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Acordam os Juízes, em conferência, na Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora:

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Tribunal da Relação de Évora Processo nº 1/15.4GDPTM.E1 Relator: JOÃO AMARO

Sessão: 24 Janeiro 2017 Votação: UNANIMIDADE

Meio Processual: RECURSO PENAL Decisão: IMPROCEDENTE

VIOLÊNCIA DOMÉSTICA

Sumário

I - É criminalmente relevante, devendo ser qualificado como violência

doméstica, o facto de, quase todos os dias, durante anos seguidos (desde que arguida e ofendida se casaram, em 2012), a arguida dirigir à ofendida graves expressões injuriosas, além de, por mais de uma vez, ter dirigido ameaças à ofendida, dizendo que a matava, sendo ainda que a arguida, também por mais de uma vez, impediu a ofendida de entrar em casa.

Texto Integral

Acordam os Juízes, em conferência, na Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora:

I - RELATÓRIO.

Nos autos de Processo Comum (Tribunal Singular) nº 1/15.4GDPTM, da Comarca de Faro (Portimão - Instância Local - Secção Criminal - Juiz 2), e mediante pertinente sentença, datada de 18-03-2016, foi decidido:

“A) Absolver a arguida ML da prática do crime de maus tratos a animais de companhia, previsto e punido pelo artigo 387º, nº 1, do Código Penal;

B) Condenar a arguida ML, como autora de um crime de violência doméstica, previsto e punido pelo artigo 152º, nºs 1, alínea a), e 2, do Código Penal, na

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pena de dois anos e dois meses de prisão;

C) Suspender a execução da pena de dois anos e dois meses de prisão aplicada à arguida, por igual período, sujeitando-se tal suspensão ao regime de prova;

D) Arbitrar, a título de reparação pelos prejuízos sofridos por AM, a quantia de

€ 600 (seiscentos euros), condenando a arguida a pagar-lhe tal quantia, acrescida dos juros vincendos, desde a data do trânsito em julgado da presente sentença até integral pagamento;

E) Condenar a arguida no pagamento das custas do processo, na taxa de

justiça de 3 UC (cfr. artigos 344º, nº 2, alínea c), do Código de Processo Penal, e 8º, nº 9, do Regulamento das Custas Processuais)”.

Inconformada com a decisão condenatória, dela interpôs recurso a arguida, formulando as seguintes (transcritas) conclusões:

“a) O Tribunal a quo julgou incorretamente os pontos 2), 3), 4), 5), 7), 8), 9), 10), 11) e 12) da matéria de facto dada como provada;

b) Impõem decisão diversa da recorrida, quanto a estes factos, as declarações da testemunha/queixosa AM e AB, gravadas em suporte informático (CD), 20160118145641_3669809_2870851, desde 0:00 a 45:21,

20160217155736_3669809_2870851, desde 0:00 a 28:06, respetivamente;

c) Bem como o depoimento da arguida registado a

20160118143021_3669809_2870851, desde 0:00 a 25:40;

d) Ao contrário da valoração dada ao depoimento da testemunha e queixosa AM, julga a Recorrente que esta não factualiza e concretiza com objetividade e clarividência os factos que imputa à Recorrente arguida;

e) Denota este depoimento ser pouco assertivo, muito parcial, não é desobrigado e despojado de verdades, inverídico, rancoroso, impreciso, confuso.

f) Com efeito, a queixosa tem o propósito de único de dispor para si do património da arguida, nomeadamente da casa onde habitam, pois será sua vontade e desejo afastar a arguida daquela propriedade;

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g) Por outro, resulta do depoimento desta testemunha que a mesma não evidenciou qualquer receio, medo, pavor, fragilidade psicológica ou mental, antes pelo contrário, demonstrou muita animosidade;

h) Saliente-se que, consta da acusação que “quando se encontravam no

interior da residência, na morada acima indicada, a arguida muniu-se de uma lança decorativa ...”, e a testemunha/queixosa indica que este facto sucedeu na rua;

i) A Recorrente chama a atenção que a propósito desta afirmação “e chula quando na verdade é ela que me chulava a mim”, é precisamente ao contrário, como está inequivocamente demonstrado nos autos, a casa onde habita a queixosa é propriedade da arguida e vivem dos rendimentos e subsídio de desemprego desta, como a queixosa declarou no seu depoimento, mais disse, que não tem qualquer tipo de rendimento;

j) Acresce que, no depoimento da queixosa revela a total desconsideração pela arguida quando diz “eu ponho os cães em primeiro lugar”, secundarizando a relação conjugal em relação aos animais, inclusive, este desrespeito revela que a sua atuação e modus vivendi está em confronto com a típica “vítima de violência doméstica”;

k) Mais: resulta do depoimento da queixosa a sua imprecisão para indicar as datas concretas em que os factos foram praticados, bem como clarificá-los;

I) É a própria ofendida/queixosa que reconhece, no seu depoimento, não ter receio pela sua vida, como não sente a sua integridade física ameaçada, ou está psicologicamente afetada, nem o seu bem-estar está em causa; Logo,

m) O Tribunal recorrido, na motivação da sua sentença, mesmo à luz do

princípio da livre apreciação do julgador, mal andou, porque desconsiderou as insuficiências e as contradições patentes nos depoimentos da queixosa com a outra testemunha de acusação AB, cujo depoimento se encontra gravado em suporte informático (CD), 20160217155736_3669809_2870851, desde 0:00 a 28:06;

n) É patente a sua parcialidade e animosidade no depoimento contra a arguida, como a própria admitiu estar zangada com aquela;

o) Resulta, pois, in casu, a manifesta vontade em prejudicar a arguida com o

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seu depoimento;

p) Novamente, resulta deste depoimento desta testemunha, a imprecisão para indicar as datas concretas em que os factos foram praticados, bem assim como esclarecê-los com clareza, convicção e verdade;

q) Exemplificando, imprecisas foram as suas declarações referentes a marcas e sinais de agressões (vide gravação 14.08 a 15.00, primeiro diz que não, depois diz que sim), e em relação às idas ao casino ou frequência de jogo, (num primeiro momento afirma que a arguida vinha de madrugada do casino, para, depois, afirmar que era uma suposição porque a queixosa tinha retirado talões de multibanco à arguida) (vide gravação 12:55 a 13:25);

r) De facto, não significa, isto, que, a arguida tem dependência de jogo ou tinha estado num casino, uma vez que a testemunha jamais em tempo algum acompanhou a arguida ao casino;

5) Esta testemunha disse, que, por vezes era frequente ouvir discussões, e, a dado momento do seu depoimento, diz que não ouviu discussões, porque ouve mal;

t) Pelo que não se compreende a motivação do Tribunal a quo, quando fundamenta o seguinte “A convicção do Tribunal fundou-se na valoração crítica e conjugada da totalidade dos elementos de prova produzidos,

designadamente, no conjunto das declarações prestadas pela arguida e pelas testemunhas AM, casada com a arguida, e AB (que viveu com o casal)”;

u) Fundamentação esta que representa uma verdadeira limitação ao princípio do ln Dubio Pro Reo, uma vez que valorar estes depoimentos como prova leva- nos para o campo da incerteza e insegurança jurídica, pelo que não deveriam ter sido valorados como foram pelo Tribunal recorrido.

v) Também, inexiste qualquer documento probatório, que demonstre ou prove o facto dado como provado em 2) - “A arguida ingere álcool em excesso

diariamente”.

w) Porquanto que, a douta sentença deveria ter sido favorável à Recorrente arguida, não só porque a resposta aos factos dados como provados pelo tribunal a quo tem de ser claramente negativa, e a insuficiência da prova supra leva-nos a invocar o princípio ln Dubio Pro Reo, ou seja, no caso em

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apreço uma sentença absolutória da arguida;

x) Efetivamente, o julgador decide em consonância com a livre apreciação da prova, porém na motivação da douta sentença, ao recorrente não lhe parece compreensível que por um lado, o facto da arguida e das suas testemunhas não merecerem crédito. Por outro lado, a testemunha fulcral e base, da acusação, já merecer crédito, não obstante ser parcial, confusa e pouco esclarecedora e de acordo com as suas próprias conveniências;

y) A prova testemunhal assente em dois depoimentos que serviram de motivação para o tribunal a quo mostra-se claramente e perentoriamente insuficiente para a decisão da matéria de facto dada como provada.

z) Porque no caso sub judice, considerando os mesmos depoimentos, teria necessariamente o tribunal a quo que recolher e ponderar toda a prova para uma boa decisão da causa, o que não foi feito;

aa) Não o tendo feito, restava ao tribunal a quo, em harmonia com o princípio in dubio pro reo e dada a insuficiência da prova, absolver o arguida.

bb) Reapreciados os pontos de facto acima assinalados, porque

incorretamente julgados e porque as provas enunciadas impõem decisão diversa, deve ser julgado não provado que a arguida praticou, como autora material, um crime de violência doméstica p. e p. no art. 152º, nºs 1, alínea a), e 2, do Código Penal;

cc) Entende a Recorrente, salvo o devido respeito e melhor opinião, que o Tribunal a quo julgou incorretamente os factos dados como provados nas alíneas a) a h), e que resultam do testemunho da queixosa AM e da

testemunha AB.

dd) Todavia, pelos mesmos motivos e com base nas mesmas provas invocadas no Capítulo I do presente recurso (DA INSUFICIÊNCIA PARA A DECISÃO DA MATÉRIA DE FACTO PROVADA) que para lá se remete, evitando assim, uma repetição, os pontos referidos nas alíneas a) e h), deverão ser dados como não provados;

ee) Entende a Recorrente que, ao contrário da motivação assente pelo tribunal a quo na douta sentença, não há quaisquer provas que tenham esclarecido todas as dúvidas no decurso da audiência, como inferem os depoimentos cujas

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transcrições se transcreveram.

ff) No tocante ao ponto h), e face ao depoimento da testemunha/queixosa, este facto deverá ser dado como não provado, uma vez que a mesma reconhece que presentemente não tem receio peja sua vida, como não sente a sua integridade física ameaçada, como não sente a sua integridade psicológica afetada, nem o seu bem-estar;

gg) Donde, a Recorrente, com o seu comportamento não “causava nesta intranquilidade e receio pela sua vida, integridade física, segurança e bem estar ”.

hh) Mais: in casu, não se encontram preenchidos os elementos, objetivos e subjetivos, do crime de violência doméstica, previsto e punido no artigo 152º do Código Penal;

ii) Em suma, a queixosa no seu depoimento demonstrou inequivocamente que a Arguida Recorrente não lhe causou intranquilidade e receio pela sua vida, integridade física, segurança e bem estar;

jj) Como a arguida não colocou em risco, de modo relevante, a saúde física e psíquica da ofendida, tornando-a vítima de um tratamento inadmissível com a dignidade humana;

kk) Ademais, consta dos autos e extrai-se das declarações da queixosa, a fls.

10, 36 e 37 e 53, 67, 87 e 88 dos autos, que não se queixa de violência

doméstica, mas sim, que a Recorrente Arguida ingere bebidas alcoólicas em excesso e que pretende que esta frequente um programa para dependência de bebidas alcoólicas.

JI) Portanto, é a própria queixosa/ofendida que reconhece não se sentir

ameaçada ou diminuída na sua saúde mental e física, e na sua individualidade e dignidade enquanto pessoa e ser humano.

mm) Significa, isto, que não está reunido os elementos objetivos do crime de violência doméstica;

nn) Igualmente, não se vislumbra o tipo subjetivo do crime, na modalidade de dolo direto, pois, a arguida na tomada das suas declarações, jamais teve intenção de ofender a honra e a consideração de AM, como não praticou

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qualquer conduta, agiu, consciencializou com desígnio e intenção de provocar os factos de que veio a ser condenado por violência doméstica. E,

oo) E, tomada a matéria de facto assente nas alíneas 2), 3), 4), 5), 7), 8), 9), 11) e 12) da fundamentação, bem como a exegese na mesma levada a cabo, não resultam preenchidos nem o elemento objetivo nem o elemento subjetivo do tipo de ilícito criminal pelo qual foi a arguida condenada;

pp) Com efeito, quanto ao elemento objetivo, considerada a matéria levada às alíneas 2), 3), 4), 5), 7), 8) e 9) dos factos provados não resulta a dano social, nem indignidade humana para a queixosa, nem um domínio, uma subjugação, sobre a pessoa da vítima, sobre a sua vida ou sobre a sua honra ou sobre a sua liberdade e que a reconduz a uma vivência de medo, de tensão, de subjugação;

qq) No que respeita ao elemento subjetivo, considerada a matéria de levada às alíneas 10), 11) e 12) dos factos provados, resulta que a conduta da arguida não estava imbuída de dolo em qualquer das suas vertentes;

rr) Do supra exposto, é justa e precisamente esta subjugação, sobre a pessoa da vítima, sobre a sua vida ou sobre a sua honra ou sobre a sua liberdade e que a reconduz a uma vivência de medo, de tensão, de subjugação, que são os traços fundadores e delimitadores entre o crime de violência doméstica e os demais crimes, onde, também, se protege a integridade física, a honra ou a liberdade sexual;

ss) Por isso, no caso sub judice, os factos assentes não são suficientes para integrarem o referido ilícito de violência doméstica, não se seguindo daí, sem mais, a condenação da Recorrente.

tt) Em suma, o Tribunal a quo, tendo presente a factualidade assente e o iter que delineia toda a fundamentação, deveria o Tribunal ter concluído pelo não preenchimento dos elementos objetivo e subjetivo do tipo de ilícito que

conforma o crime de violência doméstica previsto no artigo 152º, nºs 1, alínea a), e 2, do C. Penal, assim como na indemnização arbitrada à ofendida, assim, determinar a absolvição da arguida neste crime, bem assim na indemnização arbitrada;

uu) A recorrente entende que, salvo o devido respeito, houve factos que foram incorretamente julgados, havendo provas que justificariam decisão contrária àquela outra que foi proferida;

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vv) Os factos sobreditos da matéria provada (todo o seu enunciado), pois que foi valorada de forma genérica e conclusiva, sem se ter apurado o lugar, o tempo, a motivação da prática dos factos e quais as suas circunstâncias

relevantes e a adquirida por um depoimento sem credibilidade e sugestionado;

ww) As provas que justificam decisão contrária, são as declarações da Arguida [20160118145641_3669809_2870851 htrnl], bem como os depoimentos da testemunha AM [20160118145641_3669809_2870851 html] e AB,

[20160217155736_3669809_2870851 html];

xx) Saliente-se que, se o tribunal recorrido, tivesse aplicado criteriosamente os ensinamentos da experiência comum, manejando aqueles normativos, não teria ficcionado a verificação e existência dos factos probandos, e teria proferido sentença optando, quanto a estes, por um “non liquet” e, fazendo uso do princípio “ln dúbio”, teria de ter absolvido a arguida.

De modo que,

yy) Deve ser revogada a decisão recorrida por outra favorável à arguida, ser alterada a decisão em matéria de facto nos termos e com os fundamentos alegados na motivação, e, consequentemente, ser a arguida absolvida dos factos de que foi acusada e por que foi condenada, quanto ao crime de

violência doméstica, igualmente ser absolvida da indemnização arbitrada pelo Tribunal recorrido;

zz) Assim, revogando a douta decisão recorrida, e substituindo-a por outra que absolva in totum a arguida, farão Justiça”.

*

A Exmª Magistrada do Ministério Público junto da primeira instância apresentou resposta, entendendo que o recurso não merece provimento, e concluindo tal resposta nos seguintes termos (em transcrição):

“1 - A arguida ML foi condenada, pela prática, como autora, de um crime de violência doméstica, previsto e punido pelo artigo 152º, nºs 1, alínea a), e 2, do Código Penal, na pena de dois anos e dois meses de prisão, suspensa, por igual período, sujeitando-se tal suspensão ao regime de prova.

2 - A convicção da Mmª Juiz foi devidamente fundamentada, dando, assim, adequado e cuidadoso cumprimento ao dever de fundamentação.

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3 - A recorrente impugna a matéria de facto dada como provada pretendendo que o tribunal dê como não provados os factos vertidos nos pontos 2 a 5, e 7 a 12, da matéria dada como provada, sem que tal tenha resultado da prova produzida em audiência.

4 - Os factos que a recorrente impugna estão suportados pela prova produzida em audiência, que o tribunal apreciou, como é livre de fazer, de acordo com o disposto no art. 127º do C.P.P. não existindo razões objetivas para que o

tribunal modifique essa prova no sentido pretendido pelo recorrente.

5 - A decisão recorrida contém a menção de todos os factos provados e não provados que se consideraram relevantes para a decisão, encontrando-se fundamentada de facto com a indicação dos meios de prova e respetivo exame crítico, através dos quais imediatamente se conclui pela existência de todos os elementos objetivos e subjetivos do crime de violência doméstica pelo qual a arguida foi condenada.

6 - A pretensa violação do princípio in dubio pro reo não constitui mais de que uma outra perspetiva de colocar precisamente a mesma questão relativa ao julgamento sobre a matéria de facto.

7 - A douta sentença sub judice respeitou a globalidade dos parâmetros que reputamos legalmente exigidos (cfr. art. 71º, nºs 1 e 2, do Cód. Penal),

afigurando-se-nos que as medidas concretas das penas fixadas são adequadas e proporcionais à factualidade apurada e considerando a igualdade na

aplicação da lei penal.

8 - Pelo exposto, julgamos não merecer censura a decisão recorrida, por

obedecer a todos os requisitos legais e não ter violado qualquer norma legal”.

Neste Tribunal da Relação, o Exmº Procurador-Geral Adjunto emitiu douto parecer (fls. 315 a 318), entendendo que deve ser negado provimento ao recurso.

Cumprido o disposto no nº 2 do artigo 417º do Código de Processo Penal, não foi apresentada qualquer resposta.

Efetuado o exame preliminar, e colhidos os vistos legais, foi o processo à conferência.

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II - FUNDAMENTAÇÃO.

1 - Delimitação do objeto do recurso.

Quatro questões, em breve síntese, são suscitadas no recurso interposto pela arguida, segundo o âmbito das correspondentes conclusões, que delimitam o objeto do recurso e definem os poderes cognitivos deste tribunal ad quem, nos termos do disposto no artigo 412º, nº 1, do C. P. Penal:

1ª - Insuficiência para a decisão da matéria de facto provada.

2ª - Impugnação da decisão fáctica.

3ª - Aplicação do princípio in dubio pro reo.

4ª - Qualificação jurídica dos factos.

2 - A decisão recorrida.

A sentença revidenda é do seguinte teor (quanto aos factos, provados e não provados, e quanto à motivação da decisão fáctica):

“1. Matéria de facto provada.

1. A arguida e AM casaram uma com a outra em 21 de janeiro de 2012;

2. A arguida ingere álcool em excesso diariamente;

3. Pouco tempo depois de casarem, quase todos os dias, a arguida passou a dirigir à esposa as seguintes expressões: “vaca, puta, filha da puta, vadia, coirão, caralha, burra, analfabeta, rural analfabeta, não sabes quem é o teu pai; és gorda; só comes”;

4. Por mais de uma vez, em datas não concretamente apuradas, a arguida trancou as portas da residência comum, sita na Urbanização…, em Lagoa, impedindo AM de entrar em casa, pernoitando esta na rua;

5. Em data não concretamente apurada, entre final de 2014 e início de 2015, quando se encontravam no interior da residência, na morada acima indicada, a arguida muniu-se de uma lança decorativa e disse à esposa que a matava;

6. No dia 03 de fevereiro de 2015, à tarde, quando se encontrava na

residência, ao ver que um dos cães de companhia, de raça “labrador”, de que

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é proprietária, tinha tombado um cesto de pinhas enquanto brincava, a arguida desferiu-lha pontapés, atingindo-o na zona da barriga;

7. Nessa altura, AM levou o animal para o exterior da habitação, tendo a arguida trancado as portas, não permitindo que a esposa entrasse em casa.

8. No dia 25 de fevereiro de 2015, quando chegou a casa, entre a uma e as duas horas da madrugada, depois de ter ingerido bebidas alcoólicas, a arguida dirigiu à esposa as seguintes palavras; “vaca, puta, merda da rural analfabeta, chula, inexistente”.

9. No dia 03 de março de 2015, depois de ingerir bebidas alcoólicas, a arguida disse a AM que a matava;

10. A arguida agiu sempre de forma livre, deliberada e consciente;

11. Com as expressões supra descritas pretendeu ofender a honra e a consideração de AM, sua esposa, o que conseguiu;

12. Agiu com intenção de ofender a saúde e a integridade física da esposa, bem sabendo que, com a sua conduta, causava nesta intranquilidade e receio pela sua vida, integridade física, segurança e bem-estar, o que conseguiu;

13. Agiu ainda com intenção de molestar o seu animal de companhia, sabendo que a conduta adotada era adequada a provocar-lhe dor;

14. Sabia que o seu comportamento era proibido e punido por lei;

Mais se provou:

15. A arguida vive com a esposa, AM;

16. Está desempregada, tendo recebido até este mês a quantia de € 900 a título de subsídio de desemprego e passando agora a receber € 170;

17. Vive das poupanças que foi amealhando quando trabalhava;

18. AM não trabalha e não tem rendimentos próprios;

19. A arguida paga € 1.050 mensais referentes às prestações bancárias devidas pela aquisição de duas casas;

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20. Elaborado o relatório social referente à arguida, no mesmo conclui-se, para além do mais que consta do teor do mesmo, o seguinte: “atentos os dados disponíveis, identificam-se como fatores de risco a desocupação da arguida, o seu isolamento sociofamiliar, os problemas aditivos e eventual dependência de jogo. Caso venham a ser provados os factos, consideramos existirem condições para a aplicação de uma medida em meio livre de carácter probatório. A este nível seria importante a avaliação de comportamentos aditivos e dependências e eventual tratamento especializado na área da saúde”.

21. Tem os seguintes antecedentes criminais registados:

- Condenação, pela prática de um crime de desobediência, previsto e punido pelo artigo 348º, nº 1, alínea a), e 69º, nº 1, do Código Penal, praticado em 29.04.2015, por sentença datada de 30.04.2015, transitada em julgado em 11.06.2015, proferida no âmbito do processo nº ---/15.0PAPTM, do Tribunal da Comarca de Faro, Instância Local Criminal de Portimão, Juiz 2, na pena de 80 dias de multa à taxa diária de € 6 e na sanção acessória de proibição de

conduzir veículos com motor pelo período de 6 meses.

2. Matéria de facto não provada.

1. Que AM tenha levado o animal para o exterior de casa por a arguida não cessar o seu comportamento (desferir-lhe pontapés).

Não resultaram provados, nem não provados, quaisquer outros factos com interesse para a decisão da causa, salientando-se que a matéria alegada omitida no acervo factual antecedente constitui meras conclusões, conceitos de direito ou, no que se refere à contestação apresentada, simples matéria de impugnação.

3. Motivação quanto à matéria de facto.

A convicção do Tribunal fundou-se na valoração crítica e conjugada da

totalidade dos elementos de prova produzidos, designadamente, no conjunto das declarações prestadas pela arguida e pelas testemunhas AM, casada com a arguida e AB (que viveu com o casal).

Tomou-se em conta a análise dos seguintes documentos juntos aos autos:

- Auto de denúncia de fls. 4 e 5;

- Declaração emitida pelos Bombeiros Voluntários de Lagoa a fls. 58;

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- Auto de ocorrência de fls. 66 e 67.

O Tribunal atendeu ainda aos depoimentos prestados pelas testemunhas EC, SC e AG, que, não tendo conhecimento dos factos em discussão nos autos por não terem assistido aos mesmos, depuseram sobre a consideração social da arguida e dos aspetos da relação desta com a ofendida, na medida em que a percecionaram.

Em sede de declarações a arguida negou os factos, na sua generalidade, embora tenha admitido as seguintes circunstâncias:

- Admitiu ter discussões com a esposa no âmbito das quais declarou que

“podem ter havido pequenas injúrias”;

- Admitiu a existência de um episódio com uma lança decorativa, ocorrido após uma discussão com AM, embora tenha referido ter-se tratado de um a

brincadeira;

- Admitiu a existência de um episódio em que um dos seus cães, de raça labrador, terá virado umas pinhas na sala, referindo, no entanto, que não lhe deu pontapés, tendo-o apenas empurrado e retirado do local;

- Admitiu, numa circunstância, ter deixado AM do lado exterior do portão, referindo que o fez porque esta estava aos pontapés ao portão, sendo que a arguida a deixou do lado de fora até que acalmasse, tendo, posteriormente, aberto o portão.

Referiu ainda que é a arguida quem sente receio da esposa, já que esta a terá agredido fisicamente.

Negou igualmente ter qualquer problema com o álcool.

Estas declarações foram integralmente contrariadas por aquelas que foram prestadas por AM, que, confirmando quase integralmente os factos descritos na acusação, explicou que a sua relação com a arguida sempre foi conflituosa, por esta ingerir bebidas alcoólicas em excesso, ficando completamente

alterada, quando está sob o efeito do álcool e já tendo estado

compulsivamente internada, no ano de 2011, ainda antes de ser casada com a testemunha.

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Referiu que a arguida sempre a tratou como se fosse a sua empregada doméstica, e, além de lhe chamar nomes como rural analfabeta, puta, vaca, por várias vezes fechou-lhe a porta, deixando a denunciante na rua, sendo esta obrigada a entrar pela “janela do gato” ou a refugiar-se numa carrinha, assim evitando recorrer à ajuda dos vizinhos, por ter vergonha da situação.

Descreveu ainda o episódio da lança, referindo que a arguida a esperou à

porta, já com a lança, e correu atrás da testemunha, empunhando a mesma, no exterior da habitação.

No que respeita aos factos imputados à arguida, relativamente aos pontapés que terá desferido no cão, afirmou que a arguida já estaria a manter uma discussão com a testemunha AB quando o animal virou um cesto de pinhas e que a arguida ter-Ihe-á desferido pontapés, sendo que a testemunha retirou o cão do local, tendo posteriormente chamado o INEM por a arguida estar fora de si.

Disse ainda que a arguida fechou-lhe a porta, deixando-a na rua e ameaçou AB que se abrisse a porta a AM a trancaria a ela no quarto.

No que se refere aos factos referentes ao cão, que se apurou ter entre 6 e 7 anos, a testemunha esclareceu que este não foi levado ao veterinário e não foi necessária a prestação de quaisquer cuidados em consequência dos pontapés que descreveu.

Na sua generalidade - e com as exceções que estão plasmadas na factualidade não provada - a testemunha confirmou a factualidade descrita na acusação, merecendo-nos credibilidade as declarações por si prestadas, quer pela forma emotiva e aparentemente magoada como as prestou, quer pela riqueza de pormenores - naquilo que respeita aos episódios concretizados na acusação - que são típicos de quem vivenciou os factos.

Não se vislumbra, aliás, que interesse teria a ofendida em inventar tal

factualidade, imputando à arguida condutas que esta não cometeu, tanto mais que a testemunha não descreveu situações de violência física relevante, o que certamente teria feito caso se dispusesse a inventar factos que não ocorreram.

Acresce que a testemunha AB, que viveu com o casal - apesar de não ter presenciado todos os factos descritos na acusação (não tendo, por exemplo, presenciado o episódio da lança) - de uma forma que nos pareceu humilde e

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verdadeira, pese embora a sua ostensiva indisposição para com a arguida, que, segundo disse, também lhe terá batido a si), referiu que o casal mantém uma relação conflituosa, com discussões frequentes, no decurso das quais a arguida chama à AM nomes como "vaca", "puta", "chula", "filha da puta",

"burra", "caralha", "analfabeta", dizendo-lhe ainda "não sabes quem é o teu pai".

Referiu ainda que tais discussões ocorrem quando a arguida está embriagada, o que acontece com frequência, e que terá sido nesse contexto que a arguida terá desferido três pontapés no cão (também tendo batido, na mesma ocasião, em AM e na própria testemunha).

Esclareceu que o cão não ficou com feridas ou marcas visíveis.

Descreveu ainda dois episódios em que a arguida terá posto AM na rua, não lhe abrindo a porta.

Mais referiu que tanto a AM como a própria testemunha já tiveram de chamar o INEM na sequência dos comportamentos agressivos da arguida.

Ora, do exposto resulta que, ainda que se dê o devido desconto à animosidade demonstrada por esta testemunha relativamente à arguida, o depoimento prestado por AB reforça a credibilidade da descrição dos factos apresentada em juízo por AM.

Assim, do conjunto do depoimento prestado por estas duas testemunhas, convenceu-se o tribunal que os factos ocorreram pela forma como foram plasmados na factualidade provada e que correspondem ao relato feito por AM.

As declarações da arguida não tiveram a virtualidade de abalar tal convicção e, em certa medida, até a reforçaram, já que a arguida não negou a existência de nenhum dos episódios concretamente descritos, apenas lhe dando diversa coloração, nomeadamente, negando a concreta atuação que lhe é imputada em cada um dos episódios.

Também os depoimentos prestados pelas testemunhas EC, SC e AG, não põem seriamente em causa os depoimentos de AM e de AB, já que estas

testemunhas - familiares da arguida - não viveram com o casal, não tendo uma relação de proximidade existencial com este, suscetível de fazer concluir que

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os factos não aconteceram só porque estas testemunhas não os viram. Acresce que é das regras da experiência comum, em especial naquilo que respeita ao crime de violência doméstica, que as pessoas tendem a adotar um

comportamento mais controlado na presença dos seus familiares, não sendo habitual que situações como as descritas nos autos ocorram diante dos familiares dos agressores.

A convicção do tribunal, naquilo que respeita à factualidade integrante do elemento subjetivo resulta das regras gerais da experiência comum, de acordo com as quais a angústia, a tristeza e a humilhação suportados pela ofendida são conaturais às agressões de que foi vítima e que se consideraram provadas, não podendo a arguida deixar de saber que o comportamento que adotou era apto a provocar tal estado de humilhação.

No que respeita aos factos referentes às condições sociais e económicas de AM e da arguida, a convicção do tribunal foi formulada com base nas

declarações por estas prestadas que, não tendo sido contrariadas por qualquer outro elemento de prova, mereceram a credibilidade do tribunal.

Tomou-se ainda em consideração o teor do relatório social elaborado pela DGRS.

A convicção do tribunal no que concerne aos seus antecedentes criminais assentou no Certificado do Registo Criminal junto aos autos”.

3 - Apreciação do mérito do recurso.

a) Da insuficiência para a decisão da matéria de facto provada.

Entende a recorrente que a sentença revidenda padece do vício da

insuficiência para a decisão da matéria de facto provada (artigo 410º, nº 2, al.

a), do C. P. Penal).

Cabe decidir.

Ao invocar que a sentença sub judice enferma do vício da insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, a recorrente, em substância, fundamenta tal asserção no facto de o tribunal a quo ter efetuado uma incorreta valoração das provas produzidas em audiência de discussão e julgamento.

Verifica-se assim, nesta matéria, que a recorrente confunde a impugnação da

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matéria de facto, tal como previsto no artigo 412º, nºs 1 e 3, do C. P. Penal, com a invocação dos vícios da decisão elencados no artigo 410º, nº 2, do mesmo C. P. Penal - esquecendo que, em sede de apreciação destes vícios, a matéria de facto só é sindicável quando o vício de que a mesma possa

enfermar “resulte do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum” (corpo do nº 2 do artigo 410º do C.

P. Penal) -.

Na verdade, como resulta expressamente da letra da lei, qualquer dos vícios a que alude o nº 2 do artigo 410º do C. P. Penal tem de dimanar da própria decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum, sem recurso a quaisquer elementos externos à decisão,

designadamente às declarações ou aos depoimentos exarados no processo durante o inquérito ou a instrução, ou até mesmo durante o julgamento.

Ora, conforme resulta do teor da motivação do recurso apresentado pela arguida, esta confunde (estranhamente, diga-se) os vícios previstos no nº 2 do artigo 410º do C. P. Penal com a forma como foi valorada pelo tribunal a quo a prova produzida em audiência de discussão e julgamento.

No fundo, aquilo que a recorrente pretende não é invocar o vício da alínea a) do nº 2 do artigo 410º do C. P. Penal, mas antes que este tribunal de recurso sindique a forma como o tribunal de primeira instância apreciou a prova produzida em audiência, tentando a recorrente demonstrar ter ocorrido um erro de julgamento, pois que a prova imporia decisão diversa, não consentindo a sua condenação.

Esta nossa constatação é evidente, e é a própria recorrente quem no-la

fornece (expressamente), dizendo, na conclusão dd) extraída da motivação (e resumindo o corpo da motivação nesta sede): “todavia, pelos mesmos motivos e com base nas mesmas provas invocadas no Capítulo I do presente recurso (DA INSUFICIÊNCIA PARA A DECISÃO DA MATÉRIA DE FACTO PROVADA), que para lá se remete, evitando assim uma repetição, os pontos referidos nas alíneas a) e h) deverão ser dados como não provados”.

A nosso ver, e com o devido respeito, a recorrente não cuidou de saber em que consiste o vício que invoca (insuficiência para a decisão da matéria de facto provada).

A insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, a que se reporta a

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alínea a) do nº 2 do artigo 410º do C. P. Penal, é um vício que ocorre quando a matéria de facto é insuficiente para a decisão de direito, o que se verifica porque o tribunal deixou de apurar a matéria de facto que lhe cabia apurar dentro do objeto do processo, tal como este está circunscrito pela acusação e pela defesa, sem prejuízo do mais que a prova produzida em audiência

justifique. Tal vício consiste na formulação incorreta de um juízo: a conclusão extravasa as premissas; a matéria de facto provada é insuficiente para

fundamentar a solução de direito encontrada.

Não descortinamos, minimamente, no texto da decisão recorrida, a existência do apontado vício (nem a recorrente, aliás, assim o caracteriza, como acima já dissemos).

A recorrente (repete-se) limita-se a pôr em causa a suficiência dos meios de prova produzidos na audiência de discussão e julgamento, confundindo o vício a que se refere a alínea a) do nº 2 do artigo 410º do C. P. Penal com a

insuficiência da prova para a decisão de facto proferida.

Tal como a recorrente põe a questão, o que a mesma diz é que há insuficiência de prova para a matéria de facto dada como provada (ou seja, a alegada

insuficiência é relativa à prova dos factos tidos como assentes pelo tribunal a quo, não visando os factos em si mesmos).

A recorrente não alega, pois, neste ponto, que os factos provados não são suficientes para a decisão, afirmando, isso sim, que as provas não são

suficientes para dar como provados os factos que assim foram considerados.

Esta invocação da recorrente, assim caracterizada, não consubstancia, de modo algum, o vício agora em apreciação.

Como bem esclarecem Simas Santos e Leal Henriques (in “Recursos em

Processo Penal”, Editora Rei dos Livros, 7ª ed., 2008, págs. 72 e 73), ocorre o vício da insuficiência para a decisão da matéria de facto provada quando existe uma “lacuna no apuramento da matéria de facto indispensável para a decisão de direito, isto é, quando se chega à conclusão de que com os factos dados como provados não era possível atingir-se a decisão de direito a que se chegou, havendo assim um hiato nessa matéria que é preciso preencher”.

Verifica-se tal vício quando, no dizer dos mesmos autores (ob. e local citados),

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“a matéria de facto provada é insuficiente para fundamentar a solução de direito e quando o tribunal deixou de investigar toda a matéria de facto com interesse para a decisão final”.

Ora, nada disso coincide com a alegação da recorrente neste ponto, nem nada disso, numa apreciação oficiosa, está patente na sentença sub judice.

Não ocorre, por conseguinte, o invocado vício da insuficiência para a decisão da matéria de facto provada.

Nos termos expostos, é de improceder esta primeira vertente do recurso.

b) Da impugnação alargada da matéria de facto.

Alega a recorrente que a prova produzida em audiência de discussão e julgamento impõe uma decisão diversa sobre a matéria de facto, não se devendo atribuir credibilidade ao depoimento da ofendida AM, e, bem assim, ao depoimento da testemunha AB.

Cabe decidir.

Há que salientar, em primeiro lugar, que o recurso sobre a matéria de facto não envolve (não pode envolver) para o tribunal ad quem a realização de um “ novo julgamento”, com a reanálise de todo o complexo de elementos

probatórios produzidos.

A impugnação da decisão fáctica tem por finalidade, isso sim, o reexame de erros de procedimento ou de julgamento, erros que afetem a decisão recorrida e que o recorrente indique (especificadamente), tendo ainda o recorrente de indicar, por forma também especificada, as provas que, no entender do mesmo, impõem (e não apenas sugerem ou possibilitam) uma decisão de conteúdo diferente.

Ora, a nosso ver, a discordância expressa pela recorrente visa toda a matéria de facto (que é relevante para o preenchimento dos elementos do crime em questão - os pontos 2, 3, 4, 5, 7, 8, 9, 10, 11 e 12 da matéria de facto dada como provada na sentença revidenda -), e, além disso, questiona a análise, efetuada pelo tribunal a quo, de toda a prova produzida.

Lendo e relendo a motivação do recurso e as suas conclusões, delas decorre, inequivocamente, que está questionado o acervo factológico tido como

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provado (e relevante para o crime de violência doméstica), na sua

integralidade, por o tribunal a quo ter seguido um processo de convicção diferente daquele que é o da recorrente.

Aquilo que a recorrente pretende, no fundo, é que este tribunal de recurso proceda a um novo julgamento, analisando toda a prova produzida na primeira instância (depoimento a depoimento, ponto por ponto), e, é óbvio, fixando depois a matéria de facto de acordo com uma convicção que a recorrente pretende seja idêntica à dela própria.

Em segundo lugar, para procedermos à pretendida alteração da decisão fáctica tomada na sentença revidenda, era necessário que a prova produzida em audiência de discussão e julgamento não apenas aconselhasse, ou

permitisse, ou consentisse, uma tal alteração, mas, isso sim, impusesse essa alteração da decisão a que o tribunal recorrido chegou, fundamentadamente, sobre a matéria de facto (cfr. o disposto no artigo 412º, nº 3, al. b), do C. P.

Penal).

Como bem se escreve no acórdão deste Tribunal da Relação de Évora datado de 15-03-2011 (relator Sénio Alves, disponível in www.dgsi.pt), “se, perante determinada situação de facto em concreto, as provas produzidas permitirem duas (ou mais) soluções possíveis, e o juiz,

fundamentadamente, optar por uma delas, a decisão (sobre matéria de facto) é inatacável: o recorrente (tenha ele, nos autos, a posição

processual que tiver), ainda que haja feito da prova produzida uma leitura diversa da efetuada pelo julgador, não pode opor-lhe a sua convicção e reclamar, do tribunal de recurso, que por ela opte, em detrimento e atropelo do princípio da livre apreciação da prova”.

Também o Prof. Figueiredo Dias (in “Direito Processual Penal”, Vol. I, Coimbra Editora, 1981, pág. 233), em sentido similar, esclarece: “por toda a parte se considera hoje a aceitação dos princípios da oralidade e da imediação como um dos progressos mais efetivos e estáveis na história do direito processual penal. Já de há muito, na realidade, que em definitivo se reconheciam os defeitos de um processo penal submetido

predominantemente ao princípio da escrita, desde a sua falta de

flexibilidade até à vasta possibilidade de erros que nele se continha, e que derivava sobretudo de com ele se tornar absolutamente impossível avaliar da credibilidade de um depoimento”.

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Acrescenta ainda o mesmo Ilustre Professor, a propósito dos princípios da oralidade e da imediação (ob. citada, págs. 233 e 234): “só estes princípios, com efeito, permitem o indispensável contacto vivo e imediato com o arguido, a recolha da impressão deixada pela sua personalidade. Só eles permitem, por outro lado, avaliar, o mais corretamente possível, da credibilidade das declarações prestadas pelos participantes

processuais”.

Lendo a motivação do recurso, verifica-se, facilmente, que a recorrente não atentou nestes princípios (da oralidade e da imediação), nem no princípio da livre apreciação da prova (artigo 127º do C. P. Penal), pretendendo que o tribunal (quer o tribunal a quo, quer este tribunal ad quem) acolha a versão dos factos que mais lhe convém.

Ora, e repetindo o acima dito, nos termos do disposto no artigo 412º, nº 3, al.

b), do C. P. Penal, quando impugne a decisão proferida sobre a matéria de facto, o recorrente deve indicar, especificadamente, as provas que “impõem”

decisão diversa da recorrida (que “impõem”, repete-se, e não que permitem ou aconselham).

A esta luz, lendo a sentença revidenda, na “motivação quanto à matéria de facto”, verificamos, sem dificuldade, que as provas produzidas não “impõem”

uma decisão diversa daquela que foi proferida em primeira instância.

Ou seja: o tribunal a quo não decidiu ao arrepio da prova produzida, ou contra tal prova, nem deu como provado determinado facto com fundamento no

depoimento de uma determinada testemunha, e, analisado tal depoimento, constata-se que a dita testemunha se não pronunciou sobre tal facto, ou que, pronunciando-se, disse coisa diferente da afirmada na decisão recorrida, nem, por último, o tribunal recorrido valorou a prova produzida contra as regras da experiência, ou de modo aleatório e discricionário.

Pelo contrário, na “motivação quanto à matéria de facto” a Exmª Juíza fez a análise das declarações (da arguida) e dos depoimentos prestados em

audiência (entre eles o da ofendida), procedendo ao exame crítico das provas, de modo claro e apreensível, esclarecendo os motivos pelos quais deu

credibilidade a uns depoimentos e não deu a outros, tudo por forma a permitir (como permite), quer aos destinatários diretos da decisão quer à comunidade em geral, perceber os seus raciocínios (as razões pelas quais atribuiu

credibilidade a uns testemunhos e não a outros).

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A título exemplificativo, vejamos o seguinte excerto da “motivação quanto à matéria de facto” constante da sentença recorrida: “(…) o depoimento

prestado por AB reforça a credibilidade da descrição dos factos apresentada em juízo por AM. Assim, do conjunto dos depoimentos prestados por estas duas testemunhas, convenceu-se o tribunal que os factos ocorreram pela forma como foram plasmados na factualidade provada e que correspondem ao relato feito por AM. As declarações da arguida não tiveram a virtualidade de abalar tal convicção e, em certa medida, até a reforçaram, já que a arguida não negou a existência de nenhum dos episódios concretamente descritos, apenas lhe dando diversa coloração, nomeadamente negando a concreta atuação que lhe é imputada em cada um dos episódios. Também os

depoimentos prestados pelas testemunhas EC, SC e AG, não põem seriamente em causa os depoimentos de AM e de AB, já que estas testemunhas -

familiares da arguida - não viveram com o casal, não tendo uma relação de proximidade existencial com este, suscetível de fazer concluir que os factos não aconteceram só porque estas testemunhas não os viram”.

Pergunta-se: com que base, com que prova, e até com que legitimidade (substantiva, obviamente) pode este tribunal ad quem, ouvindo gravações (meros registos sonoros de declarações e de depoimentos), ultrapassar estes raciocínios formulados pela Exmª Juíza, que assistiu à produção da prova (em comunicação imediata, viva, física e interativa com a prova), e que, de modo pormenorizado, claro, transparente e assertivo, nos fornece uma análise e uma visão totalmente coerentes e fundamentadas da prova?

Com o devido respeito pelo alegado na motivação do recurso, esta instância recursiva, ponderando todos os elementos de prova (indicados na motivação do recurso, e descritos e analisados na sentença sub judice), e em

conformidade com tudo o que acima se disse (nomeadamente sobre a oralidade e a imediação), não pode, com o mínimo de fundamento válido, alterar a lógica do raciocínio do tribunal a quo (lógica que se mostra razoável, pertinente e percetível) ou contrariar as razões da sua convicção (convicção, por um lado, bem explicitada e fundamentada, e, por outro lado, obtida a partir da imediação com a prova).

Ora, sendo apenas dessa lógica e dessa convicção (alcançadas pelo tribunal a quo e explicitadas na sentença revidenda) que, em substância, a recorrente discorda, logo se conclui que o presente recurso, também nesta vertente (impugnação da decisão fáctica), não merece provimento.

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Por último, e face ao alegado na motivação do recurso, cumpre deixar consignadas algumas considerações adicionais:

1ª - Ao contrário do que parece entender a recorrente, a existência de

divergências entre os depoimentos produzidos por pessoas que presenciaram uma mesma factualidade não é necessariamente sintoma do carácter

inverídico do respetivo conteúdo, podendo ser, bem pelo contrário,

demonstrativa da sua natureza não estereotipada e da sua espontaneidade. Ou seja, a existência de pequenas discrepâncias (de pormenor) no relato dos

factos efetuado pela testemunha AB e pela ofendida não retira (antes reforça) a credibilidade da descrição dos factos apresentada pelas mesmas. Com efeito, indo ao seu núcleo essencial (àquilo que efetivamente releva), a descrição dos factos feita pela ofendida e pela aludida testemunha é a mesma.

2ª - A circunstância de, perante uma conduta da arguida muitas vezes repetida, a ofendida (ou qualquer outra pessoa que tenha presenciado essa conduta) não saber situá-la no tempo (e/ou no espaço), com inteiro pormenor e total rigor, nada indicia sobre a falsidade do relato. Pelo contrário: pode

significar (e significa, as mais das vezes) que a ofendida não “preparou” uma versão dos factos, que não a “inventou”, que não se preocupou em tornar os factos, que eram falsos, verosímeis aos olhos de terceiros.

3ª - Nada obsta, por princípio, a que a convicção do tribunal se forme

exclusivamente com base no depoimento de uma única testemunha, ou até nas declarações de um único assistente (ou de um único demandante) ou de um único arguido. Esse depoimento e estas declarações, como qualquer meio de prova oral, estão sujeitos ao princípio da livre convicção, consagrado no artigo 127º do C. P. Penal. Assim, e no caso destes autos, acreditar o tribunal na versão, naquilo que é essencial, da ofendida, e no depoimento da testemunha AB é uma questão de convicção e entronca no princípio da livre apreciação da prova (sendo de salientar, e repete-se, que, indo ao seu núcleo essencial - àquilo que releva -, a descrição dos factos feita pela ofendida e pela aludida testemunha é a mesma).

4ª - O depoimento da ofendida (e sem mais) mostra-se, in casu, de inteira coerência, sendo digno de toda a credibilidade.

Em conclusão: a apreciação que a Mmª Juíza fez da prova produzida em audiência de discussão e julgamento (apreciação suficientemente explanada

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na sentença recorrida) merece a nossa inteira concordância, não existindo qualquer elemento de prova que tenha sido mal avaliado, indevidamente sopesado, ou mal interpretado.

Nenhumas declarações, nenhum depoimento e nenhum outro elemento probatório, considerados em si mesmo ou conjugados com outros elementos de prova, “impõem” uma decisão diferente da que foi tomada pelo tribunal a quo.

Bem pelo contrário: da conjugação das declarações prestadas pela arguida com os depoimentos prestados pela ofendida AM (casada com a arguida) e pela testemunha AB (que viveu com o casal), é de concluir, sem dúvidas, que os factos ocorreram nos precisos termos tidos como provados na sentença revidenda.

Posto o que precede, é de improceder esta segunda vertente do recurso interposto pela arguida, considerando-se, em consequência, definitivamente fixada a matéria de facto dada como provada em primeira instância.

c) Do princípio in dubio pro reo.

Invoca a recorrente que na sentença recorrida foi violado o princípio in dubio pro reo.

Cumpre analisar.

O princípio in dubio pro reo (um dos princípios básicos do processo penal) significa, em síntese, que, para conduzir à condenação, a prova deve ser

plena, sendo imprescindível que o tribunal tenha formado convicção acerca da verdade dos factos para além de toda a dúvida razoável, isto é, a formação da convicção é um processo que “só se completará quando o tribunal, por uma via racionalizável ao menos a posteriori, tenha logrado afastar qualquer dúvida para que pudessem ser dadas razões, por pouco

verosímil ou provável que ela se apresentasse” (Prof. Figueiredo Dias, ob.

citada, pág. 202).

Quando o tribunal não forma convicção, a dúvida determina inelutavelmente a absolvição, de harmonia com o princípio in dubio pro reo, o qual

consubstancia princípio de direito probatório decorrente daqueloutro princípio, mais amplo, da presunção da inocência (constitucionalmente

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consagrado no artigo 32º da Constituição da República Portuguesa).

Com efeito, dispõe a C.R.P. (no nº 2 do seu artigo 32º) que “todo o arguido se presume inocente até ao trânsito em julgado da sentença de

condenação, devendo ser julgado no mais curto prazo compatível com as garantias de defesa”, preceito que se identifica genericamente com as formulações do princípio da presunção de inocência constantes, além do mais, do artigo 11º, nº 1, da Declaração Universal dos Direitos do Homem, e do artigo 6º, nº 2, da Convenção Europeia para a Proteção dos Direitos do Homem e das Liberdades Fundamentais.

Assim, “o princípio da presunção de inocência surge articulado com o tradicional princípio in dubio pro reo. Além de ser uma garantia subjetiva, o princípio é também uma imposição dirigida ao juiz no sentido de este se pronunciar de forma favorável ao réu, quando não tiver a certeza sobre os factos decisivos para a solução da causa” (Gomes Canotilho e Vital Moreira, in “Constituição da República Portuguesa Anotada”, 3ª ed., pág. 203).

O princípio in dubio pro reo apresenta-se, pois, como forma de suprir a ausência de ónus de prova, em sentido próprio, no direito processual penal.

Na verdade, apesar de toda a prova recolhida, é possível que todos os factos relevantes para a decisão não possam ser subtraídos à dúvida razoável do tribunal, e que, por isso, não possam considerar-se como provados.

É evidente que as dúvidas do julgador quanto à prova produzida têm de ser racionais (no sentido de razoáveis), jamais podendo assentar na mera

existência de versões contraditórias entre si, ou, como parece entender a recorrente, na aceitação ou na rejeição, em bloco, de um determinado depoimento (é que, cada um dos depoimentos deve ser acolhido de modo detalhado, casuístico, ponto por ponto, circunstância a circunstância, e sempre ponderada e fundamentadamente, não podendo ser apelidado, todo um depoimento, globalmente e sem mais, como “bastante parcial, não isento, inverídico, rancoroso, impreciso e confuso” - expressões utilizadas na

motivação do recurso -).

No presente caso, e como acima se expôs (quando analisámos a impugnação da decisão fáctica), não restam quaisquer dúvidas (razoáveis) de que os factos foram, efetivamente, praticados pela arguida, nos precisos termos dados como

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provados na sentença revidenda (não existindo possibilidade ou viabilidade de tais factos não terem ocorrido).

Dito de outro modo: o tribunal a quo não teve dúvidas na valoração da prova, fazendo um juízo seguro acerca dos factos imputados à recorrente, e, perante a prova, também este tribunal de recurso com nenhuma dúvida fica

relativamente à prática de tais factos por banda da recorrente.

Assim sendo, e ao contrário do alegado na motivação do recurso, não foi violado o princípio in dubio pro reo.

Aliás, e bem vistas as coisas, a violação do princípio in dubio pro reo, que vem invocada na motivação do recurso, mais não constitui do que uma outra

perspetiva de a recorrente colocar, precisamente, as mesmas questões (acima já analisadas) relativas ao julgamento sobre a matéria de facto, questões que não mereceram provimento.

Face ao que vem de dizer-se, é de negar provimento também a este segmento do recurso.

d) Da qualificação jurídica dos factos.

Alega a recorrente que, no caso sub judice, não estão preenchidos os

elementos, objetivos e subjetivos, do crime de violência doméstica, p. e p. pelo artigo 152º, nº 1, al. a), e nº 2, do Código Penal.

Cumpre decidir.

Em primeiro lugar, a recorrente raciocina, para qualificar juridicamente os factos, não com base na factualidade tida como provada na sentença

revidenda, como devia, mas, estranhamente (com o devido respeito), com base na invocada não comprovação dessa mesma factualidade.

Isto mesmo se assinala no douto parecer do Exmº Procurador-Geral Adjunto (a fls. 317 e 318 dos autos): “a recorrente alega ter havido errada subsunção dos factos ao Direito. A verdade, porém, é que os factos que se invocam não são aqueles que o tribunal deu como provados, mas, antes, aqueles que se

considera que a sentença devia ter dado como provados e não provados na sequência da impugnação da matéria de facto ensaiada no recurso. Do que se trata, afinal, é de um cenário virtual, que não da factualidade que, essa sim,

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porque dada como assente, há de ser subsumida aos elementos típicos do crime que lhe corresponde, a saber, aquele pelo qual a arguida veio a ser condenada”.

Em segundo lugar, e independentemente da maior ou menor correção da

alegação constante, neste segmento, da motivação do recurso, este tribunal ad quem entende, por um lado, dever pronunciar-se, em toda a amplitude, sobre a qualificação jurídica dos factos, e, por outro lado, entende que, perante a factualidade dada como provada na sentença sub judice, a arguida incorreu na prática do crime de violência doméstica, p. e p. pelo artigo 152º, nº 1, al. a), e nº 2, do Código Penal.

Senão vejamos (sobre o preenchimento de todos os elementos típicos do crime de violência doméstica).

Sob a epígrafe “violência doméstica”, dispõe o artigo 152º, nºs 1 a 3, do Código Penal:

“1 - Quem, de modo reiterado ou não, infligir maus tratos físicos ou psíquicos, incluindo castigos corporais, privações da liberdade e ofensas sexuais:

a) Ao cônjuge ou ex-cônjuge;

b) A pessoa de outro ou do mesmo sexo com quem o agente mantenha ou tenha mantido uma relação de namoro ou uma relação análoga à dos cônjuges, ainda que sem coabitação;

c) A progenitor de descendente comum em 1.º grau; ou

d) A pessoa particularmente indefesa, nomeadamente em razão da idade, deficiência, doença, gravidez ou dependência económica, que com ele coabite;

é punido com pena de prisão de um a cinco anos, se pena mais grave lhe não couber por força de outra disposição legal.

2 - No caso previsto no número anterior, se o agente praticar o facto contra menor, na presença de menor, no domicílio comum ou no

domicílio da vítima é punido com pena de prisão de dois a cinco anos.

(28)

3 - Se dos factos previstos no n.º 1 resultar:

a) Ofensa à integridade física grave, o agente é punido com pena de prisão de dois a oito anos;

b) A morte, o agente é punido com pena de prisão de três a dez anos”.

Quanto ao bem jurídico protegido por esta incriminação, e como bem escreve o Prof. Taipa de Carvalho (in “Comentário Conimbricense do Código Penal - Parte Especial”, Coimbra Editora, Tomo I, pág. 332), trata-se de “bem jurídico complexo, que abrange a saúde física, psíquica e mental, e bem jurídico este que pode ser afetado por toda uma multiplicidade de comportamentos que (…) afetem a dignidade pessoal do cônjuge”.

Mais esclarece o mesmo Ilustre Professor (ob. e local citados), que a ratio do tipo legal de crime previsto no artigo 152º do Código Penal não está, pois, “na proteção da comunidade familiar, conjugal (...), mas sim na proteção da pessoa individual e da sua dignidade humana”.

No dizer de Plácido Conde Fernandes (in “Violência Doméstica - Novo Quadro Penal e Processual Penal”, Jornadas Sobre a Revisão do Código Penal, Revista do CEJ, nº 8, 1º semestre de 2008, pág. 305), “o bem jurídico, enquanto materialização direta da tutela da dignidade da pessoa humana, implica que a norma incriminadora apenas preveja as condutas efetivamente maltratantes, ou seja, que coloquem em causa a

dignidade da pessoa humana, conduzindo à sua degradação pelos maus tratos”.

A nosso ver, preenche este tipo legal de crime a prática de qualquer ato de violência que afete a saúde - física, psíquica ou emocional - da vítima (no caso, o cônjuge ou aquele que vive em condições análogas às dos cônjuges),

diminuindo ou afetando, do mesmo modo, a sua dignidade enquanto pessoa inserida naquela realidade conjugal.

O crime pode, pois, realizar-se através de uma pluralidade de atos, ou através de um único ato, que atinja a saúde física, psíquica ou moral do cônjuge e afete a sua dignidade pessoal.

Porém, é exigível, sempre, que os atos praticados (plúrimos ou isolados,

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reiterados ou não), apreciados à luz da vida em comum, possam, de modo relevante, colocar em risco a saúde (física ou psíquica) do cônjuge, tornando-o vítima de um tratamento incompatível com a sua dignidade e liberdade.

À luz do exposto, e conforme bem salienta Nuno Brandão (in “A Tutela Penal Especial Reforçada da Violência Doméstica”, Revista Julgar, nº 12, pág. 19), no crime de violência doméstica “devem estar em causa atos que, pelo seu carácter violento, sejam, por si só ou quando conjugados com outros, idóneos a refletir-se negativamente sobre a saúde física ou psíquica da vítima”, sendo ainda necessária a avaliação da “situação ambiente” e da “ imagem global do facto” para se decidir pelo preenchimento, ou não, do tipo legal de crime em questão.

Assim sendo, a intervenção penal deve manter, também aqui, a sua função de proteção de última ratio, não devendo o julgador tentar, através de tal

intervenção, modelar e ajustar comportamentos (no âmbito das relações de conjugalidade), punindo criminalmente aquilo que, bem vistas as coisas, é apenas merecedor de censura ético-moral.

É que, a não ser assim, poder-se-ia chegar à absurda situação de existir perseguição criminal de comportamentos que, pura e simplesmente, se

afastem de determinados padrões de comportamento socialmente dominantes.

Ora, em nosso entender, os factos dados como provados nestes autos são suficientes para o preenchimento dos elementos do crime de violência doméstica (pelo qual a arguida foi condenada em primeira instância).

É irrelevante, por si só, o facto de a arguida ingerir bebidas alcoólicas em excesso (facto provado na sentença revidenda sob o nº 2).

Contudo, é criminalmente relevante, devendo ser qualificado como violência doméstica, o facto de, quase todos os dias, durante anos seguidos (desde que arguida e ofendida se casaram, em 2012), a arguida dirigir à ofendida graves expressões injuriosas, além de, por mais de uma vez, ter dirigido ameaças à ofendida, dizendo que a matava (cfr. factos provados na sentença em causa sob os nºs 3, 5, 8 e 9), sendo ainda que a arguida, também por mais de uma vez, impediu a ofendida de entrar em casa (factos provados sob os nºs 4 e 7).

Como bem se escreve na sentença revidenda, “as condutas praticadas pela arguida são ofensivas da dignidade da denunciante, e, pela sua gravidade e

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crueldade, são idóneas a conduzir à sua degradação como pessoa, devendo considerar-se que, com a conduta descrita, a arguida colocou em risco, de modo relevante, a saúde física e psíquica da ofendida, tornando-a vítima de um tratamento incompatível com a sua dignidade enquanto pessoa inserida numa realidade conjugal”.

A nosso ver, a conduta da arguida, considerada na sua globalidade complexiva, configura uma efetiva e relevante situação de expressão de um abuso de poder na relação afetiva com a ofendida, situação que é suscetível de atingir a

integridade pessoal da ofendida nessa relação.

É que, e além do mais, o facto de a arguida, quase todos os dias, dirigir à ofendida expressões como “vaca, puta, filha da puta, vadia, coirão, caralha, burra, analfabeta, rural analfabeta” (entre outras de igual jaez), é não só revelador de um quadro de relacionamento conjugal bastante estranho e deteriorado (o que, por si só, não é criminalmente punível), como é também revelador de uma atuação, por banda da arguida, de amesquinhamento constante, de dominância e de prepotência sobre a pessoa da ofendida, possuindo, por isso, evidente dignidade punitiva à luz do tipo de crime de violência doméstica, porquanto traduz, de modo não pontual, nem isolado, nem pouco intenso, uma ofensa ao bom nome, à dignidade e à autoestima da ofendida.

Como bem se salienta no acórdão deste Tribunal da Relação de Évora datado de 03-07-2012 (relator Sérgio Corvacho, in www.dgsi.pt), “a pedra de toque da distinção entre o tipo criminal de violência doméstica e os tipos de crime que especificamente tutelam os bens pessoais nele visados

concretiza-se pela apreciação de que a conduta imputada constitua, ou não, um atentado à dignidade pessoal aí protegida”.

O apontado amesquinhamento permanente (quase diário) da ofendida e as aludidas dominância e prepotência da arguida sobre a ofendida (tudo

espelhado, a nosso ver, na factualidade dada como provada na sentença sub judice) revelam, claramente, a existência de um atentado, relevante, à

dignidade pessoal da ofendida, que deve ser criminalmente enquadrado na violência doméstica (e não em outros tipos legais de crime, como, por exemplo, o crime de injúria).

Basta, para assim considerar, raciocinar com o mínimo de razoabilidade e de bom senso.

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Na verdade, e repetindo o acima já dito, os factos, olhados na sua globalidade, traduzem, de forma ostensiva, um modo de agir da arguida suficientemente grave, para que se possam, justificadamente, qualificar as atitudes da arguida como condutas maltratantes, pelo menos ao nível psíquico - e tendo-se ainda em conta que, como se escreve no acórdão deste Tribunal da Relação de Évora datado de 30-06-2015 (relatora Ana Brito, disponível in www.dgsi.pt), “uma conduta deve ser qualificada como maltratante na medida em que seja de tal forma desvaliosa que vá para além da afetação apenas da

integridade física ou psicológica e emocional, ou da honra da ofendida, porquanto assume um carácter de maior perfídia, de maior lesão, ao atentar contra o núcleo central da personalidade humana, ou seja, a sua própria dignidade”.

Não é, pois, pelo mero facto de consumir bebidas alcoólicas em excesso, diariamente, ou de, esporadicamente, ter tomado uma qualquer atitude

incorreta (de pouca cortesia, ou de “má educação”, etc.) para com a ofendida, ou até de, ocasionalmente, ter dirigido à ofendida uma ou outra expressão injuriosa, que, sem mais, a arguida tem de ser punida pelo crime de violência doméstica.

São, isso sim, a gravidade e a reiteração da atuação da arguida que nos levam a concluir pela existência de um maltrato da vítima, no sentido tipificado no preceito incriminador da violência doméstica.

Em síntese: os factos tidos como provados na sentença revidenda são adequados a revelar uma conduta maltratante da arguida (relativamente à pessoa da ofendida), de tal modo que, sem dúvidas ou hesitações, podemos considerar a atuação da arguida como integradora da prática de um crime de violência doméstica, ou seja, tais factos preenchem os elementos objetivos desse mesmo tipo legal de crime (quanto aos elementos subjetivos do crime em causa, os mesmos resultam, sem necessidade de quaisquer considerandos, dos factos provados na sentença revidenda sob os nºs 10 a 14).

Face a tudo quanto ficou dito, o recurso da arguida é totalmente de improceder.

III - DECISÃO.

Nos termos expostos, acorda-se em negar provimento ao recurso, mantendo-se

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integralmente a sentença revidenda.

Custas pela recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 3 (três) UCs.

Texto processado e integralmente revisto pelo relator.

Évora, 24 de janeiro de 2017

João Manuel Monteiro Amaro Maria Filomena de Paula Soares

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