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Na primeira noite me disseram que não havia nada a ser feito.

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Academic year: 2022

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SÃO PAULO REFÚGIO

É como se algumas das questões que nos aborrecem todos os dias adquirissem a capacidade de nos aborrecerem ainda mais, tal qual um espinho de peixe que para na garganta e não te deixa continuar. Há algumas coisas que permanecem quando deveriam ter ido e outras que vão quando deveriam ter ficado e basta que uma única dessas coisas se mantenha viva por um pouco mais de tempo, que ela sobreviva a violência de uma boa noite de sono, para que comece a incomodar.

O incômodo começa pequeno, velado, mas um dia se torna tão grande que já não é mais possível ignorá-lo, então, não resta outra alternativa senão enfrentá-lo. No início o enfrentamento assusta, mas, ainda assim, alivia. É uma caminhada sobre gelo fino encarando permanentemente o risco da queda. A cada passo, uma transformação se instaura e a dúvida reaparece provocando um desejo intenso de recuar, mas já não há como voltar pois já queimamos nossos barcos. A mudança foi feita e dela emergiram pensamentos frescos. Então, um novo prenúncio de realidade se impõe.

Realidade, essa, que talvez se crie aqui, nesta sala, comprimida por paredes que separam, afastam e escondem. Realidade destroncada, destruída e alterada pela necessidade de contar o que se convém e de esconder o que se tem vergonha.

Necessidade egoísta e opressora, criada pelo ser humano, aquele dito o ser mais político de todos, detentor da palavra e da ação. Aquele, construtor do mundo, das relações, mantedor das injustiças e dos privilégios. Aquele, que pode falar, mas prefere manter-se em silêncio.

Das inúmeras questões que nos aborrecem todos os dias, uma nos trouxe até aqui, mas outras tantas permanecem nos incomodando. Permanentes e persistentes em um lugar não muito distante, mas seguro o suficiente para nos proteger da frustração de não lidar com o desconhecido e mesmo que lá fora tudo pareça igual, aqui a realidade se faz diferente a cada noite.

Piso hoje aqui como a justiça, frágil àqueles que precisam de mim e ao tentar

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MOVIMENTO I A Vida e a Guerra

Talal

Quantos anseios tem um homem aprisionado? Seu corpo está enjaulado, mas seu coração é livre. Livre como um grão de areia que se desprende do solo e voa, inocente, levado pelo vento quente de mais uma bomba que explodiu aqui. Tentei nas últimas sete noites tapar os ouvidos na esperança de me lembrar como é dormir em silêncio.

Na primeira noite me disseram que não havia nada a ser feito.

Escuta! Eles estão vindo.

Escuta!

Na segunda noite minhas pálpebras estão mais pesadas que o ar. Ainda que pensem que é mais fácil ignorar o barulho lá fora e ceder ao desejo de fechar os olhos, prefiro a ardência de mantê-los abertos. Me sinto como um peixe confinado em aquário de águas turvas sendo constantemente observado pelos olhos de um predador. Me tornei um animal de sangue frio e as dúvidas são o oxigênio que me mantém respirando. Aqui repetem que as certezas são muitas, mas só existem certezas demais quando se está morto.

Na terceira noite me disseram que algo poderia ser feito.

Quantos anseios tem um homem aprisionado? Seu corpo está enjaulado, mas seu coração é livre. Livre como a corrente elétrica que entra pela sua mão direita, atravessa o tórax e chega ao sistema nervoso, provocando a paralisação dos músculos do pulmão e bloqueando a função vital da respiração, o que é muito grave, pois todos nós sabemos que o ser humano aguenta pouco mais que dois minutos sem respirar.

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Carta de um homem que não consegue respirar.

Olá. O ar está seco aqui. Tento, em vão, colocar uma toalha molhada no chão para umidificar o ambiente. Estava tudo bem, todos faziam tudo que deveria ser feito como máquinas automáticas que não se dão conta de pressões, opressões e privilégios. Saíamos cedo como saem aí. Voltávamos no final da tarde com nossos corpos suados e maltratados por mais um dia de sol. A noite nos deitávamos em nossas camas macias e no outro dia saíamos novamente.

Ouvi de longe a primeira vez que aconteceu. O primeiro tiro, a primeira explosão. O grito que ecoava fraco e distante foi se aproximando ao longo do ano.

Antes era um sopro, uma vírgula, notada apenas por aqueles que insistiam prestar atenção demais. Depois se tornou forte, violento e constante. Não havia quem não notasse. Um dia aconteceu perto. Perto, tão perto, mais perto do que eu pude suportar. Soltei o ar que estava em meus pulmões e respirei novamente. Dessa vez o ar veio quente, carregado de poeira e vidro. Senti o sangue escorrer pelo meu nariz e meu corpo se queimar por dentro. Três segundos. Um. Dois. Três. Depois, a paz de ser livre dos movimentos que aprisionam.

Só sobrou escrever, só sobrou recordar.

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Carta I

Kinshasa, 12 de abril de 2015.

Agora são 17:48 quando começo a escrever, mas já estou há muito tempo pensando no que devo ou não dizer. Tenho percebido o quando o tempo é precioso.

Ele faz com que as coisas se transformem e se não fosse isso eu, provavelmente, não teria coragem de compartilhar minha história com você.

É bom saber tem alguém aí do outro lado interessado no que acontece aqui.

Não é fácil começar, por isso estou enrolando tanto. Me tornei muito bom em desviar o assunto quando tenho que falar dos meus problemas.

Quando eu era jovem meu pai foi acusado de ajudar o governo inimigo e, por isso, foi assassinado. Eu cresci, me casei e durante a guerra civil me perdi da minha esposa e fui capturado por rebeldes e, assim, começaram os piores dias da minha vida. Não fui o único. Há certas coisas que você não imagina que possam acontecer com um homem, entende? Todo mundo já ouviu sobre violência contra mulheres, mas nunca ouviu sobre os homens. A violência sexual é uma arma de guerra aqui.

Mulheres, crianças e, também, homens são submetidos a coisas terríveis. Coisas que eu nem imaginava que um ser humano fosse capaz de fazer com outro.

Fui sequestrado por rebeldes junto com cinco homens e três mulheres. Nesse dia… nessa noite... treze rebeldes armados cercaram somente nós, os homens. O comandante daquele grupo tinha uns quarenta anos; era gordo, careca e usava umas cordas amarradas na cintura. Ele se inclinou na nossa direção e disse: “Vocês são todos espiões. Vou mostrar como punimos espiões aqui. Tirem a roupa e se ajoelhem”. Eu balancei a cabeça e disse que não podia fazer isso. Achei que estava brincando…

O comandante, então, chamou um menino que estava ali perto e pediu que me batesse e arrancasse minha roupa. Ele deveria ter uns oito anos de idade e me bateu com uma arma até que eu tirasse todas as minhas roupas. Nu, fui imobilizado pelo grupo rebeldes enquanto outros dois empurravam minha cabeça com força em direção ao chão. Eu sinto muito pelas coisas que vou dizer agora.

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O comandante colocou uma mão na minha nuca e usou a outra para me bater na parte traseira, como um cavalo. Ele cantava uma música alegre e zombava de mim enquanto todos assistiam. Quando ele começou, eu vomitei.

Outros doze rebeldes fizeram uma fila e me violentaram, um de cada vez.

Quando eu estava cansado demais para me sustentar eu caia no chão e eles me levantavam pela barriga e continuavam. Eu sangrava muito, dava para sentir como água. Naquela noite e em cada noite que se passou, eu e os outros presos fomos abusados dezenas de vezes. Isso durou dezoito dias. Consegui fugir me arrastando como uma cobra pela floresta durante vinte dias até chegar na cidade. Muitos morreram na minha frente lá de tão feridos que estavam.

Na minha cultura um homem não pode ser vulnerável. Você tem que ser forte, nunca chorar e prover para sua família. Quando você falha, todos acreditam que o problema é você e, por isso, a maioria dos homens que passa por isso prefere ficar calado.

Meu irmão não sabe e não posso dizer a ele. Ele diria que agora eu não sou mais homem. Isso acontece com muitos, muitos, mas todos ficam em silêncio.

Quando eu contei para minha mulher ela ficou deprimida. Ela me perguntou: como vou viver com você agora? O que você é? Meu marido ou uma mulher? Um dia ela embalou suas coisas, pegou meus filhos e saiu. Quando as pessoas descobrem aqui elas riem e dizem que os rebeldes do mato me transformaram na mulher deles.

Fui embora da cidade, do estado, vou do país e do continente assim que puder.

Quero começar outra vida, mas sei que não vai ser fácil. Ainda estou doente e temos poucos lugares para procurar ajuda por aqui, por isso decidi contar minha história.

Essa luta só vai começar de verdade quando as pessoas souberem o que está acontecendo aqui e resolverem fazer alguma coisa para ajudar.

Gostei muito do CD que você me mandou. Apesar dos meus problemas ainda gosto muito de dançar. É a única coisa que me dá um pouco de paz nessa vida.

Espero receber outra carta sua logo. Tem me feito muito bem conversar com alguém do meu futuro país. Vamos nos encontrar em breve e logo todas essas histórias serão passado. Como eu disse, o tempo transforma tudo. Fique com Deus.

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Carta II

Brazzaville, 06 de março de 2015.

Olá amigo. Desculpe a demora para te responder, está difícil arrumar um tempo para sentar e escrever tudo o que você me perguntou. Por aqui está melhor, mas ainda tem muito restos da violência por toda parte, principalmente nas pessoas.

É muito difícil esquecer as coisas que você vê em uma situação dessas, sem falar do clima de insegurança permanente. Acontece sempre um tiroteio aqui, outro ali, mas a vida segue.

Quando isso começou eu ainda era criança. A vida era muito boa por aqui.

Muita comida, fartura e, apesar das diferenças, todo mundo se respeitava. Um dia eu estava dormindo, acordei às cinco da manhã e fui tomar banho para ir ao karatê.

Quando eu ia sair, umas seis horas, escutei uma bala e era difícil você escutar tiro por aqui. Voltei correndo para dentro de casa e começou um tiroteio. O barulho acabou lá pelas três da tarde. Quando saímos encontramos os cadáveres, mais de 1500 assim, na rua... essa foi a primeira vez, depois aconteceram muitas outras.

Outro dia me ligaram falando que os rebeldes tinham entrado na minha cidade natal e cortaram a cabeça das pessoas com machados. Me mandaram umas fotos e eu postei no Facebook. Muita gente me criticou. Uma amiga disse até que se eu continuasse postando aquelas coisas ela iria me excluir. Eu disse: vocês não me perguntam porque eu quero sair daqui? Vocês não querem ver a realidade? Esses ataques acontecem com muita frequência, mas ninguém faz nada, todo mundo fica como se nada estivesse acontecendo.

De um modo geral a gente até tem uma vida boa aqui. O problema é que você acorda e não sabe se vai voltar para casa no final de dia. As pessoas estão sendo mortas o tempo todo. Você vê, entraram nas casas e cortaram a cabeça das pessoas com o machado e ninguém falou, ninguém fez nada. E por quê? Porque está todo mundo tirando proveito. Se voltar a paz não dá mais para explorar. Estupros acontecem em massa. Estupram homens e mulheres. Os rebeldes entram nas aldeias, estuprando e torturando quem encontram pelo caminho. Algumas mulheres ficam com queimaduras, porque, depois de estuprá-las, eles jogam ácido nas suas genitálias.

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Essa violência toda é uma estratégia de guerra. Nesse conflito o estupro é um instrumento de dominação total, de humilhação mesmo. Imagine o trauma de um homem que foi amarrado, apanhou, viu sua mãe, seu pai e seus filhos serem mortos na sua frente e depois foi abusado por vários dias. Tudo que ele tinha foi destruído.

Eles não querem ferir só as vítimas, mas a comunidade inteira, porque todos são forçados a assistir. Aí as pessoas fogem de suas aldeias, abandonam suas terras, seus recursos…

É uma guerra de interesses econômicos e quem paga é o povo. Em 2011 havia tido uma queda no número de estupros. Pensamos que o conflito estava chegando ao fim, mas, desde o ano passado tudo recomeçou e os casos voltaram a aumentar.

Fico muito triste que ninguém faz nada. Eu quero sair daqui por causa dessas coisas.

Quando você tem nível um pouco elevado de instrução e tem vontade de denunciar é melhor sair para não terminar mal.

Aí uma corrente de ouro custa $200, aqui é $15, $20. Ninguém acredita quando eu falo. O ouro fica na rua, o dinheiro em cima das mesas e não tem assalto a mão armada, roubo, nada. O problema é só a política e a guerra. Sobre política eu não gosto de falar porque quando você entra nisso acaba fazendo inimigos. Gosto de falar sobre os fatos que acontecem. São seis milhões de pessoas mortas desde 1996. Hoje ainda morrem 54 mil pessoas por mês, mas parece que ninguém se importa.

O país só não acabou de vez por causa do povo que tem alegria e é lutador.

As pessoas estão sempre sorrindo e dançando apesar dos problemas. Eu mesmo gosto muito de dançar. Quando eu danço é o momento em que esqueço de tudo e consigo ser feliz. Você ouviu as músicas que eu te mandei? Espero que você consiga espalhar para muita gente o que está acontecendo, mas não se esqueça de falar das nossas riquezas, da nossa cultura e da dignidade do povo. Todo mundo só lembra das coisas ruins. Aguardo sua resposta. Fique com Deus e até mais.

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Carta III

Butembo, 02 de fevereiro de 2015.

Olá! Como você tem passado? Fiquei muito feliz de ter conhecido seu país.

Agora fico mais à vontade para falar de mim. Pode contar minha história na sua peça.

As pessoas precisam saber o que acontece aqui para nos ajudar. Eu vou gostar.

Mande fotos para mim depois. Aqui está melhor agora. Não bom, apenas melhor.

Ainda é muito perigoso andar por alguns lugares, mas estamos lutando juntos para mudar alguma coisa.

Minha irmã mais nova se chama Immaculada. Quando ela tinha catorze anos ela encontrou uma milícia na saída da escola. Eles a pegaram, viraram sua cabeça para trás. Ela se debateu, mas não adiantou, dois deles a estupraram naquele dia.

Giraram tanto a cabeça dela que ela passou dois anos sem se mexer. Até seus olhos ficaram doentes. Ela ficava de olhos fechados, não se movia, nem conseguia caminhar ou comer. Eu lhe dava banho e comida.

Isso é normal aqui. Há estupros todos os dias. Pouco importa se é milícia ou exército. São todos selvagens. Se as mulheres resistem, eles cortam os seios e o clitóris. Uma vez jogaram vários militares que já estavam doentes de AIDS na nossa cidade e contaminaram muitas mulheres. Existe lá um hospital só para cuidar das mulheres infectadas.

Na primeira vez em que fui de Butembo à cidade de Goma para vender batatas, nosso ônibus foi parado por militares. Nesta estrada, a cada dia, dez pessoas são estupradas e mortas. Eles pegam a mala dos passageiros, tomam o dinheiro, tiram as roupas, estupram as mulheres e matam todos.

Eu precisava vender batatas e, por isso, levei dinheiro comigo para a viagem.

Quando esses militares pararam nosso ônibus, mandaram todo mundo tirar a roupa, inclusive o motorista. Havia pastores evangélicos e eles também tiveram de tirar a roupa. Eu enrolei o dinheiro, bem enroladinho, e enfiei no ânus para que não me roubassem.

Eu senti medo e raiva. Quando nos mandaram tirar a roupa, a gente precisou dizer ‘obrigada’. Eles ordenaram: ‘Agora, agradeçam porque a gente ainda não matou

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vocês’. E, dessa vez, eles não nos mataram. Como eu fazia acompanhamento psicológico em uma ONG, um pastor disse aos militares que eu era enfermeira. A mulher de um deles estava grávida e eles precisavam que alguém ajudasse no parto.

Me deram um pano para cobrir o sexo e eu fui ajudá-la. O militar disse que, se nascesse um menino, seríamos poupados, mas, se fosse uma menina, estaríamos mortos.

Eu tremia muito. Pensei que estava no fim da vida, mas quando nasceu um menino, os militares ficaram numa felicidade enorme. Saíram para comprar cerveja e comemorar. Quando voltaram, celebraram fuzilando todos os passageiros de um ônibus que estava atrás do nosso e depois botaram fogo no ônibus e nas pessoas.

Dezoito mortos. Voltamos para o nosso ônibus nus. Eu tirei o dinheiro do ânus e, com ele, comprei lençóis e cortinas na feira para todo mundo se cobrir.

Eu mesma fui estuprada pelo meu marido muitas vezes. Eu estava fazendo comida e não queria, mas ele dizia: ‘Vem cá’. Eu não queria, mas ele dizia: ‘Eu tenho o direito. É o direito do homem’. Ele me pegava, mesmo diante dos meus três filhos, e, se eu me recusasse, ele me batia na frente das crianças. Até hoje eu não suporto escutar meus filhos chamando ele de ‘papai’.

O pior momento da minha vida aconteceu no ano passado. Foi a morte da minha mãe. Muitas emoções explodiram dentro de mim. Minha mãe morreu nos meus braços. Dizem que foi por causa de uma intoxicação. Era como se ela dormisse.

Minha mãe, que me fez estudar, que se esqueceu de si mesma. Eu sou velha, mas sinto muita falta do amor dela. Fiz de tudo para curá-la, mas não foi possível. Com a morte, não há cooperação.

O que me dá paz no meio disso tudo é dançar. Danço sempre posso e isso é a única coisa que me faz esquecer o que acontece lá fora. Esse combate não pode ser apenas meu. Tem de ser também do Brasil. Vocês e o mundo precisam ajudar as pessoas daqui. Me escreva quando puder e me mande as fotos prometeu. Boa sorte e muita paz na sua vida e de sua família.

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MOVIMENTO II A Mudança

Amer

03 de maio de 1996. Ele abriu sua mala e olhou dentro dela. Ali estava tudo o que possuía: alguns trapos empoeirados trazidos com uma única função, poupá-lo da vergonha de atravessar o mundo com uma mala vazia. Ele tirou do corpo as roupas suadas com que tinha viajado e sacudiu um dos casacos que havia trazido. A poeira se espalhou pelo ambiente e ele observou o modo como aquela nuvem pousava discretamente sobre o tapete da casa de sua irmã.

Seu corpo não repousava há alguns dias, mas seus pensamentos estavam tranquilos, então, ele ajoelhou sobre o tapete e abandonou o corpo naqueles fios gastos. A textura ainda era agradável e o cheiro o mesmo de sua infância. A luz dourada do final do dia entrava pela janela e iluminava sua pele pálida. Dali, ele observou o céu da Bela Vista e percebeu que tudo era cinza.

“Eu conheci São Paulo e fiquei. Achei trabalho, achei oportunidade, achei o futuro e desde aquela época eu decidi que dia três do cinco noventa e seis, onde cheguei no Brasil, era meu data de aniversário. O que foi passado já era, não quero nem lembrar.

Todos os dias ele observava a multidão se acotovelar com fúria pelos degraus da estação Anhangabaú e pensava: como pode tanta gente debaixo da terra? Em seu país não havia vida no subterrâneo, mas aqui os trens corriam lotados carregando de leste a oeste os corpos da metrópole em exatos 27 minutos.

6:30h Acordar 8:15h Trabalhar 13:20h Almoçar 19:30h Estudar 23:15h Repousar

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E passou tempo demais assim, sem ver o tempo passar.

“No início meus irmãos todos estavam lá, minha mãe estava lá. Recebemos a notícia de armas pesadas entrando nas ruas, mas tudo isso nós pensamos como ameaça, mas não era ameaça não. Era um cerco. A gente escuta, assim, nas lendas: rios de sangue, mas na Síria teve rios de sangue de verdade e muita gente nadando neles. ”

15 de março de 2011. Aquela paisagem já lhe era estranha, aquela língua não lhe dizia muita coisa, mas um nó se formava em sua garganta a cada imagem que surgia.

Pensava na voz embargada de sua mãe, pensava nos amigos que partiam, pensava na guerra. Na daqui e na de lá. Uma disfarçada por batalhas que não se percebe lutar, outra pública, consumida, arrancando sangue de quem escolhe resistir.

“Tiro pra todo lado, parece que cê tá matando um bando de formigas, um bando de baratas, parece que não tem ninguém, não é ninguém. Espirrando spray em cima de uns baratas. O povo perdeu muita gente, mas não se intimidou não. Quem tinha raiva porque perdeu um bem, agora tem raiva porque perdeu um membro de família ou um membro do corpo. ”

Ele sentou no banco de uma praça no bairro do Brás e olhou, por alguns minutos, as pessoas que passavam por ali. Conhecia suas línguas, suas roupas e o seu modo de se cumprimentarem.

“E se acontecer alguma coisa em Brasil eu dou meu sangue, também, por esse país, porque aqui eu me encontrei, me achei, tenho minha família. Então, tudo o que eu tenho nessa vida, uma recordação boa é aqui no Brasil. ”

As ruas estão lotadas. Os sapatos tocam mecanicamente o asfalto quente. Nada lhe é estranho. Ele vê do alto de sua janela a cidade se envergar aos seus pés. Sua pele estrangeira foi queimada pelo sol e seus olhos caminham serenos por entre os prédios

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“Eu tenho saudade sim, tenho saudade e, hoje, acabando a guerra lá eu saio do Brasil e volto pra lá. Tô ansioso pra acabar essa guerra, pra cair esse ditador e pra voltar pra lá para reconstruir meu país. Pra tentar ser um dos primeiros que vão colocar a primeira pedra de reconstrução... porque nosso país não é de ontem. É o mais antigo do mundo, então, eu quero fazer alguma coisa, tô tentando fazer alguma coisa pra meu povo aqui no Brasil, mas eu quero fazer, também, pra meu povo lá na Síria. ”

Talal

Tiros. Bombas. Gritos. Sustos. O escuro da noite escura. Breu. Silêncio. A espera.

Eu tenho meu filho, minha filha e minha mulher. Toda a minha família na minha companhia. Grades. Cercas. Arame e ferro. Cobertos de sangue, de luta e de dor. Eu tenho meu nome, meu e somente meu, em uma lista, em um papel. Eu fico. Eles vão.

Vão para longe, vão sem mim. Eu fico e eles vão.

Na quarta noite me disseram que não havia nada a ser feito.

Meus olhos estão inchados de tanto ficarem abertos. Minha boca está seca. Meu coração bate rápido e desritmado. Eu olhos meus braços e os vejo pulsando. Eu conto as elevações da veia esverdeada que dança sem ritmo no meu pulso. Um, dois, três.

Eu desejo não mais contar.

Na quinta noite me disseram que algo poderia ser feito.

Quantos anseios tem um homem aprisionado? Seu corpo está enjaulado, mas seu coração é livre. Livre como a corrente elétrica que entra pela sua mão direita, atravessa o tórax e chega ao sistema nervoso, provocando a paralisação dos músculos do pulmão e bloqueando a função vital da respiração, o que é muito grave, pois todos nós sabemos que o ser humano aguenta pouco mais que dois minutos sem respirar.

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Eu desejo não mais contar. Um. Dois. Três Eu desejo não mais contar. Um. Dois. Três Eu desejo não mais contar. Um. Dois. Três

Na sétima noite eu fecho os olhos. Me entrego ao silêncio que não existe e durmo por três segundos. Desperto assustado e me lembro: eu fico e eles vão. Tiros. Bombas.

Gritos. Sustos.

O escuro da noite escura.

Breu.

O Jogo da Imigração

Boa noite! Está começando agora o meu, o seu, o nosso: Jogo da Imigração! Mais de quarenta mil haitianos já passaram pelo nosso programa e conseguiram realizar o grande sonho de sair do Haiti e chegar até São Paulo. Será que nossos participantes de hoje vão conseguir? Eles já estão se aquecendo. Vamos conhecer os nossos competidores de hoje.

Do meu lado direito temos ela, Aloudes! Alourdes é costureira, tem 24 anos, é da cidade de Cité Soleil e seu grande sonho é conseguir uma casa para viver com a filha aqui no Brasil. Boa sorte, Alourdes.

Do meu lado esquerdo temos ele, Jean Pierre! Jean Pierre é pedreiro, tem 27 anos, é de Porto Príncipe e seu maior sonho é dar uma educação de qualidade para os dois filhos. Boa sorte Jean Pierre.

Agora vamos as regras do nosso jogo: o grande objetivo dessa competição é que cada participante saia do Haiti, percorra todo o nosso palco, ou seja, seis mil

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reais para começar com tudo sua vida na maior cidade do Brasil. Vamos ao que interessa? Preparados? Posição inicial! Par ou ímpar para ver quem começa. (Depois que jogam) Alourdes ganhou! E você no nosso auditório fique atento pois sua participação aqui é essencial. Preparados? Que comece o Jogo da Imigração!

HAITI

ALOURDES - Você acaba de hipotecar a casa da sua família. Receba $1000 extras para iniciar o jogo.

JEAN PIERRE - Terremoto no Haiti. Corra pela sua vida e pague $500 para reconstruir a casa da sua família.

ALOURDES - Você conseguiu uma passagem promocional, vá para Equador por apenas $500 na próxima rodada.

JEAN PIERRE - Agência de viagens. Adquira aqui sua passagem para o Equador.

$1500.

EQUADOR

ALOURDES - Você conseguiu uma van clandestina para atravessar o país. Pague

$500.

JEAN PIERRE - Você pegou carona escondido em um ônibus de turismo. Siga viagem sem pagar nada!

ALOURDES - Você chegou na fronteira. Pague $300 para atravessar o rio em um bote salva-vidas e entrar no Peru na próxima rodada. Huuum, entrar no Peru... vai pagar Alourdes?

JEAN PIERRE - Você tirou a carta da polícia corrupta. Pague $1000 para entrar no Peru ou seja deportado.

PERU

ALOURDES - Sequestro! Tente fugir ou pague $3000 de resgate e fique três rodadas sem jogar.

JEAN PIERRE - Coiote a vista. Pague $1000 para seguir viagem.

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Queridos telespectadores, chegamos agora ao momento educacional do nosso programa. Para quem não sabe, os coiotes são amigos, pessoas do bem, quase filantropos, que ajudam nossos queridos amigos haitianos a atravessar a fronteira em troca de todo o dinheiro que eles têm. Não precisa ficar com dó, pois eles venderam a casa para isso mesmo. Está tudo certo e isso significa que Jean Pierre acaba de adentrar em território brasileiro. Parabéns. Vamos lá, Alourdes, você não quer ficar para trás, não é?

ALOURDES - Você acaba de conseguir entrar no Acre em um carro da Rede Globo de Televisão em troca de uma entrevista sensacionalista. Maravilhoso. Ainda por cima vai ficar famosa no Brasil.

E agora que os nossos dois participantes, depois de percorrerem seis mil quilômetros, conseguiram chegar ao Acre, somente um deles ganhará uma vaga em um ônibus de viagem inteiramente gratuito até São Paulo. É isso mesmo que você ouviu querido telespectador, você não está enganado, uma vaga em um ônibus gra-tui-to (gentilmente cedido pelo nosso governo federal). E essa decisão está nas suas mãos, telespectador. Nesse jogo é você quem manda. Depois de mim, claro. Então façam suas vozes serem ouvidas povo brasileiro, ou melhor, suas panelas, quero dizer, suas palmas. Vamos ouvir as palmas de quem acha que nossa querida Alourdes é que merece vencer esse jogo. Agora as palmas da torcida do Jean Pierre!

Muito bem, segundo os cálculos dos nossos computadores quem venceu nosso jogo e acaba de ganhar R$500 em dinheiro e a chance de viver em São Paulo é...

No século XIX, França e Estados Unidos mantiveram o Haiti sob bloqueio comercial durante 60 anos após sua independência, o que trouxe enormes prejuízos financeiros e estrangulou a economia do país. A ameaça de novas colonizações e a cobrança de tributos abusivos dissipou a liberdade conquistada na revolução e os haitianos se viram novamente escravizados em seu próprio país, trabalhando durante dois séculos para pagar impostos estrangeiros.

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O Haiti é, ainda hoje, ocupado por tropas militares estrangeiras que têm como função estabilizar o país, desarmar grupos guerrilheiros e estabelecer o seu desenvolvimento institucional e econômico. Essas tropas são brasileiras e ocupam o país desde 2004.

Seis anos após o terremoto que devastou o Haiti em 2010, os sete bilhões de dólares enviados pela ajuda internacional evaporaram com a corrupção. Metade da população do país enfrenta o desemprego e a miséria e muitos enxergam a mudança de país como única solução para uma vida melhor. Desde 2007 mais de 130 mil haitianos ingressaram no Brasil pela fronteira com o Peru.

Conector

No Aeroporto de Internacional de São Paulo existem centenas de salas. A sala VIP da Tam, da Gol, da American Express, da Mastercard Black, da oneworld, da Star Alliance e a magnífica Villa GRU. Um espaço exclusivo para clientes de altíssimo poder aquisitivo que te permite experienciar o melhor da vida. O cliente Villa GRU tem a sua disposição um acompanhante que fica responsável por te receber e escoltar desde a porta da aeronave até seu próximo embarque, verificando, sempre, seu bem- estar em todos os momentos. Após usufruir do belíssimo espaço de recepção saboreando um delicioso espumante, o cliente entrega o passaporte e é conduzido a um check-in exclusivo, onde tem o privilégio de não enfrentar fila.

Após a breve e discreta inspeção da Polícia Federal, o cliente é convidado a entrar em um ambiente amplo, de 600m², para apenas 20 pessoas, mobiliado com móveis de design, obras de arte, banheiros exclusivos, sala de reuniões, lounge e um espaço bistrô com saborosas opções de comida. Lá você encontrará sanduíches, quiches, escondidinhos, frios, doces, além do principal, uma refeição à la carte preparada na hora, de acordo com gosto do cliente.

Um ambiente silencioso, agradável, com uma vista incrível do pátio das aeronaves onde se pode observar, até mesmo, um lindo pôr do sol para quem fica até o final da tarde. Tudo isso pelo custo de apenas R$800,00.

No subsolo do Terminal 3, no mesmo Aeroporto Internacional de São Paulo, existe uma sala branca de aproximadamente 200m² mobiliada com sofás pretos de

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couro sintético gasto, cadeiras de escritório e janelas de vidro que não abrem. Nela o cheiro de suor impregna as paredes e nunca há silêncio. Essa sala é chamada de Conector.

Um, dois, três dias sem comer.

Um, dois, três dias sem beber.

Um, dois, três dias sem fechar o olho.

Um, dois, três dias sem falar.

Um, dois, três dias sem entender.

Um, dois, três dias sem limpar meu corpo.

Eu pedi refúgio várias, várias, várias, várias, várias vezes. Eles fingem que não me escutam. Eles fingem que não me veem. Tentaram me aplicar uma injeção de tranquilizante para que eu ficasse quieta, mas eu não deixei.

Estou aqui há 48 dias, dormindo no chão, sem falar com ninguém. Não tem comida. Só bebo água com açúcar e não sei onde está meu remédio de diabetes.

Olha meu lábio, olha meu lábio, olha meu lábio, estou ficando doente.

Tentaram me colocar de volta no avião, mas eu me debati tanto, tanto, tanto, tanto que eles não conseguiram. Me esconderam no compartimento de bagagens, porque o ônibus de passageiros estava chegando e ninguém podia ver aquilo.

Pensando em quem está do lado de lá Jogado para morrer em outro lugar Privado do direito de fugir

Só vive da vontade de partir

Silêncio pra quem não quer escutar

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O espaço Conector é uma área de segurança internacional sob responsabilidade da Polícia Federal onde ficam retidos os imigrantes que tem sua entrada no país questionada. A atual lei brasileira permite que qualquer estrangeiro peça refúgio no Brasil uma vez que consiga entrar em território nacional. A decisão sobre a concessão ou não do refúgio fica a cargo do CONARE – o Comitê Nacional para os Refugiados. Até que o pedido seja analisado, o solicitante tem direito de permanecer no país e emitir documentos, como o CPF e a carteira de trabalho. Muitos dos imigrantes que não sabem que podem fazer a solicitação do refúgio ou os que tem seus pedidos negligenciados permanecem por semanas ou, até mesmo, meses nesse lugar, sem nenhum contato com advogados ou com qualquer membro da família.

Algumas das declarações dadas pelas autoridades da Polícia Federal quando questionadas sobre modo de funcionamento do espaço são: “Esses africanos chegam aqui sem visto e querem entrar. Não são como os sírios, que estão fugindo de uma guerra e pedem refúgio logo que chegam. Muitos dos que vão para o Conector nem querem ficar no Brasil, mas, como percebem que não vai ter outro jeito, apelam para o refúgio. ” Ou “A gente cumpre a lei. Não estamos coibindo a entrada nem maltratando ninguém. É só pedir refúgio que entra. Somos São Pedro do paraíso sem portões aqui. ”

As denúncias de violação de direitos humanos e de arbitrariedades na concessão do protocolo de refúgio são feitas incessantemente por aqueles que, com dificuldade, conseguem fazer contato com o mundo exterior.

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Talal

Nonagésima noite. Eu durmo todos os dias. Não sei mais o que é barulho e o que é silêncio. Esqueci meu rosto e o de quem gosta de mim, mas permaneço vivo. Estou aqui de passagem e ele observa meu caminho. Todos os dias, sozinho, um por um, entre o céu e o chão. Me sumo no ar quente que entra e giro o mundo, danço ao som do vento e tento, suspenso, chegar em algum lugar. Corro solitário de mãos dadas com o medo. Subo uma montanha de tijolos quebrados. Chego suado ao topo e vejo longe a justiça. Vago pelas ruas destruídas e encontro um lugar escondido, denso e intenso, parado no tempo, onde a esperança se fez brotar.

Eu a pego, coloco no bolso e volto para cá.

Aqui você me assusta. Aqui você me bate. Aqui você ri de mim. Aqui você não me deixa dormir. Aqui você me faz passar fome. Aqui você me faz passar sede, mas aqui você não pode me calar.

Você é fraco. Ninguém derrama uma lágrima por você. Você não sabe quem te ordena. Você só tortura e mata. Com uma arma que não é sua, com um discurso que não é seu. Você não sabe o que lê. Você não entende o que escuta. Você só tem um controle remoto, uma revista semanal e uma boa conexão de internet. Você não sabe quem te sustenta. Você não sabe quem te governa. Você só tem um controle remoto, uma revista semanal e uma boa conexão de internet. Você não pensa. Você não fala.

Você não é.

Você só tortura e mata.

Você fica e fica e fica.

Eu vou.

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Ghazal

Ela me ensinou o hijab. Dançou com ele pela casa enquanto eu corria atrás.

Colocou nos meus cabelos e cantou para mim. “Assim, assim e termina assim.

Cuidado para não machucar o dedo. O alfinete fica aqui, escondido. ”

Minha irmã, muito boa, quatro anos mais velha. Eu e ela na Síria, sempre juntas. Minha família três irmãs e três irmãos. Ela mais perto de mim. Ela comigo andando quando mãe dele me parou na rua, olhou, conversou comigo, perguntou nome meu pai e minha mãe.

Ele ver outras mulheres. No gosta, no gosta, no gosta, até gostar io. Ele me ver, e gosta: “ela bom, bonita”. Eu também: “ele bom, bonito”. Si, eu gostei. Mãe e pai fala si, eu si, ele si. Festa de casamento só mulheres e ele. Estava loira e pintei unhas, mas unha pintada ele no gosta.

Saudade palavra bonita. Saudade pai, mãe, irmã. Saudade comida da minha mãe. Na Síria eu não cozinhar nada, minha mãe cozinhar tudo. Aqui, sim, aprender depois. Eu gosta cozinhar, mas no todo dia.

Queria irmã perto quando nasceu minha filha aqui no Brasil. Eu chorei. Queria mãe e irmãs perto. Lá em Síria quarenta dias na casa da mãe quando nasce nosso filho. Aqui só eu, sozinha e ele, mas ele trabalha, então, só eu e crianças.

No começo pensava voltar para nossa casa logo, situação refugiado temporária. Só três meses, mas logo quatro, cinco, um ano, dois anos.... Voltar casa agora muito distante, mas eu fiquei minha família. Muitas pessoas Síria primeira viagem no mar muitas pessoas morreram. Família depois um ano se encontram. Eu muito feliz, porque tudo junto, não separou.

Aqui casa pequena, lá grande. Cinco quartos, nossos nomes na porta, cama minha filha de borboleta, mas ela não conseguia dormir. Acordava pesadelos, pulava cama gritando “bomba! ”. Tanto medo.

Barulho alto. Três da manhã. Vidro quebrado. Respiração ofegante. Medo.

Barulho alto. Quatro da manhã. Parede perfurada. Coração disparado, medo.

Barulho alto. Cinco da manhã. Deitados no chão. Um, dois, três, quatro, medo.

Barulho alto. Seis da manhã.

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MOVIMENTO III - CULTURA EM CHOQUE

A Mídia

VEJA - Fevereiro de 2009 - Frase de Angelina Jolie provoca polêmica. Comentários da atriz sobre minoria muçulmana foram censurados por autoridades tailandesas mais uma vez nesta quinta-feira.

CLICK RBS - Setembro de 2009 - Obama autoriza entrada de até 80 mil refugiados nos EUA em 2010. Estrangeiros precisam demonstrar que são vítimas de perseguição em seus países de origem.

G1 - Junho de 2010 - Número de deslocados no mundo é maior desde a metade dos anos 1990. País que mais exporta refugiados continua sendo o Afeganistão.

G1 - Agosto de 2010 - Brasil tem 4,3 mil refugiados, diz Ministério da Justiça. Em todo planeta, número chega a 15,2 milhões.

BBC BRASIL - Janeiro de 2012 - Refugiados denunciam maus-tratos em fábrica da Sadia. Estrangeiros afirmam terem sido vítimas de uma rede de exploração de trabalhadores em frigoríficos nacionais. Nas fábricas, eles executavam uma única tarefa: com uma faca afiada, degolar cerca de 75 frangos por minuto. Condições relatadas na cidade de Samambaia são análogas à escravidão.

PORTAL BRASIL - Novembro de 2013 - Ação de fiscalização resgata 172 trabalhadores haitianos que viviam em condição de escravidão em Minas Gerais.

Grupo estava em alojamento que, segundo equipe de fiscalização, parecia uma senzala.

BBC - Junho de 2014 - Número de refugiados é o maior desde a Segunda Guerra

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G1 - Agosto de 2015 - Polícia diz que refugiados achados em caminhão frigorífico na Áustria morreram por asfixia. Conclusão é de autópsias feitas em 16 dos 71 corpos em decomposição encontrados na quinta. Segundo a polícia, 59 eram homens, 8 mulheres e 4 crianças.

ÉPOCA - Setembro de 2015 - De Einstein a Freud, conheça os refugiados celebridade. Diversos gênios do século passado precisaram se refugiar.

FOLHA DE S. PAULO - Setembro de 2015 - Brasil está de 'braços abertos' para receber refugiados, afirma Dilma. A presidenta afirmou nesta segunda-feira que os refugiados em busca de abrigo na Europa vivem uma "situação chocante" e que o Brasil pode acolher essa população.

PRAGMATISMO POLÍTICO - Setembro de 2015 - Repórter que chutou refugiados sírios diz que não vai pedir desculpas. Jornalista húngara Petra Laszlo chocou o mundo esta semana ao ser flagrada chutando refugiados sírios (incluindo crianças).

Demitida da emissora, ela reconheceu os seus atos, mas não pediu desculpas.

VEJA - Setembro de 2015 - Venda de coletes salva-vidas para imigrar para a Europa dispara no Oriente Médio. Mesmo tendo de enfrentar perigosas travessias marinhas, mais de 9 mil refugiados conseguiram chegar à Grécia entre janeiro e agosto deste ano.

PRAGMATISMO POLÍTICO - Setembro de 2015 - As cópias de Petra Laszlo na imprensa brasileira. Jornalista húngara que chutou imigrantes tem várias almas gêmeas brasileiras, entre elas, Rachel Sherazade.

CARTA CAPITAL - Setembro de 2015 - Em cinco anos dobrou o número de refugiados vivendo no Brasil. Em agosto, chegou a 8,4 mil o número de asilados no país. Pedidos de refúgio já ultrapassam 12 mil.

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MUNDO AO MINUTO - Setembro de 2015 - Austrália procura novos países para acolherem refugiados. País procura novas nações do Pacífico que aceitem receber refugiados que chegam em seu território, em troca de assistência financeira.

BBC BRASIL - Junho de 2016 - Governo Temer suspende negociação com Europa para receber refugiados sírios. Segundo eles, decisão segue uma nova e - mais restritiva - postura do governo quanto à recepção de estrangeiros.

ÚLTIMO SEGUNDO - Março de 2017 - "A imigração é um privilégio, não um direito", diz Trump. Presidente dos Estados Unidos reforçou sua posição contrária à imigração e aos mecanismos multilaterais, enquanto a chanceler da Alemanha saiu em defesa da globalização e das políticas de acolhimento aos refugiados

PRAGMATISMO POLÍTICO - Setembro de 2015 - A história de Alan Kurdi, o menino da foto que fez o mundo chorar. Aos três anos, o menino sírio foi encontrado morto em uma praia na Turquia nesta quarta-feira. Conheça a história por trás da foto que comoveu o mundo.

Em setembro de 2015 nós estávamos há um ano no processo de criação desse espetáculo e há dois meses da nossa primeira apresentação, quando essa foto apareceu (Foto do menino sírio Alan Curdi morto em uma praia da Turquia). Foi a primeira vez que a questão migratória ganhou um rosto. Nesse momento, aquilo que era, até então, uma massa amorfa se transformou em um corpo. Um corpo pequeno, frágil, deitado de bruços nas pedras de uma praia na Turquia.

Imediatamente, essa imagem inundou as redes sociais, os jornais, a televisão, provocando uma reação em cadeia que durou, aproximadamente, três semanas.

Foram informações de todos os tipos que fizeram com que no mês de setembro de 2015 o Google registrasse 325 mil citações da palavra refugiados na internet. Mais do que o dobro do registrado no mês anterior.

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Alemanha, sobre Brasil, sobre Barack Obama, sobre Angela Merkel, sobre Dilma, sobre Estado Islâmico e sobre Angelina Jolie, mas daquelas 325 mil citações, só em 12 mil falou-se sobre África.

Tresor Parte I

É como se você fosse um bebezinho. Um recém-nascido. Você não sabe caminhar, não sabe falar e não sabe ler. Depois de muito tempo engatinhando você consegue finalmente ficar em pé e tenta dar os seus primeiros passos. A diferença é que sua mãe não está por perto para segurar sua mão e toda vez que você consegue ficar em pé vem alguém e te empurra.

Eu já caí muitas vezes. Eu caí, caí, caí, caí, caí, caí…. E eu poderia ficar horas descrevendo cada uma das minhas quedas, porque elas estão todas aqui e elas vão continuar aqui, mas eu vou poupar vocês disso. Quando você está assim é isso que as pessoas esperam, uma história triste, mas eu estou bem.

Por mais difíceis que as coisas estejam, tem algo aqui dentro que ainda me faz ficar de pé, algo que me diz que hoje o dia vai ser diferente. Hoje tudo isso vai mudar.

Hoje eu vou arrumar um emprego, hoje eu vou conseguir uma casa, hoje eu vou tomar uma cerveja, hoje eu vou comer fufu, hoje eu vou comprar um sapato novo, hoje eu vou beijar na boca, hoje eu só vou conversar em lingala, hoje nenhuma mulher vai mudar de calçada quando me ver na rua, hoje nenhum policial vai mandar eu abrir minha mochila só por procedimento, hoje nenhum segurança vai me seguir no shopping, hoje nenhum jornalista vai me perguntar qual é a minha história. Hoje, só hoje, vai ser um dia melhor.

Por isso eu permaneço assim, em pé, às vezes sem teto, às vezes sem emprego, mas sempre com meus pés calçados. Seja correndo por uma rua molhada em um dia de chuva para pegar o ônibus para uma aula de português ou atravessando uma floresta inteira para fugir de um exército de rebeldes, eles estão aqui. Protegidos, aquecidos, prontos para me levar onde eu quiser.

Os pés, aliás, são uma coisa muito interessante e estranha, não é? Para que servem exatamente? Dançar, chutar, equilibrar, caminhar, correr, pular? Os pés de

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Jesus o levaram para um lugar onde ele sabia que seria morto. Os pés dos europeus tocaram nossa terra e condenaram um continente inteiro a viver e morrer debaixo de suas botas. Os meus me fizeram correr. Correr pelo Congo, por Uganda, por Ruanda, até me trazerem aqui: São Paulo, uma cidade com muito ruído e pouco som.

As pessoas me perguntam: sua vida é melhor aqui ou lá? Lá. Minha vida era melhor lá e se eu pudesse escolher eu escolheria lá, na minha casa, com a minha família, sendo negro onde eu não sinto o racismo, sendo jornalista onde eu tenho um diploma, falando a língua que minha mãe me ensinou quando eu era criança e abraçando meus irmãos quando eu os encontro na rua.

Sabe, ontem eu fiquei olhando o céu antes de dormir e pensei nos passos que eu dei do dia que aprendi a andar até hoje. Nos passos até a faculdade que agora não serve para nada, nos passos até o emprego que me deu uma casa que virou pó.

Nos passos que transformaram esses sapatos nos sapatos de um refugiado. Nos sapatos que agora só servem para estatísticas, reportagens, documentários ou para uma peça de teatro.

Tresor - Parte II

As pessoas me perguntam: sua vida é melhor aqui ou lá? Lá. Minha vida era melhor lá e se eu pudesse escolher eu escolheria lá, na minha casa, com a minha família. Sendo negro onde eu não sinto o racismo, sendo jornalista onde eu tenho um diploma, falando a língua que minha mãe me ensinou quando eu era criança e abraçando meus irmãos quando eu os encontro na rua.

Em um mundo cada vez mais rico, saudável e tecnológico, nunca foi tão grande a falta de cuidado com o outro. Milhares de pessoas estão, hoje, longe de suas casas, vivendo uma luta diária pela manutenção de seus direitos básicos depois de fugir de guerras, desastres naturais e perseguições. Muitas delas aqui, na cidade de São Paulo.

Seja caminhando pelo Centro, pelo Glicério ou pelo Brás, o rosto que você encontrará será sempre igual ao seu. Semelhante nas diferenças e diferente nas

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Eu não sou uma palavra generalizadora, não sou uma estatística, nem uma situação e o que me deixa mais triste é que ninguém se importa. Eu não falo só de mim. Eu falo da África. Eu falo dos meus irmãos que estão lá, sendo mortos em silêncio, enquanto o mundo vira de costas e assiste do sofá outro telejornal que não fala de nós. Nesse mundo existem guerras que são mais guerras que outras e existem pessoas que são mais pessoas que outras.

A Lei Humanitária Internacional proíbe a tortura, os ataques a escolas e hospitais, mas esses crimes continuam a acontecer diariamente nas zonas de guerra.

A Organização das Nações Unidas assumiu a responsabilidade de não deixar que a comunidade internacional seja indiferente ao Estado que perde a capacidade de proteger seu povo, mas todos ainda preferem permanecer indiferentes ao que acontece no Congo, na Síria e em tantos outros países subdesenvolvidos que enfrentam guerra, pobreza e fome.

O problema não é a falta de informação. Todos sabem ou, pelo menos, ouvem falar do que acontece em Goma, Kisangani, Kishasa, Aleppo e Damasco. O problema é a falta de vontade política. Não podemos olhar para guerra e para as cinzas causadas por ela e não pensar que esse é o fundo do poço da capacidade do homem de proteger e defender seus inocentes.

Os meus pés que vestem todas os dias esse sapato e que me trouxeram até esse palco hoje, são os mesmos que se debatem nas águas geladas do oceano até desistirem e se entregarem completamente as portas dos continentes mais ricos do mundo.

O espetáculo de hoje é dedicado a ________________, morto (a) na guerra do Congo antes de ter a oportunidade de fugir.

Nossos tempos não serão definidos pela crise, mas pelo modo como nos tornamos uma comunidade capaz de contorná-la.

Fim

Referências

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