N A R R A N D O - R E S I S T I N D O : J O S E P H G R A N D , P E R S O N A G E M D E A PESTE, R O M A N C E D E A L B E R T C A M U S
D a v i d P E R E I R A *
Gostaria de aproveitar esse artigo para apresentar algumas idéias que e s t ã o tomando corpo durante o desenvolvimento de uma pesquisa mais abrangente, voltada para uma leitura s i s t e m á t i c a de A Peste, um dos livros mais importantes para o g ê n e r o romance na é p o c a moderna.
Quem quer que tenha lido A Peste (Carnus, 1950) romance que Albert Carnus publicou em 1947, seguramente deve ter ainda bem viva na m e m ó r i a a imagem do Doutor Rieux - o m é d i c o e narrador do l i v r o -, do infatigável Tarrou - o s e n s í v e l e fiel amigo -, Cottard ou o jornalista Rambert: personagens que p o d e r í a m o s classificar como as principais ou as mais importantes, de maior destaque e centrais para o desenvolvimento da a ç ã o .
P o r é m , esta c o m u n i c a ç ã o quer, na verdade, ocupar-se com uma figura menos dilatada, a l g u é m que parece seguir aquela m á x i m a de Epicuro que dita: " v i v e ignorado" e, no seu â m a g o , m a n t é m uma rica e x i s t ê n c i a interior. Essa personagem, que nos serve como alentador companheiro naquelas p á g i n a s t ã o sombrias e solitárias de Carnus, t a m b é m tem todas as c a r a c t e r í s t i c a s de um " h e r ó i " - observando que aqui utilizamos aspas quando do emprego de tal termo, adequando-o assim, um pouco melhor, à c o m p r e e n s ã o que o p r ó p r i o Carnus tinha a respeito do " h e r o í s m o " .
Estou falando de Joseph Grand, o pacato e aparentemente m e d í o c r e f u n c i o n á r i o da burocracia de Oran. Aquele ser inexpressivo, " s o l i t á r i o " (Carnus,
1950, p. 123 e 339), "pobre" (Carnus, 1950, p.21), morador de um "quarto
* Aluno do Programa de Pós-Graduaçâo.
modesto"(Camus, 1950, p. 33) e que trabalha com estatística, uma das coisas mais inúteis, p r a g m á t i c a s e insípidas que poderia existir diante da s i t u a ç ã o extrema, caso-limite que a obra retrata.
Mas, foi justamente esse Grand quem mereceu receber o grande elogio do l i v r o , Carnus chega mesmo a c o n s i d e r á - l o o " h e r ó i " da h i s t ó r i a - " h e r ó i " , sempre entre aspas para n ã o cairmos num o t i m i s m o pueril que, certamente, muito desagradaria o autor e seu sistema de c o m p r e e n s ã o do mundo e das pessoas. Lemos em determinada passagem o seguinte c o m e n t á r i o que faz referência a Grand:
Se é verdade que os homens seguem modelos e exemplos chamados heróis, se é absolutamente necessário haver um deles nesta história, o narrador indica o herói insignificante, humilde, que apenas tinha um pouco de bondade no coração e um ideal aparentemente ridículo. (Carnus, 1950, p. 126).
Parece-nos correto, todavia, c o m p r e e n d ê - l o como sendo um daqueles " h e r ó i s p r o b l e m á t i c o s " . E L u k á c s quem afirma que a personagem romanesca deve ser entendida como um ser p r o b l e m á t i c o . C o m efeito, diferentemente do herói é p i c o , cujas proezas ilustram valores que o mundo reconhece, o i n d i v í d u o romanesco v ê o i m p o s s í v e l erguer-se diante de si, enquanto o p o s s í v e l existe sempre dentro de si ( A p u d . L u k á c s , 1963).
Se prestarmos um pouco mais de a t e n ç ã o à c o l o c a ç ã o feita anteriormente por Carnus, p o d e r í a m o s , por exemplo, ler o l i v r o todo, destacando com tinta vermelha as diversas e sempre decisivas a p a r i ç õ e s de Grand. A o final do e x e r c í c i o , um tanto trabalhoso e realmente m a ç a n t e , t e r í a m o s listado 31 passagens e a t r a v é s delas p o d e r í a m o s rastear essa personagem que v a i , no decorrer do enredo, se fortalecendo mais e mais, de forma diretamente proporcional ao recrudescimento terrível da d o e n ç a , e acaba mesmo por simbolizar a p r ó p r i a idéia da R e s i s t ê n c i a - t ã o cara a Carnus tendo, ele p r ó p r i o , se engajado e militado (das formas mais literais que possamos imaginar) por ela nos anos de chumbo da Segunda Guerra. Essa mesma R e s i s t ê n c i a que é t e m á t i c a das mais fortes em A Peste - l i v r o que, afinal e numa s í n t e s e empobrecedora, enfrenta os grandes problemas de uma sociedade: tangenciando tanto no ladrão, no vigarista, no santo, no mártir, no desesperado, no c é t i c o , no desencantado e, evidentemente, como n ã o poderia deixar de ser,
acaba tocando t a m b é m nessa interessante postura que é a do resistente. P o s i ç ã o ú l t i m a que Grand ocupa no romance.
Sim, se nos empenharmos numa releitura atenta daqueles trechos que anteriormente h a v í a m o s grifado em vermelho, vamos poder conferir que Grand encarna o p r ó p r i o e s p í r i t o da R e s i s t ê n c i a , da força de vontade i n a b a l á v e l e d i s p o s i ç ã o firme para a luta. A s marcas humanas desse ser ficcional exercem sobre n ó s leitores, inegavelmente, um imenso fascínio. A d m i r a m o s o desvendamento do â m a g o do seu ser, desnudamento de sua força interior - t ã o s ó l i d a e s e n s í v e l que n ã o podemos deixar de exclamar: " A h , se todos tivessem essas importantes qualidades, amor à vida, desprendimento, humanidade e virtuosismo" (Carnus, 1950, p. 46, 76, 123 e 127).
Portanto, Grand v a i se estabelecendo, cada vez mais e mais enraizadamente, como um grande lutador, defensor das e s p e r a n ç a s , sempre em franca o p o s i ç ã o diante da morte e, além do mais, t a m b é m acredita e exercita o poder da linguagem - isso mesmo, ele tem um respeito que beira o amoroso pela palavra escrita, pela narrativa, tanto que, num combate em outro t e r r i t ó r i o e com outros instrumentos que n ã o os empregados cotidianamente, ele tenta desesperadamente escrever um l i v r o : eis o seu "ideal aparentemente r i d í c u l o " , do qual nos falava Carnus em c i t a ç ã o j á apontada.
Temos e n t ã o um caso de uma narrativa dentro da narrativa, uma imbricada na outra. É feito um p a r ê n t e s e de algumas linhas e aí tomamos contato com um p a r á g r a f o - que seria o primeiro, a abertura do l i v r o - que Grand tenta, a t r a v é s de consecutivas reescrituras, elaborar melhor. Esse mesmo p a r á g r a f o retorna algumas outras vezes, sempre levemente modificado, mostrando que seu autor, Grand, e s t á a trabalhar empenhadamente na melhoria de seus recursos literários (Carnus, 1950, p. 43, 6 1 , 254 e 279). A b r i n d o essas e s p é c i e s de "janelas" na narrativa principal, Carnus opera desajustes em v á r i o s n í v e i s : o p a r á g r a f o de Grand surge como algo de um lirismo quase i n i m a g i n á v e l em meio à d e v a s t a ç ã o provocada pela d o e n ç a . Podemos constatar um desnivelamento estilístico, temporal, p s i c o l ó g i c o , estrutural. O que desponta é, na verdade, o p r ó p r i o romance como uma e s p é c i e de " l a b o r a t ó r i o da narrativa", e x p l o r a ç ã o e a d a p t a ç ã o de diferentes realidades e v i s õ e s de mundo. Evidentemente causa surpresa que a l g u é m , atolado em tarefas desgastantes e m ó r b i d a s , encontre d i s p o s i ç ã o para se preocupar, a p ó s 18 horas de trabalho, com o aprimorar de sua c o m p o s i ç ã o que diz: "Por uma bela m a n h ã de maio,
uma elegante amazona, cavalgando soberba é g u a a l a z ã , percorria as a l é i a s floridas do Bosque de B o l o n h a " (Carnus, 1950, p. 96).
E no m í n i m o estranho notar essa d i s p o s i ç ã o r o m â n t i c a diante da c a t á s t r o f e de uma cidade inteira. Mas, se analisamos atentamente, n ã o é bem isso toda a literatura? U m a d e n ú n c i a de que a vida n â o basta? De que o e s p í r i t o se sustenta em sua criatividade, podendo, inclusive, opor-se e vencer as maiores adversidades? A n d r é Gide comentou: "a arte nasce quando v i v e r n â o é suficiente para e x p r i m i r a vida".
Assim, acaba sendo comovente em Grand sua s o l i d ã o é t i c a e sua busca de uma literatura entendida, antes de mais nada, como e x u b e r â n c i a verbal em estado puro. Grand almeja fazer uma literatura onde cada palavra tenha sido pesada e vistoriada em seus menores detalhes (Carnus, 1950, p. 34, 42 e 124), uma palavra r e s p o n s á v e l e poderosa, sua postura é de insatisfação diante de s o l u ç õ e s fáceis e consoladoras. Sua literatura quer fazer com que "tiremos o c h a p é u " (Carnus, 1950, p. 54 e 9 4 ) diante de sua p e r f e i ç ã o .
Na modernidade, as artes sempre foram o e s p a ç o de refúgio e de luta nos momentos - muitos infelizmente - em que a vida f o i atacada. A arte é sensível à s crises da história e do homem e muitos de seus textos optaram por uma atitude de desesperadora e s p e r a n ç a , de s ó l i d a resistência. Parece-nos ser exatamente esse o caso do p a r á g r a f o que Grand v a i polindo pouco a pouco e, numa medida mais efetiva, a ficção de Carnus.
A luta de Grand, em ú l t i m a instância, é contra um mundo desumanizado. Questiona as injustiças praticadas contra os homens. Ulisses cuja tarefa á r d u a é a liberdade e a p a i x ã o . P r e s e r v a ç ã o em o p o s i ç ã o ao caos, b r a ç o comprometido com a vida e a humanidade.
Carnus destila a t r a v é s de Grand muito de sua v i s ã o de mundo e o p ç õ e s filosóficas. C o m o dizia Ibsen: "as personagens saem do c o r a ç ã o do autor". E Grand acaba sendo esse esmerado exemplo do " H o m e m Camusiano", resumo perfeito do " H o m e m Revoltado" ele busca conhecer o fundo de seus limites e procura aquela intensidade, aquela intensidade absoluta , uma vez que somente sobre ela é que se pode fundar uma e x i s t ê n c i a que se justifique e que emancipe. Grand, c o m o aliás podemos supor, t a m b é m é a e x p r e s s ã o de um Eu, de um c a r á t e r pessoal e b i o g r á f i c o que talvez contenha alguns t r a ç o s do p r ó p r i o escritor argelino. C o m o esse, ele t a m b é m n ã o pode se abster e sabe que e s t á
implicado naquilo que v ê e no mundo que o cerca. Sua p a i x ã o é a lucidez, u m sentido de liberdade em meio à derrota e à p r i v a ç ã o , uma luta aberta contra o fracasso e um intenso orgulho pelo rigor de suas p o s i ç õ e s é t i c a s . Tanto Grand quanto Carnus e s t ã o mergulhados no centro de um " i r r e p a r á v e l " . Mas, esse " i r r e p a r á v e l " nos revela a n ó s mesmos! C o m o o p r ó p r i o A l b e r t Carnus, a personagem está vocacionada a resistir e ensinar a resistência, pertence a uma estirpe de homens fortes, de c o r a ç ã o poderoso, com suas r e i v i n d i c a ç õ e s e r e b e l i õ e s . N ã o s ã o homens do ceder, acreditam na o p o s i ç ã o , na vontade renovada para se enfrentar o inimigo, homens de luta contra qualquer e s p é c i e de o p r e s s ã o e á r d u o s na defesa daquilo que lhes parece correto. Acabam, felizmente, sendo mais persistentes do que o p r ó p r i o bacilo da d o e n ç a (entendida aqui como m e t á f o r a ) , tenha ele a malignidade que tiver, como no momento em que Grand, a p ó s contrair a peste, consegue ser o p r i m e i r o a dela curar-se (Carnus, 1950, p. 241 e 242).
Se as personagens do l i v r o descobrem a fraternidade e um senso.de solidariedade humana que ultrapassam os limites do bem estar individual, n ã o parece totalmente equivocado observar que Grand é quem melhor e mais aguerridamente batalha para dar d e m o n s t r a ç õ e s e exemplos dessa boa vontade. Quando, por exemplo, ele salva o suicida e lhe é fraternalmente s o l i d á r i o (Carnus, 1950, p. 24).
Grand em A Peste realiza uma luta contra o i n s u p o r t á v e l - os outros personagens t a m b é m , p o r é m seu combate é duplo: com o cotidiano e com a q u e s t ã o da arte, da narrativa, j á que ele e s t á tentando elaborar uma escrita -, sua luta afirma o homem.
H á ainda outro t r a ç o distintivo de Grand, que o afirma como personagem da R e s i s t ê n c i a : seu interesse pelas pesquisas e t i m o l ó g i c a s , sua consulta a d i c i o n á r i o s . Grand se preocupa e se refere f r e q ü e n t e m e n t e à palavra, busca seus antecedentes e vive constantemente numa e x p l o r a ç ã o da q u e s t ã o da linguagem, ele percebe o poder da linguagem em nossa cultura e c i v i l i z a ç ã o , sabe estar lá o lugar da m e m ó r i a e da t r a d i ç ã o , ele se empenha em polir as palavras, combatendo as ideologias que elas carregam e sustentam.
Se t i v é s s e m o s que resumir o c a r á t e r de Grand em uma ú n i c a e x p r e s s ã o , d i r í a m o s que ele é uma "sensibilidade revoltada". Toda revolta é impregnada de humanismo. A sensibilidade revoltada n ã o é individualista: a revolta é a a f i r m a ç ã o da c o n d i ç ã o humana, uma das marcas de sua capacidade
de r e s i s t ê n c i a . O ô n t i c o da sensibilidade faz com que o sujeito n ã o seja contra o que o oprime, mas contra o que oprime o homem. A revolta é a a f i r m a ç ã o da c o n d i ç ã o humana no mundo que pode proporcionar felicidade. Cabe perguntar: qual a grande n e g a ç ã o da sensibilidade revoltada? A n e g a ç ã o da morte, evidentemente. O problema da morte, eixo sobre o qual gira o romance A Peste, é o p r ó p r i o problema do m a l ; ela é a injustiça fundamental. Se de nada adianta a revolta contra ela, sabemos, no entanto que sua a c e i t a ç ã o s u p õ e a s u p e r a ç ã o da medida humana. E nisto Grand, vale dizer Albert Carnus, n ã o consente. U m a s a l v a ç ã o que implique na morte do inocente é sem sentido, sem qualquer v e s t í g i o de amor. Negar a morte é afirmar uma capacidade de resistir. Grand realiza sua luta contra o i n s u p o r t á v e l , afirmando o homem, revelando-se s o l i d á r i o na luta contra o mal.
Albert Carnus costumeiramente formula, tanto em seus ensaios como em sua p r o d u ç ã o ficcional, um sem n ú m e r o de i n t e r r o g a ç õ e s e algumas s o l u ç õ e s que podem acabar baralhando-se em tropel dentro do leitor. Grand, contudo, surge como uma verdadeira rocha, s ó l i d a e constante em sua comovente e i n q u e b r a n t á v e l fidelidade a um ideal de j u s t i ç a , combatendo o sofrimento e o e x í l i o .
Adorno, refletindo sobre a ficção moderna, comenta: " é i d e o l ó g i c a a mera p r e t e n s ã o do narrador que s u p õ e que o curso do mundo segue sendo ainda essencialmente um processo de i n d i v i d u a ç ã o , que o i n d i v í d u o pode ainda chegar a tocar o seu destino, que a interioridade do i n d i v í d u o é ainda diretamente capaz de algo..." (Adorno, 1962, p. 125). Assim, precisaria haver uma t e n d ê n c i a para assumir cada vez mais a subjetividade numa r e a ç ã o que tenderia a minar a indústria cultural, indo contra a sociedade de consumo, a c o m u n i c a ç ã o de massa e a frieza do mundo moderno, ou seja, um mundo reificado pelo d o m í n i o da mercadoria, estandardizado pela p r o d u ç ã o em s é r i e e pelos meios de c o m u n i c a ç ã o de massas que homogeneizam tudo na mediocridade do que pode ser m e r c a d o l ó g i c o , isto é, v e n d á v e l , r e n t á v e l .
A d o r n o encaixa-se no grupo de Frankfurt, suas p r e o c u p a ç õ e s t a m b é m se dirigem para uma crítica da literatura. De imediato lembramos do arqui-conhecido Walter Benjamin e seu ensaio sobre o narrador (Benjamin, 1985).
Benjamin em seu texto exalta a figura do contador de h i s t ó r i a s , figura aureolada pela sageza arcaica de quem sabe que a narrativa era, e pode voltar a ser, o lugar do sentido. Em 1936 encontramos o filósofo desenvolvendo sua n o ç ã o acerca da
narrativa que se apoiaria no conceito de uma " e x p e r i ê n c i a " cheia de temporalidade, espanto, magia e fascínio; em o p o s i ç ã o , justamente, ao mundo b u r g u ê s da i n f o r m a ç ã o imediata e pragmaticamente explicada, sem e s p a ç o para o sonho ou a i m a g i n a ç ã o , mundo que viveria no r i t m o e s t ú p i d o do dinheiro e encontraria a l í v i o e lazer somente na padronizada " i n d ú s t r i a cultural". Benjamin e x p õ e , portanto, um paradigma da nossa contemporaneidade: v i v e r í a m o s o apagamento da v i v ê n c i a subjetiva. D e s i n t e g r a ç ã o à qual a narrativa, com sua força m e m o r i a l í s t i c a , se oporia. Vale ainda enfatizar que a humanidade s ó e s t á indefesa quando n ã o possui mais e x p e r i ê n c i a nem m e m ó r i a . Infelizmente nossa é p o c a , como anteviu Benjamin, parece esquecer cada dia mais a verdadeira realidade da narrativa, j á que tenta a todo custo esquecer a veracidade da morte, que funda qualquer narrativa, que, num extremo b a l a n ç o final, acaba assumindo o seu papel de motor da arte. C o m o A l m a d a sintetizou: " A arte é a m e m ó r i a da vida".
Se buscarmos compreender o que Benjamin está a v a n ç a n d o , poderemos entender um pouco melhor a i m p o r t â n c i a das histórias. Nelas e s t á a idéia de que ainda intervimos em nossas vidas. Elas confirmam que somos competentes, que podemos determinar nossa e x i s t ê n c i a . N ã o é por acaso que, pelo menos, desde Homero a necessidade de histórias é m u i t o grande: h á nelas a l g u é m que conta, que ordena e que faz entrar. C o m o afirmou o cineasta W i m Wenders: "na medida em que estabelecem contextos, as h i s t ó r i a s tornam a vida s u p o r t á v e l e ajudam a vencer o medo" (Wenders, 1990, p. 72).
Grand aparece muitas vezes com essa a u r é o l a do contador, ele e s t á procurando p ô r em seus escritos uma ordem, uma chave, um caminho. Carnus percebe que a h i s t ó r i a recorda, m a n t é m , conserva, resiste: enfim, elas s ã o muito, m u i t o importantes como forma de s o b r e v i v ê n c i a . O romance, por exemplo, t a m b é m cumpre um importante papel em r e l a ç ã o aos nossos medos e a n g ú s t i a s profundas, nesse sentido M i l a n Kundera, em A arte do romance, adianta que "o romance n ã o examina a realidade, mas a e x i s t ê n c i a . A e x i s t ê n c i a n ã o é o que passou, a e x i s t ê n c i a é o campo das possibilidades humanas, tudo o que o homem pode ser, tudo do que ele é capaz. O romancista desenha a carta da e x i s t ê n c i a , descobrindo tal ou qual possibilidade humana" (Kundera, 1986).
Se p r o c e d ê s s e m o s a uma a n á l i s e da narrativa em q u e s t ã o , fundada sob uma tipologia actancial da personagem, d e s c o b r i r í a m o s Grand como um "agente", para empregarmos a terminologia que Bremond desenvolve em seu
Logique du récit ( B r e m o n d , 1973). A força d r a m á t i c a de Grand é iniciadora de muitos processos modificadores, suas a ç õ e s praticadas o colocam c o m o u m agente modificador. Sua conduta é transformadora e influencia a a ç ã o de outras personagens. Sua moral d á - l h e s i n s p i r a ç ã o , sua c o n s t â n c i a serve c o m o espelho. Grand n ã o é meramente um elemento decorativo, ele surge diversas vezes c o m o agente condutor do enredo, é personagem do "fazendo" e do "fazendo fazer-se". T a m b é m p o d e r í a m o s empregar as d i s t i n ç õ e s t e ó r i c a s de Forster ( 1 9 6 2 ) e e n t e n d ê - l o como uma personagem esférica, ou seja, complexa, multidimensional, com profundidade p s i c o l ó g i c a e n ã o tipificada.
Toda a obra de Carnus transpira uma moralidade, uma e x i g ê n c i a moral fundamentada na sensibilidade, uma regra: é preciso resistir!
A luta contra a peste é feita com amor, mas t a m b é m é feita com ó d i o . Ó d i o pelo que submete. Em certa passagem o narrador comenta acerca de Grand: "o que lhe enchia o c o r a ç ã o neste momento era a imensa c ó l e r a que atinge o homem diante da dor que todos sofrem" (Carnus, 1950, p. 105). Esse ó d i o acaba sendo impulsionador da resistência.
O revoltado, aquele que optou resistir, quer ser um homem. T o m a partido do homem, aceitando as certezas comuns: o amor, o sofrimento, o e x í l i o .
Para A l b e r t Carnus: a sensibilidade exige e s e r á norma da i n t e l i g ê n c i a e da a ç ã o . D á o sentido da luta, e na luta, o sentido da vida. A todo momento o que transparece é uma obrigatoriedade, uma e x i g ê n c i a de r e s i s t ê n c i a , de a ç ã o contra o i r r e m e d i á v e l da c o n d i ç ã o humana. C o m b a t e r á o que pode ser mudado, lutará por qualquer ideal de felicidade que, mesmo l o n g í n q u o , parecendo u t ó p i c o , possa fazer j u s t i ç a ao homem. O homem revoltado e s t á presente. A p r e s e n ç a do revoltado é, ao mesmo tempo, dolorosa e reconfortante. Nos espanta e nos enche de e s p e r a n ç a s . O rochedo é pesado, mas é sua tarefa e ele n ã o se nega a cumpri-la.
C o m o se tem dito, estamos vivendo uma crise total do homem, n ã o apenas a quebra de estruturas sociais e e c o n ô m i c a s , mas t a m b é m de suas i n s t i t u i ç õ e s e escalas de valores. A literatura é uma das fontes de r e v e l a ç ã o dessa catástrofe e ao mesmo tempo constitui, em suas m a n i f e s t a ç õ e s mais
importantes, uma tentativa de resgatar o ser alienado pela monstruosidade de nosso tempo. Para Albert Carnus, parece-nos, o ideal da literatura é exatamente esse: ela deve r e c h a ç a r a a l i e n a ç ã o do mundo moderno.
Facilmente se constata: nem a m ú s i c a de Bach, nem a pintura de van Gogh nem a poesia de Baudelaire s ã o úteis para salvar a vida de uma ú n i c a criatura. A arte e a literatura em suas integridades tem outras possibilidades e outras f u n ç õ e s . Albert Carnus parece compreender m u i t o bem isso tudo. Ele n ã o é um escritor que cria por puro ludismo ou pelo simples prazer da beleza, mas para indagar e descrever a c o n d i ç ã o do homem em um mundo a p o c a l í p t i c o , o sentido da coragem, do dever e o alcance da j u s t i ç a e da liberdade. Ele, o autor, parece exercer um humanismo á s p e r o , uma r e p u g n â n c i a pelo engano e pelo auto-engano, quer firmemente auscultar o homem conturbado pela grande crise do nosso tempo.
O universo que rodeia Grand é hostil, opaco, a m e a ç a d o r . Talvez exatamente essa debilidade o r i g i n á r i a , essa s e n s a ç ã o de desamparo, conduza-o a estabelecer o valor do compromisso. Grand se firma, portanto, como um dos focos das r e s i s t ê n c i a s que podemos vislumbrar em A Peste. N u m extremo, acaba invocando mesmo os valores transcendentes da arte: sua luta é t a m b é m contra a e x t i r p a ç ã o da possibilidade do belo, mesmo numa cidade sitiada e em s i t u a ç ã o sinistra. Evidentemente defender a arte é defender t a m b é m a humanidade, numa palavra - Resistir!
E m p r i m e i r o lugar, porque a arte contribui para a e l e v a ç ã o da criatura humana desde sua simples c o n d i ç ã o z o o l ó g i c a para permitir-lhe acesso a uma realidade espiritual. Conquista que ela, e somente ela, pode a l c a n ç a r , ainda que em meio à s mais t e r r í v e i s m i s é r i a s físicas e morais. S ã o v á r i o s os exemplos de comoventes p r o d u ç õ e s que nos fazem acreditar que, mesmo no limite da d i s s o l u ç ã o , o "humano" luta gloriosamente pela sua p r e s e r v a ç ã o e p e r m a n ê n c i a - ainda que como relato e m e m ó r i a . U m a literatura, como essa, em meio à morte mais brutal, torna-se luminosa, nos d á e s p e r a n ç a s e nos enche de c o m o ç ã o .
A arte t a m b é m responde a uma necessidade que o homem tem de c o m u n h ã o , é um instrumento que lhe permita saltar o abismo entre as c o n s c i ê n c i a s . A b i s m o p r ó p r i o de sua c o n d i ç ã o , em qualquer é p o c a ou regime h i s t ó r i c o . Mas, possivelmente, aprofundado de forma vertiginosa pela a l i e n a ç ã o produzida pelas estruturas do mundo c o n t e m p o r â n e o , a ponto inclusive de
tornar as grandes cidades verdadeiras j u s t a p o s i ç õ e s de s o l i d õ e s - c o m o retrata Carnus no romance em pauta.
Finalmente, j á que a arte pode oferecer u m r e p e r t ó r i o de valores, pode cumprir uma f u n ç ã o v i t a l para todos n ó s (participantes de uma busca da verdade, exploradores de r e g i õ e s da realidade que s ó ela pode levar a cabo) e, sendo integradora de uma realidade humana em meio a essa c i v i l i z a ç ã o abstrata, ela - no nosso caso o romance mais especificamente - deve mesmo ser entendida como r e s i s t ê n c i a .
A literatura permite aos escritores e x p r i m i r a p r ó p r i a o p r e s s ã o , t r a z ê -la à luz de suas c o n s c i ê n c i a s e transmiti--la à cultura e ao pensamento coletivo. Albert Carnus trabalha os caracteres de suas personagens compreendendo sempre a literatura como uma via aberta para a liberdade, forma de se atingir um e s p í r i t o c r í t i c o mais l ú c i d o . Observando Grand, desvendaremos uma das figuras de r e s i s t ê n c i a da literatura da r e s i s t ê n c i a que é a obra, ainda hoje e parece que cada vez mais, v i v a e discutida de Albert Carnus.
A l b e r t Carnus n ã o se esquiva, uma de suas qualidades é enfrentar corajosamente essa nossa "era da suspeita" propondo uma nova e inquietante i n t e r p r e t a ç ã o da c o n d i ç ã o humana, nascida e alimentada num momento h i s t ó r i c o em que todos os valores é t i c o s e culturais da c i v i l i z a ç ã o vacilavam. N u m a literatura assim, cada palavra esconde uma i n t e n ç ã o profunda, cada personagem e s t á ligado a uma verdade antiga e revestido por muitos sentidos definitivos.
N o artigo, carinhoso e comovido, que escreveu sobre A n d r é Gide por o c a s i ã o de sua morte, Albert Carnus assim se confessa, numa indireta d e c l a r a ç ã o de p r i n c í p i o s : "o segredo de Gide é que ele nunca perdeu, no meio de suas d ú v i d a s , o orgulho de ser h o m e m " .
A l b e r t Carnus t a m b é m exercitou dilatadamente tal orgulho: criou! C o m o Lídia Jorge definitivamente fixou: "narrar é a ú l t i m a forma de contrariar o f i m ! "
R E F E R Ê N C I A S B I B L I O G R Á F I C A S
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