajaú ou do Arame. Estas classificações, no entanto, são proferidas de fora para dentro, geralmente apontadas por profissionais de saúde, educação ou servidores públicos que trabalham juntos aos Tentehar.

Oliveira (1998, p.56), afirma:

[...] que as afinidades culturais ou lingüísticas, bem como os vínculos afetivos e históricos, porventura existentes entre os membros dessa unidade político-administrativa, serão retrabalhados pelos próprios sujeitos em um contexto histórico determinado e contrastados com características atribuídas aos membros de outras unidades, deflagrando um processo de reorganização socio-cultural de amplas proporções.

Mesmo admitindo as diferenças entre si, os Tentehar não se vêem como povos distintos e permanecem como uma “comunidade imaginada” no sentido pensado por Benedict Anderson (1991, p. 6):

É uma comunidade política imaginada, isto é, imaginada como inata e soberana. Ela é imaginada porque mesmo os membros da menor nação nunca conhece, ou

16 Estas especificidades de adquiridas por cada grupo regional de Tentehar pôde ser observada durante o

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encontra ou escuta a maioria de seus membros seguidores mas, na memória de cada um existe a representação da comunhão17 .(tradução minha)

Esta representação de comunhão se expressa fortemente através da mitologia Tentehar, sobretudo no reconhecimento de um ancestral comum a todos, como relatou Cipriano na versão do mito coletada por Gomes (2002).

A relação que os Tentehar estabelecem com os karaiw, de fuga e combate parece que, em tempos atuais, assume novo status representativo. Isto é, com as noções sobre território modificadas, um novo tempo de embate se configura no horizonte. Não há mais para onde fugir, pois os karaiw estão por toda parte. Índio e Civilizado, interdependentes na relação estabelecida no tempo e no espaço, assumem novas posturas diante um do outro. A fuga e o combate eram, no fundo, duas faces da mesma verdade: “a indispensabilidade dos outros, ou a impensabilidade de um mundo sem Outrem” (Deleuze, apud Viveiros de Castro, 1996). O Tentehar deseja voltar a ser civilizado sem, contudo deixar de ser o que é.

No mito dos gêmeos veremos que essa interdependência, que aproxima e ao mesmo tempo aciona alteridades, pode ser um importante instrumento para compreender essa condição ambígua dos Tentehar:

Abandonando a mulher que estava grávida, Maíra saiu a viajar pelo mundo e nunca mais voltou. Seu filho Maíra-yra, ainda no ventre da mãe, propôs que saíssem à procura do pai. A mãe disse que não sabia o caminho, porém Maíra-yra sossegou-a dizendo que ensinava, e partiram. Um dia quando andavam na mata, Maíra-yra ainda no ventre da mãe, pediu-lhe que apanhasse uma flor. Ao fazê-lo, bateu numa casa de maribondos. Querendo livrar-se deles, bateu com força na barriga e machucou o filho. Maíra-yra, zangado, disse que não ensinaria mais o caminho. Perdida, a mulher tomou por uma trilha que ia dar na casa de Mukwura. Este ouviu a sua história e a convidou para pousar em sua casa aquela noite, pois estava ameaçando chuva. A mulher armou a rede num canto da casa. Mukwura fez um buraco no teto exatamente no lugar onde ela dormia. Durante a noite choveu e a mulher ficou toda molhada da água que escorria do buraco no teto. Mukwura disse-lhe que mudasse a rede para junto da sua, onde não caia chuva. Depois que ela mudou de lugar, convenceu-a de vir dormir junto a ele, em vez de ficar na rede molhada. Ela assim fez e Mukwura deixou-a grávida de outro filho. Maíra-yra ficou zangado. Havia outro filho junto dele no ventre da mãe - o filho de Mukwura ou Mukwura-yra.

17 It is imagined because the members of even the smallest nation Will never know most of their each lives

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A mulher continuou a viagem, chegando à maloca das onças. Bateu à porta de uma casa, onde foi recebida por uma Onça Velha. Essa com medo que o filho descobrisse e matasse a mulher escondeu-a debaixo de um grande caldeirão. Quando o filho da Onça chegou, desconfiou da presença de um estranho e deu uma busca pela casa, descobrindo a mulher debaixo do caldeirão. Transformando-se em uma corsa ela saiu a correr, mas o filho da Onça e seus cachorros perseguiram-na até alcançá-la e mataram-na. Abriram-lhe o ventre, encontrando os gêmeos - Maíra-yra e Mukwurayra. O filho da onça quis comer os gêmeos, mas, ao levá-los ao fogo para assar, eles pularam para o lado e o Filho da Onça queimou as mãos nas brasas. Tentou assá-los no espeto, mas, eles de novo saltaram fora e o Filho da Onça machucou-se na ponta afiada do pau. Quis cozinhá-los, mas os gêmeos escapuliram, fazendo respingar água fervente em cima dele.

A velha Onça pediu ao Filho que a deixasse criar os gêmeos. Apanhando um traste velho, ajeitou-os para passarem a noite. Na manhã seguinte notou que eles tinham se transformado em filhote de arara; gostou muito e lhes deu de comer. No outro dia encontrou-os transformados em periquitos e assim, em dias seguidos, eles tomaram forma de diversos bichos. Afinal, retomaram a forma de gente e a Velha Onça adotou-os como netos. Com o passar do tempo os gêmeos se desenvolveram e ficaram homens fortes. Sempre que ia à roça, a velha recomendava que não se afastasse da casa. Um dia, Mukwura-yra estava catando piolho da cabeça da avó. Maíra-yra disse que sabia catar melhor. Pediu à velha que levantasse a cabeça mais alto, e, em vez de catar piolhos, arrancou-lhe a cabeça, jogando-a para o irmão. Por muito tempo ficaram brincando com a cabeça da avó, atirando-a de um lado para o outro. Depois Maíra-yra recolocou a cabeça no corpo da avó e soprou, fazendo-a voltar à vida. A velha ao abrir os olhos, comentou que tinha tirado um sono. Na manhã seguinte, quando a velha saiu à roça, os gêmeos, desobedecendo às suas ordens, foram para o mato. Aí encontraram um enorme jacu, que lhes falou da mãe e contou como ela tinha sido morta. Choraram muito. Ao voltar para casa a velha perguntou por que estavam com os olhos inchados; mentiram, dizendo que tinham sido picados por maribondos. A avó não acreditou, sabia que não havia maribondos pela redondeza. Maíra-yra juntou umas folhas e um pouco de barro, fazendo uma bola semelhante a uma casa de maribondos e jogou-a em cima da velha. Maíra-yra fez sair da bola uma porção de maribondos que picaram a velha.

Os gêmeos decidiram vingar a morte da Mãe, matando todas as onças da maloca. Construíram uma ponte em cima de um baixão seco. Maíra-yra bateu com o pé na terra e logo surgiu água que inundou todo o baixão; em seguida mandou o irmão buscar palha para fazer abanos. Jogaram os abanos n'água e imediatamente eles se transformaram em piranhas. Maíra-yra jogou um macaco dentro d'água, mas os peixes levaram tempo para devorá-lo. Ele achou pouco e fez mais abanos que se transformaram em mais piranhas, até haver tantas que outro macaco atirado n'água foi devorado num instante.

Apanharam muito peixe que moquearam e levaram para a maloca dizendo às onças onde tinham pescado. As onças juntaram-se para uma grande pescaria e levaram Maíra-yra como guia. Ao chegarem ao baixão, agora coberto pela água, Maíra-yra recomendou a Mukwura-yra que tomasse a dianteira na ponte. Logo que Mukwura-yra chegou à outra ponta, pulou fora e cada um dos irmãos agarrou numa extremidade da ponte, derrubando-a e atirando as onças dentro d'água. Todas foram imediatamente devoradas pelas piranhas. A cabeça da onça que matara a mãe dos gêmeos apareceu à tona, transformando-se num pequeno inseto, Maíra-yra voou até a onçaarrancou-lhe o espírito e prendeu num gomo de bambu. Depois de muito caminhar, os gêmeos encontraram Maíra e o presentearam com o espírito da onça fechado no gomo de bambu.18

18WAGLEY, Charles e GALVÃO, Eduardo Os Índios Tenetehara - Uma cultura em transição. Rio de

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Segundo Gomes (2002, p. 58), os Tentehar se identificam com os dois gêmeos Maíra-yr e Mykura-yr, tanto pelo que um tem de magia e esperteza, quanto pelo o que o outro tem de fanfarronice e incapacidade. Em suma, considera que os Tentehar guardam em sua cultura a impossibilidade de serem deuses e isto, decerto, é o que os faz rir de si mesmos.

Esse mundo no qual o “outro” é indispensável caracteriza-se por essa condição fronteiriça que gera a ambigüidade no jeito de ser Tentehar. A fronteira, no entanto, não é entendida como um fator excludente e que possui oposição rígida entre o de dentro e o de fora, ao contrário, é lugar de passagem, como pensa Hall (2008, p. 33).

O Tentehar conjuga-se por sua atração pela alteridade. Admitindo o ponto de vista de Hall (2008), considero que a diferença pensada no caso Tentehar não funciona através de binarismos, mas fronteiras que não separam. O autor descreve da seguinte forma:

[...] as configurações sincretizadas da identidade cultural caribenha requerem a noção derridiana de différance – uma diferença que não separa finalmente, mas são também places de passage, e significados que são posicionais e relacionais, sempre em deslize ao longo de um espectro sem começo nem fim. (HALL: 2002, p. 33)

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Na cabeça do índio tem duas pessoas, Maíra-yr e Mykura-yr. O índio não tem um plano certo. Ele não se define só. Dentro de sua cabeça tem duas pessoas Maira e Mykura-ir. Só aprende quando sofre muito. O eu do índio tá no pensamento de Morotó; Maira, Mykura-ir, Xiapé. A sombra é a alma, se toma um susto muito grande, se tem passamento. O espírito sai para se manifestar em outro ou pra curar ou pra receber cura. Tem uma música que pede para a alma voltar para seu dono. (Grifos meus)

O depoimento de Maria Santana expressa elementos do Ihé19Tentehar. “Na cabeça do índio há duas pessoas” que convivem indissociavelmente um com o outro. A separação de ambos só seria possível num mundo ideal, que não é mais este em que vivem os Tentehar. Maíra-yr e Mykura-yr estão ligados pelo nascimento, filhos da mesma mãe e, embora sejam filhos de pais (Maíra e Mykura) diferentes, foram os dois reconhecidos por aquele que tudo criou: Maíra. Antes de Maíra, aliás, não há registro de mais nada no mundo20.

O Plano do índio é oscilante, na fala de Maria Santana: “não tem plano certo”, pois os espíritos estão em toda parte e convivem com os Tentehar. Eles ajudam nas escolhas e nas ações do cotidiano. Este Ihé, irrequieto e inconstante lhes arremessa de forma avassaladora de encontro ao outro. Isto é, há uma força centrífuga que atrai o Tentehar para o mundo dos karaiw e dos outros povos indígenas e, ao mesmo tempo, há outra força, desta vez centrípeta, no dizer de Ubbiali (1997), que os impede de tornar-se o outro por definitivo. É neste embate que os Tentehar se afirmam como gente verdadeira. No dizer de Santana a índia que casa com o karaiw (assim como fez sua ancestral esposa de Maíra), sente-se atraída por este e ao fazê-lo mata um galho da árvore do índio. Põe “água no leite”

19 Carlo Ubbiali (1997) argumenta que o IHE, o “EU” Tentehar, é um elemento psicológico importante para o entendimento da cultura deste povo. Tem posição destacada na personalidade Tentehar e está presente na estrutura da língua deste povo de tal forma que nenhum objeto existe sem ser de alguém, do mesmo modo que nenhuma ação é realizada se não for por alguém. Assim a associação entre objeto, ação e indivíduo é praticamente indissociável.

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38 e o enfraquece. Enfim compromete a pureza do ser.

Segundo Zanonni (1999), a vida para os Tentehar é uma passagem, sendo seu destino ideal a morada de Maíra, o Karuwar, designado por Maria Santana como Karwape. É a este lugar que todos os Tentehar pertencem e a ele devem voltar, caso obedeçam a Maíra. Em outra oportunidade, Maria Santana afirmou que os Tentehar são todos Karwar tehar, que quer dizer “gente do Karwar”21. Zannoni (1999), também, registrou a existência de duas almas para o Tentehar, sendo uma delas, na visão deste autor, “má”, que vaga pela floresta após a morte. A outra, supostamente “boa”, vai para o Karwar. Para lá, segundo este autor, irão todos os Tentehar com exceção daqueles que praticaram incesto, feitiçaria ou morreram de morte violenta.

O Tentehar ideal – representado no mito por Maíra-yr – e o fanfarrão – representado por Mykur-yr – continuam sua jornada no interior de cada ser Tentehar cotidianamente. Dessa forma é que se configura a impossibilidade do indivíduo Tentehar de se definir sozinho. Não por ser incapaz de tomar decisões, mas pelo número de opções e possibilidades de ação as quais deve ponderar antes de agir, ofertadas pelas duas pessoas dentro de si.

A palavra funciona, para o Tentehar, como instrumento de convencimento do outro, mas principalmente de si mesmo. A palavra tem força e pode, por um lado, exaltar o indivíduo e, por outro, até matá-lo. A consulta a outras opiniões e até mesmo a comparação entre as tantas possibilidades são discutidas a exaustão antes de empreender uma decisão definitiva. As intermináveis reuniões na aldeia são exemplos desse comportamento.

É neste contexto conflituoso, no qual ocorre a fuga e atração pela alteridade, que se faz a construção do território Tentehar. Como ocorreu com outros povos indígenas, as

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contínuas disputas com o governo português, com segmentos da sociedade brasileira, e por fim com o novo Estado moderno interferiram intensamente na concepção que esse povo tem sobre seu território.

Conforme aponta Coelho (2002), os Tentehar vão construindo a representação do seu território a partir dos embates que vão estabelecendo com missões, colônias indígenas, diretorias parciais e frentes de expansão22 da sociedade brasileira.

Nós vem vindo empurrado de muitos anos, desde o começo do descobrimento do Brasil nóis vem vindo empurrado pelo branco... A confusão do Alto Alegre e do São Pedro dos Cacetes há muitos anos que nóis vem pelejando para conseguir essa gleba de terra. Desde o tempo do SPI nóis vinha pelejando prá adquirir essa gleba de terra. Mas o pessoal do SPI eles não tinha força. Então tinha Alto Alegre aí, que já tava desocupado né? Tinha pouco morador no Alto Alegre, no São Pedro dos Cacetes, né? Fizeram uma cidade, um povoado, mas que nóis pelejava pra tomar porque era nosso. Era nossa desde muito tempo, desde quando os índios chegaram pra essa região aqui tinha civilizado, nenhum morando em Alto Alegre. Alto Alegre era uma aldeia de índio, aldeia lá do Caboré porque ele era o chefe.

Desde muito longe que nóis vem vindo empurrado, desde Rio de Janeiro por aí tudo nóis vem vindo empurrado, nossos avós, bisavós e nóis vem vindo se acabando por aí né?

O depoimento do cacique da aldeia Cocalinho, em Barra do Corda, coletado por Coelho, remonta à memória cultural Tentehar. Novamente, o Rio de Janeiro é uma referência mítica como ponto de partida para o início de uma caminhada que parece não terminar.

Gomes (2002, p.315) afirma ser possível especular que o território Tentehar original abrangia uma larga faixa de terra ao longo de quase todo o rio Pindaré, desde a desembocadura do igarapé Buriticupu até a desembocadura do rio Zutiwa.

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Coelho (2002) pondera que para os Tentehar não há noção de domínio de um espaço contínuo e homogêneo. Os sucessivos acontecimentos históricos, sobretudo aqueles provenientes do contato, como os episódios de Alto Alegre e São Pedro dos Cacetes ajudam a constituir novas representações acerca do território que incorpora argumentos jurídico-políticos que se associam à imemorialidade deste povo.

O “lugar inicial” para onde Maíra convidou os índios para morar era uma ilha, onde fabricavam suas mercadorias e possuíam seu próprio dinheiro. Segundo, Gomes (2002) neste território os Tentehar exerciam sua liberdade. Por ironia, utiliza-se nos meios de comunicação o termo ilha23 para designar as demarcações que seccionam territórios. As atuais ilhas simbolizam o sentido contrário daquele identificado por Gomes. Impostas pelo estado brasileiro, as demarcações não asseguraram em sua plenitude os direitos a reprodução física e cultural dos povos indígenas. Esse cenário é agravado pelas invasões às terras indígenas demarcadas, que continuam sendo uma constante no Maranhão, incluindo aquelas habitadas pelos Tentehar.

Diante destas circunstâncias é possível afirmar que o território Tentehar não coincide com as demarcações efetivadas pelo estado brasileiro para esse povo, que se configuram como diversas “ilhas” espalhadas pelo estado: pedaços de terra cercados por karaiw por todos os lados.

A identidade Tentehar, como sugere Coelho (2002, p. 319), é territorial, portanto o espaço físico é fundamental ao seu processo de identificação. As terras indígenas demarcadas são fruto das disputas pela conformação das “fronteiras nacionais” (COELHO: 202, p. 312).

Para esta autora,

23 O debate sobre a demarcação Raposa Serra do Sol em Roraima incluiu inúmeras vezes o vocábulo <ilha>

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Com a constituição do Estado Brasileiro, os povos indígenas deixam de ser designados como nações e passam a ser definidos genericamente de índios. [...] A partir de então, as concepções de território indígena passaram a ser fundamentalmente uma questão jurídica. O território tornou-se parte constitutiva do Estado Brasileiro, que passou a definir, guardar e defender seu território. O que estava em jogo era o próprio espaço do Estado que se expandia, segundo sua lógica, por sobre os territórios indígenas. A questão indígena deixa de ser exclusivamente de mão-de-obra e passa a ser uma questão de terras (idem, p. 312-313)

A lógica operante do Estado Brasileiro destitui dos índios, inclusive, o direito a determinar seu território, e mais importante ainda, o direito a posse24. O que está em jogo:

[...] é o poder de impor a visão do um mundo social através dos princípios da di-visão que, quando se impõem ao conjunto do grupo, realizam o sentido e consenso sobre o sentido e, em particular sobre a identidade e a unidade do grupo, que fazem a unidade e a identidade do grupo (BOURDIEU: 2007, p. 113)

A construção de um território se vê entrelaçada pela sucessão de fatos históricos e pelas representações de todos os agentes envolvidos na trama. Dessa maneira, o território pensado pelos Tentehar nos dias atuais implica as intervenções do Estado sobre o mesmo, bem como a relação que mantém com os brasileiros. Para Coelho (2002, p. 321), a definição de um território é resultado de uma construção simbólica e alude ao estabelecimento de fronteiras que expressam as concepções que a sociedade faz da alteridade. Desta forma, a concepção dos Tentehar acerca do que pode ser chamado de território foi modificada ao longo do tempo pela relação com os colonizadores. A fuga, a atração pela alteridade, as andanças míticas, o acordo solene são elementos que ajudam a construir a noção do atual território deste povo.

24 As terras indígenas demarcadas no Brasil são de posse da União Federal, cabe aos indígenas somente o

Referências

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