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POR QUE ENSINAR A DITADURA CIVIL-MILITAR? A formação de um sujeito por meio da democracia.

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Academic year: 2020

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DEPARTAMENTO DE HISTÓRIA DO COLÉGIO PEDRO II – RIO DE JANEIRO

61 POR QUE ENSINAR A DITADURA CIVIL-MILITAR? A formação de um sujeito por meio da democracia.

Marcus Vinicius Monteiro Peres1

Resumo:

Esse artigo se propõe a reafirmar a importância do ensino da Ditadura Civil-Militar no Brasil, como resposta a uma série de demandas do nosso presente. Entendo esse objeto de estudo como um “tema sensível” (ARAÚJO, 2013), e considero crucial a abordagem de suas permanências e efeitos no presente como parte de um ensino de História voltado para a construção de uma sociedade mais democrática. Eu vejo essa discussão como parte do campo do currículo, e procuro me aproximar de uma abordagem pós-fundacional para entender tais questões.

Palavras chave: Ensino de História; Ditadura Civil Militar; sociedade democrática; currículo; abordagem pós fundacional;

Abstract

This article proposes to reaffirm the importance of teaching Civil-Military Dictatorship in Brazil, in response to a series of demands of present. I understand this subject as a "sensitive issue" (Araújo, 2013) as well as considering the approach of its continuities and effects as a part of a History teaching in order to building a democratic society. I see this discussion as a part of the curriculum field, and I seek help from a post-foundational approach to understand such matters.

Keywords: Teaching of History; Civil-Military Dictatorship; democratic society; post-fundational approach.

1 Professor da Rede estadual do Rio de Janeiro. Mestrando do PPGE da UFRJ.

Especialista em Ensino de História pelo CESPEB-UFRJ. Especialista em Docência do Ensino Básico na disciplina de História pelo Programa de Residência Docente do Colégio Pedro II. Bacharel e licenciado pela UFRJ, Mestrando do PPGE/UFRJ.

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62 Nesse artigo, pretendo empreender uma reflexão sobre, e reafirmar, a necessidade do ensino da Ditadura Civil-Militar na disciplina de História. Nesse percurso, abordo algumas questões cruciais para esse debate, como algumas continuidades (discursivas, práticas, culturais, institucionais, etc.) do período autoritário até o nosso presente, e as implicações para o Ensino da História. Porque ainda é importante ensinar sobre o Estado autoritário militar? Há a possibilidade de construção de uma escola e um método mais democrático no e através do ensino desse tema?

O artigo está dividido em quatro partes. Na primeira, abordo algumas questões levantadas pelo aniversário do golpe que levou à implantação do Estado autoritário em 1964. Na segunda seção, trago um pequeno histórico referente às permanências da Ditadura Civil-Militar no nosso presente, com uma reflexão sobre elas. Na terceira parte, reflito sobre as especificidades e a importância desse tema para o Ensino de História, além de problematizar algumas questões dentro da área da Educação. Por fim, concluo com a reafirmação da importância do ensino da Ditadura como aposta política, e faço alguns apontamentos para uma possível satisfação desse objetivo.

I – A Ditadura no presente.

No dia 01 de abril de 2014, completamos cinquenta anos da instalação do governo militar no Brasil. Essa data marca, também, a

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63 percepção de como o debate sobre esse regime, seus atos e desdobramentos marca ainda o nosso presente.

Uma série de debates foi levantada por especialistas no assunto, mas também pela sociedade civil, como forma de lembrar o regime autoritário e suas características positivas e negativas. Na mídia e nas redes sociais, pudemos observar desde reportagens dedicadas a mostrar a História do Regime Militar (para citar apenas dois, O Globo e a Folha de São Paulo, fizeram reportagens e sites especiais sobre os 50 anos do golpe2), a um sem número de discussões e propostas de revisionismo

sobre o tema. Golpe ou revolução? Foi no dia 31 de março ou no dia 01 de abril? Houve censura no Brasil? A Ditadura Civil-Militar trouxe mais benefícios ou malefícios à sociedade brasileira? Havia corrupção durante o período?

Se não há consenso aparente sobre muitos desses temas, é porque o regime autoritário que vigorou no Brasil entre 1964 e 1985 (até nas datas temos debates. Começou em 64 ou 68? Terminou em 79, 83, 85 ou 88?) ainda tem muito a ser estudado e investigado. Seja pelas lacunas de pesquisa em alguns assuntos, seja pela dificuldade (ou impossibilidade) em consultar alguns documentos ou personagens do período, especialmente os referentes às ações do Estado. Tais questões tendem

2 Folha de São Paulo: 50 anos do golpe de 1964. Disponível em:

http://arte.folha.uol.com.br/treinamento/2014/01/05/50-anos-golpe-64. Acesso em 03/05/2014

O Globo: 50 anos do golpe. Disponível em:

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64 aparentemente a ser superadas, em especial a partir de duas medidas tomadas pelo governo federal no ano de 2012: a criação da Comissão Nacional da Verdade e a sanção da lei de Acesso à informação.

A Comissão Nacional da Verdade foi criada pela Lei 12528/2011 e instituída em 16 de maio de 2012. Esse órgão ficou responsável pela investigação de crimes contra os direitos humanos no Brasil entre 18 de setembro de 1946 e 5 de outubro de 1988 (mas o foco acaba sendo o período da Ditadura Civil-Militar). Deveria funcionar até o final de 2013, concluindo sua atividade com um relatório contendo as atividades que desempenhou, os fatos que investigou, e sugerindo medidas a serem tomadas pelo Estado brasileiro. Em 24 de dezembro de 2013, por medida provisória, teve o prazo para encerramento de seus trabalhos, e para divulgação do relatório, prorrogado até 16 de dezembro de 20143.

A instalação da Comissão também não ficou livre de polêmicas. Houve críticas quanto aos membros escolhidos, pois seis possuem formação jurídica e uma atua na área da psicanálise, sujeitando questionamentos sobre a ausência de um Historiador, por exemplo4. A

Comissão também suscitou a reação dos militares, expressa em notas assinadas pelos presidentes do Clube Naval, Clube Militar e Clube da Aeronáutica, cujo conteúdo exalta a participação dos militares no período, enumerando o que consideram como pontos positivos e avanços

3 Informações disponíveis no site da Comissão Nacional da Verdade:

http://www.cnv.gov.br/ Acesso 05/04/2014.

4 Mais informações em http://oglobo.globo.com/infograficos/comissao-verdade/,

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65 do período, e questiona a investigação apenas de crimes cometidos pelos agentes do Estado brasileiro5.

Junto com a Comissão da Verdade, entrou em vigência outra lei relativa a temas ainda não investigados sobre a Ditadura Civil-Militar: a Lei de Acesso à Informação (lei nº 12.527/2011). Essa lei regulamenta o direito constitucional de acesso dos brasileiros às informações públicas e é aplicável a todas as instâncias do poder público brasileiro. Segundo site da Controladoria Geral da União, responsável pela aplicação e fiscalização da lei, ela “institui como princípio fundamental que o acesso à informação pública é a regra, e o sigilo somente a exceção”6.

A sanção dessa lei teve como objetivo dar mais um passo em busca de transparência no regime democrático brasileiro (o principal exemplo disso foi o surgimento de uma série de “portais da transparência” de diversos órgãos do governo). Porém, acaba também respingando efeitos sobre a possibilidade de acesso a arquivos militares ainda não permitidos para estudiosos do tema.

A interpretação dos militares acerca dessas medidas é que elas causariam uma perseguição aos militares agentes do governo daquele período, em detrimento de uma ação investigativa mais justa, que levaria em conta também os crimes cometidos pelos movimentos de resistência ao regime militar (classificados desde “subversivos” a “terroristas”).

5 Documento disponível em:

http://www.defesanet.com.br/dita/noticia/10237/31-de-Marco----Nota-dos-Clubes-Militares Acesso em 04/04/2014.

6 Trecho e informações retirados de

http://www.acessoainformacao.gov.br/acessoainformacaogov/ Acesso em 30/04/2014.

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66 Esses fatos já nos mostram que a Ditadura Civil-Militar ainda é, no Brasil, um tema polêmico e que suscita debates acalorados e controversos. Acredito que tanta polêmica se deve à relevância das questões sobre as a transição ao fim do regime autoritário e suas permanências, e o debate sobre ele faz parte da construção da democracia pós-85 no Brasil. E o principal, de qual democracia queremos construir. E de qual cidadão democrático. Para avançar nessas discussões, acredito que seja profícuo que reconheçamos as permanências do regime autoritário em nosso presente, e que saibamos desconstruí-lo e compreendê-lo antes de nos posicionarmos sobre ele.

II – A Ditadura presente.

O golpe que levou os militares ao poder não só instaurou um regime autoritário, como interrompeu o processo de construção de um regime realmente democrático do Brasil, iniciado então há menos de 20 anos. Mesmo com algumas questões a serem pensadas (dois presidentes militares, exclusão dos analfabetos do sistema eleitoral, etc.), o período entre 1945 e 1964 representou um grande avanço frente à ditadura varguista e ao período da Primeira República. Segundo Emir Sader:

O golpe militar rompeu com essa continuidade, impôs a mais brutal ditadura que o País conheceu, destruindo ou golpeando profundamente a tudo o que tivesse elementos de democracia – Parlamento, Judiciário, partidos políticos, sindicatos, imprensa, entidades sociais e culturais, assim como as pessoas que ele arbitrariamente decidisse que estivessem vinculadas a essas atividades consideradas “subversivas” pelo regime militar. (SADER, 2014, p.36)

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67 Diversas instituições do Estado e da sociedade brasileira foram atingidas pelo regime autoritário, em nome da “moralidade”, da “luta contra o comunismo” ou do “desenvolvimento econômico”, dentre outras bandeiras levantadas pela Ditadura e por seus apoiadores. O modelo econômico adotado, baseado na entrada do capital estrangeiro e em um suposto “milagre”, servia de pano de fundo para a camuflagem de uma série de medidas que deterioraram a vida da população em geral: arrocho salarial, jornadas de trabalho mais longas, controle do ambiente sindical. Além disso, a repressão implementada contra a oposição ao regime se desdobrou em um aparelhamento do Estado e em uma série de medidas antidemocráticas, cujos efeitos até hoje ecoam: os Atos Institucionais, censura, tortura, perseguição política, exílios, dentre outras medidas.

A escola pública brasileira também foi aparelhada (com a criação das disciplinas de “Educação Moral e Cívica” e “Organização Social e Política Brasileira”), e precarizada para favorecer o ensino privado. O mesmo processo atingiu outros serviços públicos essenciais, como, por exemplo, a saúde e o transporte público.

O Brasil viveu um período de lenta transição para o regime democrático, na qual, ao que parece, a Ditadura ficou para trás. Mas ficou mesmo? Considero que não, e que uma série de medidas tomadas pelos governos militares ecoam ainda hoje na vida dos brasileiros. Basta pensarmos tanto nas discussões trazidas na primeira sessão desse

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68 artigo, quanto nas permanências das medidas apontadas nessa segunda seção.

Uma das grandes polêmicas gira em torno da Lei de Anistia, aprovada em agosto de 1979, e uma das primeiras medidas tomadas pelo governo militar no processo de abertura. Daniel Aarão Reis define a aprovação dessa lei como um “pacto de sociedade” (REIS, 2010), costurado naquele momento sobre “três silêncios”: o silêncio sobre a tortura e os torturadores, o silêncio sobre o apoio da sociedade à Ditadura, e o silêncio sobre os projetos revolucionários de esquerda. Para ele, por mais que pareça definitivo, esse “pacto”:

não configura uma interdição a futuras revisões, nem pode ser pensado como um tabu. Como uma Constituição, como qualquer tratado, tais pactos duram enquanto durarem as vontades e os interesses que lhe deram vida. Quando estes se alteram, pode-se alterar-se o pacto que é sua resultante. Ademais, como se sabe, a lei da Anistia não é uma virgem há muito tempo. Foi revista e ampliada em 1985, 1988 e 2002 (REIS, 2010, p.176).

Acredito que o entendimento dos “três” silêncios e do pacto pela Anistia e pela abertura política sejam necessários para compreender as permanências da Ditadura e a sua influência na construção de uma memória sobre esse período. Contribuições de Pierre Nora (1993) e Jacques Le Goff (1996), dentre outros, sobre a memória e suas relações com a História, levaram-nos a perceber que ela, assim como a ciência histórica, não é neutra, e que o esquecimento é tão parte da memória quanto a lembrança. Como diz Daniel Aarão, ela é “inexoravelmente seletiva e tendencialmente unilateral” (REIS, 2010, p.171).

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69 Tais fatos levam a uma série de dificuldades em se discutir, de maneira neutra, a história da Ditadura Civil-Militar. Muitos temas considerados “passado” ressurgem, e marcam sua presença no presente. Concordo, portanto, com Maria Paula do Nascimento Araújo (2013), quando classifica o ensino desse regime autoritário nas escolas brasileiras como um “tema sensível”. Para ela, os obstáculos em lidar e pensar esses temas se dão:

não apenas porque é difícil falar sobre eles, mas, principalmente, porque não há ainda, na maioria dos casos, um consenso da sociedade sobre o que dizer e como falar sobre esse passado. Em muitos casos, os processos de memória, trauma e reparação ainda estão em curso e diferentes versões ainda estão em disputa — tanto na memória como na história (ARAÚJO, 2013, p.9).

A fala da historiadora mostra, mais uma vez, que muitas questões relativas ao período do Estado autoritário ainda não foram superadas. O recente assassinato do coronel reformado do exército Paulo Malhães, pouco tempo após dar depoimento à Comissão da Verdade e a alguns veículos de comunicação em massa7, serve como exemplo. Sua morte

causou comoção e levantou uma polêmica sobre uma possível ligação entre o crime e suas revelações feitas em suas últimas entrevistas e declarações.

Adiciono a essas considerações outra possibilidade: é difícil falar em democracia no Brasil, pois sua construção ainda está em curso. Seja no processo eleitoral (desde o voto em si até o financiamento das

7 Para mais ver

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70 campanhas, passando pela “Lei da Ficha Limpa”), seja na conquista de direitos por diversos grupos ainda alijados da democracia, vivemos em uma Democracia que é só um pouco mais “velha” que o regime ditatorial que a antecedeu.

A situação é tal que, diante do atual quadro de demandas da sociedade brasileira por igualdade e democracia, há aqueles que pensam no retorno da Ditadura Civil-Militar como a solução para os problemas do país, baseados em uma visão pouco aprofundada e tendenciosa de que “na Ditadura era melhor” (ou, como já dito, em uma memória seletiva). Tal pensamento se materializa em diversos momentos de contradição nacional, seja quando nos deparamos com os índices de corrupção dos nossos governos democráticos, seja quando analisamos os números da violência urbana em nossas grandes cidades8.

Que exemplo maior senão a reedição da “Marcha da Família com Deus 2014”? Baseados na classificação do governo petista como comunista (mesmo com a evidente aliança entre esse e o grande capital), na existência de uma “perseguição aos militares” (personificados na figura do deputado federal Jair Bolsonaro), e na moralidade incontestável dos “cidadãos de bem”, tais indivíduos defendem o retorno de um governo militar como forma de solução dos problemas brasileiros.

Também se proliferam discursos, e, infelizmente, práticas, que coadunam com a postura do regime militar de julgar e executar seus

8https://www.facebook.com/pages/Marcha-da-Fam%C3%ADlia-com-Deus

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71 “outros” de maneira antidemocrática e injusta. O que dizer dos assassinatos de Amarildo9, Cláudia10 e DG11, e do linchamento seguido

de morte da dona de casa Fabiane Maria de Jesus, que agitaram os noticiários no último ano? O que pensar sobre a real implantação de uma democracia e dos direitos humanos no Brasil? O que dizer sobre a inclusão das minorias?

Portanto, afirmo ser imprescindível o ensino da Ditadura Civil-Militar como forma de pensar a construção real da democracia no Brasil. Refletir sobre o contexto de sua implantação, suas ações, as diversas esferas da vida política, econômica, social e pública do brasileiro, é fundamental para que nossa atual geração de jovens estudantes, que não viveram aquela época, não repita alguns erros praticados por aquele regime.

III – A Ditadura para o presente.

Considero, também, que, para o ensino de História, tais debates se inserem no campo do currículo. É necessário, a princípio, apresentar que definição desse conceito utilizo. Entendo que o currículo é um espaço-tempo híbrido de fronteira cultural (MACEDO, 2006, GABRIEL, 2008),

9 No dia 14 de julho de 2013, o assistente de pedreiro Amarildo de Souza foi torturado

até a morte por policiais da UPP da Rocinha.

10 Claudia Silva Ferreira foi baleada no dia 16/03/2014, em uma operação da Polícia

Militar no Morro da Congonha, em Madureira, subúrbio do Rio, e veio a óbito após ser transportada para o hospital no porta-malas de um camburão, e ser arrastada por mais de 300 metros pelo asfalto.

11 O corpo de Douglas Rafael da Silva Pereira, o DG, de 26 anos, foi achado em uma

creche na comunidade Pavão-Pavãozinho, após confronto entre policiais e bandidos da comunidade. A principal suspeita é que tenha sido torturado e assassinado por policiais.

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72 em que diferentes saberes constantemente negociam entre si, para legitimarem socialmente seus códigos de significados. Nessa perspectiva, o currículo é enxergado como uma arena cultural12 onde alunos, famílias,

instituições - públicas e particulares -, professores, gestores, disputam discursivamente.

Também penso ser pertinente uma breve reflexão sobre a validade do ensino da Ditadura Civil-Militar dentro dos debates sobre “conhecimento” dentro do campo curricular. Atualmente, há um grande debate sobre o que é o “conhecimento, e, mais ainda, sobre que “conhecimento” é esse que se deve ensinar na escola. Diversos autores (GABRIEL e FERREIRA, 2012; GABRIEL E CASTRO, 2013; MACEDO, 2012; MONTEIRO, 2013) se puseram a pensar quais as especificidades desse conceito, e qual o desdobramento de determinadas visões e posicionamentos sobre ele para o campo do currículo, além de para a escola e o ensino, considerados dentro de um quadro de “crise” e “sob suspeita” (GABRIEL, 2008; MACEDO, 2012).

Considero, aqui, seguindo os preceitos teóricos de tais autoras, baseados em uma perspectiva pós-fundacional13, que os sentidos de

12 Entendo a cultura como uma “rede de significados”, um “conjunto de sistemas de

significação” que, para Stuart Hall (1997), tem papel constitutivo em todos os aspectos da vida social e é central nas questões sobre conhecimento e conceptualização. (GABRIEL, 2008).

13 Essa perspectiva teórica busca repensar as formas de leitura essencializadas do

mundo, desconstruindo a ideia de fundamento, e adota uma postura política e epistemológica de investigação na linguagem e pela linguagem. Dessa maneira, o conceito de “discurso” toma centralidade no debate sobre a produção de sentidos, entendidos como parte de um jogo de poder e hegemonia. Embora os debates desse quadro teórico e os desdobramentos de sua postura para a pesquisa sejam bem mais complexos que essa rápida definição, não é nosso foco abordá-los aqui.

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73 “conhecimento” são disputados em um jogo discursivo, no qual diferentes grupos tentam significar seus diferentes sentidos em busca de hegemonização. Segundo Ana Maria Monteiro, “conhecimento é produção cultural disputada na fixação de sentidos do mundo, afirmando hegemonias, questão política, questão de poder” (MONTEIRO, 2013, p.13). Portanto, tais embates se dão mediante disputas e projetos políticos, e são historicamente construídas e contingenciais, dentro das relações de poder.

Dessa maneira, entendo que, para além de tudo o que já foi dito, ensinar sobre a Ditadura Civil-Militar também é uma postura política, pois defendo que, através do ensino e da reflexão sobre esse tema, nossos alunos possam raciocinar sobre o período do Estado autoritário e se posicionar a respeito de suas práticas.

Entendo, também, que o Ensino de História deve ser objetivo, trazendo os debates teóricos para o campo prático, e levando tais discussões para a sala de aula. Como nos diz Durval Muniz de Albuquerque Júnior:

A História tem a importante função de desnaturalizar o tempo presente, de fazê-lo diferir em relação ao passado e ao futuro, no mesmo momento em que torna perceptível como essas temporalidades se encontram, como elas só existem emaranhadas, articuladas em cada instante que passa, em cada evento que ocorre. A história serve para que se perceba o ser do presente, como devir, como parte de um processo marcado por rupturas e descontinuidades, mas também por continuidades e permanências (ALBUQUERQUE JÚNIOR, 2012, pp. 30-31).

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74 Portanto, penso que, após os fatos, considerações e teorias levados em conta nesse artigo, o ensino de Ditadura Civil-Militar seria também uma resposta a uma série de demandas do nosso presente. Demandas por igualdade, respeito aos direitos humanos e democracia.

No que diz respeito à incorporação no currículo de História dessas demandas, por exemplo, podemos perceber que houve avanços, principalmente através da luta dos movimentos sociais. Temas relativos a grupos ainda subalternizados da sociedade brasileira, notadamente a História e Cultura Afro-Brasileira e Indígena, foram tornados de estudo obrigatório nas nossas escolas (leis 10.639/03 e 11.645/08). Casos como esses mostram como as demandas podem interferir na construção do currículo, e modificar posições e significações nos embates sobre o que deve ser ensinado, e de que maneira.

O período da Ditadura Civil-Militar já é contemplado no currículo dos ensinos fundamental e médio por todo Brasil, e sua abordagem faz eco a essas disputas. Ao olhar o Currículo Mínimo, documento curricular oficial do Estado do Rio de Janeiro, por exemplo, percebemos que há um grande hiato sobre tais discussões, à medida que tal objeto de estudo aparece desfigurado, inserido sob o tema “A bipolarização do mundo; Brasil no contexto da Guerra Fria”, e vinculado a apenas duas habilidades e competências, a saber: “- Compreender a formação de alianças e conflitos no contexto de disputa por hegemonia” e “Analisar o cenário político e socioeconômico brasileiro no contexto da Guerra Fria” (RIO DE JANEIRO, 2012).

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75 Vemos, portanto, que as questões levantadas nesse trabalho são deixadas de lado, e diluídas no eixo “Brasil no contexto da Guerra Fria”. Isso pode levar, por exemplo, a uma abordagem da Ditadura Civil-Militar em sala de aula voltada majoritariamente para sua compreensão dentro do quadro político e ideológico mundial à época, localizando o estudo do regime autoritário ainda no passado e desconectado das atuais demandas do nosso presente.

IV – O Ensino da Ditadura para o futuro.

Inicio essa sessão final retomando Albuquerque Júnior: “A História, quando se torna matéria escolar, explicita esse papel de formadora de sujeitos, de construtora de formas de ver, sentir, de pensar, de valorar, de se posicionar no mundo” (ALBUQUERQUE JÚNIOR, 2012, p.31). Dessa maneira, e por tudo que já foi exposto nessa breve reflexão e contribuição para o tema, pretendo reafirmar a necessidade de ensino da Ditadura Civil-Militar nas escolas brasileiras.

Segundo Reinhart Koselleck, o tempo histórico é fluido, constituído pelo passado, mas também pelo presente e pelo futuro (KOSELLECK, 2006). Todo o ensino da História se faz nesses três tempos, pois a própria disciplina os associa continuamente. O autor articula as categorias “espaço de experiência” e “horizonte de expectativas”, argumentando que o tempo histórico não pode ser visto como único e abstrato. Ele estaria ligado às ações dos sujeitos de cada período, sejam essas políticas, sociais, etc., e que compreender a conjuntura temporal da vida humana

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76 é de suma importância para o entendimento da História. É necessário convidar nossos alunos a entrar nesses três tempos, e compreender sua participação como agente da História, ou seja, articular passado e presente, em vista de um futuro diferente.

O ensino da Ditadura Civil-Militar é de suma importância por representar muito mais do que um tema escolar, mas por ser essencial para uma educação voltada para o respeito aos direitos humanos, à diferença e à construção da democracia. É necessária por nos possibilitar refletir e dar respostas, ainda que parciais, a uma série de demandas do nosso presente. Demandas essas que são a razão e o sentido do próprio ensino da História.

Acredito, portanto, que a reflexão e o debate nas escolas sobre Estado autoritário militar são fundamentais para o ensino e para a formação de um cidadão para a democracia. E, além disso, como nos diz Gert Biesta, se quisermos construir uma sociedade realmente democrática, não devemos ensinar para a democracia, mas ensinar por

meio da democracia (BIESTA, 2013).

Para esse autor, “a melhor maneira de preparar para a democracia é por meio da participação na própria vida democrática”. Defendo, portanto, que o desenvolvimento de atividades nas quais o aluno tenha participação na escolha do tema, na metodologia desenvolvida, e possa produzir conhecimento a partir de seus referenciais e estudo é crucial para um ensino satisfatório da Ditadura Civil-Militar pela democracia. Já temos algumas iniciativas sendo desenvolvidas com esse intuito, por

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77 exemplo, no âmbito do Programa de Residência Docente, do Colégio Pedro II14 e do Laboratório Estado, Sociedade, Tecnologia e Espaço, da UFRJ,

por meio de financiamento do Observatório da Educação (OBEDUC), da Capes15.

Esses são temas complexos, e não é objetivo desse artigo se aprofundar se é possível ou não efetivamente educar por meio da democracia nas escolas como atualmente se organizam (discussão também trazida pelo autor), especialmente no Brasil. Adoto essa abordagem por considerar potente para um efetivo ensino da História, e da Ditadura Civil-Militar, voltado para a construção consciente de uma democracia mais justa e igualitária no nosso país. Também para apontar para uma possibilidade de, além de ensinar, e aprender, que alunos e professores vivam, de fato, a democracia dentro da escola.

Finalizo com a fala do presidente da Comissão de Anistia do Ministério da Justiça, Paulo Abraão, com forma de reafirmar, mais uma vez a importância, e o caráter político, do ensino da Ditadura Civil-Militar, dentro da disciplina Histórica, nas escolas brasileiras:

Conhecer a verdade e ter acesso à história é, portanto, um direito de todos. Mas ofertar especialmente aos jovens o conhecimento histórico de acontecimentos que marcam nosso passado repressivo (e que ainda condicionam nosso presente) é certamente um ato político. Pois se trata de

14 Ver PERES, Marcus Vinicius Monteiro. “Prática docente, Pesquisa e Novas

Tecnologias da Informação e Comunicação: Implantação, consolidação e crise do Estado autoritário (1964-1984/85)”. Produto Acadêmico Final apresentado ao Programa de Residência Docente do Colégio Pedro II. Rio de Janeiro, 2013.

15A oficina “Cibermusealizando: trabalhando a ditadura civil-militar brasileira por meio

do Museu da Pessoa” foi desenvolvida em maio de 2014 pela pesquisadora Marcella Albaine Farias da Costa, junto à equipe do Laboratório Estado, Sociedade, Tecnologia e Espaço, da UFRJ, por meio de financiamento do Observatório da Educação, da Capes, com o objetivo de ser aplicada e utilizada em escolas da rede pública de ensino.

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78 lembrar não apenas para que haja justiça com as vítimas, mas também para que toda a sociedade se envolva na consolidação da nossa cultura democrática. Damos assim, passos efetivos para fortalecer um modelo de sociedade cada vez mais ativa e exigente com o respeito aos direitos humanos. Para que não se esqueça. Para que nunca mais aconteça. (ABRAÃO, 2013, p.7)

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Recebido em 10/05/2014 Aprovado em 10/06/2014

Referências

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