ECLI:PT:TRE:2007:244.07.3.A5
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Relator Nº do Documento
Gaito Das Neves
Apenso Data do Acordão
26/04/2007
Data de decisão sumária Votação
unanimidade
Tribunal de recurso Processo de recurso
Data Recurso
Referência de processo de recurso Nivel de acesso Público
Meio Processual Decisão
Apelação Cível confirmada a sentença
Indicações eventuais Área Temática
Referencias Internacionais
Jurisprudência Nacional
Legislação Comunitária
Legislação Estrangeira
Descritores
modificabilidade da decisão de facto;
Sumário:
Os acrescidos poderes da Relação sobre a modificabilidade da matéria de facto, em resultado da gravação dos depoimentos prestados pelas testemunhas em julgamento, não atentam contra a liberdade de decisão do Juiz na Primeira Instância, permitindo apenas sindicar a correcção de análise das provas, segundo as regras da ciência, da lógica e da experiência.
Decisão Integral:
*
PROCESSO Nº 244/07 - 3
ACORDAM NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE ÉVORA
*“A”, residente na …, nº …, em …, instaurou a presente acção contra
“B”, residente na Rua …, Lote …, em …, alegando:
No dia 22 de Junho de 2001, adquiriu no “C”, sito na Estrada Nacional nº …, em … – …, propriedade da ora Ré, a viatura automóvel marca Peugeot, modelo 205, XAD turbo, de 1993, com a matrícula … Acontece que desde que a viatura foi entregue ao Autor, tem apresentado defeitos, que descreve, pelos quais o Autor apresentou muitas reclamações e suportado despesas, sempre pensando numa possibilidade de entendimento com a Ré. Porém não o conseguiu, pois que esta não respondia às comunicações que lhe dirigia.
Então, no dia 24 de Maio de 2002, remeteu à Ré uma carta em que resolvia o contrato, exigindo a devolução da quantia entregue e restituição da viatura.
Tudo motivou incómodos e preocupações ao Autor.
Termina pedindo:
A – Que seja declarada a resolução do contrato de compra e venda e cada uma das partes restitua aquilo que recebeu;
B – Que a Ré seja condenada a pagar ao Autor a quantia de 4.452,44 € por danos patrimoniais;
C – Que a Ré seja condenada a pagar uma indemnização de 500 € a título de danos não patrimoniais;
E – Que a Ré seja condenada a pagar a liquidação do contrato de financiamento que levou o Autor e subscrever com a “D”, para financiamento de aquisição da viatura que se veio a mostrar defeituosa.
Citada, contestou a Ré, alegando:
Antes do Autor concretizar o negócio, teve conhecimento que a viatura apresentava algumas deficiências, mas mesmo assim pretendeu adquiri-la. Para além destas, todavia, outras não tinha, muito menos que impedissem o seu normal funcionamento, tendo sido submetida à inspecção no dia 19.04.2001.
Os Defeitos que surgiram após a entrega do veículo ficam a dever-se à falta de cuidado do Autor em verificar os níveis de água e óleo.
Após impugnar os danos patrimoniais e não patrimoniais, termina concluindo pela improcedência da acção.*Seguiram-se os demais termos processuais e procede-se a audiência de discussão e
julgamento.
Na Primeira Instância foram dados como provados os seguintes factos:
1 – No dia 22 de Junho de 2001, o Autor e Ré acordaram que o primeiro adquiria da segunda, um veículo automóvel de marca Peugeot, modelo 205, XAD turbo, do ano de 1993, com a matrícula …, pelo preço de 750.000$00.
2 – O referido veículo foi entregue ao Autor, tendo a Ré recebido o respectivo preço.
3 – Para pagamento do preço da aquisição do veículo o Autor recorreu a um crédito bancário no
“D”, no valor de 3.740,98 euros, ficando obrigado a pagar esse valor acrescido de juros.
4 – O veículo foi sujeito a inspecção técnica periódica em 19 de Abril de 2001 no Centro de Inspecções de …, tendo esse Centro considerada aprovada a inspecção.
5 – A Ré garantiu ao Autor que o veículo era entregue em boas condições.
6 – A Ré, em 22 de Junho de 2001, comunicou ao Autor que a viatura beneficiava de uma garantia de bem funcionamento.
7 – Logo em 22 de Junho de 2001 os botões de controle da ventilação do veículo não funcionavam, o que era do conhecimento da Ré.
8 – Em 1 de Setembro de 2001, o Autor comunicou à Ré as anomalias que entendia verificar-se na viatura.
9 – Em Maio de 2002 a viatura sofreu uma avaria resultante da deterioração de dois tubos de chaufagem, que conduziram a uma fuga de água e ao aquecimento do motor, colando os segmentos e queimando a junta da cabeça do motor.
10 – O Autor comunicou à Ré a referida avaria, o que sucedeu em data situada no mês de Maio de 2002, e então reclamou a devolução do preço mediante a entrega do veículo.
11 – A reparação dessa avaria sofrida em Maio de 2002, importava-se na quantia de 1.107,56 euros, com IVA incluído.
12 – O veículo circulou, apresentando o motor temperaturas elevadas.
13 – Em 22 de Junho de 2001 o veículo apresentava-se em perfeito estado de funcionamento, sem prejuízo do constante no facto 7º.
14 – Em 24 de Outubro de 2002, o Autor declarou à Ré que resolvia o contrato de compra e venda.*Com base em tal factualidade, na Primeira Instância foi a acção julgada improcedente.*
Com tal sentença não concordou o Autor, tendo interposto o respectivo recurso, onde formulou as seguintes CONCLUSÕES:
1) A prova produzida nos autos, na sua globalidade resulta que o depoimento de “E” deve ser valorado, o recorrente queixou-se a “E””, pois foi “E” o intermediário do negócio, acompanhou o negócio, colaborou na entrega do veículo e reportava a informação ao funcionário da R. a testemunha “F”.
2) Ficou também provado que no Verão de 2001 o veículo já apresentava a junta de cabeça queimada;
3) O depoimento das testemunhas “G” e “F” deverá ser analisado tendo em atenção o relatório efectuado pelo perito.
4) No referido relatório diz-se "Não existe qualquer manómetro de temperatura instalado no veículo de marca Peugeot, modelo 205 XAD e matrícula … Existe apenas um indicador luminoso, que acende quando o motor atinge uma temperatura excessiva e prejudicial ao seu bom
funcionamento".
5) A testemunha “G” mentiu ou não conhecia suficientemente bem o veículo, dado a rapidez da transacção - comprou o veículo para vendê-lo ao recorrente.
6) Com efeito, a recorrente não logrou provar que o veículo se encontrava em perfeitas condições aquando da entrega ao comprador, ora recorrente.
7) Após a avaria que o veículo sofreu na estação de serviço de … e a pequena reparação aí efectuada, não foi feita prova de qualquer outro conserto.
8) Pelo que a avaria apresentada em Maio de 2002 resultou das anomalias que o veículo apresentava desde Junho 2001.
9) Foram feitos vários contactos pelo recorrente à recorrida, através de telefone, na pessoa da testemunha “G”, na altura dos factos marido da recorrente (Recorrida?);
10) E de cartas, juntas à petição inicial como Doc. 6. Doc. 7 e Doc. 9 e reconhecidas pela testemunha “G” no seu depoimento, as quais dão conhecimento dos defeitos do veículo.
11) Ficou provado que, naquele veículo é difícil detectar o aumento da temperatura.
12) Mas que o recorrente era pessoa cuidadosa com a viatura e zelosa com a sua manutenção, não circulando com o veículo com o motor a altas temperaturas.
13) Ao decidir pela absolvição da R. a Douta Sentença, violou o disposto na Lei nº 24/96, de 31 de Julho, assim como o disposto nos artigo 342°/2 e 879°, alínea c) do Código Civil.
Deve a sentença ser revogada.*Corridos os vistos legais, cumpre decidir.*As conclusões de
recurso limitam o objecto do mesmo – artigos 684º, nº 3 e 690º, nº 1, do Código de Processo Civil.
Iniciaremos o presente recurso de Apelação pela reapreciação da matéria de facto.
Segundo o Apelante o depoimento de “E” deve ser valorado de forma diferente à importância atribuída pelo Exmº Juiz na Primeira Instância, pois que “refere o Meritíssimo Juiz «e no essencial, apenas reproduzia o que ouviu dizer, nomeadamente ao próprio Autor» ”.
Vejamos, em concreto o que sabe esta testemunha para além daquilo que lhe foi transmitido pelo Recorrente:
Quanto a garantias dadas pela Ré na aquisição do veículo, “pensa” que foram dadas, mas não viu qualquer documento…
Quanto a anomalias só viu que não funcionavam os dois botões de controlo de ventilação do habitáculo. Isto apesar de ter feito a viagem entre o ... e …, como ocupante, na companhia da testemunha “F”, que foi entregar viatura ao Autor/Apelante. A viatura teve um comportamento normal durante todo o percurso.
TUDO O MAIS SÓ TEM CONHECIMENTO INDIRECTO: DISSERAM-LHE (o Apelante, a filha deste – com quem na altura namorava - e a testemunha “F”).
Estamos esclarecidos quanto a este ponto.
Passemos à testemunha “H”.
Mais uma vez teremos o Apelante a relatar-lhe que o veículo gastava muita água. Foram a um mecânico e este disse-lhe que os sintomas seriam indícios de estar queimada junta da cabeça. Mas a razão de ciência deste mecânico está alicerçada em TER LEVANTADO O CAPOT…
Depois o Apelante quer fazer sobressair o depoimento desta testemunha, quando a mesma
pretende fazer crer que “o carro tinha um grande problema, se aquecesse a luz acendia. Quando a luz acendia já tinha queimado, não tinha um pré-aviso”.
Não deixa de ser deveras interessante o argumento. A Marca Peugeot havia feito, por certo,
investigações e chegado à conclusão quanto à necessidade de instalar um instrumento para avisar o condutor que tinha havido um sobreaquecimento do motor e, por isso, a junta da cabeça se tinha deteriorado!
Bom. Esta testemunha não é mecânico e por isso bastará confrontar o seu depoimento com o de
“I” (mecânico) e de “F” (que hoje trabalha na Peugeot): se houver um sobreaquecimento acende uma luz vermelha e se o condutor continuar em movimento a luz dá origem à palavra STOP e se continuar a andar é que pode surgir a junta de cabeça queimada ou gripar o motor.
Mas para vermos os conhecimentos da testemunha, bastará tentar que ela diz que o veículo do Apelante é ligeiro de passageiros, quando o mesmo é de mercadorias, com a rede a separar a parte da frente da de carga…
Estamos esclarecidos.
Segundo o Apelante, as testemunhas “F” (já referenciada) e “G” “mentiram ou tentaram omitir a verdade, em audiência de julgamento, ao assegurar que o veículo em discussão nos autos tinha manómetro de temperatura, o que foi totalmente desmentido pelo relatório do perito”.
Pois bem. As testemunhas que MENTIRAM o que fizera foi chamarem «manómetro» à luz
vermelha que acendia! Ora, tendo sido feita prova que o Apelante é um condutor experiente, com deslocações constantes entre Lisboa e o Algarve, por certo que não deixava de ter perfeito
conhecimento do significado duma luz vermelha a acender no painel ou da palavra STOP que por fim aparecia. E, tanto assim, que o referiu expressamente no seu depoimento de parte “o veículo não tem manómetro, mas acende uma luz quando a temperatura ultrapassa os níveis aceitáveis”.
Mas ainda o Apelante mais uma vez considera de mentiroso o depoimento da testemunha “G”
quando refere que o veículo que adquiriu estava em perfeitas condições. Será, então de esquecer os depoimentos das testemunhas “I”, quando refere que o veículo aqueceu POR FALTA DE
ÁGUA?, das testemunhas já acima referidas que foram do … entregar o veículo a …, isto em pleno Verão, sem terem notado qualquer aquecimento? Vamos olvidar “I” quando diz que o nível da água deve ser vista com uma periodicidade semanal? Que as tubagens estavam em bom estado e o que se verificava era uma pequena fuga de água junto a uma abraçadeira (embora aqui o Exmº Juiz tivesse considerado como deteriorados os tubos de chaufagem)?
Não poderemos deixar de aceitar que o Apelante seja uma pessoa cautelosa e atenta às
condições da viatura que possui. Só que se esqueceu de verificar o nível da água, pelo menos uma vez. E a falta dela provocou o sobreaquecimento do motor, não tendo reparado, também pelo menos uma vez, no acendimento da luz no painel de instrumentos existente na viatura e daí as repercussões posteriores…
Não queira o Apelante confundir dois momentos diferentes, para daí tirar dividendos.
Esclareçamos. O veículo encontrava-se na firma “J. A Ré levantou-o nestas instalações e levou-o para o … Foi nesta província que procedeu à sua revisão. Depois levou-o à inspecção – doc. fls. 29 – onde a única anotação prende-se com a divergência entre os pneus colocados e a medida de livrete. Só depois foi a viatura entregue ao Apelante. Não se pretenda, pois, tirar ilações de deficiências no momento em que foi levantado na “J” e transplantá-las para o da entrega.
Ainda quanto à testemunha “G”, o Apelante diz ter ela reconhecido as cartas que este que enviou,
reclamando quanto às deficiências.
Pena é que já esqueça o depoimento da mesma testemunha, quando ela diz que o Apelante
“saltava” de oficina em oficina, mas nunca se apresentou com o veículo perante a Ré, para que o mesmo fosse submetido a qualquer eventual reparação, limitando-se a enviar cartas. E que a própria testemunha referiu ao Apelante para devolver a viatura, pois resolveriam o contrato, tendo esta hipótese sido recusada.
E também não é relatada a conversa entre esta testemunha e o Apelante, relacionada com a reparação dos botões da refrigeração, quando “G” diz que procedesse à reparação, utilizando para o efeito o montante que tinha em dívida para com a Apelada (na altura esposa da testemunha), relacionado com as despesas do contrato, pois que era mais do que suficiente.
E, já que falamos em montantes despendidos pelo Autor e ora Apelante, vejamos o que nos diz a sentença neste campo. “No entanto, ainda se dirá que a atitude do Autor, no que respeita a algumas alegações, roçou a litigância da má fé. É o caso de alegar que pagou o preço de
950.000$00,quando se provou que o preço fora de 750.000$00, ou que suportara despesa com o crédito, quando se provou que tal não era verdadeiro”.
Os acrescidos poderes da Relação sobre a modificabilidade da matéria de facto, em resultado da gravação dos depoimentos prestados pelas testemunhas em julgamento, não atentam contra a liberdade de decisão do Juiz na Primeira Instância, permitindo apenas sindicar a correcção de análise das provas, segundo as regras da ciência, da lógica e da experiência.
Por aquilo que acima se deixou expressado, chegamos à conclusão de que bem analisada foi a prova produzida e, consequentemente não se procede à pretendida alteração da matéria de facto fixada.
Após termos reapreciado a matéria de facto dada como provada na Primeira Instância, constatamos que a tese defendida pelo Apelante, quanto à revogação da sentença, só seria possível, face àquela pretendida modificação, nos moldes desejados.
Não tendo ocorrido, mostra-se perfeito o respectivo enquadramento jurídico.
DECISÃO
Atentando em tudo quanto se procurou deixar esclarecido, acorda-se nesta Relação em julgar o recurso improcedente e confirma-se a sentença proferida na Primeira Instância.
Custas pelo Apelante.*Évora, 26.04.2007
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