CONFLITOS À FLOR DA PELE: AS OPERÁRIAS TÊXTEIS E A FÁBRICA SANTA CECÍLIA (1985-1990)
jormana_araujo@yahoo.com.br1
RESUMO
Este artigo visa analisar o impacto da transferência da Indústria Têxtil para o Estado do Ceará e especificamente a experiência das operárias na Fábrica Santa Cecília como resultado das políticas de apoio do "Governo de Mudanças" para o setor têxtil no Estado. A partir de depoimentos orais de operárias e de documentações oficiais oriundas de instituições particulares apresentamos uma possibilidade de escrita acerca da fábrica focalizando as trabalhadoras, seus direitos e condições de trabalho no chão desta fábrica, durante a segunda metade da década de 1980. Para isto, dialogamos com a metodologia da História do Trabalho e sua reflexão acerca de outros sujeitos na História assim como as Mulheres, protagonistas nesta pesquisa.
PALAVRAS - CHAVE: Indústria Têxtil - Mulheres – Trabalho
INTRODUÇÃO
O presente artigo faz parte de uma pesquisa em andamento denominada Conflito
e Acomodação: As Operárias Têxteis na Fábrica Santa Cecília em Fortaleza
(1985-1990), em desenvolvimento para a conclusão de curso na Universidade Estadual do
Ceará. 2
Buscar compreender as experiências de operárias de tecidos da fábrica Santa
Cecília localizada no bairro Montese frente a toda uma documentação emitida pela
Federação das Indústrias do Estado do Ceará (FIEC), Banco do Nordeste do Brasil
(BNB) e, em muitos momentos até em jornais de grande circulação no Estado fez-nos
refletir acerca de uma outra possibilidade de escrita sobre Indústria Têxtil, advinda de
reflexões pelas próprias operárias, mão-de-obra majoritária na fábrica Santa Cecília
ainda na década de 1980.
Estas operárias compuseram o quadro de trabalhadoras do grupo UNITÊXTIL,
complexo industrial que, segundo Aragão (1989, p. 54), data do ano de 1973 quando “...
a empresa Cotonifício Leite Barbosa S/A incorporou a Indústria Politêxtil S/A e a
1 Jormana Maria Pereira Araújo é estudante concludente da graduação do curso de Licenciatura Plena em História, na Universidade Estadual do Ceará.
Companhia Têxtil Santa Rita”3, a Santa Cecília passou a compor uma das quatro
fábricas instaladas no território cearense onde sua importância econômica é observada,
por exemplo, no Cadastro Industrial do Ceará4 de 1986. Assim a Santa Cecília se esboça
entre as cem maiores indústrias do Estado, apresentando-se na 13ª colocação, frente às
outras economias industriais aqui instaladas produzindo fios sintéticos e de algodão5
seja para o interior do país seja para exportação.
Apesar de ser uma fábrica tradicional nascida em Fortaleza, a Santa Cecília
vivenciou muitas das benesses deste período histórico. Aragão (2002) caracteriza que
em meio a crescimento e decadência, a fábrica gerenciada pelo empresário Carlos Leite
Barbosa Pinheiro, experimentou durante esta década inúmeras contradições. No
momento em que o “Governo das Mudanças” passa a adotar uma nova política de
incentivos fiscais, ainda na segunda metade dos anos de 1980, o grupo Unitêxtil6
começava propagandear sua retirada para a região central do país, de acordo com uma
reportagem emitida pelo jornal O Povo:
Para novos investimentos não faltam água, energia e as condições de infra-estrutura, mas não existe energia para a ampliação e modernização de uma empresa quase centenária, que emprega, diretamente, quase 2.500 pessoas no Ceará...7
A reivindicação por parte do grupo industrial era para que o Governo ampliasse
sua cota de água e energia a fim de que se desse continuidade ao seu ritmo produtivo
contínuo e ininterrupto durante o dia e a noite, inclusive aos domingos. 8
3 ARAGÃO, Elizabeth Fiúza. A Trajetória da Indústria Têxtil no Ceará: o setor de fiação e tecelagem 1880-1950; Projeto História do Ceará: política, indústria e trabalho. Fortaleza: Edições Universidade Federal do Ceará/ Stylus Comunicações, 1989. Pág. 54.
4Cadastro Industrial do Ceará – 1986. Editores Autorizados: Edições Técnicas do Brasil LTDA. Governo do Estado do Ceará. Secretária de Indústria e Comércio. 1999.
5 Cadastro Industrial do Estado do Ceará. 1989. Editores Autorizados: Edições Técnicas do Brasil LTDA. Edição Especial. Governo do Estado do Ceará. Secretária de Indústria e Comércio. 1989. Pág. 143.
6 O grupo UNITÊXTIL foi um complexo industrial que data do ano de 1973 e que ao longo de sua existência agrupou 4 fábricas: Santa Teresa (em Aracati), Santa Cecília, Santa Lúcia, Santa Inês (as três últimas em Fortaleza).
7 Jornal O Povo de 28/06/1987.
Diante deste ritmo frenético de produção que se apresenta, não só na Unitêxtil,
mas na própria fábrica Santa Cecília, era necessário além de uma maior capacidade
energética uma estrutura em que as máquinas estivessem potencialmente hábeis para
continuarem funcionando enquanto um setor de ponta na indústria local e perante a
concorrência. Isto, porém fora solucionado em poucos dias, pois logo em seguida o
mesmo jornal O Povo dá a seguinte notícia:
O secretário da Indústria e Comércio, Francisco Ariosto Holanda, cumprindo determinação do governador Tasso Jereissati, autorizou à Coelce a fornecer, a partir de hoje, mais 600 mil quilowatts/mês de energia elétrica à Unitêxtil, garantindo, assim, o funcionamento regular da empresa.
As duas fábricas da Unitêxtil em funcionamento – Santa Cecília, na Parangaba, e Santa Inês, no bairro Henrique Jorge – consumiam 1 milhão e 300 mil quilowatts de energia, consumo agora ampliado para 1,6 milhão de quilowatts/mês.
O jornal O Povo ainda completa:
Para aumentar sua linha de produção – 3 milhões de metros lineares de tecidos lisos e estampados por mês – a Unitêxtil precisa colocar em funcionamento mais 156 máquinas, já adquiridas mas não instaladas por falta de energia regular. Das 240 novas máquinas adquiridas pela Unitêxtil, um total de 84 já estão em funcionamento, garante Carlos Pinheiro.9
A determinação para esta concessão adveio de uma intervenção do Governador
Tasso Jereissati, que sob um dos argumentos da empresa em continuar empregando uma
média de 2500 funcionários diretos, autoriza a Companhia Elétrica do Ceará (Coelce) a
conceder um significativo aumento energético a Unitêxtil, que tinha por estratégia
instalar o novo maquinário e, ao mesmo tempo, continuar estabelecida no Estado. No
entanto, a ampliação do consumo energético e o conseqüente potencial destas novas
máquinas que agora puderam ser instaladas parece não ter diminuído a intervenção
humana operária no processo de produção da fábrica. Por esta razão é importante
compreender em que condições se realizavam os seus trabalhos? Em que medida a
fábrica estava preparada e adaptada para lidar com a mão-de-obra feminina e suas
particularidades?
em 1988. Para ler sobre isto, ver, dentre outros: SALES, Telma Bessa. Tecelões de Histórias:trabalhadores têxteis e a greve de 23 dias. Anais da Anpuh. ISSN: 2176-2155. 2009.
Esta modernização tecnológica no interior das fábricas de tecidos em Fortaleza
assim como na Unitêxtil e Santa Cecília advinha de um processo iniciado nos anos de
1970, sendo interrompido pela crise econômica e o decrescente investimento federal na
indústria pelo Fundo de Investimentos do Nordeste (FINOR) e Superintendência de
Desenvolvimento do Nordeste (SUDENE); voltando a ser estimulada novamente na
década de 1980, via Estado.
Neste ínterim, também se torna pertinente fazer alusão ao processo de
transferência industrial têxtil bastante recorrente ao Nordeste e ao Ceará. Uma
documentação emitida pelo Escritório Técnico de Estudos Econômicos do Nordeste
(ETENE) evidencia a migração de muitas destas empresas entre os anos de 1980-1990:
Com a abertura da economia, que forçou uma reestruturação por parte das empresas, a disponibilidade de mão-de-obra barata no Nordeste e as políticas de incentivos fiscais aplicadas pelos diversos governos estaduais da região, desencadeou um significativo movimento de migração de plantas industriais [têxteis], das regiões Sudeste e Sul, para o Nordeste, notadamente para os Estados do Ceará, Rio Grande do Norte e Paraíba. 10
Dentre os Estados da região nordestina, o Ceará fora um dos que se ofereceu
enquanto “refúgio” para muitos dos industriais que aqui se instalaram em busca de
melhores condições de sobrevivência e de reavivamento perante o mercado nacional e
internacional têxtil, ainda atingidos pela crise econômica11instaurada ao final dos anos
de 1970.
Esta migração, entretanto, não teria se realizado sem benesses concretas aos
empresários do ramo de tecidos, pois a demanda de uma farta mão-de-obra composta
por homens e mulheres que aqui habitavam continuaram a se oferecer nestas indústrias
sob baixos salários12, mesmo nas indústrias migrantes. Aliado a isto, Sampaio (1998, p.
10 Viana, Fernando Luiz Emerenciano. Documentos do ETENE (Escritório Técnico de Estudos Econômicos do Nordeste): A Indústria Têxtil e de confecções do Nordeste: características, desafios e oportunidades. Fortaleza: Banco do Nordeste do Brasil, 2005. Série Documentos do ETENE, 06. Pág. 23.
11 Esta crise econômica é caracterizada por Hobsbawn como tendo um caráter mundial. Muitas das indústrias localizadas na Europa Ocidental passam a migrar para países periféricos como o Brasil, por exemplo, onde encontram grandes facilidades tais como incentivos fiscais, baixos salários etc. Para ler sobre isto ver: HOBSBAWM, Eric J. Era dos Extremos: o breve século XX: 1914-1991. Tradução Marcos Santarrita; revisão técnica Maria Célia Paoli.São Paulo: Companhia das Letras, 1995. Pág. 403.
161) caracteriza ainda o somatório “[d]as políticas de incentivos fiscais”13 promovidas
pelo Governador Tasso Jereissati.
Para a socióloga Aragão (2002) o “Governo das Mudanças” vem a adotar uma
nova política de benefícios a empresários industriais ainda na segunda metade dos anos
de 1980 vindo a se consolidar no início dos anos 1990. Desta forma, grande parte do
Imposto de Circulação de Mercadorias e Bens de Serviço (ICMS) que a empresa pagava
era revertido a ela própria somado aos beneficiamentos relativos à água, energia,
isenção do Imposto Predial e Territorial Urbano (IPTU), incentivando às indústrias na
importação de novos equipamentos, modernizando-as.
Nesta conjuntura, as Indústrias Têxteis no Estado assim como seus empresários
puderam melhor atuar na compra de maquinários a fim de promover uma elevação
qualitativa e quantitativa de seus produtos. O que, apesar das problemáticas internas, a
fábrica Santa Cecília vivenciou todo este processo sob glórias e crises durante toda a
década.
ASPECTOS METODOLÓGICOS
A pesquisa se desenvolve usando a metodologia da História do Trabalho.
Diferentemente da maior parte dos estudos nesta área buscamos dialogar com
Hobsbawm (2000) que, ao observar que a construção da história dos trabalhadores
compreende que esta não pode advir “simplesmente” da liderança ou o sindicato14, mas
também dos demais trabalhadores imersos em especificidades no que trata, por
exemplo, às relações de gênero, etnia, raça e idade15. Nosso olhar volta-se, portanto,
para uma breve análise das operárias no chão da fábrica e isto se realiza num
concomitante diálogo com Maria Odila Dias (1995) que ao construir histórias sobre
trabalhadoras passa a traçar outros olhares no trato documental e histórico:
A memória social de suas vidas [das trabalhadoras] vai se perdendo antes por um esquecimento ideológico do que por efetiva ausência de documentos. É verdade que as informações se escondem, ralas e
13 SAMPAIO, Dorian. Anuário do Ceará. Fortaleza, Stylus Comunicações. 1988. Pág. 161. V. 1
14 HOBSBAWM, Eric J. Mundos do Trabalho: novos estudos sobre história operária. Tradução de Waldea Barcellos e Sandra Bedran – Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2000.
fragmentadas, nas entrelinhas dos documentos, onde pairam fora do corpus central do conteúdo explícito. Trata-se de reunir dados dispersos e de esmiuçar o implícito. 16
Nesta busca pelo “escondido”, passamos a observar e problematizar as fontes
nas quais tivemos acesso nesta busca de “esmiuçar o implícito” assim como
compreender a necessidade de desconstruir os “silêncios”17, caracterizado por Michelle
Perrot (2005) na História das Mulheres, mesmo entre as têxteis, majoritárias na sua
categoria.
AS OPERÁRIAS TÊXTEIS E A FÁBRICA SANTA CECÍLIA
As transformações que se realizavam no interior da fábrica Santa Cecília, por
exemplo, são observadas pelos (as) seus (suas) operários (as). Ao analisar o
depoimento18 de uma operária, hoje aposentada, pela fábrica Santa Cecília passamos a
observar que durante os intervalos diários na sua jornada de trabalho entrava em cena
um dos importantes equipamentos de limpeza da fábrica. Esta máquina era de
fundamental importância, pois de acordo com Teresinha, a poeira era tão grande que
“era preciso se limpar pra poder sair, limpava assim, ligeiramente. Duas horas antes de
eu sair, se tu me visse, tu não me conhecia toda coberta de pêlo...”
Se a caracterização da operária é assim apresentada mesmo já havendo este
equipamento de limpeza, o dia-a-dia sem ele poder-se-ia tornar insuportável para seu
corpo, seus cabelos e pulmões. Assim ela complementa:
[Havia assim] duas paradas das máquinas lá, 10 horas da manhã e 1 da tarde, pra fazer a limpeza porque tinha muito pêlo sabe, muito pêlo mesmo, as máquinas chega ficava com aqueles cabeludim, aí eles paravam, 10 horas. Aí eles aproveitavam quando paravam, [para] limpar, ligavam lá as mangueiras de ar, é como se fosse uma mangueira derramando água, mas derramando o ar, era de ar, limpando as máquina...
16 DIAS, Maria Odila Leite da Silva. Cotidiano e Poder em São Paulo no Século XIX.
São Paulo: Brasiliense, 1995. Pág. 14.
17 PERROT, Michelle. As Mulheres ou os Silêncios da História. Tradução: Viviane Ribeiro. Bauru, SP: EDUSC, 2005. Pág. 253.
Jormana: E o que a senhora fazia durante a limpeza das máquinas?
Aí eu aproveitava esse horário né e eu ia lá pro banheiro né. Aí quando terminava, quando eu via que tinha terminado né aí eu vinha. Eu ia 2 vezes só, no banheiro, era 10 horas e 1 hora quando as maquina parava pra fazer a limpeza. Aí assim que, às vezes eu voltava e eles ainda tavam limpando ainda, aí eu ficava assim um pouco encostada, enquanto eles terminavam, aí eles trocava a máquina pra gente trabalhar. 19
As condições de trabalho que se apresentam no depoimento da operária
demonstram que durante sua jornada regular de 8 horas por dia ela somente poderia se
afastar das máquinas durante dois momentos, coincidentemente os da limpeza. Dessa
forma, ela aproveitava o “intervalo” para a realização de suas necessidades fisiológicas.
Somado a isto, o que Teresinha também nos aponta neste depoimento é que a fábrica já
possuía este equipamento antes dela se aposentar, em 1990, um equipamento muito
recente nas indústrias têxteis do Estado, o jato de ar, ao qual ela denomina de
“mangueira de ar”. Isto reafirma a idéia apresentada pela socióloga Aragão (2002), que
defende a tese de que na década de 1980 a Unitêxtil vivenciava uma característica
bastante singular na sua história, pois ao mesmo tempo em que ela está em grande
crescimento é o momento em que ela enfrenta uma grave crise, entrando em concordata
em 1990:
No início dos anos de 1980, a empresa conheceu momentos gloriosos, com expressiva participação no mercado nacional e com a ampliação das exportações de tecidos para os Estados Unidos, Europa Ocidental e Leste Europeu, uma vez que dispunha de um parque fabril moderno equipado com teares a jato de ar de última geração, tendo sido pioneira no Brasil nessa tecnologia.
No entanto a crise que a absorveu foi observada no momento em que a empresa encontrava-se em franco desenvolvimento, com altos investimentos recém-realizados e outros ainda em implantação, o que significava alto índice de endividamento. 20
Além de analisar a formação e crise da fábrica Santa Cecília, a socióloga Aragão
(2002) faz um levantamento histórico das Indústrias Têxteis do Estado do Ceará sob o
patrocínio da FIEC trazendo-nos a importância social e econômica de fábricas que por
aqui passaram. Para a ex-operária Vera Lúcia, tendo sua visão advinda de outro setor na
19 Teresinha Alves Bezerra foi operária têxtil de 1965 a 1990 na Fábrica Santa Cecília e está atualmente aposentada. Entrevista realizada em 04 de março de 2009 em sua residência no bairro Montese.
fábrica, o de classificação de tecidos já no início do ano de 1990, é descrito da seguinte
forma:
[Eu trabalhava numa] máquina com responsabilidade de você fazer produção. Mil metros, dois mil metros, seis mil metros. Tecidos classificados. Eles diziam a produção: dois mil metros, dependendo do estado que o tecido chegava a nossa mão. Porque daí a gente tinha que anotar [para mandar] consertar os defeitos, outros não tinham conserto, a gente marcava com uma fita e ia pra frente. Mas cada pessoa era uma máquina, mas você tinha que dar produção. Tinha pessoas lá que não conseguiam dar nem quinhentos, pessoa pacata.21
A realização deste trabalho era compreendido e realizado com muita seriedade
pela operária, pois ela era uma das selecionadoras de tecidos, ou seja, passavam pelas
suas mãos e olhos os tecidos classificados a serem vendidos para outros Estados ou
mesmo para os mais diversos países, dependendo das condições físicas que ele se
encontrasse. Apesar da operária não trabalhar na fiação ou tecelagem que, a seu ver era
“muito grosseiro”, ela também tinha na fábrica a prerrogativa de trabalhar sob o regime
da quantidade de produção.
Esta operária, ao adentrar na Santa Cecília em 1990, termina por nos ajudar a
traçar algumas perspectivas, pois mesmo diante das mudanças tecnológicas advindas
com os novos maquinários, ela aponta que as condições de trabalho ainda eram muito
ruins. A necessidade de “dar produção”, por vezes não alcançado pelas trabalhadoras e
quando alcançado, contendo defeitos de fabricação, podia tornar-se problemático o
dia-a-dia de trabalho na Santa Cecília. Vera ainda descreve que: “se a produção desse baixa
aí eles [supervisor, técnico da tecelagem] chamavam a atenção né, pra saber o que
houve. E [quanto] a peça, todas que tinham defeito lá no nosso setor, a pessoa era
chamada.”22
Todas estas exigências por parte destes altos funcionários da Santa Cecília sobre
os (as) operários (as) para que produzissem grandes quantidades de tecidos e com boa
qualidade muitas vezes acabavam por não ser revertido, por exemplo, na estabilidade ou
mesmo em boas condições de trabalho para as mulheres. O jornal da categoria emitido
pelo Sindicato dos Trabalhadores da Fiação e Tecelagem Têxteis apresenta em vários
momentos a seguinte reivindicação: “No estado de gestação as mulheres são
21 Entrevista realizada com Vera Lúcia Virgínia da Costa no dia 11 de agosto de 2009 em sua casa no bairro Montese. Esta operária trabalhava na Fábrica Santa Cecília desde julho de 1990, pedindo sua demissão em 2005, antes da fábrica fechar totalmente.
discriminadas, sendo muitas vezes demitidas pelos patrões, quando estes tomam
conhecimento de sua gravidez”.23
Diante desta problemática, observamos a realização de alguns avanços que se
concretizaram perante o Dissídio Coletivo em 1988, frente ao embate entre o Sindicato
dos Trabalhadores nas Indústrias de Fiação e Tecelagem de Fortaleza e o Sindicato da
Indústria de Fiação e Tecelagem em Geral do Estado do Ceará mediado pelo Tribunal
Superior do Trabalho (TST) da 7ª Região, em Fortaleza.
Neste processo de Dissídio Coletivo, algumas características acerca destas
reivindicações alcançadas ficam mais evidentes ao tratarmos de seus pormenores,
mesmo neste processo de intervenção jurídica. Desta forma o Dissídio no TST se
finaliza por intermédio de vários artigos. Centramo-nos naqueles que retratam
especificamente as questões relativas às trabalhadoras:
Os empregadores se comprometem a conceder às Empregadas, 01 (um) dia remunerado de folga, mensalmente, para que as mesmas possam se submeter a exames pré-natais, de conformidade com as necessidades de cada uma, desde que apresentem Atestado Médico para tal fim.
E no que trata a licença maternidade, é afirmado o seguinte:
Os Empregadores se comprometem a conceder garantia no emprego às Empregadas, quando do seu retorno da licença maternidade, por um período nunca inferior a 60 (sessenta) dias, desde que contem, no mínimo com 02 (dois) anos no trabalho na Empresa e também entre uma gestação e outra, no período de 02 (dois) anos.
Estas resoluções advêm da mediação realizada pelo TST frente às propostas do
Sindicato dos Trabalhadores e o da Indústria. Apontamos os avanços aqui alcançados no
que trata a mulher poder afastar-se do trabalho para assumir, minimamente, a sua saúde
assim como a do bebê realizando os exames de pré-natal durante sua gravidez e de
poder alimentar seu filho durante a licença pós- parto, tendo garantido o seu salário e
sua estabilidade durante os primeiros sessenta dias de retorno ao trabalho.
São importantes estes parágrafos advindos do processo, pois eles contêm
aspectos que podiam tornar-se problemáticos às trabalhadoras que engravidassem sem
conhecer os critérios estabelecidos via TST. A garantia da estabilidade e do recebimento
salarial se realizariam apenas sob o critério da trabalhadora estar na fábrica há pelo
menos dois anos, ou seja, as operárias que engravidassem antes deste período perderiam
imediatamente a estabilidade e o pagamento de seus salários durante o pós-parto. Algo
também problemático, de acordo com o parágrafo acima do TST, é que se a
trabalhadora engravidasse novamente num período inferior a dois anos, também estaria
isenta de seus direitos.
Estas peculiaridades no dia-a-dia de trabalho das operárias de tecidos em
Fortaleza mostram o quanto houve uma tentativa de adaptação das fábricas frente à
tradicional mão-de-obra ali empregada, que começaram a se concretizar a base de
reivindicações e conflitos, enfatizados e documentados durante a greve de 88.
Por intermédio do depoimento da operária Teresinha, que não chegou a ter
filhos, mas que cotidianamente observava a situação de suas companheiras de trabalho
no chão da fábrica podemos ter uma breve explanação das necessidades e problemáticas
enfrentadas pelas trabalhadoras. Teresinha faz as seguintes observações:
A gente [os (as) trabalhadores (as)] entrava seis horas e saía as duas [quatorze horas]. Ah, a maioria das mulheres, elas entravam às duas horas da tarde, [ou seja,] entrava outra turma de mulheres e de homens mas, mais mulheres, até dez horas [vinte e duas horas]. [Quando eu chegava em casa, sentia]dores nas costas devido a posição que era, oito horas em pé. [Tinha] dor nas costas, dor nas pernas, nos pés. Meus pés inchavam, ficavam inchados.
Na máquina de produção a gente ficava de uma ponta a outra trabalhando, a gente ficava era movimentando, num ficava parada não. É por exemplo, a máquina era aqui né, ai quando chegava aqui na ponta quebrava o fio, aí eu ia emendar, aí quando chegava no meio quebrava, aí eu ia emendar. A gente era igual a lançadeira, a gente, era de uma ponta a outra.A gente não parava não. Quando dava fé tava tudo quebrado aí a gente ia emendar de novo.
Nesta jornada diária de 8 horas de trabalho, seja no primeiro turno de seis às
quatorze horas, seja no segundo de quatorze às vinte e duas horas, é importante que nos
interroguemos porque as trabalhadoras concentravam-se no trabalho da fábrica pela
manhã e principalmente à tarde em detrimento do horário da noite. Seria devido aos
serviços domésticos? Talvez, mas Teresinha não soube explicar. No entanto,
inevitavelmente ela explana as condições de trabalho que ela, enquanto fiandeira
realizava andando de um lado para o outro emendando fios, que a todo o momento se
quebravam sobre as máquinas antigas que permaneciam na fábrica.
Isto conseqüentemente gerava, ao final da jornada, além do cansaço físico, dores
em várias partes do corpo, que não são apresentadas em nenhum outro documento. Este
depoimento advindo de Teresinha apenas relata a condição de trabalho vivenciada por
uma jornada de trabalho de oito horas para uma fiandeira ou mesmo tecelã grávida de
sete meses, por exemplo? Talvez fosse mais insuportável ainda, mesmo que estejamos
tratando aqui de uma situação hipotética.
Perante estas importantes lutas e conquistas que não se finalizam na década de
1980, mesmo que sendo irrisórias frente às necessidades das demais trabalhadoras,
compreendemos que elas advêm de experiências que se concretizavam no dia-a-dia da
fábrica junto aos operários (as). Isto, porém, não levou a grandes modificações no seu
interior. As condições e as jornadas de trabalho, mesmo com a instalação de novos
equipamentos facilitada pelas políticas de incentivos fiscais, ainda estão longe de
favorecer e facilitar o trabalho desenvolvido pelas operárias de tecidos da fábrica Santa
Cecília.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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