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Apesar disso, Gerrick estava realmente otimista em sua primeira viagem

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Academic year: 2022

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O Viajante

Tudo começou em 2575, ou pelo menos era assim que Gerrick Daniel considerava a existência. Afinal, antes de seu nascimento, o que quer que existisse não faria diferença. Não fazia diferença quando se era mercadoria. E Gerrick era mercadoria porque vendia a si mesmo em forma de serviços às corporações. No final das contas, não poderia ser de outra forma, já que eram as corporações quem tinham posse sobre todas as outras mercadorias, fossem elas objetos, ideias, ou pessoas, como ele.

Agora, em 2600, durante o ápice da colonização planetária (muito embora isso se referisse apenas ao Sistema Solar), Gerrick, aos seus 25 anos, decidiu que começaria realmente a viver, e não ser apenas mercadoria. Ele, com grande dedicação e procura conseguiu um contrato como carreto entre as colônias lunares (as de Júpiter) e os planetas terrosos. Dessa forma, ele se tornou um viajante, e mercadoria. Apesar disso, Gerrick estava realmente otimista em sua primeira viagem. Ele deveria transportar um conjunto inteiro de conjuntos terraformadores para uma colônia pioneira em Vênus. Seria capaz de ver o grande Preservatório no caminho? Ele se perguntava. E bem, ele conseguiu.

E mal, ele caiu. Ao se aproximar demais com o cargueiro do planeta para ver o Preservatório, a grande nuvem de detritos orbitais daquele planetinha abandonado por todos os deuses devastou diversos sistemas de seu transporte, derrubando-o quase que de imediato órbita a dentro. Pelo menos, Gerrick era um piloto extraordinário, apesar de ser a última vez que pilotaria alguma coisa. Apenas por isso ele foi capaz de manter a nave em paralelo o suficiente com o chão para que sua queda parecesse o mínimo com uma aterrissagem fracassada e desesperada ao invés de uma morte certa. Mas pelo menos ele sobreviveu à queda.

Os primeiros minutos passaram como as memórias remanescentes de um sonho. Com tamanha quantidade de adrenalina em seu corpo, e ainda em choque, começou a realizar mecanicamente os passos de emergência de pouso forçado. A energia do transporte parecia estar funcional; toda a comunicação fora destruída antes mesmo da queda embora ainda houvesse oxigênio dentro da cabine, colocou sua máscara de respiração; checou quaisquer fraturas ou concussões no corpo, mas ainda nada encontrou. Diante do silêncio, Gerrick forçou a si mesmo a respirar devagar e analisar o painel de controle da nave.

O funcionamento do transporte era crítico, ele tinha não mais que alguns dias de energia com tamanhas avarias. Qualquer tentativa de levantar voo seria inútil, pois ambos os motores foram fundidos durante seu hercúleo esforço de aterrissagem. Os tanques de oxigênio durariam algumas semanas, mas sem energia, parariam de funcionar junto com o resto da nave. Gerrick teve a abismal certeza de que morreria esquecido e sozinho naquele deserto.

Depois de duas horas de energia da nave desperdiçadas em lágrimas e desespero, Gerrick se recompôs. Se fosse morrer naquele planeta, pelo menos o faria se esforçando. Com o Sistema de Posicionamento Solar da nave, descobriu que estava no hemisfério oposto ao do Preservatório, embora estivesse próximo dos trópicos. Sendo assim, qualquer esforço para sair do planeta o colocaria em uma caminhada de mais de 10 mil quilômetros de distância a pé até o único território habitado da Terra.

Embora não soubesse exatamente o que deveria fazer, sentia que não podia perder tempo, e que logo morreria se ficasse parado bolando um plano demasiadamente complexo.

Sabia que poderia contar com alguns dos melhores equipamentos de sobrevivência nos

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terraformadores que estava transportando. Com certeza ao menos parte da mercadoria não estaria danificada devido à queda, afinal, ele mesmo estava inteiro, por mais difícil de acreditar que pudesse ser.

Ao entrar na cabine de carga, viu os containers de terraformadores fora de seus ganchos contenção. As paredes da cabine estavam com diversas avarias pela força com a qual os containers chacoalharam-se durante a queda. Pelo menos, a grande resistência das ligas que compunham as grandes caixas de metal manteve os equipamentos a salvo dentro de si.

Realmente, os equipamentos ali guardados seriam de extrema necessidade em sua jornada, muito embora as maquinas maiores, feitas para servirem comunidades inteiras, não poderiam ser carregados, mesmo com as mochilas de expedição (cuja estrutura mecânica era similar a uma mochila com exoesqueleto e amortecedores) fornecidas nos containers. Apesar disso, as mochilas eram espaçosas, e em uma delas, armazenou todos os kits médicos disponíveis, todos os sacos de ração, todos os sacos de sementes, um kit de plantio, três cantis de água (com purificadores embutidos), além de se equipar com um dos trajes de expedição fornecidos, capazes de protegê-lo de todos os ambientes inóspitos que poderia encontrar, além de já conter ganchos e cordas de escalada presos em si. E bolsos, vários bolsos em pontos estratégicos da roupa.

Ao arrumar sua mochila e vestir seu traje de expedição, decidiu dormir na nave antes de começar sua epopeia. Quando acordou, teve vontade chorar ao pensar em todo dinheiro que teria de pagar de volta ao cliente pela mercadoria que estava usando quando voltasse para casa.

Engoliu sua vontade de chorar, e gastou os seus últimos minutos na nave assistindo o manual de instruções do traje enquanto comia seu café da manhã. Era até bem simples: Um simples sistema de puxar cordas operava as funções de escalada; possuía um pequeno cano pelo qual podia encher seu cilindro de oxigênio com água, para que o traje retirasse seu oxigênio e descartasse o resto; seu sistema de oxigênio era ligado diretamente ao nariz, e assim não precisaria se alimentar via soros, podia simplesmente remover a proteção bucal do capacete;

haviam botões para as funções mais delicadas, como o uso do oxigênio de reserva, lanternas, radar, entre outros luxos. Gerrick achou curiosa a recomendação de manter a função de “apoio psicológico” sempre ativa em situações de sobrevivência, mas como de fato estava em uma situação de sobrevivência, e de fato precisava de apoio psicológico, resolveu aceitar a recomendação do manual.

Ao a selecionar o botão de apoio psicológico percebeu uma voz suave falando em seu capacete: “Echoes - artistas: Pink Floyd”, então uma baixa musiquinha surgiu. Ela era bastante rudimentar, possivelmente erudita. Era lenta, tocada sem digitalizadores, apenas instrumentos analógicos. Sua melodia era lenta e suave, quase como estar caindo no sono, suas líricas eram diferentes do que já havia ouvido antes, levantando questionamentos profundos e metafóricos, algo que jamais havia ouvido dentro de uma música antes. No espaço de trinta segundos entre uma música e outra ele percebeu que estava parado em frente a porta da nave havia dez minutos.

Abrindo a porta, começou sua longa jornada ao polo sul, para chegar ao Preservatório. Pelo menos, havia mais uma música começando a ser tocada.

Dias passaram-se e Gerrick encontrou um litoral, o que era fortuito, pois assim podia se reabastecer de água e oxigênio. Passou por diversas construções de pedra em meio ao deserto seco e arenoso que agora era o planeta. Em diferentes ocasiões cogitou usar essas antigas casas humanas como abrigo, mas mesmo com o apoio psicológico tocando as divertidas músicas da Rainha, era demasiado assustador ficar sozinho ao redor dos colossais esqueletos de concreto.

Apesar do capacete, o barulho do vento passando por centenas de janelas quebradas em

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uníssono era uma coisa que Gerrick desejou jamais ter ouvido em sua vida, e agora estava feliz por haverem centenas de metros entre as praias e as cidades mortas.

E assim vagou por semanas a fio. Após andar por centenas de quilômetros durante algumas semanas, o viajante decidiu sair da costa litorânea e continuar sua viagem através de um rio ainda corrente rumo ao centro do continente. O terreno era diferente do deserto rochoso e arenoso da região continental mais ao norte do continente, onde começou sua jornada. O rio tornava o terreno mais próximo de si em algo barrento e macio de se caminhar, similar à areia banhada pelo mar nas praias. Ele não imaginava que esse tipo coisa ainda existisse no planeta, não depois de tanto tempo tendo apenas mares de água salgada como referencial de umidade.

Depois de duas semanas seguindo o grande rio continente à dentro, Gerrick matou um ser vivo. Enquanto recarregava seus cilindros de oxigênio com a água do rio, ele pensou ter pisado em uma pedra mais escorregadia do que o normal. De repente, viu uma forma pulando para fora d’água ao seu lado! Em meio à solidão, seus sentidos estavam excelentes e num único movimento, seu reflexo fez com que rebatesse a forma de vida usando seu cilindro como um taco. A pobre criatura foi arremessada a uns cinco metros de distância pra fora da água e convulsionou por mais alguns segundos até morrer, enquanto Gerrick se recuperava de seu susto e choque por encontrar algo vivo.

Ele recolocou seu cilindro no lugar e, ainda tremendo, andou na direção do cadáver.

Era um pequeno peixe, não maior que seu antebraço, que ali jazia no solo árido. Gerrick estava fascinado, afinal, todos os estudos planetários diziam que a única região com capacidade de abrigar vida no planeta Terra era o Preservatório (afinal, fora construído especificamente para isso). E mesmo que esse fosse um espécime fugitivo de seus tanques, certamente ele não deveria ser capaz de viver na água terrestre, agora completamente tomada por resíduos plásticos e de acidez elevada. Entretanto, aquele cadaverzinho dizia algo bem diferente.

Gerrick não era um cientista. Não teve mais do que ensinamentos elementares em sua escola. Por sua curiosidade, comprou para si alguns kits de estudos diversos, mas nada que o tornasse capaz de realizar qualquer análise no peixe morto. Ainda assim, ele tentou. Passou o resto daquele dia em uma tentativa patética de dissecação, cujo único resultado era o de que certamente tratava-se de algo vivo, não um androide. O que não o fez sentir-se melhor, fosse por ele ter matado a única coisa viva após meses de solidão em um planeta abandonado por quaisquer deuses no céu, fosse por ser um péssimo legista animal. Gerrick decidiu não comer o peixe, pois, ainda poderia estar contaminado pelas águas onde nadava. Isso era uma pena, pois sua ração estava chegando na metade com o racionamento que fez, porém achava que sequer havia chegado ao meio do caminho rumo à salvação. Ele achou melhor ter a decência de enterrar o peixe no barro na falta um incinerador para cremá-lo, e depois disso foi dormir.

Quando acordou, arrependeu-se de não ter sequer provado o peixe, mas seu orgulho não o permitiria desenterrar o peixe para fazê-lo. Por isso, avançou lentamente durante os dias seguintes, à procura de outros peixes pela margem do rio, mas sem sucesso, embora jurasse ter visto peixes em determinados momentos. Assim, começou a pensar que talvez fosse tudo uma alucinação afinal de contas. Um grande desespero teria se abatido sobre o pobre rapaz, não fosse a presença do confiável apoio psicológico, então tocando “The Gnome”, outra obra do talentoso músico Pink Floyd. Saber que não fora o único a ver coisas que não existem diante de um rio era até que reconfortante.

Conforme os dias passavam, a preocupação a respeito da finitude de sua comida crescia.

Ele sabia que tinha uma excelente quantidade de sementes e ferramentas de plantio, mas

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verdade seja dita, Gerrick nunca havia plantado qualquer coisa. Também começou a ponderar sobre o barro próximo ao rio. Ele imaginava que o solo árido seria um solo ruim de qualquer forma, então talvez plantar no barro próximo a esse rio fosse uma boa ideia. Depois desse questionamento veio outro: sendo esse rio tão grande, onde, exatamente, ele deveria plantar?

Todas as partes do rio pareceram igualmente cultiváveis para ele até o momento. Tendo tudo isso em vista, pareceu apropriado avançar mais pelo rio na esperança de encontrar um terreno que parecesse especialmente cultivável em relação ao resto do rio. E ele surpreendentemente encontrou.

Após mais uma semana andando contra a corrente continente a dentro, Gerrick seguiu o rio por uma grande ravina. E não fosse pelos artifícios de escalada de seu traje, seria impossível para ele seguir o rio ravina a dentro sem um veículo aquático. Mas como as paredes da ravina eram bastante firmes e suficientemente planas, ele conseguiu seguir as instruções do traje com fortuita facilidade. Ao escalar as paredes da ravina, a travessia tornou-se mais simples. O terreno acima também era plano e firme. Gerrick conseguiu cobrir muitos quilômetros enquanto seguia o rio por cima da ravina. Ao cair da noite, ele chegou ao fim da ravina, e assim decidiu começar a descida pela manhã.

Ao despertar, o viajante encontrou uma inusitada paisagem diante de si. Além da ravina, havia um vale desértico, e em seu centro, o rio tornava-se uma grande e plácida lagoa. No centro dessa lagoa havia uma ilha. Uma grande construção erguia-se na ilha. Seu formato diferenciava-se das outras pelas quais havia passado nas cidades mortas. Seus telhados eram arredondados, e várias torres pareciam despontar de si, similar a igrejas que já havia visto nas colônias. Decidido a olhar mais de perto para a ilha, Gerrick começou a descer o final da ravina, rumo às margens da grande lagoa.

Ao parar diante das margens da lagoa, Gerrick avistou algo que não parecia estar correto. Haviam pelo menos 150 metros de água entre ele e a ilha. Ainda assim, em meio a toda vastidão árida que era o planeta, parecia haver duas árvores no pátio em frente à construção insular. Era difícil ter certeza, pois pareciam duas árvores pequenas e finas, com poucas folhas, mas ainda assim, possuíam verde suficiente para ele manter tal suposição. Também não facilitava sua situação ter a sombra da construção por cima das supostas árvores. Tampouco era encorajador lembrar do incidente com aquele possível peixe. Ainda não tinha se decidido quanto a veracidade daquele evento para começar a preocupar com essa nova possível alucinação. Todavia, parecia estar lá.

Se fosse verdade, bem, Gerrick não estava certo no que isso implicaria, mas ele acreditava que implicaria em algo importante para sua sobrevivência. Por isso decidiu arranjar um jeito de chegar à ilha. Ele já havia descoberto que sua mochila atuava como uma comprida boia, e certamente não teria problema em submergir caso necessário, graças ao seu traje de expedição. Infelizmente ele não vinha com qualquer sistema de navegação aquática, mas Gerrick achava que o que tinha seria suficiente para garantir uma viagem segura pela lagoa, isso se não fosse levado pela fraca correnteza.

Para ter certeza de que de fato não seria levado pela correnteza, Gerrick decidiu começar seu nado mais adiante, no sentido oposto ao da corrente, de forma a ganhar uma margem de tempo para alinhar-se à ilha, caso não fosse capaz de nadar mais rápido que o fluxo da água.

Conforme adentrou a lagoa, sentiu a flutuação da mochila mantê-lo na superfície, muito embora também empurrasse sua cabeça para debaixo d’água. Ele nunca fizera grandes tentativas de nado para saber se estava fazendo isso corretamente, mas era encorajador não ter o medo de se

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afogar, ou mesmo o de afundar, o que lhe permitia gastar todo o seu esforço no deslocamento em direção à ilha. Enquanto se locomovia, era também inspirado a continuar pela canção a respeito dos corajosos imigrantes sobre os quais a banda Led Zeppelin cantava em seu capacete, abafando o som da água. Depois de certo tempo deslocando-se em direção ao centro da lagoa, conseguiu finalmente sentir o chão da lagoa outra vez.

Ao pisar na ilha, embora cansado, não ousou descansar até dar a volta na construção insular e ver as malditas árvores de perto. E de fato estavam lá. Elas eram pequenas e tinham folhas de um verde bastante decepcionante, mas sem dúvida deram um jeito de manterem-se vivas. O solo onde estavam também parecia lhes fornecer ajuda. Era escuro e úmido, parecendo apropriado para sustentar vida. Mesmo assim, não tinha certeza se tudo isso não seria alguma alucinação causada pela sua solidão e pela falta de comida para chegar ao Preservatório. Mas sua averiguação indicava que eram árvores reais. Certamente as árvores não teriam dificuldade para drenar a água da lagoa, mas seriam elas capazes de viver caso a atmosfera estivesse realmente intoxicada? Gerrick se perguntava.

Até esse momento, ele não tivera a coragem necessária para fazer o que então cogitou fazer. Lentamente, com o corpo tremendo pela loucura que estava prestes a realizar, Gerrick começou a despir-se dos tubos de respiração do traje. Ao fazê-lo, ousou dar uma imponente aspirada com todo o potencial de seus pulmões. O que claramente foi um erro. Ele engasgou- se de maneira deplorável, com uma coceira percorrendo toda a sua via respiratória. Enquanto caía no chão tossindo desesperadamente, perguntava-se se estava realmente morrendo de maneira tão estúpida e patética. Após alguns minutos de pânico e dificuldade tamanha para respirar, Gerrick percebeu que de fato havia “alguma” atmosfera restante no planeta, e certamente demasiado poluída, a julgar pela queimação que ainda sentia ao respirar. Ao fim desse experimento vergonhoso, decidiu não abrir mão do luxo de simplesmente usar seu traje para respirar. Viver “au naturale” apenas não valia a pena.

Recuperado do susto, Gerrick decidiu explorar um pouco da construção enquanto escurecia, apenas para matar um pouco do tempo. Decidindo começar de cima, reparou enquanto subia as escadas que a construção aparentemente não possuía janelas. Diante de tamanha escuridão, imaginou se o lugar não seria afinal de contas uma necrópole, porém não encontrou cadáveres, o que julgou fortuito. Ao chegar ao topo, passou a investigar as poucas salas que haviam. O lugar era bastante peculiar, e certamente religioso, com salas amplas e quase vazias, com estátuas de monges no centro de cada uma. Conforme descia, encontrou salas com grandes estantes de livros, todos muito maltratados pelas intempéries. Ele nunca havia visto um livro pessoalmente. Essa era uma tremenda descoberta científica, ele imaginava.

Há mais de um século, deduzia, não se encontrava tamanho acervo. Sentiu-se especialmente recompensado por ter decidido investigar as árvores na ilha.

Inspirado a continuar a exploração ao longo do aparente templo, Gerrick, começou a descer o que parecia uma passagem para uma ala subterrânea. Era curioso que em um templo tão primitivo tivessem escavado tão profundamente o solo de uma ilha tão pequena, considerando a profundidade do lago. Todavia, as paredes pareciam estavam secas o suficiente por estarem cobertas de poeira. Ao terminar de descer as escadas, Gerrick adentrou uma sala similar às que vira nos andares superiores. Era pequena, porém ampla, com a metálica estátua de um monge na parede oposta. Enquanto dirigia-se à estátua, percebeu diversas frases cunhadas nas paredes. Ele não sabia o que significavam, mas sua fonética parecia agradável em sua cabeça. Ao se aproximar da estátua, Gerrick decidiu tocá-la, e isso o marcou pela eternidade.

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Ele estava completamente paralisado, com uma excruciante dor sendo igualmente distribuída por cada célula de seu corpo. O bater de cem mil sinos ressoava em sua mente. O ar de seus pulmões era quente como plasma ionizado. Cada nervo de seu corpo foi encandecido como o filamento de uma lâmpada. E após um minuto inteiro de inigualável sofrimento, acabou. Ele sabia que fora marcado por um propósito superior, algo literalmente mágico. Não tinha ideia do que poderia ser, mas sabia que descobriria eventualmente, afinal, agora era imortal. Não poderia morrer por velhice, doença ou inanição. Apenas a violência de outro ser humano o mataria agora. Finalmente tinha todo o tempo do mundo para chegar ao Preservatório. E diante de tamanha benção, já não estava mais com pressa.

O processo o deixou exausto, e decidiu dormir onde estava. Ao acordar, resolveu aprender todo o conhecimento que o templo tinha ao seu dispor, mas começou plantando para ter mais comida. O mesmo solo que deu vida às árvores, agora lhe proveria alimento. Agora também acreditava na existência do peixe que havia matado. Para descobrir se haviam outros na lagoa, improvisou varas de pescar com galhos de árvore, prendeu-as no chão, e usou um pouco de comida como isca. Após alguns minutos de espera, obteve resultado. Infelizmente a ausência de anzol fez com que perdesse os peixes. Passou o resto do dia vendo livros do templo que estavam na sua língua, que eram poucos, mas assim esperava aprender a ler os outros.

Afinal de contas, não estava com pressa.

Após meses estudando, passou a ser adepto das filosofias monásticas que um dia foram ensinadas no templo. Era agora capaz de meditar e entoar os mantras apropriadamente. Ainda não era capaz de ler todos os livros, mas já havia sido capaz de traduzir boa parte de seus ensinamentos. Sua plantação cresceu forte e diversa, e como possuía inicialmente grandes sacos de sementes, foi capaz de recolher muitos alimentos como feijões e amendoins para estocá-los, porém não tinha os recursos necessários para armazená-los como gostaria. Com paciência, fez grandes expedições aos restos de sua antiga nave para carregar de volta ao seu lar um de cada dos grandes equipamentos de terrraformação que antes teve de deixar para trás ao sair para sua primeira expedição. Com eles, adquiriu eletricidade através do Sol, armou sistemas de irrigação, aumentou a área de plantio, e passou a desenvolver grandes redes pesca para espalhar ao redor de sua ilha.

Após anos de estudo aprofundado nas artes monásticas, viu valor em concluir sua antiga expedição ao Preservatório, e após viajar até o extremo sul do continente americano (era este o continente no qual estava, segundo os livros) percebeu que desde início seu plano de salvação fora tolo, pois não seria capaz de cruzar o oceano existente entre ele e o continente Antártico.

Percebeu também que a travessia através do continente congelado teria sido mortal caso não tivesse recebido sua Benção Celestial. Ao entender isso, ficou contente com a vista das antigas Terras do Fogo (qualquer vulcão que existisse ali deve ter se extinguido pelo frio, ele pensava), e retornou ao seu templo para aprender mais.

Décadas passaram-se e finalmente havia alcançado todo aprendizado que os livros do templo, a meditação e o autoaprendizado poderiam oferecer. Por isso decidiu visitar todos os continentes à procura de mais conhecimento. Infelizmente, seu incrível traje de expedição, foi perdendo suas funções ao longo de décadas, e para essa nova viagem, foi forçado a despedir- se dele. E assim, vagou, velejou e escalou montanhas atrás de novas cidades e construções onde poderia procurar por fontes de informação. Após algumas centenas de anos, leu todos os livros, acessou computadores primitivos ainda preservados com eletricidade de suas baterias coletivas, que armazenavam a energia coletada por centenas de anos com seus painéis solares

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(passou todo esse tempo usando-os apenas para recarregar as baterias de seu traje), e estudou todos os antigos documentos usados no passado humano na Terra.

Outras décadas após essa cruzada pelo conhecimento, encontrou também outros humanos, que diferentes dele, eram legítimos pioneiros, enviados para reterraformar a Terra depois que os cientistas do Preservatório realizaram tímidas expedições para fora de seu domo e averiguaram que o ar era novamente respirável no planeta. Gerrick rapidamente tornou-se uma lenda nas colônias humanas, como uma espécie de fantasma que aparecia em uma após a outra sob o pretexto de viver na Terra por centenas de anos após alcançar a iluminação completa. Através desses novos vizinhos humanos, Gerrick negociou computadores conectados à Rede (um sistema de internet que era conectado diretamente às consciências dos usuários, algo inédito para ele) em troca de conhecimento útil sobre a geografia da Terra.

Com essa nova tecnologia, muito mais avançada que a de sua juventude, tinha toda a informação de todas as colônias humanas interligadas à sua mente. Com seu treinamento monástico, a fome há muito deixou de doer e assim, vivia apenas através do seu aprendizado.

Dessa forma, com seus novos computadores, percebeu que, como em sonhos, passava mais tempo dentro da Rede do que o tempo que passava fora dela. Sem precisar comer ou dormir, entendeu que seira capaz da induzir-se a viver unicamente como uma entidade que aprende. E dessa maneira, foi em certo momento capaz de vencer a velocidade com a qual novas informações eram adicionadas pelos mais de 100 de bilhões de usuários da Rede. Para cada dia inteiro de informação em tempo real adicionado, o transe de Gerrick permitia que ele absorvesse esse dia inteiro de informações em mera meia hora o que fora transferido, o que significava semanas de informação sendo devoradas por dia pelo monge.

Após quase três mil anos confinado na ala subterrânea de seu templo, tendo absorvido todas as informações já adicionadas à Rede, e semanas sem receber novas informações, além de anos através do tempo que presenciava dentro dela (dentro da Rede, a falta de informações novas se manifestava para Gerrick como se estivesse imerso em um grande sono sem sonhos, porém desperto). Em meio à escuridão, na qual aguardava pacientemente novos aprendizados, de repente é despertado para o mundo real outra vez mais.

Ele acordou em uma nova escuridão. Estava enterrado. Pelo menos era claro que também não poderia ser morto pela falta de oxigênio. Seus músculos não podiam ser atrofiados, mas devia estar fundo debaixo da terra pela pressão que sentia. Com a paciência de quem pode esperar eras na escuridão e silêncio, passou anos cavando a si mesmo para fora da Terra. Ao sair do chão finalmente, estava na água. Sua ilha fora soterrada com o passar das eras, mas para um grande rio, apenas éons faziam diferença. A lagoa agora era apenas parte do grande de seu curso. Havia verde ao seu redor. Uma floresta começava a adensar em sua região como um dia já havia existido, quando os humanos ainda superpopulavam a Terra.

Outra vez mais, Gerrick viajou pelo mundo, embora dessa vez fosse à procura de seres humanos. Quando chegou à Ásia, encontrou um grupo de pessoas vivendo lá. A maneira como viviam vinha dos monges, assim como fora ensinado pelos livros do templo. Ao ter seu primeiro contato com eles, já sabia pela Rede o que tinham para lhe contar. Após levar sua busca por conhecimento à Rede, Gerrick foi procurado pelos pioneiros com os quais havia conversado milhares de anos atrás. Quando firmaram uma colônia no Centro-sul da América, encontraram o local como fora descrito pelo próprio monge ao negociar com os pioneiros.

Infelizmente, a ilha do templo já havia começado a ceder quando a encontraram, e a ala subterrânea (e Gerrick) já havia sido engolida pelo solo da lagoa. Tendo encontrado apenas os

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livros monásticos, os colonos os tiraram do templo em ruínas e presumiram que a história de um monge imortal fosse apenas uma lenda, sendo ele apenas alguém mortal, afinal de contas.

Apesar disso, os ensinamentos monásticos contidos nos livros reacenderam o espírito religioso há muito morto nos seres humanos em meio às colônias terrestres. Quando nem mesmo os asteroides possuíam qualquer recurso metálico, os seres humanos abandonaram o Sistema Solar e os únicos remanescentes foram os monges na Terra, embora pesquisadores de fora do Sistema Solar viessem de décadas em décadas para preservar a Terra, que ainda consideravam

“o berço dos seres humanos”.

Ainda assim, Gerrick foi surpreendido por ter seu retorno celebrado como a existência de um deus entre os homens. Durante suas vidas inteiras, os monges tentavam, geração após geração, encontrar a iluminação que Gerrick supostamente havia encontrado para alcançar a imortalidade. Agora de volta aos seres humanos, o imortal lhes explicou que não foi através de sua meditação ou hábitos, mas sim através de uma Benção Celestial que foi capaz de alcançar a imortalidade. Mas agora que estava entre irmãos, iria usar sua Benção para guiá-los a uma vida plena.

Por gerações, Gerrick usou seu aprendizado, agora em proporções divinas, para desenvolver seus seguidores em uma civilização que utilizasse a tecnologia de acordo com os ensinamentos monásticos. Em meio ao crescimento de seus templos, cada vez mais tempo havia entre as vindas dos pesquisadores de fora do Sistema Solar. Segundo eles, o vazio que Gerrick sentiu e o seu despertar na Rede foram um efeito da crescente popularidade de um novo sistema de transmissão de informações, que em determinado momento levou ao desligamento da Rede. E agora, guerras crescentes nos Sistemas Exteriores tornavam cada vez mais raras as visitas à Terra.

Após alguns milhares de anos, a vida na Terra era absolutamente pacífica, porém estagnada. Todos viviam através de uma procura pelo absoluto desapego dentro de si: uma vida que vive apenas para ser vivida. Após gerações de grande esforço e coerção, todos passaram a compreender isso, e a seguir os pacíficos conselhos de Gerrick. Todos os conflitos nascidos em sua pequena comunidade (com o passar das gerações, sua comunidade diminuía progressivamente, conforme cada vez menos casais eram formados para a geração de crianças.

Poucas eram as mulheres que buscavam ser mães enquanto buscavam o vazio dentro de si) foram rapidamente encerrados pelos próprios rebeldes, uma vez que a sabedoria de Gerrick encerrava quaisquer dúvidas que tivessem ou inconformidades que pensassem existir. E após 15 mil anos, a última família de monges deixou de existir, e com ela, a pacífica comunidade que ele construiu pereceu diante de seu pai fundador. E novamente, Gerrick ficou sozinho.

Em sua solidão, ponderou muito onde seus métodos falharam, se poderia ter sido diferente, se existia alguma possibilidade de sucesso ao se tentar erguer, e principalmente manter, uma civilização. Vagou pelos templos e casas há muito vazios, e ainda assim, tão novos ao serem comparados com os locais pelos quais havia vagado éons atrás. Todas as civilizações que contemplou foram perdidas em meio ao tempo, bem como os seus próprios efêmeros habitantes. Se havia alguém destinado a mudar o invariável fracasso humano, seria ele, um imortal.

A Gerrick foi dada uma dádiva: o tempo. Fosse para adquirir as condições necessárias, ou um conhecimento ainda inédito para a humanidade, dentro de si jazia a resposta para tais problemas: a espera. E assim ele o fez. No alto da montanha mais próxima, o monge sentou-se e começou sua espera. Ficaria ali quanto tempo fosse necessário para que soubesse o que fazer

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e/ou ter o que precisava para fazê-lo. E em sua meditação ele se perdeu. Como na Rede, o tempo em sua mente deixou de passar normalmente, e pela eternidade, buscou em sua espera uma civilização capaz de perdurar pela eternidade assim como ele o faria, como sua Benção Celestial designou. E dessa maneira, ele se perdeu no completo vazio de sua mente.

Quando tempo suficiente passou para que a montanha na qual jazia retornasse ao nível do mar, Gerrick já havia vivido mais tempo na escuridão de sua própria mente do que todo o resto de sua inacabável vida. Então, em meio ao silêncio, o viajante percebeu algo que há muito não vira dentro de si: uma nova ideia. Ao vagar por ela, encheu-se de alegria ao ver que era essa a revelação pela qual esperou a eternidade. Quando chegou à sua conclusão, luz tão intensa quanto a da própria criação invadiu sua mente, forçando-o a acordar. Era noite na planície onde estava, e em meio às estrelas do céu, pousava uma nave perto de si. Agora, tanto o conhecimento quanto as circunstâncias foram colocadas simultaneamente diante dele. A espera valera a pena.

Ao fazer contato com os descendentes dos seres humanos que pilotavam a nave, anunciou:

-Levais-me ao vosso lar, pois agora sou o Profeta.

E com o Profeta, a nave retornou.

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