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MultipliCidades da favela

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Academic year: 2021

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FUNDAÇÃO GETULIO VARGAS

ESCOLA DE ADMINISTRAÇÃO DE EMPRESAS DE SÃO PAULO

NAYARA SILVA DE NORONHA

MULTIPLICIDADES DA FAVELA

SÃO PAULO 2017

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NAYARA SILVA DE NORONHA

MultipliCidades da Favela

Tese de doutorado apresentada à Escola de Administração de Empresas de São Paulo da Fundação Getulio Vargas, como requisito para a obtenção do título de Doutora em Administração de Empresas.

Campo de conhecimento: Estudos

Organizacionais

Orientadora: Profª. Drª. Maria José Tonelli Coorientador: Profº. Dr. Edgard Elie Roger Barki

SÃO PAULO 2017

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Noronha, Nayara Silva de.

MultipliCidades da favela / Nayara Silva de Noronha. - 2017. 237 f.

Orientadores: Maria José Tonelli, Edgard Elie Roger Barki

Tese (doutorado) - Escola de Administração de Empresas de São Paulo. 1. Favelas - São Paulo. 2. Cidades e vilas. 3. Comunidades - Aspectos sociais. I. Tonelli, Maria José. II. Barki, Edgard Elie Roger. III. Tese

(doutorado) - Escola de Administração de Empresas de São Paulo. IV. Título.

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NAYARA SILVA DE NORONHA

MultipliCidades da Favela

Tese de doutorado apresentada à Escola de Administração de Empresas de São Paulo da Fundação Getulio Vargas, como requisito para a obtenção do título de Doutora em Administração de Empresas.

Campo de conhecimento: Estudos

Organizacionais

Data da aprovação: 21/03/2017 Banca Examinadora

_______________________________ Profª. Drª. Maria José Tonelli (orientadora) EAESP-FGV

_______________________________ Prof. Dr. Dr. Edgard Elie Roger Barki (co-orientador)

EAESP-FGV

_______________________________ Profª.Drª. Alketa Peci

EBAPE-FGV

_______________________________

Profº. Dr. Armindo dos Santos de Sousa Teodósio

PUC-MG

_______________________________ Profª. Drª. Isleide Arruda Fontenelle EAESP-FGV

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AGRADECIMENTOS

Vivenciar a cidade de São Paulo não é uma experiência que passa despercebida. Para alguns, a capital paulista é uma selva de pedra; significa horas parados no trânsito, de metrô cheio, de caos urbano; é onde o relógio parece correr mais depressa; tempo pode ser dinheiro; é lugar que lhe permite viver no anonimato, no silêncio e na solidão. Para outros, São Paulo é possibilidade de uma vida melhor, de liberdade, de diversidade, de ter um pouco de tudo em todos os lugares, de uma vida urbana pulsante e interessante. Para mim, São Paulo foi sinônimo de encontro e sou grata a todos estes encontros, reencontros e, até mesmo, desencontros que tive durante esse período.

Não encontro palavras suficientes para conseguir expressar o quão significativa foi minha experiência em Heliópolis, um dos meus lugares preferidos da cidade de São Paulo. Senti-me acolhida, querida e, mesmo nos dias chuvosos, sorri todas as vezes em que estive por lá. Agradeço imensamente a cada pessoa que se dispôs a conversar, me escutar e que, de alguma forma, cruzou meu caminho durante minhas visitas àfavela. De modo especial, agradeço aos membros da associação local de moradores, cuja história e luta social me inspiram a ser uma cidadã melhor.

Heliópolis entrou em minha vida graças ao professor Edgard Barki e, só por isso, serei eternamente grata a ele. Fomos, inúmeras vezes, juntos à Heliópolis e foi nesse caminho que nossa relação foi construída. O professor, que iria apenas me ajudar na inserção no campo de pesquisa, acabou se tornando meu coorientador, parceiro acadêmico e, especialmente, um grande amigo. Edgard [vulgo “véi”], obrigada por confiar no meu trabalho, pela paciência em todas as minhas crises acadêmicas, por sua racionalidade nos meus momentos de devaneios, por acreditar em mim quando eu não via saída. Obrigada por discordar e me questionar tantas vezes, por me convidar para seus projetos acadêmicos e dividir comigo a experiência do NIS. Obrigada por não ligar o ar condicionado do carro, não atender ao telefone dirigindo, por ter comprado o livro do Lefebvre, mesmo sem entendê-lo. Obrigada por caminhar ao meu lado nessa etapa da minha vida. Esta tese é um pouco [ou muito] sua também.

Esta pesquisa só foi, igualmente, possível graças à orientação da professora Maria José Tonelli, que acreditou em mim, no meu trabalho, na minha pesquisa. Em todos os momentos nos quais me perdi, ela pacientemente me mostrou um caminho

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metodológico, uma abordagem teórica, uma saída acadêmica possível. Só agora, no final do doutorado, foi que consegui entender muitos dos seus questionamentos, mas espero um dia ser uma mulher tão forte [e amorosa] quanto ela é. Muito obrigada, Tonelli.

Ao professor J. Miguel Imas, meu supervisor do estágio doutoral na Kingston University, que acreditou desde o início na minha pesquisa. Além de compartilhar comigo uma vasta literatura acadêmica, Imas conseguiu renovar minha fé nos meus dados e na minha pesquisa, quando eu já não conseguia encontrar um fio condutor de análises. Ele me instigou a pensar para além das “minhas caixinhas” e, justamente no período em que estive em Londres, foi que esta tese ganhou forma. Imas, agradeço por sua disponibilidade e atenção para comigo.

Fazer parte da linha de Estudos Organizacionais foi uma experiência gratificante. Tive oportunidade de conhecer excelentes professores e pesquisadores inspiradores. Agradeço à professora Isleide Fontenelle, não só por fazer parte da banca, mas por ter me indicado leituras que modificaram minha forma de perceber o mundo; à professora Maria Ester de Freitas, pela acolhida nos primeiros semestres e sua honestidade desconcertante; ao professor Rafael Alcadipani, cuja inquietação é uma inspiração acadêmica, mas, sobretudo, agradeço por ter me confiado a chave de sua sala, mesmo sem me conhecer – este simples gesto significou muito para mim. À Alketa Peci e Armindo Teodósio, por aceitarem o convite de participar da apresentação deste trabalho e, ao compartilharem suas percepções, contribuírem para que eu possa dar um passo além do que já caminhei academicamente até aqui.

A vida acadêmica também me permitiu conhecer pessoas extremamente interessantes e agradeço a todos os colegas da FGV que, durante esses quatro anos, compartilharam alguma experiência acadêmica comigo. Contudo, alguns deles ultrapassaram a tênue linha acadêmica e tornaram-se amigos queridos. Ao Amon Barros, por todos os cafés acadêmicos, congressos compartilhados, viagens inglesas [e pubs – com participação mais que especial da Ana Diniz] e, ainda em tempo, por ter contribuído na banca de qualificação. Ao André Luís, pela companhia que se tornou uma trégua em meio ao caos. À Rosana Cordova, pela amizade sincera que se faz presente em minha vida, apesar da distância que teima em nos perseguir. À Vanessa Brulon, cuja tese foi uma das minhas principais fontes de inspiração; descobrimos que temos mais do que a favela em comum e nos tornamos amigas. Obrigada pelo carinho. À Cristina Miranda, Christiane Batista, Cynthia Calixto, Daniel Lacerda, Déborah

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Siade, Getúlio Matos, Lorena Matos, Luciano Diniz, Maria Camila Florêncio, Maria Cristina Giorgi, Paula Tanure, Rafael Goldszmidt, Rodrigo Taveira, Samuel Oliveira, Thais Alves e Wescley Xavier, agradeço pelos encontros não acadêmicos que, tantas vezes, salvaram o meu dia.

Às pessoas que marcaram minha experiência inglesa e não mediram esforços para que eu me sentisse acolhida em terras estrangeiras: Astrid Spegel, Charles Barthold, David Moftakhar, Fábio Testa, Mariana Fitzgerald-Montoya, Nelson Maia, Rui Almeida e Vivianne Maynard. Londres também me deu de presente a amizade de Ivens Reyner: saímos de Minas para nos encontrar em Brixton. Ivens, você foi o melhor companheiro mineiro de aventuras londrinas. Aos meninos e agregados da Farofa, agradeço por me acolherem em nossa casa e pela convivência. Em especial, ao Luluba, por dividir comigo doses diárias de leveza no cotidiano. À Ana Clara Bellan, obrigada pela serenidade que me transmite na loucura do meu processo de “ser quem eu sou”. Aos meus poucos e bons amigos espalhados pelo Brasil afora, agradeço por compreenderem tantas ausências minhas.

No cotidiano caótico de São Paulo, ter a Claudia Cerqueira em minha vida fez meus dias paulistanos mais leves e felizes. Já sinto saudades dos nossos cafés, papos furados, mudanças de humores e das trilhas sonoras “clássicas” [bregas, talvez] que cantamos juntas; das nossas risadas, dos olhares de cumplicidade, dos abraços apertados e do colo quando as lágrimas já não se calavam; sinto falta do nosso amor dissolvido nas pequenas coisas da vida cotidiana. Mas sei que, onde quer que estejamos, nossa amizade encontrará um caminho para se fazer presente. Clau, obrigada por ser “minha casa” em São Paulo; sem você, os dias teriam sido cinzas [embora esta seja sua cor preferida].

Agradeço ao IFSULDEMINAS, por acreditar na importância do estudo contínuo de seus professores. Ter o apoio da instituição, não só financeiro, mas também o incentivo e facilidades para o doutorado, foi essencial para que essa etapa se cumprisse. Tive sorte de estar numa instituição de ensino pública enquanto ainda havia incentivo à educação técnica e superior. Meu “eu acadêmico” é resultado das oportunidades que tive graças a programas tais como REUNI, bolsas de pós-graduação, afastamento stricto sensu com vencimento integral. Meu muito obrigado também aos colegas de trabalho por “segurarem a barra” enquanto eu me dedicava a esta pesquisa.

À Fundação Getulio Vargas, que também possibilitou minha permanência no doutorado por meio de bolsa taxa em parceria com a CAPES e também pelo auxílio

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financeiro a eventos e estágio doutoral no exterior. Agradeço a todos os funcionários que fazem seus trabalhos nos bastidores da escola. É o trabalho de vocês que garante a ordem e faz com que esta instituição seja tão conceituada. Em especial, obrigada à Lícia Araki, por salvar tantas tardes sonolentas com café e por ter sido sempre tão solicita em me ajudar.

Agradeço à família, pela compreensão de inúmeras ausências cotidianas. Aos meus pais que, mesmo sem compreender minhas escolhas, me deixaram livre para eu seguir meu caminho. A liberdade de poder ser quem eu quisesse foi o maior presente de vida que vocês puderam me dar. Hoje sou acadêmica, mas vocês me mostraram que é possível recomeçar a qualquer tempo e quem sabe o que eu serei amanhã? Ao meu irmão, que me ensina a respeitar as diferenças em todos os nossos encontros. Aos meus avôs, tios, primos, pela alegria do reencontro. Ao Dedu, meu tio-irmão-mais-velho, por ser meu ponto de equilíbrio familiar e por dividir não só seus poucos metros quadrados paulistanos, mas também alegrias e angústias da vida. À minha família “inclassificada”: Maria Bernardete, por fazer da nossa casa um lar e deixar todas as pequenas coisas com muito mais cor. Seu amor cotidiano acalenta minha vida; ao Álvaro Senra, não só pela leitura deste texto, mas, principalmente, por ser sempre um dos meus principais incentivadores na vida e ao Gabriel Oliveira, por permitir que eu faça parte da nossa família.

Por fim, agradeço à força maior que muitas pessoas [inclusive eu] chamam de Deus. Nos pequenos detalhes, a vida se mostra alegre e bela, apesar dos contratempos; quando menos espero, a vida me surpreende e renova minha fé no viver.

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RESUMO

Nessa tese, tive como objetivo analisar como ocorre a organização socioespacial da favela de Heliópolis. Para tanto, realizei uma pesquisa socioconstrucionista, utilizando o trabalho etnográfico e a teoria fundamentada como estratégias de pesquisa. As fontes de dados que compuseram minha experiência empírica foram 18 meses de observação participante, a partir do trabalho de campo etnográfico. Além das notas de campos produzidas, também fizeram parte da pesquisa como dados: sete atas de reuniões locais, treze entrevistas semiestruturadas, oito entrevistas abertas, 26 depoimentos do projeto “Memória de Heliópolis” e o acompanhamento de mensagens de dois grupos de WhatsApp. Na tentativa de dar sentido e compreender este fenômeno social urbano, dividi a “realidade” em nove categorias e 29 subcategorias, na análise dos dados embasada na grounded theory. Conclui que o espaço de Heliópolis é organizado a partir da multidimensionalidade de ordem urbana, política, cultural e mercadológica, que me levaram a entender que não é possível reduzir a favela à precariedade, ainda que se faça presente de algum modo nesse espaço. Essa heterogeneidade encontrada em Heliópolis me fez perceber que a imagem da favela como espaço estático que, de longe, parece estar esquecido pelo poder público, pela sociedade, pela cidade, não condiz com a realidade. A favela de Heliópolis é um espaço em constante movimento, não só de pessoas e objetos, mas também destas dimensionalidades que, a todo o momento, se complementam, se sobrepõem, se modificam, se contradizem. Assim, ao destacar a multidimensionalidade da organização socioespacial de Heliópolis, esta tese contribui para a tentativa de olhar para a favela como uma totalidade espacial urbana.

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ABSTRACT

In this dissertation, I analyze how the social space in Heliópolis’ favela is organized. I utilize ethnographic insights and grounded theory as research strategies, based on the social constructionism approach. The data collection method was an 18-month participant observation, from ethnographic fieldwork. Besides the field notes, I also used as part of my analysis: 7 minutes of local meetings, 13 semi-structured interviews, 8 open interviews, 26 testimonials on the project “Memória de Heliópolis” and 2 WhatsApp groups. Following the grounded theory, the data analysis consists in examining 9 categories and 29 subcategories found in the fieldwork. I found that the social space in Heliópolis is, in fact, a complex multidimensional organizational environment, and such aspects as cultural, political, urbanistic and market must be taken into consideration. That said, the intricacy and interaction of these different aspects led me to understand that it is not possible to reduce the favela to precariousness only – even though it might be one of the facets present in some way into this space. The heterogeneity found in Heliopolis made me realize that this image of a favela as a static space which is apparently forgotten by the State and society does not exist in reality. Heliopolis is a space in constant movement – a movement not only made by people or objects, but also by these dimensionalities that constantly complement, overlap, modify, and contradict each other. Thus, in highlighting Heliópolis’ multidimensional socio-spatial organization structure, this dissertation aims to contribute in helping scholars to see favelas as an totality of urban space.

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LISTA DE QUADROS

Quadro 1 - Atas de reuniões da Associação Local de Moradores ... 53 Quadro 2 - Categorias, subcategorias e códigos. ... 59

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LISTA DE FIGURAS

Figura 1- Favela de Heliópolis ... 66

Figura 2 - Esquema de códigos e subcategorias de análise de dados que conduziram à categoria “questões habitacionais contraditórias”. ... 84

Figura 3 - Projeto “A Cor em Heliópolis” na rua Paraíba ... 93

Figura 4 - Estética das casas de Heliópolis ... 94

Figura 5 - Vista aérea do conjunto residencial Heliópolis - Redondinhos ... 95

Figura 6 - Inauguração da primeira entrega de apartamentos dos Redondinhos. ... 95

Figura 7 - Torre da Cidadania do CEU Heliópolis – Profª Arlete Persoli ... 96

Figura 8 - Pátio do CEU Heliópolis – Profª Arlete Persoli ... 97

Figura 9 - Fachada do comércio local ... 99

Figura 10 - Arte de rua na composição estética de Heliópolis ... 99

Figura 11 - Esquema de códigos e subcategorias de análise de dados que conduziram à categoria “estética urbana híbrida”. ... 101

Figura 12 - Esquema de códigos e subcategorias de análise de dados que conduziram à categoria “disputas entre movimentos coletivos”. ... 116

Figura 13 - Esquema de códigos e subcategorias de análise de dados que conduziram à categoria “políticas públicas e projetos sociais [des]contínuos”. ... 135

Figura 14 - Esquema de categorias e subcategorias de análise de dados que conduziram à categoria “ações culturais e artísticas”... 151

Figura 15 - Esquema de códigos e subcategorias de análise de dados que conduziram à categoria “disseminação do mercado de consumo”. ... 169

Figura 16 - Esquema de códigos e subcategorias de análise de dados que conduziram à categoria “relações mercadológicas com impacto social”. ... 183

Figura 17 - Esquema de códigos e subcategorias de análise de dados que conduziram à categoria “convivência com violência e criminalidade”. ... 196

Figura 18 - Esquema de códigos e subcategorias de análise de dados que conduziram à categoria “justaposição do público e privado”. ... 203

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LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS

AMA Associação de Mulheres de Paraisopólis

AMBEV Companhia de Bebida das Américas

BNH Banco Nacional de Habitação

CCA Centro para Criança e Adolescente

CEI Centro de Educação Infantil

CEP Código Postal

CET Companhia de Engenharia de Tráfego

CEU Centro Educacional Unificado

COHAB Companhia Metropolitana de Habitação

EAESP Escola de Administração de Empresas de São Paulo

EMEF Escola Municipal de Ensino Fundamental

EMEI Escola Municipal de Ensino Infantil

EOR Estudos Organizacionais

ETEC Escola Técnica Estadual

FIES Fundo de Financiamento Estudantil

FGV Fundação Getulio Vargas

FMI Fundo Monetário Internacional

FNH Fundo Nacional de Habitação

FNHIS Fundo Nacional de Habitação de Interesse Social

HABISP Sistema de Mapeamento dos Assentamentos Precários de São Paulo IBGE Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística

IPEA Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada

LED Light Emitting Diode

LGBT Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis, Transexuais e Transgêneros

MEI Micro Empreendedor Individual

MOVA Movimento de Alfabetização de Jovens e Adultos

MSE-MA Medida Sócioeducativa em Meio Aberto

MTST Movimento dos Trabalhadores Sem Teto

MST Movimento dos Sem Teto

MTPS Ministério do Trabalho e Previdência Social

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NIS Negócios com Impacto Social

NPJ Núcleo de Proteção Social e Apoio Psicológico

ONG Organizações Não Governamentais

PBF Programa Bolsa Família

PAC Programa de Aceleração e Crescimento

PCC Primeiro Comando da Capital

PMCMV Programa Minha Casa, Minha Vida

Promorar Programa de Erradicação da Sub-habitação

PROVER Programa de Verticalização e Urbanização de Favelas

PT Partido dos Trabalhadores

REUNI Reestruturação e Expansão das Universidades Federais

RSC Responsabilidade Social Corporativa

SASF Serviços de Assistência Social a Família

SENAES Secretaria Nacional de Economia Solidária do Brasil

SESC Serviço Social do Comércio

SMADS Secretaria Municipal de Assistência e Desenvolvimento Social

SME Secretaria Municipal de Educação

SNHIS Sistema Nacional de Habitação de Interesse Social

SPVV Serviços de Proteção a Crianças e Adolescentes Vítimas de Violência e Abuso Sexual

SUS Sistema Único de Saúde

UAB Universidade Aberta do Brasil

UBS Unidade Básica de Saúde

UN-HABITAT Programa das Nações Unidas para os Assentamentos Humanos UniCEU Universidade do Centro Educacional Unificado

UPA Unidade de Pronto Atendimento

UPP Unidade de Polícia Pacificadora

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SUMÁRIO

1. Introdução 16

2. Organizando as ideias sobre espaço e favela 21

2.1 Espaço social: nuances do conceito 21

2.2 O espaço nas organizações e os processos de organizar 25

2.3 História [sucinta] das favelas e suas diferentes representações 29

2.4 A literatura sobre favela em estudos organizacionais 36

3. Pesquisa de campo 40

3.1 A construção social do espaço 41

3.2 Múltiplas estratégias de pesquisa 42

3.3 Minha trajetória até a favela 47

3.4 Acesso a Heliópolis: a entrada ao campo 50

3.5 Dia a dia em Heliópolis: a coleta de dados 52

3.6 Dados multifacetados 56

4. Análise de conjuntura de Heliópolis 61

4.1 Sobre Heliópolis: breve contextualização 63

4.2 Conjuntura urbanística de Heliópolis 66

4.3 Conjuntura política de Heliópolis 103

4.4 Conjuntura cultural de Heliópolis 136

4.5 Conjuntura mercadológica de Heliópolis 152

4.6 Práticas sociais cotidianas de Heliópolis 184

5. MultipliCidades da favela 205

5.1 Multidimensionalidade da organização socioespacialda favela 206

5.2 Diálogos com a literatura acadêmica 213

5.3 Considerações finais: conclusões, inquietações e limitações 218

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1. Introdução

Heliópolis é a maior favela paulistana, com mais de 200 mil habitantes vivendo em um milhão de metros quadrados. Está localizada no distrito de Sacomã, Subprefeitura do Ipiranga, zona sudeste da cidade de São Paulo. De formação recente, nasceu da própria ação municipal ao desalojar famílias da favela de Vila Prudente, em 1971, para construir anéis viários. Com um pouco mais de 45 anos de história, Heliópolis pode ser considerada uma favela bem estruturada, urbanisticamente e com forte movimento de luta social. Nela a vida pulsa: no constante vai-e-vem nas ruas, no agitado comércio local, nas reuniões e discussões políticas, nos inúmeros projetos sociais concomitantes, nos grafites nos muros, na arquitetura despadronizada, nos bailes funk, na vida cotidiana periférica.

No entanto, a favela, ao longo do tempo, recebeu diferentes representações, imagens, análises e discursos que, de certo modo, ‘inventaram’ este espaço citadino que parece ser tão evidente nas grandes cidades (Valladares, 2005). De modo geral, os estereótipos atrelados à palavra “favela” são depreciativos deste espaço citadino. Primeiro, a favela foi reconhecida como lócus de sujeira e doença, nas primeiras décadas do século XX; era por meio da questão higienista que a favela era distinguida na cidade como espaço indesejado a ser combatido. A favela também era reconhecida como o local de moradia das classes perigosas, dos desordeiros, dos delinquentes, dos vagabundos e dos criminosos (Valladares, 1989).

Com a intensificação da pobreza urbana, característica do processo de modernização vivido pelo Brasil a partir das décadas intermediárias do século XX, este espaço torna-se o reduto das massas pobres, dos trabalhadores de baixa qualificação e dos excluídos do sistema econômico. Valladares (1989) afirma que foi somente a partir dos anos 1950 que a favela passou a ser reconhecida como uma questão social, atraindo o interesse dos cientistas sociais. Só então as primeiras políticas públicas e projetos iniciais de urbanização foram desenvolvidos para estes espaços. Foi nesse período que a dicotomia de oposição cidade-favela tornou-se a máxima citadina e, aos poucos, os projetos de remoção vão dando lugar à ideia de urbanização da favela e de construção de conjuntos habitacionais. Porém, com as transformações políticas, econômicas e sociais do Brasil, nas décadas de 1970 e 1980, a população urbana pobre não parou de aumentar e, a partir desse crescimento, nasceu o fenômeno social de “periferização”. A

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população rural pobre dirige-separa os grandes centros em busca de trabalho, mas é obrigada a morar em locais distantes, em loteamentos nem sempre legais, contribuindo para a expansão das favelas (Valladares, 1989; Singer, 1987).

Esse cenário coincide com o momento de redemocratização do Brasil e os moradores de favelas e periferias passaram a se organizar em torno de lideranças locais e movimentos sociais, em busca não só do direito à moradia, mas também da efetivação de seus direitos de cidadania. Esse mesmo processo foi acompanhado pela ampliação da violência urbana e do fortalecimento do tráfico de drogas (Zaluar, 1999b). Novamente, as favelas foram atreladas à ideia de espaços berço da criminalidade e, nos anos 1990, a violência tornou-se sua marca registrada. O comando do espaço pelo crime organizado em regime de toque de recolher, ostentação de armas e tiroteios permeava o imaginário sobre as representações de favela (Zaluar, 1999a; Cavalcanti, 2008). Ainda que Zaluar e Leal (2001) afirmem que as taxas de violência eram mais elevadas nos bairros onde o tráfico de drogas era mais atuante, a polícia quase não aparecia e havia menos políticas sociais, a autora destaca que não se pode reduzir a complexidade da violência urbana à questão da pobreza, injustiça e desigualdade. Para Zaluar e Leal (2001), não há causa única; são muitos os motivos que compõem a violência urbana (Zaluar, 1999b).

Não é fácil ultrapassar essa imagem das “favelas inventadas” (Valladares, 2005) ao longo da história urbana. De certo modo, ainda permanece um pouco da ideia de cada uma dessas favelas inventadas no imaginário popular. Minha própria ideia de favela, ao longo do processo de pesquisa, foi desconstruída e reconstruída muitas vezes, até que este território, a priori tão distinto dos lugares que me são comuns, aos poucos transformou-se em um dos meus espaços cotidianos na cidade de São Paulo.

Na tentativa de superar os estigmas sociais da favela, tem sido comum nos referirmos a estes espaços como comunidades. O termo parece ser “politicamente correto” para marcar uma nova fase das representações de favela: a favela pacificada (Brulon 2015; Brulon & Peci, 2013a; Lacerda & Brulon, 2013; Carvalho, 2013; Cunha & Mello, 2011; Leite, 2014), a favela turística (Freire-Medeiros, 2007; 2013), a favela consumista (Meireles & Athayde, 2014) e a favela empreendedora (Tommasi & Velazco, 2013). Contudo, para Boff (2011), quando a favela é estudada por apenas uma ótica, seja ela sociopolítica, sociourbanística, sociocultural ou socioeconômica, acaba-se limitando a compreensão da complexidade desacaba-se fenômeno.

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Dymski (2011) ressalta que a favela é heterogênea e, apesar das contribuições de cada uma das diferentes literaturas e interpretações deste fenômeno urbano, há a necessidade de estudá-la como um processo. É nesse sentido que acredito que os estudos organizacionais (EOR) possam contribuir para a literatura sobre favelas. Ao nos preocuparmos com os processos organizativos dos espaços, podemos observar como as favelas acontecem e não apenas como elas aparecem (Czarniawska, 2014).

Em EOR, poucos estudos foram realizados tendo a favela como objeto de pesquisa, publicados nacional e internacionalmente (Lobato, Silva & Bicudo, 2003; Imas & Weston, 2012; Kosmala & Imas, 2012; Tenório, Brulon & Duarte, 2013; Brulon & Lacerda, 2013; Brulon & Peci, 2013a, 2013b, 2013c; Brulon, Lacerda & Peci, 2013; Ost & Fleury, 2013; Brulon & Peci, 2014a, 2014b, 2014c; Lacerda & Brulon, 2014; Brulon, 2015; Lacerda, 2015, Silva & Rossoni, 2015; Kosmala & Imas, 2016; Cabral, Fernandes & Teixeira, 2016, Brulon & Peci, 2016a, 2016b; Von Schuckmann, Barros & Andrade, 2016). Destes, o trabalho de Brulon (2015) também se propõe a olhar para os modos de organizar dos territórios de favela. Nesse sentido, propõe-se, neste trabalho, que a administração, em particular os estudos organizacionais, também contribua para a reflexão sobre a organização do espaço urbano.

Não há como negar que as organizações são de fundamental importância no desenho da cidade e na produção social do espaço urbano. Duarte e Alcadipani (2013) chamam a atenção para a forma como o objetivismo dominante na área de administração leva à naturalização de uma compreensão das organizações neutras, como se estas não influenciassem a totalidade da sociedade e tivessem fronteiras bem definidas no “mundo organizacional”. Esta visão não é suficiente para entender fenômenos organizacionais complexos, como no caso das relações envolvidas na produção social do espaço urbano.

Assim, nesta tese também se resgata a dimensão espacial como objeto nos estudos organizacionais. Embora o espaço seja uma categoria negligenciada nessa área, ele possibilita ampliar a compreensão das ações organizacionais para a sociedade como um todo (Goulart, 2006). Assim como é necessário romper a visão imutável do espaço, Thrift (2006) faz um paralelo com os modos como as organizações são compreendidas. Em oposição à ideia naturalizada de “organização” da abordagem formalista, o autor apresenta a necessidade de observar as organizações processos de improvisação

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contínua, dinâmica e inacabados, assim como o espaço (Thrift, 2006; Lefevbre, 1999; Santos, 2011).

O espaço seria, então, um ponto crucial para os fenômenos organizacionais, bem como as organizações têm um papel importante na construção do espaço social, devido à sua centralidade no mundo contemporâneo. Portanto, o espaço e a materialidade constroem a organização, bem como a organização os constrói (Dale & Burrell, 2008). Ao pensar na relação entre organizações e espaço social como processos inacabados que estão em constante produção e reprodução, pode-se também acreditar que é possível outra produção urbana em que a cidade seja, efetivamente, para todos. Acredito ser um momento oportuno para trazer o debate da organização socioespacial da favela para que se repense a produção social da cidade, em especial de São Paulo. Como é possível aprender com a organização espacial da favela para reorganizar o espaço urbano, de modo a garantir o direito à cidade a todos os cidadãos?

Ao me propor pensar sobre cidade e favela, tentei permitir que o espaço social de Heliópolis falasse por si mesmo. Por isso, adotei duas estratégias metodológicas de pesquisa: a abordagem etnográfica e a grounded theory. O trabalho etnográfico permitiu que eu me aproximasse da realidade de favela de modo intenso, enquanto a grounded theory possibilitou que eu teorizasse sobre essa mesma realidade. O papel da grounded theory é gerar uma nova teoria que explique a relação da experiência coletiva ou individual para a sociedade, a história, o grupo ou a organização (Goulding, 2001). Por isso, ao assumir que as atuais teorias sobre favela e urbano são fragmentadas e não voltadas para a compreensão do espaço social em sua totalidade (Boff, 2011), esta metodologia se mostrou uma abordagem adequada, permitindo teorizar sobre elementos ambíguos e contraditórios na produção do espaço social de Heliópolis, na tentativa de superar os estigmas que o conceito de favela ainda carrega consigo. Este trabalho foi realizado comum objetivo reflexivo, de se pensar o espaço da favela para além de seus estereótipos, como um espaço que deve ser tratado no singular (Valladares, 2005), heterogêneo (Dymski, 2011) e não como um problema a ser solucionado (Valladares, 1989).

A princípio, fiquei desnorteada com tantas situações acontecendo simultaneamente. Era difícil direcionar meu olhar para apenas um recorte de pesquisa. Essa desorientação no campo não é incomum de acontecer em pesquisas etnográficas (Alcadipani, 2013), uma vez que o pesquisador se propõe a conhecer a cultura e as particularidades daquele mesmo lugar e se abre para o desconhecido. Entretanto, em

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algum momento da pesquisa de campo, é necessário que o pesquisador faça uma escolha de direcionamento do seu olhar e, por muito tempo, não consegui fazer tal escolha. Por um tempo, me propus observar as relações mercadológicas ali existentes; em outro momento, me interessei pelos movimentos coletivos e seus projetos sociais. De repente, me vi bastante envolvida nas discussões sobre moradia e direito à cidade; participei de eventos culturais na favela e, após refazer inúmeras vezes meu problema de pesquisa, eu queria compreender como todo esse fluxo incessante de relações sociais, econômicas, políticas e culturais compunha aquele espaço denominado de favela. Assim, a questão de pesquisa desta tese foi: como ocorre a organização socioespacial da favela de Heliópolis?

Mais especificamente, foram delimitados, como objetivos específicos da pesquisa, os seguintes tópicos:

 analisar os modos de organizar o espaço urbanístico de Heliópolis, a partir da percepção dos moradores;

 examinar o influxo das relações políticas de lideranças locais na organização socioespacial de Heliópolis;

 identificar manifestações culturais e artísticas mais expressivas que compõem a organização socioespacial de Heliópolis;

 compreender como o mercado de consumo de baixa renda [re]organiza o espaço social de Heliópolis.

Para apresentar os resultados desta pesquisa, além da introdução, o texto foi escrito no formato tradicional de tese. No capítulo 2, apresento os conceitos de espaço social e suas interfaces com o campo de estudos organizacionais, bem como as transformações da categoria favela e como a mesma foi retratada como objeto de estudo em EOR. Descrevo, no capítulo 3, os caminhos metodológicos que me guiaram nesta pesquisa e,em seguida, faço o que denominei de ‘análise de conjuntura’, uma apresentação dos dados que compuseram a teoria fundamentada que dá subsídio ao capítulo 5, no qual apresento minha teorização da ‘multipliCidades da favela’. Esta se reencontra com a literatura já apresentada e com outros diálogos acadêmicos possíveis e também descrevo brevemente, as limitações e as sugestões de pesquisas futuras. Por fim, faço reflexões sobre as mudanças urbanas incessantes que provocaram grandes transformações na cidade de São Paulo, na favela de Heliópolis, em mim mesma e que resultaram nas próximas páginas que serão lidas.

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2. Organizando as ideias sobre espaço e favela

A literatura sobre espaço é ampla e, segundo Shields (2006), tem sido de interesse de diversas áreas do conhecimento de profissionais, como geógrafos, arquitetos, urbanistas, sociólogos, filósofos, antropólogos, historiadores, juristas e outros. Estes profissionais estão, há muito tempo, preocupados em compreender as diferentes faces do espaço e suas implicações para a vida cotidiana e, para tanto, diversos textos foram produzidos na tentativa de entender o que é espaço.

Estudar espaço foi um desafio pessoal, não só por ser um tema de tamanha abrangência e interdisciplinaridade, como também por se tratar de uma temática completamente nova na minha experiência acadêmica. Ao enveredar pela literatura sobre espaço, descobri que, assim como eu, outros pesquisadores de estudos organizacionais já haviam se preocupado com a relação desse conceito com a teoria das organizações, o que ajudou em minha escolha de permanecer nessa área de estudo. Ainda assim, busquei ajuda em outros campos do conhecimento, sobretudo na geografia, na arquitetura, na sociologia e na antropologia, uma vez que, dentre os diferentes tipos de espaço social, meu foco era compreender o espaço urbano e, em particular, o espaço da favela.

Colocando a organização do espaço social de favela como foco, neste capítulo o objetivo é apresentar ao leitor o que se entende por espaço social, bem como sua interface com a literatura sobre processos de organizar. Faço uma breve contextualização sobre a história das favelas e introduzo uma reflexão sobre as diferentes representações deste espaço ao longo do tempo. Também busco resgatar os trabalhos realizados em EOR que tomam a favela como objeto de pesquisa. Assim, espero estabelecer alicerces para futuros diálogos teóricos com a teoria fundamentada construída nesta tese.

2.1 Espaço social: nuances do conceito

A organização social da vida cotidiana se dá em algum espaço. Seja no campo, na cidade, na casa, na praça, no comércio, bem como na fala, na escrita, nas artes, a vida acontece, estritamente, em algum espaço. Desse modo, Santos (2011, p. 97) afirma que “o estudo da relação entre espaço e organização humana tem uma longa história”.

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A natureza do espaço é objeto de estudo, segundo Shields (2006), desde os filósofos antigos, que acreditavam que o espaço era composto por dois elementos – a matéria e o movimento –essenciais para a geometria do espaço. Também passou a ser objeto de interesse de filósofos modernos, cujas ideias perpassaram o “espaço como localização das coisas; a relevância do lugar; o espaço abstrato, geométrico, cartesiano; o espaço absoluto; o espaço relativo e o espaço que não existe” (Santos, 2011, p. 70). Mas foi nas ciências sociais que a complexidade do conceito de espaço tornou-se mais abrangente, abarcando outras esferas além dos elementos físicos (ou sua ausência) para a sua compreensão (Shields, 2006; Huggett, 1999).

Crang e Thrift (2000) relembram que o espaço se encontra em todo o pensamento social moderno e ainda é um tema conflituoso de compreensão. Por isso, os autores chamam a atenção para a importância de se estudar o espaço a partir da realidade da prática social, ou seja, ele precisa ser entendido como elemento produzido socialmente.

Nesse sentido, destaca-se o trabalho do francês Henri Lefebvre, que propôs o conceito de espaço social. “O espaço (social) é produto (social)” (Lefebvre, 1991, p. 26, tradução nossa). Esta é a síntese do conceito de espaço social lefebvriano. Para o autor, é nas relações, formas e práticas que, em conjunto, produzem o que chamamos de espaço. Por isso, Lefebvre defende a obviedade de que o “social” é inerente ao espaço.

Segundo Lefebvre (1999), o espaço não se resume ao reflexo das relações sociais de produção capitalista e de urbanização. Muito mais do que isso, o espaço deveria ser entendido como reprodutor, produto e produtor das relações sociais. O “espaço (social) intervém no modo de produção, ao mesmo tempo, é efeito, causa e razão, ele muda com esse modo de produção” (Lefebvre, 1999, p. 6). O espaço dialético realiza a reprodução das relações sociais de produção, enquanto simultaneamente produz as relações sociais de produção, introduzindo nela múltiplas contradições.

O conceito de espaço deve ser pensado além do espaço físico, não como sujeito nem objeto, mas o espaço social produzido por meio de uma realidade social, um conjunto de relações, formas e práticas que só podem ser compreendidas no contexto de uma sociedade específica. Lefebvre (1991) alega que o espaço, seja ele qual for, abarca e oculta relações sociais e, por isso, “oespaço não é uma coisa, mas um conjunto de relações entre coisas” (Lefebvre, 1991, p.83, tradução nossa). O espaço é inacabado; assim, ele é continuamente produzido e isso está sempre ligado ao tempo (Lefebvre, 1991).

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Outros autores partiram deste conceito e contribuíram para a reflexão sobre a produção do espaço social, sobretudo o urbano. Entre eles, destaca-se o trabalho do geógrafo brasileiro Milton Santos, que se preocupou em estudar o espaço com base nas particularidades do processo de urbanização latino-americana e, principalmente, o Brasil urbano e a partir da concepção de espaço social.

Para Milton Santos (2013, p.46), deve-se considerar o espaço “como algo dinâmico e unitário, onde se reúnem materialidade e ação humana. O espaço seria o conjunto indissociável de sistemas de objetos, naturais ou fabricados, e de sistemas de ações, deliberadas ou não”. A ideia central de sua definição é que os sistemas de objetos e os sistemas de ações são tão imbricados que é impossível analisar um sem o outro. Desse modo, na interação simultânea dos objetos e das ações, o espaço é transformado. Por isso, Milton Santos (2009) propõe que o espaço seja tratado, ao mesmo tempo, como processo e como resultado da interação desses dois sistemas.

Soja (1993) é outro autor que respalda a ideia de espaço social. Para este geógrafo, o ser humano em si é espacial (Soja, 1993). O espaço é como as todas as construções sociais do “estar vivo”; é resultado das transformações constantes do cotidiano. Porém, este autor é considerado responsável por uma leitura pós-moderna da obra de Lefebvre, ao afirmar que o espaço social seria um ‘terceiroespaço’ (thirdspace). Enquanto Lefebvre propõe uma análise por meio da dialética tridimensional em que a produção do espaço tem três dimensões dialeticamente interconectadas - tríade da prática social, representação do espaço e espaços de representação - Soja (1993), por sua vez, postula a existência autônoma dos três espaços, o espaço físico, o espaço mental e o espaço social, sendo este último o lugar de onde todos os espaços podem ser apreendidos, entendidos e transformados ao mesmo tempo (Schmid, 2008).

Apesar de sinuosidades teórico-metodológicas, as reflexões dos autores citados contribuem para afastar o entendimento do espaço como uma categoria absoluta e alicerçar o espaço como parte da realidade da prática social, como um todo composto de diferentes elementos produzidos socialmente (Crang e Thrift, 2000). Adotando o espaço social como ponto de partida, Crang e Thrift (2000) acreditam ser possível produzir uma narrativa de “como” e “por que” o espaço é importante para “moldar a vida cultural, social, econômica e política nos anos recentes” (Hubbard, Kitchin & Valentine, 2004, p. 1, tradução nossa).

Para a compreensão de espaço na contemporaneidade, Thrift (2006) aponta quatro princípios que, relacionados entre si, estão enraizados no conceito de espaço. São

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eles: (i) tudo é espacialmente distribuído, tendo uma geografia própria que entrelaça outros espaços; (ii) não existem fronteiras nos espaços, pois estes são porosos em maior ou menor grau; (iii) o espaço está em constante movimento;não existe espaço estático e estável; (iv) não há um tipo de espaço; os espaços se apresentam de muitas formas, como pontos, planos, parábolas, borrões, apagões.

Outra prerrogativa essencial para a compreensão do espaço está na sua relação com o tempo. O tempo é inseparável do espaço e, para Milton Santos (2013, p. 67), “o espaço é uma categoria histórica e, por conseguinte, o seu conceito muda, já que aos modelos se acrescentam novas variáveis no curso do tempo”. Para este autor, o espaço é resultado de uma construção de tempo social e este é o ponto que se procura realçar neste trabalho acerca da ideia de favela, isto é, novos elementos fazem parte deste território e, por isso, os estigmas de favela com os quais estamos acostumados não são capazes de abarcar a realidade atual, ou seja, não representam a favela.

Contudo, é preciso ir além para a compreensão da relação tempo e espaço, e, para tanto, May e Thrift (2001) alertam sobre a necessidade de superar o dualismo ‘tempo’ e ‘espaço’ como categorias isoladas e complementares. O que há, segundo os autores, é um ‘TempoEspaço’ (TimeSpace), uma única categoria de análise. Para a compreensão deste conceito, é necessário levar em conta a natureza social do tempo, ou seja, trata-se de um tempo social. O tempo social é feito e refeito por meio das práticas sociais. Além disso, esse tempo social não é singular e uniforme, e, sim, múltiplo e dinâmico, composto de várias redes de tempo em um campo social não equilibrado. Assim, a variação espacial passa a ser parte constitutiva do tempo social e é nesses pressupostos que May e Thrift (2001) suportam o conceito de TempoEspaço.

Nossa compreensão da relação entre o tempo e espaço acaba ocorrendo por meio das nossas experiências (May e Thrift, 2001). As diversas narrativas sobre tempo-espaço estão relacionadas com as condições sociais e materiais de uma determinada época (Harvey, 2009). Houve uma mudança significativa nos significados do espaço e do tempo a partir da Revolução Industrial, com a aceleração dos tempos e o surgimento de uma noção espacial voltada para a expansão do capital (Harvey, 2005). As experiências do tempo-espaço no capitalismo são de instantaneidade: “acentua-se a volatilidade e efemeridade de modas, produtos, técnicas de produção, processos de trabalho, ideias, valores e práticas estabelecidas” (Harvey, 2009, p. 258).

Com a aceleração dos tempos, Harvey (2009) preocupa-se com a aniquilação do espaço por meio do tempo. Para este autor, o espaço deixa de ser um

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lugar para a materialização da vida humana e é apropriado pelo capital de modo que o espaço, por si só, é capaz de gerar mais capital, quebrando barreiras espaciais. Assim, o modelo de sistema capitalista ataca e suprime as fronteiras espaciais, modificando nossas noções de distâncias, produzindo novos espaços econômicos e colocando no centro das atenções o papel da organização espacial (Thrift, 2006), uma vez que, sem ela, o processo de expansão geográfica necessária para a acumulação do capital não seria possível (Harvey, 2005).

Vimos, até aqui, que o espaço é um produto social, ou seja, construído por meio das práticas sociais de seu tempo social. Polanyi (1980) denomina de “a grande transformação” o processo de organização social do modelo de economia de mercado que consolida o capitalismo como sistema social vigente. Esta “grande transformação”, iniciada pelo processo de industrialização, (re)produz um espaço social em que o urbano torna-se o protagonista (Polanyi, 1980; Singer, 1987). Pechman (1994) afirma que as cidades são a grande novidade do século XIX. Elas são um verdadeiro espaço de experiências sociais e têm como cenários as ruas, as fábricas, as moradias precárias para que “o movimento alucinante de pessoas e mercadorias preparem a civilização que está por vir” (Pechman, 1994, p. 3).

Essa civilização estava atrelada à ideia das mudanças que a industrialização acarretou na organização social da vida cotidiana da época, principalmente centralizando “a vida” nos espaços urbanos. As organizações passaram a ter tamanha centralidade nessa sociedade que são fundamentais para compreender as estruturas, os processos e as relações sociais (Dale & Burrell, 2008). Após o período de industrialização, a vida social parece se organizar em torno da organização do trabalho e uma proliferação de estudos acerca do mundo organizacional deu embasamento aos pilares da teoria da administração (Prestes Motta, 2001). Por isso, apresentarei, a seguir, as interfaces entre a teoria das organizações e o espaço.

2.2 O espaço nas organizações e os processos de organizar

O espaço aparece, nas primeiras teorias da administração, como espaço de trabalho e espaço de produção. Na Teoria Clássica de Taylor, Ford e Fayol, o espaço está relacionado aos projetos físicos e estruturais para a realização do trabalho (Kornberger & Clegg, 2004, Chanlat, 2006). O espaço organizacional é um espaço produtivo, controlado, dividido e hierarquizado (Kornberger & Clegg, 2004). É na

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Escola de Relações Humanas que o espaço organizacional vai ser compreendido próximo à ideia de espaço social. Mayo e seus colaboradores acreditavam que o espaço físico é um elemento essencial na construção de vínculos sociais, criando um sentimento de pertencimento nos trabalhadores (Chanlat, 2006). Nesse sentido, Chanlat (2006) também chama a atenção para a percepção de Follet sobre as organizações como espaços de experiências sociais em que a cultura organizacional e o sistema social são elementos determinantes, bem como para a ideia de Barnard de que o espaço organizacional deveria ser um espaço cooperativo entre os trabalhadores com estrutura multidivisional de trabalho.

Ao final da Segunda Guerra Mundial, a teoria da administração que tinha foco na produtividade passou a se preocupar com a eficiência das organizações e, segundo Prestes Motta (2001), essa mudança delimitou a transição para uma teoria das organizações. Essa não é uma simples alteração de nomenclatura. Quando se fala em teoria das organizações, uma multiplicidade de estruturas teóricas e escolas de pensamento se inspiram e compõem o campo (Mckinley, Mone & Moon, 2003). Tsoukas e Knudsen (2005) colocam que, no processo de desenvolvimento da teoria organizacional como campo, há uma transformação do próprio conceito de organização. A ideia de organização tão naturalizada e reificada nem sempre é capaz de compreender fenômenos organizacionais multifacetados. Para os autores, as suposições rígidas e limitadas sobre organizações vão dando margem para suposições mais complexas: se, antes, as organizações eram percebidas como sistemas racionalmente projetados, agora elas passam a ser aceitas como coletividades sociais historicamente constituídas, inseridas e envolvidas em seus ambientes.

Assim, as organizações, como entidades objetivamente reais, bem projetadas e gerenciadas, a partir de sistemas de decisão e ação dirigidos pela racionalidade, eficiência e efetividade visando atingir objetivos definidos, não são capazes de explicar fenômenos organizacionais mais complexos (Hatch & Cunliffe, 2006). Portanto, as autoras colocam que as “novas” concepções consideram as organizações como continuamente construídas e reconstruídas por meio de interações simbolicamente mediadas ou, ainda, uma concepção de organização como espaço de relações de poder, opressão, irracionalidade e distorções comunicativas. Ainda nas possibilidades de concepção de “organização”, Czarniawska (2010) enfoca a importância dos processos organizativos que consideram as organizações como

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reificações temporárias, dado que o processo organizativo nunca cessa e acontece em vários lugares ao mesmo tempo.

A compreensão de organização como entidade que tem estruturas bem definidas, que atuam de modo racional e coerente para atingir objetivos específicos, como unidades independentes,éo que, genericamente, chamamos de “organizações” (Czarniawska, 2010). Para a autora, restringir-se a estudar as “organizações” pode encobrir questões fundamentais, como “o organizar sem organizações, o organizar entre organizações e o organizar, apesar das organizações” (Czarniawska, 2010, p. 144, tradução nossa). Segundo a autora, os processos de organizar que ocorrem dentro de organizações formais poucas vezes ficam contidos em seus limites. Abrir-se para os fenômenos que vão além das delimitações da organização pode possibilitar que os pesquisadores organizacionais analisem processos que acabam escondidos quando se tem foco na organização em si. Este olhar performático para além das organizações nos permite ver como as organizações são realizadas, como acontecem e não apenas como elas aparecem (Czarniawska, 2014).

Essa perspectiva processual das organizações teve início com o trabalho de Weick, nos anos 1970, ao utilizar o termo organizing e não organization. Embora os estudos de Weick (1973) não tenham se concentrado em definir o que seria organizações, o autor parte do pressuposto de que os processos criam, conservam e dissolvem coletividades sociais, constituindo o ato de organizar. Desse modo, as formas pelas quais os processos são continuamente executados são o que compõe a organização. Para o autor, a organização está ligada à continuidade e ao movimento e, portanto, não é objeto estático ou fechado que existe dentro de um ambiente imutável com pessoas desenvolvendo funções fixas (Weick, 1973).

Ao entenderem a organização como um processo de ordenação social de ações coletivas em que a corporalidade e a materialidade são elementos estruturantes e, portanto, em constante significação, Dale e Burrell (2008) enfatizam o espaço nas análises organizações. Os autores analisam o espaço organizacional ressaltando os aspectos físicos, o poder e a identidade. Mais precisamente, buscam analisar os espaços de trabalho e os espaços de consumo das sociedades capitalistas contemporâneas. Eles afirmam que na retórica espacial está presente uma valorização da aparência na criação de espaços organizacionais esteticamente pensados que ofuscam as relações de poder e controle inerentes às organizações. Cria-se a ideia de organização como uma “comunidade” em que os vínculos sociais entre as pessoas são enfatizados e as relações

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de poder são mascaradas, levando à visão da organização como uma “segunda casa” ou, ainda, como um fim em si mesmo (Dale & Burrell, 2008).

Seja em espaços de trabalho ou espaços de consumo, a materialidade é essencial para a compreensão das práticas e relações ali existentes. Mais do que isso, Dale (2005) coloca que essa materialidade é social, uma vez que “os processos e estruturas sociais e os processos e estruturas materiais são mutuamente dispositivos” (Dale, 2005, p. 651, tradução nossa). A autora parte do conceito de espaço social de Lefebvre, bem como dos estudos de “cultura material” e de “corporificação”, para entender como os processos organizacionais são vividos. Para explicar seu conceito de materialidade social, a autora apresenta a metáfora do rio: temos a ideia do rio (os aspectos sociais) como dinâmico e ativo e as margens (os aspectos materiais) como fixas e estáticas. Porém, a partir de um olhar mais atento, é possível perceber que a própria formação do rio ocorre a partir da paisagem, ou seja, pelas formas das margens, do mesmo modo que, à medida que o rio se move, ele molda e modifica, aos poucos, a estrutura da margem.

Ao pensarmos no espaço, faz todo sentido essa materialidade social. O espaço é comumente pensado em seus aspectos físicos, como um local definido que contém elementos materiais e onde acontecem práticas sociais, enquanto, na verdade, o espaço também é produtor de sua materialidade e da sociabilidade.

Outros autores interessados na compreensão do espaço nas análises organizacionais são Taylor e Spicer (2007), que fizeram uma revisão de literatura sobre os trabalhos em estudos organizacionais em que o espaço é tema de investigação. Estes autores afirmam que, em organizações, o espaço aparece em três possíveis configurações: como distância, como materialização de relações de poder e como experiência. Como distância, as pesquisas espaciais em EOR estão voltadas para os aspectos mais visíveis do espaço interno e do mundo organizacional, como, por exemplo, ergonomia, arranjo interno de locais de trabalho, aglomeração de empresas, distância entre recursos e competidores, e redes organizacionais e individuais. O espaço como materialização de relações de poder, por sua vez, foi encontrado em trabalhos que tratam das relações no espaço econômico, principalmente com um viés marxista, em trabalhos que observaram as relações de poder por meio de um olhar disciplinador, embasado em Foucault, bem como em estudos da relação entre trabalho e não trabalho, difusa entre o espaço público e o espaço privado (Taylor & Spicer, 2007).

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Por fim, os autores apresentam o espaço como experiência vivida. Neste caso, Taylor e Spicer (2007) observaram como os espaços são produzidos e se manifestam nas experiências daqueles que os habitam. Os trabalhos encontrados abordam as percepções dos sujeitos a respeito de determinado espaço, portanto, fazem dele um espaço ocupado por diferentes experiências. Esses espaços são muito diversos e, assim como a favela, podem ser significados e representados de inúmeras maneiras.

2.3 História [sucinta] das favelas e suas diferentes representações

As representações e os conceitos sobre o que é favela, hoje estabelecidos no Brasil parecem não ser capazes de capturar toda a complexidade deste fenômeno urbano que mudou ao longo de sua história (Paulino, 2007). O termo “favela” se tornou notável na guerra de Canudos, em 1897, quando ex-combatentes, regressando ao Rio de Janeiro, foram habitar o morro da Providência, que passou a ser conhecida pelo nome de “morro da Favella”. Segundo Valladares (2000), há duas possíveis explicações para a mudança de nomenclatura do morro. Primeiro, a existência, neste morro, da mesma vegetação que cobria o morro da Favella do município de Monte Santo, na Bahia e, segundo, o papel representado, na guerra de Canudos, pelo morro da Favella de Monte Santo, cuja resistência retardou o avanço final do exército sobre Canudos.

No Brasil, o surgimento dos espaços urbanos de favelas está historicamente atrelado à abolição da escravatura, à decadência da produção cafeeira e ao desenvolvimento industrial do país. No Rio de Janeiro do século XIX, então capital brasileira, a população pobre habitava cortiços e estes locais eram percebidos como lugares de contágio de doenças e vícios. Ao final daquele século, houve perseguição a essas moradias e, para Zaluar e Alvito (2006, p.8), “pode-se dizer que as favelas surgiram em decorrência não intencional das tentativas dos republicanos e dos teóricos do embranquecimento para torná-la (a capital brasileira) uma cidade europeia”.

A região do “morro da Favella” foi ocupada com moradias provisórias por estes sujeitos despejados dos cortiços (Valladares, 2000). Contudo, o problema higiênico-sanitário que os cortiços representavam passou a ser uma questão da favela que, logo, também passou a ser combatida como local indesejado à cidade. Zaluar e Altivo (2006) contam que, desde o início, a favela carioca era um duplo “problema”: sanitário e policial. O morro da Favella era percebido pelas autoridades como um “foco

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de desertores, ladrões e praças do Exército”. Os morros da cidade eram habitados pelas “classes perigosas”, tornando-se, no imaginário de alguns setores da população, refúgios de criminosos (Valladares, 1980; Zaluar & Altivo, 2006).

Na cidade São Paulo, a população pobre e trabalhadora não foi expulsa para os morros, mas, sim, para a periferia da cidade. O surto de crescimento de São Paulo, ocorrido no final do século XIX e a consequente expansão do mercado imobiliário não podiam permitir que a população pobre desvalorizasse os locais centrais da cidade. Assim, em 1886, foi proibida a instalação de cortiços na zona central e os pobres foram alocados na periferia (Rolnik, 1997). Teve, desse modo, início a geografia social de São Paulo: “uma linha imaginária que definiu os muros da cidade” (Rolnik, 1997, p. 48), a partir da segregação social que levou a capital paulista a ser representada, por Caldeira (2000), como a “cidade de muros”.

Ao longo do século XX, a palavra favela difundiu-se para designar fenômenos urbanos parecidos com o morro da Favella. Assim, “os ‘mocambos’ de Recife, as ‘malocas’ de Porto Alegre e as ‘invasões’ e os ‘alagados’ da Bahia também passaram a ser denominados favelas (Santos, 1982, p. 45). Atualmente, a conotação negativa e preconceituosa do termo favela – e do favelado – estigmatiza a dimensão social geográfica como determinante do caráter e das ações de seus moradores. Por isso, recentemente, foi cunhada a ideia de comunidade, em detrimento da nomenclatura favela (Meirelles & Athayde, 2014), uma vez que este termo remete a um tipo de ocupação urbana representada, historicamente,pela ausência e que é denominada, pelos órgãos oficiais, como assentamentos subnormais (IBGE, 2010).

Para a UN-HABITAT (2003), os slums1 são territórios em que há “ausência

de serviços básicos; habitações precárias ou ilegais e construções inadequadas; alta densidade e superlotação; condições de vida insalubre e perigosa; insegurança da posse”. Para Zaluar e Alvito (2006, p. 8-9), a favela foi “registrada oficialmente como área de habitações irregularmente construídas, sem arruamentos, sem plano urbano, sem esgotos, sem água, sem luz [...] o lugar da carência, da falta, do vazio a ser preenchido pelos sentimentos humanitários”. “A favela é definida pelo que não seria ou pelo que não teria” (Observatório de Favelas, 2009).

Nesse caso, a representação popular da favela é a de um espaço “sem”: sem infraestrutura urbana, como água, esgoto, coleta de lixo; sem arruamento; sem ordem;

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sem regras; sem moral; sem o exercício da cidadania; sem direitos. Além do “sem”, outra representação usual é a da favela homogênea. Naturaliza-se o uso do singular e a palavra favela passa a representar todos esses espaços como se fossem iguais e unitários (Valladares, 2005). A ideia de homogeneização das favelas é cada vez mais reforçada frente a propostas como a tese da “cidade partida” (Ventura, 1994), em que a favela representa “a outra metade da cidade” (Valladares, 2005). Quem nunca adentrou na favela acaba acreditando que é um espaço determinado somente pela pobreza e a violência, imagens tão reforçadas pela mídia brasileira. Para Valladares (2005, p. 157), a pobreza - e a violência também- se caracterizam em outros espaços que não favela.

Em São Paulo, segundo Coelho (2002, p. 10), “há registros de uma favela em 1935 e de quatro outras surgidas nos dois anos posteriores. Datadas da década seguinte, entre 1942 a 1949, existiam 16 favelas”. Esse quantitativo de favelas, até então, não representava um problema para as elites e para a administração local, pois elas eram consideradas espaços urbanos provisórios. Contudo, com o aumento gradual do número de favelas, foi ficando cada vez mais difícil que a sociedade ignorasse a presença desses territórios urbanos.

A visibilidade esporádica das favelas enxergava-as como um problema social e, por isso, foram realizadas diversas tentativas estatais de acabar com estes espaços. É claro que tais ações davam-se não pela perspectiva da assistência social e, sim, pelo incômodo urbano que as favelas causavam no restante da cidade (Valladares, 2000; Zaluar & Alvito, 2006). Após inúmeras tentativas sem sucesso de removê-las, feitas pelo Estado, políticas de urbanização da favela na cidade tiveram início na década de 1950 e, sobretudo, na de 1960 (Cardoso, 2007).

A discussão entre remoção ou urbanização de favelas, de acordo com Cardoso (2007), teve início após o fracasso do programa de erradicação de favelas desenvolvido por Carlos Lacerda, no Rio de Janeiro. O programa tinha o intuito de regenerar o favelado em novo local de moradia, nos conjuntos habitacionais da Cohab, tirando-o da ‘precariedade’ da favela.Porém, fracassou tanto na execução quanto na aceitação,pelos favelados, da ideia de remoção, tendo a resistência e a luta pela urbanização sido um marco histórico importante na história das favelas, não só carioca, mas de todo o Brasil (Brum, 2013).

A expansão descontrolada das favelas, na década de 1970, complicou a questão de urbanização de favelas. Esta expansão foi consequência de uma política liberal descontínua e omissa do Estado brasileiro, mas, de acordo com Davis (2006),

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também se tornou realidade em outros países “subdesenvolvidos”, em que as favelas passaram a ser uma questão agudizada pelas políticas neoliberais que os reestruturaram. Davis (2006) faz uma crítica no sentido de, que sob a liderança do Fundo Monetário Internacional (FMI) e do Banco Mundial, o crescimento das favelas superou a urbanização propriamente dita, provocando uma “superubanização” impulsionada pela reprodução da pobreza. “O preço dessa nova ordem urbana será a desigualdade cada vez maior” (Davis, 2006, p. 18).

Neste mesmo período, também é importante destacar o papel do Banco Nacional de Habitação (BNH) e do Sistema Financeiro de Habitação (SFH) (Rolnik, 1997; Maricato, 1997; Caldeira, 2000). O BNH instituiu programas alternativos de habitação, como o Programa de Erradicação da Sub-habitação (Promorar), porém, na prática, esta política pública foi invertida e a mais favorecida foi a classe média. As exigências do BNH eram tantas que muitas não podiam ser cumpridas pela classe pobre trabalhadora; rapidamente, suas ações foram redirecionadas para a classe média (Maricato, 1997). Desse modo, as camadas pobres trabalhadoras que não tinham recursos para comprar no mercado formal e que só raramente atendiam às exigências do BNH para um pedido de empréstimo construíam casas por conta própria, sem nenhuma ajuda financeira (Caldeira, 2000). A casa própria se tornou um discriminante social e parte da população que não conseguia fazer parte do sistema de financiamento encontrou, como solução, a invasão de terrenos e a autoconstrução, expandindo ainda mais o quantitativo de favelas.

O SFH foi extinto em 1986, em um momento político de pré-redemocratização do país e de alta recessão econômica, os anos 1980, que aprofundou as desigualdades sociais (Maricato, 1997). Porém, a pauta de urbanização já estava presente nas diversas agendas políticas e, nos anos 1980, as esferas municipais e estaduais desempenharam papel significativo na implementação de programas de urbanização e habitação das grandes cidades (Cardoso, 2007).

Com a “abertura política” brasileira, pós-democratização do Brasil, os movimentos sociais emergiram e ganharam força nas periferias e favelas. Rapidamente, os moradores pobres de São Paulo, tomados pelo sentimento de transformação política social da democratização, aprenderam a se organizar e a lutar para melhorar a qualidade de vida nos seus espaços, uma vez que esta expansão da cidade, sob essas condições precárias, criou sérios problemas de saneamento e saúde, por falta de estrutura e aumento da violência (Maricato, 1997). Caldeira (2000, p. 230) afirma que esta

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“mobilização política daqueles que até então haviam sidos excluídos da arena política tornou visível a periferia e ajudou a população de São Paulo a perceber o padrão de segregação social e organização espacial da cidade”. Nas favelas, os serviços e as infraestruturas urbanas só foram instalados ou melhorados sob a pressão política de movimentos sociais de moradores da periferia e da favela (Cardoso, 2007).

No entanto, o aumento do desemprego, as altas taxas de inflação e a instabilidade financeira do país, neste período, contribuíram para o aumento da ilegalidade e o fortalecimento do tráfico de drogas e da violência urbana do país, principalmente nesses territórios (Maricato, 1997; Zaluar, 1999b). Desse modo, nos anos 1990 e início dos anos 2000, a favela é fortemente associada à violência urbana. Organizações do crime tornaram-se atores em destaque nesses espaços e elementos como toque de recolher, ostentação de armas e tiroteios passaram a compor o cenário das favelas e a gerar medo em outros espaços citadinos (Zaluar, 1999a; Cavalcanti, 2008). Ainda que a violência urbana não possa ser reduzida à questão de pobreza, injustiça social e desigualdade, a ideia de favela como lócus da violência ainda permeia o imaginário social (Zaluar, 1999b; 2001)

Ao longo da história urbana, a favela foi se modificando, se urbanizando, se integrando à cidade. Se o início da sua história é marcado pela ‘ausência’, hoje o conceito de favela deveria ser reescrito a partir do que existe nestes espaços. A velha representação das favelas como espaço invadido, precário e marginalizado não se sustenta mais. Valladares (2005b) se autocritica ao apontar sua produção intelectual como ferramenta que tenha ajudado “a construir uma imagem da favela como se fosse possível a uma única imagem traduzir um universo tão diverso”. A favela é uma parte da cidade que compõe o conjunto urbano como um todo. “Todavia, não são tipos de ocupação que seguem os padrões hegemônicos que o Estado e o mercado definem como modelo de ocupação e uso do solo nas cidades” (Observatório de Favelas, 2009, p. 21).

Nesta perspectiva, para compreender a complexidade e a diversidade desse espaço urbano contemporâneo, o Observatório de Favelas (2009, p. 96-97) propõe que o conceito de favela deve ser formulado com base nos diferentes perfis que compõem este território. São eles (i) o perfil sociopolítico, “a favela é um território onde a incompletude de políticas e ações do Estado se fazem historicamente recorrentes [...] são territórios sem garantias de efetivação de direitos sociais”; (ii) o perfil socioeconômico, “a favela é um território onde os investimentos do mercado formal são precários (...) predominam as relações informais de geração de trabalho e renda, com

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Figura 1- Favela de Heliópolis
Figura 2- Esquema de códigos e subcategorias de análise de dados que conduziram à categoria “questões  habitacionais contraditórias”
Figura 3 - Projeto “A Cor em Heliópolis” na rua Paraíba  Fonte: Memória de Heliópolis, 2013
Figura 4 -Estética das casas de Heliópolis
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Referências

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