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Observações sobre a Hermenêutica Ecológica

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Academic year: 2021

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Eleno Marques de Araújo**

OBSERVAÇÕES SOBRE A HERMENÊUTICA ECOLÓGICA*

Resumo: o presente ensaio aponta algumas iluminações e reflexões, a

cerca de, uma hermenêutica ecológica. Pois, haja vista que, nunca foi tão gritante como em nossos dias a necessidade de um voltar-se para a obra criada por Deus e tomarmos a responsabilidade como valor primordial de nossa própria condição de co-criadores. Essa responsabilidade necessariamente gera uma ação concreta num tempo e espaço determinado de nossa sociedade. No apogeu do ‘caos ecológico’, o cuidar surge como opção essencial de nossa própria sobrevivência nessa casa comum, que chamamos, de Mãe Terra. Entretanto, muito já se tem feito em diferentes nações e nas mais variadas culturas, contudo, resta muito por fazer. O alto ín-dice de desmatamento, as queimadas, o constante assoreamento do leito dos rios, o excesso de gazes tóxicos lançados na atmosfera, as incalculáveis toneladas de lixos domésticos e industriais, que todos os dias são lançados na ‘casa comum’; como subterfúgio de um sistema ‘opressor escravagista’ que nos ‘enquadra’ em ideologias e parâmetros anti-ecológicos e anti-sociais. Como despertar em nós a consciência ecológica do ‘cuidar’ de nossa casa comum? É preciso resgatar os valores fundantes da humanidade, ou até parece, que a humanidade está esquecida do jeito de ser gente.

Palavras-chave: Criação. Destruição. Preservação. Pecado. Perdão. Muitas pessoas, nos mais diferenciados lugares de nosso planeta, ainda

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relação à grave crise ecológica pela qual todos os seres humanos estão passando juntamente com todo o ecossistema: flora, fauna, recursos hídricos, microorganismos, minerais e o próprio ar. O problema parece agravar-se ainda mais quando as autoridades governamentais optam por não querer resolver a grave e crescente crise com decisões sérias e firmes, ainda que seja com iniciativas mínimas, como ficou evidente com o resultado da última conferência internacional de Copenhague.

Parece estranho ouvir dizer que alguém foi preso por cometer crime am-biental, crime inafiançável que submete o infrator ao cumprimento de pena em regime fechado por um período de um a três anos ou, às vezes até, mais tempo. Quase sempre, os meios de comunica-ção veiculam reportagens sobre o tema: exploracomunica-ção irregular de madeira, desmatamento sem o mínimo controle, sobretudo para formação de pastagens, destruição da fauna e da flora a bel prazer de certos exploradores. Certas aves e alguns mamíferos, como o tatu, o veado, a capivara, o jacaré, dentre outros, são alvos fáceis e preferenciais de caçadores.

A princípio, muitas dessas notícias podem nos parecer absurdas, pois mostram um forte contraste em nossa realidade. De um lado, a ineficácia do Estado em coibir novos crimes; de outro lado, os grandes criminosos nunca aparecem, deixando transparecer que os problemas ambientais são causados pelas pessoas pobres e simples que retiram a casca de uma árvore com fins medicinais, ou que abatem um pequeno animal para alimentar-se. Fica uma pergunta: como a polícia consegue ser tão eficaz em certos casos e não em outros? Ou, por que não consegue a mesma eficácia antes mesmo de tantas árvores serem cortadas, provocando a destruição da flora brasileira e, consequentemente, da fauna.

Diante de tantos crimes ambientais evidencia-se o pouco interesse público em resolver a questão por meio de contratação de novos agentes, investimentos em melhores estruturas e tecnologias mais modernas, criação e desenvolvimento de projetos educativos nas escolas, nas rodovias, com ribeirinhos etc.

A investigação deste pequeno ensaio terá como objeto os textos bíblicos da criação apresentados nos primeiros capítulos do livro de Gênesis. Abordaremos de forma crítica a destruição do ecossistema reali-zando uma hermenêutica com um olhar a partir da América Latina. Daqui, do lugar de muitos povos explorados e empobrecidos ao

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longo de muitos séculos, pelos países ricos, pensamos que é hora de começar a interpretar os textos da criação e do dilúvio com a ótica ecológica e escutar os clamores de todo um ecossistema que grita querendo sobreviver.

A CRIAÇÃO (GN 1,1-2,4)

É urgente que a humanidade tome consciência da grave crise ambiental pela qual o ecossistema está passando, haja vista que não trará nenhum efeito benéfico para o todo o ato de falar e tratar somente das partes individuais que compõem a totalidade do ecossistema. Dessa forma, seguiremos a definição do conceito de ecologia dado por seu próprio fundador, o biólogo alemão Ernst Haeckel, em 1866: “ecologia é o estudo do inter-retro-relacionamento de todos os sistemas vivos e não vivos entre si e com seu meio ambiente, entendido como uma casa, donde deriva a palavra ecologia (oikos, em grego = casa)” (BOFF, 1999, p. 25).

Nessa perspectiva, estudar ecologia, tendo como pano de fundo os tex-tos bíblicos que narram a criação, é buscar um entendimento do próprio sistema natural, sem separar nenhum de seus elementos. Assim, o ser humano é colocado no seio da criação como qualquer outro ser, não lhe é dado nenhum atributo especial a não ser o de também pertencer à cadeia dos seres criados, em contraposição ao que é comum afirmar a partir de uma leitura dos relatos da criação no Livro do Gênesis (Gn 1,1-2,4). Encontrar-se-á ali, sobretudo, (Gn 1,26-29) que, ao criar o ser humano, Deus dá a essa criatura um poderio sobre as demais. São usados três verbos para conotar este poderio: dominar, submeter e dar.

Compreendendo os verbos

O primeiro verbo é dominar: ele aparece em Gênesis 1, 26: “Deus disse: ‘Façamos o homem à nossa imagem, como nossa semelhança, e que eles dominem sobre os peixes do mar, as aves do céu, os animais domésticos, todas as feras e todos os répteis que rastejam sobre a terra’”. O segundo verbo é submeter e está presente em Gênesis 1, 28: “Deus os abençoou e lhes disse: ‘Sede fecundos, multiplicai--vos, enchei a terra e submetei-a; dominai sobre os peixes do mar, as aves do céu e todos os animais que rastejam sobre a terra’”.

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O terceiro verbo é dar e o encontramos em Gênesis 1, 29: “Deus disse: ‘Eu vos dou todas as ervas que dão semente, que estão sobre toda a superfície da terra, e todas as árvores que dão semente: isso será vosso alimento’”.

Conforme o significado desses verbos no original (hebraico), teremos que aceitar o domínio do ser humano sobre a natureza. Aliás, é como se retirássemos o ser humano do seio da natureza e o colocássemos fora dela, e, a partir dali, ele a dominasse e a submetesse, uma vez que o próprio criador a entregou com esse objetivo.

Em Gênesis 6,5-7 já se fala do arrependimento de Deus em relação ao ser humano como criatura subversiva. Deus decide eliminá-lo da face da terra. Como dizer que Deus não quis o homem como coro-amento da criação, se nos relatos da criação encontram-se aqueles três verbos possibilitando essa conotação? Em primeiro lugar, não se pode ler um texto sem o seu contexto. Seria como retirá-lo de sua origem e dar-lhe outro sentido, outro contexto. É sabido que os relatos da criação surgiram no período do exílio babilônico, momento histórico em que o povo israelita era levado a cultuar outros deuses do panteon babilônico, sobretudo, o deus sol = Marduc, bem como outros astros da própria natureza.

A primeira explicação contextual, então, aponta para o fato de que esse relato da criação quer chamar a atenção dos israelitas para a fideli-dade a Javé, o Deus de Israel. Marduc, o deus babilônico, é apenas uma das criaturas de Javé e, como tal, foi manipulado = moldado por Deus e pendurado no universo. Ele é submisso à vontade de Deus. Tem que cumprir uma função, um trabalho a ser executado: deve iluminar o dia, está a serviço de seu Senhor e Criador. Nada, portanto, de acreditar em criatura de Deus, mas somente acreditar no próprio Criador.

Uma segunda explicação do contexto é a questão do sábado. Na compre-ensão israelita, Deus teria terminado sua obra criadora no sexto dia e abençoado o sétimo, consagrado-o para o descanso, para o louvor, para o culto. Assim, o sábado é o cume da criação e não o ser humano. Foi ele, o sábado, que foi abençoado e consagrado como tempo de Deus. Foi nesse tempo que Deus viu que era muito bom, segundo sua visão, ao terminar a sua criação (Gn 1,31). Se é o tempo que é muito bom, onde entra o interesse do ser humano? Ora, o tempo em si mesmo não diz nada, mas o tempo santo (kai-rós), o sábado, tem sentido ao ser guardado e reservado ao homem

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para cultuar seu criador. O sábado é o dia da memória da criação. Foi nesse dia que o Senhor viu que tudo que havia criado era muito bom. É por essa razão que o homem entra junto com a consagração do sábado, ele é o guardião da memória. Ele deve conservar a ordem estabelecida pelo criador.

Ademais, o criador viu que, não só o ser humano era muito bom, mas o conjunto do que havia criado, a ordem das coisas que ele mesmo deu: plantas, animais na terra, as aves no céu, os peixes nas águas, astros e luzeiros no universo, homem e mulher à sua imagem e semelhança; tudo isso, o conjunto da criação, é que foi visto como muito bom. Portanto, ver e interpretar que somente o ser humano foi visto como muito bom já é dar à obra criadora de Deus um limite, um defeito. É colocar o homem no centro, é o antropocentrismo em seu mais alto grau. É atribuir-lhe a coroa da criação.

O antropocentrismo como pecado original

O antropocentrismo pode ter sido o primeiro pecado da humanidade. É o pecado original, que quebrou a ordem, a origem das coisas criadas por Deus. Tal atitude humana é narrada de forma a evidenciar o arrependimento de Deus em ter criado o ser humano, a ponto de querer exterminá-lo da face da terra (Gn 6, 5-7). Dessa forma, antes de qualquer outra coisa, o ser humano pecou por usurpar a obra criada por Deus, colocando-se a si mesmo sobre as demais criatu-ras. Uma nova hermenêutica da criação tem necessariamente que apontar outra responsabilidade para o humano. Todo jardim, para ser bonito, precisa, não só de seu artífice, mas também de um bom jardineiro que cuide, revitalize e proteja cotidianamente o espaço todo para que não seja depredado. Essa deve ser a função maior da pessoa na obra criadora de Deus, cuidar do Jardim do Éden. O antropocentrismo, em nossos dias, apresenta várias vertentes: a) o

machismo exacerbado que coloca as mulheres e as crianças abaixo da condição humana, explorando-as como mão de obra barata, che-gando até a escravatura. Não se pode esquecer que o Criador e Pai criou homem e mulher à sua imagem e semelhança. Pecar contra a mulher é, portanto, pecar contra o Criador. b) Os co-irmãos da natureza – as matas que são submetidas a uma exploração, quase sempre ilegal, pelas madeireiras ou simplesmente devastadas para a formação de novas pastagens; a água em suas várias

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possibilida-des – hidrelétricas, engarrafamento, transporte, irrigação com uma consequente poluição sobretudo por esgoto urbano e agrotóxicos. DILÚVIO: A RECRIAÇÃO

A história do dilúvio narrada no Livro do Gênesis apresenta a situação do homem diante de Deus ou diante do próprio universo. Alguns atributos dados ao ser humano nessa narração ajudam a compreen-der melhor esse acontecimento: ‘maldade do homem’, ‘o projeto do coração humano era sempre mal’, ‘violência’, ‘corrupção no comportamento’. Contrapondo estes atributos com aqueles dos re-latos da criação, não é difícil perceber que existe alguma espécie de contradição, algo que soa como ‘errado’ na forma de compreensão, ou aqui na narrativa do dilúvio ou lá na narrativa da criação. O antropocentrismo como usurpação da obra criada por Deus

Se Deus dera ao homem a condição antropocêntrica, nada mais justo que ele (homem) gozasse desse direito. Porém, o que se vê é uma revolta da parte de Deus, o que caracteriza alguma dissintonia entre este relato do dilúvio e aquele da criação. Outrora Deus viu que o que havia criado era muito bom: visão antropocêntrica, porque tudo o mais que o Senhor havia criado nos cinco primeiros dias era bom e só depois da criação do ser humano foi possível ver que era muito bom. Aqui no relato do dilúvio, esse “muito bom” é a causa da des-truição da criação. Nem é preciso colocá-lo como causa principal, porque o ser humano é a causa única do arrependimento do criador, levando-o a querer destruir toda a obra criada.

Foi pela conduta do ser humano que o criador resolveu extirpá-lo do meio das demais criaturas. Aqui se coloca um princípio de contradição muito evidente: se Deus dera ao homem todo poderio descrito em (Gn 1,26-29), como pode agora acusá-lo de ser corrupto, violento, etc? Embora existam muitos textos, na Sagrada Escritura, que fa-lam da exaltação do ser humano sobre os demais seres, a resposta poderá vir de um versículo de grande iluminação divina: “Pois uma é a sorte dos homens e dos animais: tanto morre um como morre o outro, todos têm o mesmo alento, e o homem não leva vantagem sobre os animais, porque tudo é vaidade (Ecl 3,19)”. É exatamente dessa forma e não de outra que Deus fez o homem.

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Pelo dilúvio o ser humano é guardião da criação

A condição de racionalidade presente no ser humano não o sobrepõe aos demais seres da criação. Essa condição dada a ele é somente para que possa cuidar, zelar, contemplar e ver como o próprio Criador e Pai viu que tudo era muito bom. Se for entendido ao contrário, o ser humano como coroamento da criação, sobrepondo-se aos demais seres criados por Deus e usando-os a seu bel-prazer e extinguindo--os, o homem perde a condição de guardião da obra criada. Sem esses muitos seres extintos pela ação do ser humano, a obra criada estaria incompleta, caótica e manca, jamais poderia ser vista como ação divina. Olhando desse prisma, qualquer pessoa de perfeito juízo diria que Deus tinha plena razão em querer extirpar o ser humano da face da terra (Gn 6,5-7).

Essa afirmação é muito lógica e racional, porque o homem elimina do meio ambiente, tudo aquilo que impede um desenvolvimento sadio, harmônico e natural. Tendo presente um agricultor, ver-se-á que o mesmo é capaz de desgastar-se para eliminar as ervas daninhas que impedem o crescimento e a boa produção de suas lavouras. Olhando para uma família, ver-se-á que todo esforço será empregado para que sua prole seja de boa conduta, procurar-se-á ao máximo afastar do convívio dos filhos as pessoas que, porventura, possam influenciá-los negativamente. Outro exemplo clássico é o religioso: as pessoas que são vistas como grandes pecadoras são “excluídas” da comunhão eclesial. Essa parece ter sido a visão de Deus, numa primeira e simples olhada no texto do dilúvio. Porém, aprofundando essa pesquisa, os resultados a serem alcançados mostrarão que tudo aconteceu exatamente ao contrário.

O Criador e Pai tomou todas as medidas para que nada de sua obra criada se perdesse. Portanto, não foi o ser humano que foi visto como muito bom, mas foi o conjunto de sua obra criada, harmônica e concêntrica. Esse conjunto foi visto e contemplado pelo próprio criador a ponto de o autor sagrado exclamar: “Deus viu tudo o que tinha feito: e era muito bom” (Gn 1, 31). Essa foi a principal razão do cuidado da parte de Deus em preservar tudo aquilo que ele mesmo havia criado, até mesmo o ser humano, que é a motivação maior para o acontecimento do dilúvio. É importante ter presente que a causa do dilúvio é o próprio ser humano que se corrompeu, a tal ponto, que levara seu criador e Pai a querer extirpá-lo do meio da criação.

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A arca de Noé: o microcosmos da recriação

A arca de Noé torna-se, assim, um microcosmos da criação de Deus. Se, outrora, o ser humano já era responsável pela organização, conser-vação e manutenção de toda a criação, agora essa atribuição é muito mais forte. O ser humano, personificado em Noé, é responsável por fazer subir (salvar, conservar) cada espécie na arca, aquele microcos-mos que ele construíra sob orientação divina. Se, na criação, Deus dera poderes plenipotenciários ao ser humano, aqui ele inverte essa ordem. O ser humano deixa de ser a coroa da obra criada e passa a ser a garantia de que a criação de Deus será conservada. Tudo deve ser preservado, tudo tem o seu valor, sua importância. Dessa forma, o homem passa de vilão (satã) à co-criador. É sua função e seu dever cuidar para que entrem na arca macho e fêmea para a conservação das espécies.

Com um pouco de imaginação, pode-se ver na arca a imagem do Jardim do Éden. O ser humano em meio a todos os outros animais, assim como o profeta Isaías profetizou bem mais tarde:

Então o lobo morará com o cordeiro, e o leopardo se deitará com o cabrito. O bezerro, o leãozinho e o gordo novilho andarão juntos e um menino pequeno os guiará. A vaca e o urso pastarão juntos, juntas se deitarão as suas crias. O leão se alimentará de forragem como o boi. A criança de peito poderá brincar junto à cova da áspide, a criança pequena porá a mão na cova da víbora. Ninguém fará o mal nem destruição nenhuma em todo o meu santo monte, porque a terra ficará cheia do conhecimento de Iahweh, como as águas enchem o mar (Is 11,6-9).

O texto da profecia de Isaías mostra claramente o sonho de Deus com a totalidade da obra criada, mas fruto do pecado do ser humano transformou o Jardim do Éden em um lugar de dor e sofrimento para muitas pessoas, fazendo ocorrer a extinção de muitos organismos vivos do planeta.

A POBREZA E A EXCLUSÃO SOCIAL: UM ROMPIMENTO COM A OBRA CRIADA POR DEUS

Abordamos acima sobre a perspectiva do homem como coroamento da criação, nossa conclusão, porém, é a de que, na verdade, Deus

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não teve a intenção de sobrepor o ser humano aos demais seres da criação. Neste item, abordar-se-á a temática da pobreza e da ex-clusão social como pecado ecológico. Primeiro porque Deus criou todas as coisas perfeitas e com o mesmo direito à existência. Em segundo lugar, porque a atual situação em que se encontra grande parte da humanidade revela uma nova usurpação da obra criadora de Deus por parte de uma pequena minoria que continua submetendo e dominando toda a natureza criada por Deus inclusive o próprio ser humano.

Na primeira dimensão do pecado ecológico, encontra-se toda uma rede de exploração dos países ricos sobre os países pobres. Os ricos, além de explorar os pobres a fim de produzirem os bens de consumo, sobretudo, os alimentos transgênicos, instalam um processo de es-pecífico de produção. Esse processo traz graves consequências para o ecossistema na perspectiva de degeneração contínua, levando-o a uma morte precoce, com a desertificação dos solos produtivos, envenenando-os com inseticidas produzidos internacionalmente para serem usados pelos países pobres.

Sabedores dos graves impactos ambientais, os países ricos são capazes de fabricar muitos produtos químicos e tóxicos e, embora não os utilizem, obrigam os países empobrecidos, como efeito de suas explorações, a usarem e produzirem para eles os alimentos neces-sários para sua subsistência. Os inseticidas são acompanhados de fertilizantes químicos que também alteram gravemente as condições naturais do solo, comprometendo assim o futuro de muitas espécies de plantas e microorganismos do próprio solo, bem como de aves e de peixes e outros animais aquáticos em função do assoreamento das nascentes, dos córregos, dos rios e até dos mares e oceanos. Segundo Leonardo Boff, os países ricos usam do endividamento dos

países pobres, obrigando-os assim a submeterem-se à condição de produtores de bens de consumo para os ricos do norte:

Pela dívida, o sistema continua se impondo a todos, elaborando políticas globais que favorecem aos seus interesses estratégicos; estimula um desenvolvimento que privilegia os megaprojetos e as monoculturas (soja, no Brasil; gado, na América Central; frutas, no Chile); fornece créditos para implementar tais projetos, com financiamentos do Banco Mundial, do BID e do FMI. Com isso, cria-se o endividamento. O pagamento da dívida e de seus juros

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se faz pela exportação de matérias-primas e manufaturados, cujos preços são aviltados no mercado mundial, o que não permite honrar toda a dívida; então, reduzem-se os investimentos sociais para, com a sobra, compensar parte da dívida. Essa estratégia produz verdadeira devastação social em termos das políticas públicas concernentes à alimentação, à saúde, à criação de emprego e à organização das cidades. Junto com essa taxa de perversidade social, caminha o déficit ambiental, pois os pobres ocupam áreas perigosas nas cidades, lançam-se na fronteira agrícola, destruindo, no esforço de sobreviver, florestas, fazendo queimadas, poluindo os rios pelos garimpos ou por pesca e caça predatórias (BOFF, 1999. p. 56).

Com esta citação de Leonardo Boff, abrimos a segunda parte de nossa discussão, isto é, o lugar em que se encontra a grande maioria da humanidade, pois a mesma ainda não tem consciência da crise pela qual passa o planeta.

O jubileu do ano 2000 e a hermenêutica dos exploradores

O conselho mundial de Igrejas fez uma proposta de celebrar o ano 2000 como ano jubilar da graça do criador e Pai. Muita movimentação foi feita, mas parece que os resultados alcançados não foram os esperados. Como proposta, as Igrejas pediram aos países ricos o perdão das dívidas dos países pobres. Além de esse pedido não ter sido atendido em sua quase totalidade, até recebeu fortes críticas internas, bem como dos países pobres e endividados. Parece até que o melhor mesmo é estar sob o jugo dos exploradores, que arrancam até o último centavo que o pobre tem para alimentar sua prole. A situação parece repetir-se, como no passado, quando os grandes impérios submetiam e dominavam muitos povos.

Não se pode duvidar de que alguém até justifique essa situação como von-tade de Deus. Seria bastante fácil argumentar que na criação Deus disse: “dominai e submetei...” Mas esse tipo de crença é herança de somente uma cultura: a judaico-cristã. Como levar em conta povos e culturas que têm com a natureza e com a terra um relacionamento de parentesco? A terra é a ‘Pacha Mama’ (é a mãe). Aqueles que pensam e agem explorando, dominando e subjugando povos e na-ções talvez nunca leram os textos do dilúvio, em que Deus recria

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o universo e dá ao ser humano a responsabilidade de co-criar, isto é, de guardião da criação de Deus que deve zelar pela continuidade de tudo aquilo que fora criado pela mão amorosa de Deus.

O sistema neoliberal implantado mundialmente chega a ser satânico. Com a justificativa de livre iniciativa e qualidade total, muitos povos e nações foram simplesmente reduzidos ao nada. Não participam da chamada globalização do mercado. Isso significa não comprar e não vender, não ter direito à cidadania, não ser livre para ir e vir. Simplesmente foram reduzidos à condição do não ser.

A pessoa humana que, naquela leitura equivocada, era o coroamento da criação de Deus como expressão máxima por ser sua imagem e semelhança, simplesmente passou a ser expressão do não ser e do não ter. Não é pessoa, porque não tem direito a casa (oikos), está fora da obra criada por Deus. São milhares e milhares de pessoas no mundo todo vivendo nas ruas e em lugares subumanos. Não é pessoa, porque não tem direito à saúde. A tecnologia e a ciência não têm espaço para os pobres. Não é pessoa, porque não têm direito à educação, não precisam aprender, não vão ser pessoas do mercado, para que desperdiçar os recursos com que não conta para o mercado?

Seria até fácil continuar elencando situações subumanas no mercado neo-liberal, porém estes exemplos são suficientes para se ter uma visão geral daquilo que o ser humano fez com a obra criada por Deus. Quiçá o criador e Pai chamará um novo Noé a construir uma nova arca

para uma nova recriação da natureza, onde o ser humano aprenda a conviver com todos os elementos vivos e não vivos como ex-pressão de Deus. Seria muito bom se cada homem e cada mulher sentissem em seu próprio interior esse chamado (clamor) de Deus e começassem a fazer de nosso universo uma grande arca onde tudo tem seu valor e revela a face do Criador e Pai. Dessa forma, Deus poderia, um dia, olhar novamente para sua obra e exclamar: Tudo é muito bom.

CONCLUSÃO

A pretensão desse pequeno esboço de uma hermenêutica da criação, a partir de uma visão latino-americana na dimensão ecológica, tem por finalidade criar nas pessoas uma consciência mais crítica da atual situação pela qual está passando o ecossistema. Depois

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des-pertar, mesmo que timidamente, as pessoas: homens e mulheres de boa vontade, que se interessarem pelas questões ambientais no sentido amplo que exige a definição do termo ecologia, dada por seu próprio fundador.

Procuramos, neste pequeno, ensaio abordar a questão ecológica numa dimensão bíblica. Primeiro fazendo uma hermenêutica da narrati-va da criação dada no Livro do Gênesis 1,1-2,4. Procuramos reler esse relato numa perspectiva ecológica, segundo a qual Deus não criou o homem como coroamento da criação, mas o criou como qualquer outro elemento da natureza, descartando assim a questão antropocêntrica.

Numa segunda abordagem, procuramos reler o acontecimento do dilúvio com a perspectiva de o ser humano ser o co-criador junto com Deus. A Arca de Noé seria assim um protótipo de um microcosmos, onde o ser humano passa a ser o responsável pela conservação de todas as espécies de animais e de todos os outros seres. Foi o Criador e Pai que orientou a Noé para que construísse a Arca e fizesse subir nela macho e fêmea de todas as espécies, bem como todas as es-pécies de plantas.

Na terceira abordagem tratamos da pobreza e da exclusão social como pecado ecológico. Constata-se que o principal pecado é a exploração dos países ricos sobre os países pobres.

COMMENTS ON THE ECOLOGICAL HERMENEUTICS

Abstract: this essay points out some reflections about an ecological hermeneutic. Well, since that has never been as urgent as in our day the need for a turn to the work created by God and our taking responsibility as a core value of our own status as co-creators. That responsibility necessarily generates a concrete action in a given time and space of our society. In the apogee of the ‘ecologi-cal chaos’, caring emerges as an essential option for our own survival in this common home we call Mother Earth. However, a lot has already been done in different nations and in various cultures, nevertheless, much remains to be done. The high rate of deforestation, burning, constant silting of river beds, the excess of toxic gases thrown into the atmosphere, the untold tons of domestic and industrial waste which is released every day in the ‘common house’ as a subterfuge to an ‘oppressive slavery’ system that ‘fits’

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us in ideologies and as well as in anti-ecological and anti-social parameters. How to arouse in us the ecological consciousness of ‘care’ of our common house? We must restore the founding values of humanity, or even, it seems that humanity has forgotten the way of being people.

Keywords: Creation. Cestruction. Preservation. Sin. Forgiveness.

Referências

A Bíblia de Jerusalém. Edição portuguesa. São Paulo: Paulinas, 1980.

BOFF, Leonardo. Ética da vida. Brasília: Letraviva, 1999.

–––––––. Saber cuidar. 5. ed. Petrópolis: Vozes, 2000.

BRADLEY, Ivan. Dios es “verde”. Trad. Pedro J. Rivas. Espanha: Sal Terrae, 1993.

ECO, Umberto. Interpretação e Superinterpretação. São Paulo: Martins Fontes, 2005.

MOLTMANN, Jürgen. Deus na Criação. Trad. Haroldo Reimer e Ivoni Richter Reimer.

Petrópolis: Vozes, 1993.

REIMER, Haroldo. Toda a Criação – Bíblia e Ecologia. São Leopoldo: Oikos, 2006.

* Recebido: 09.03.2011 Aprovado: 07.05.2011

** Graduado em Filosofia pela UFG, em Teologia pela PUC-GO, Mestre e Doutorando em Ciências da Religião pela PUC-GO. Coordena o curso de Filosofia do IFITEG, onde leciona disciplinas de Filosofia e Teologia.

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