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GFEDCBA
f' o t o g r 4 ft c o -
T e s t e m u n h o s
e I m a g e n s d e A u s c h w i t z
qponmlkjihgfedcbaZYXWVUTSRQPONMLKJIHGFEDCBA
D ID I-H U B E R M A N , G eorges. I m a g e s m a l g r é t o m .
P aris: L es É ditions de M inuit, 2003.
M eize L ucas
U niversidade federal do C eará
A palavra i n fe r n o , no im aginário ocidental, rem ete de pronto a obra
di'
I ante A lighieri. P ara além do significado da obra para entender a cultura1IIl.IS cntista, ela representa um a form a de com preensão do que seria o
1111 .rno. A palavra será retom ada no século X X , não m ais com o elem ento
num a bra artística, m as para dar form a e sentido ao que foi vivenciado nos
I.unpos de exterm inio nazistas: testem unhas e pensadores, que se dedicaram
.11) estudo do fenôm eno concentracionário, em pregam -na recorrentem ente.
A palavra é inexata: em vez de m ortos que sofrem penas após julgados,
h.rvia seres inocentes m ortos e m assacrados; ao invés de um lugar im aginário,
s.iíd da m ente de um literato, existiam grandes cam pos escondidos em m eio
,IO S bosques, planejados e construidos por hom ens. A uschw itz era real, ao passo
1]1I ' a obra de D ante era peça de ficção. N o entanto, só e tão som ente lá, no
dom ínio da cultura e da im agem (pois o pensam ento é tam bém construido por
Im agens), foi possível encontrar algo que pudesse traduzir ( o u , pelo m enos,
tentar traduzir) a realidade dos cam pos, com o observa G eorges D idi-H uberm an,
' 1 1 1 I m a g e s 1 I 1 a l g r é t o m . E ntre os indícios que se acum ulam sobre essa associação
lntre os cam pos e a obra renascentista, a inscrição da fam osa frase da porta
dantesca - l . a s a a t e o g n i s p e r a n o a o o i c h ' e n t r a t e - feita na cela por um prisioneiro
p lonês, com as próprias m ãos, em sua língua, enquanto aguardava o m om ento
do fuzilam ento. E m esm o nas palavras dos carrascos, a m esm a im agem se
im põe: "o inferno de D ante aqui tornava-se realidade'" .
M uitos estudiosos (entre os quais m uitos judeus e alguns
S breviventes) discorreram , em m ilhares de páginas, de H annah A rendt a
P rim o L evi, sobre a questão da experiência vivida nos cam pos e a dificuldade
de a conceber e, portanto, representá-Ia para si e para os outros. O absurdo
T r a j e t o s . R evista de H istória U fC . F ortaleza, voL 3, n" 6, 2005.
do fenôm eno concentracionário era visto com o um a garantia pelos oficiais
alem ães. A final, quem acreditaria que cientistas gastavam horas pensando em
com o otim izar os m ecanism os de exterm ínio? P ara os prisioneiros essa m esm a
realidade era um pesadelo. C aso sobrevivessem , quem acreditaria em relatos
tão "fantasiosos"?
P ela prim eira vez na história da hum anidade, construiu-se um sistem a
de m atança no qual as vítim as eram carrascos de seus pares. o dia 4 de
julho de 1942, foi criado o
GFEDCBA
J o n d e r k o t l 1 1 J 1 a n d o ,equipe com posta por judeus quetinham por função conduzir outros judeus às cârneras de gaz, retirar possíveis
dentes de ouro dos m ortos, queim ar os cadáveres, enterrar as cinzas e m anter
o segredo em torno do desaparecim ento dos presos. O s que quebravam a
conduta eram jogados vivos na fogueira dos crem atórios, enquanto os
cam aradas eram obrigados a tudo assistir. E os que não suportavam a rotina
das tarefas, atiravam -se contra as cercas elétricas. A s câm eras da gaz foram
construídas pelas próprias vítim as com o se fossem grandes chuveiros. G raças
a esse artifício, tornou-se dispensável a ação presentificadora do assassino.
E ste evento - o exterm ínio dos judeus nas câm eras de gás e o próprio
fenôm eno dos cam pos de concentração, com sua lógica de destruição e
aniquilam ento do hum ano - desestrutura todo o cam po de conhecim ento.
T orna-se a partir de então obrigatório repensar as categorias de análise até
então utilizadas para pensar o hom em pois elas não respondiam a algo que
era inim aginável.
É
aqui que se coloca a questão: o que significa lidar com ascategorias de i m a g i n á v e l e i n i m a g i n á v e l ? A S b o a b , a solução final, foi pensada,
arquitetada e levada adiante por alguém , ou m elhor, por um grupo em
determ inado m om ento. P ortanto trata-se sim de reconhecer a m iséria hum ana.
M as, ao m esm o tem po, o im pacto do evento, à época, e a dificuldade de
acreditar que algo assim estivesse acontecendo na E uropa - considerada
com o centro da razão e da m odernidade - pelos contem porâneos revelam a
dificuldade de pensar a existência dos cam pos de concentração.
E ssa dificuldade é revelada, por exem plo, pela fala dos próprios
prisioneiros. A s escavações feitas, em torno do cam po de A uschw itz, m uito
tem po após a L iberação, revelaram um a série de escritos produzidos e
enterrados pelos prisioneiros judeus. F ace ao inevitável desaparecim ento físico
da testem unha, buscava-se deixar, pelo m enos, o testem unho. S abe-se que
m uitos desses escritos se perderam pois, após o fim da S egunda G uerra
M undial, os cam pos foram invadidos pelos habitantes da região que
acreditavam que os judeus teriam enterrado bens preciosos. E ntre os textos
encontrados, em m uitos, as vítim as falam a futuros e prováveis leitores da
im possibilidade de im aginar o que se passava nos cam pos pois im possível
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1\11 .1 11\,I 10 I ' ra outrem . O relato pela escrita não podia dar a dim ensão do
'1111 I Il,lssava no cam pos.
S e rundo D idi-H uberm an, o que falta à palavra pode (e talvez deva)
I I 1111 (,Ido na im agem .
P ó ll Cqu'en chaque production testim oniale, en chaque acre de m é~ oire les
11 .ux langage e im age - som absolum ent solidaires, ne cessam pas d'echanger Icur~ lacunes réciproques : une im age vient souvent lã ou sem ble faillir le
11101, un rnot vient souvent lã ou sem ble faillir l'im agination.
(~ precisam ente, nesse sentido, que ele tom a as quatro :~ tografias
'.111.111 'ad, s" (lerm o por ele em pregado) de A uschw itz no crernatono
V
E mli' 11. os chefes da R esistência polonesa dem andaram fotos que saíssem de
ti 11110 dos cam pos, com o intuito de am pliar a m obilização c~ ntra _o regtm e
I\,I.'I~ I,I 'tornar crível o que acontecia nos cam pos. A s fotos ate entao tiradas
1\111I(() r 'velavam da vida e do funcionam ento de A uschw itz ou T reblin_ka
(111111 cx eção das fotos aéreas conhecidas posteriorm ente) pO lS a vegetaçao,
I111 tom dos cam pos, funcionava com o barreira. A ssim , fez-se um aparelho
1IIIIlgr:ífico, com um resto de película virgem , ser introduzido no cam po,
III r.nnente, entre os m em bros do J o n d e r k o m t l 1 a n d o . P ara que as im agens fossem
Ilhlldas, foi necessária um a m obilização que envolveu várias pessoas a fim de
.Illhlar controle e a vigilância. O fotógrafo, para revelar a câm era de gás, teve
,11 S I' .sconder na própria, a fim de obter a prim eira seqüência de im agen~ de
1111pm sendo queim ados. O fotógrado deixa o crem atório, c~ ntorna-o e, regtstra
I'~ '11q o de m ulheres despidas, prontas para entrarem na cam era de gas. .
O bjeto central do livro I m a g e s m a l g r é t o u t , essas quatro fotos perm item
,10 autor discutir a questão da visualidade, do ato de produção de im a~ em ~
da Im portância da im agem para a form ulação do pens.am ento. O h~ ro e
(Ilm p S lO de duas partes. N a prim eita tem -se o texto que integrou o catalogo
d,l 'xposição M é m o i r e d e s c a m p s . P h o t o g r a p h i e s d e s c a m p s d e a m c e n t r a t t o n e t
tlrrlllillatiofl nazis (1933-1999), publicado em janeiro de 2001. A segunda
pan' resulta do sem inário por ele m inistr~ do na U ni~ ~ rsidade d: B erlim e
~ .jra em torno da questão do duplo regim e - histórico e, estetlc,o - do
"llllm aginável" e dos atos de produção da im agem . O texto e tam bem um a
Il'S P sta aos seus críticos. A exposição e o catálogo provocaram am plo debate
lia F rança e inúm eras críticas. . _
S egundo os detratores da obra de D idi-H uberm an e das exp~ slç~ ~ s
( 0111 im agens sobre o nazism o, a com preensão do fenôm eno concentracronano
deve, única e exclusivam ente, passar pelo contato com as testem unhas que
~ ()br 'viveram . A m em ória dos cam pos, a partir dos próprios sobreV iventes,
seria a única form a de estudar e pensar tal fenôm eno. A lém disso, a im agem
nada teria a acrescentar ao que se conhece através dos livros e testem unhos.
A exposição de im agens perm itiria, única e exclusivam ente, a banalização e
espetacularização da
GFEDCBA
S h o a h . E as quatro im agens, em especial, a que o autordedica longo estudo, revelaria um a "fetichização da im agem ", de sua parte.
O u seja, culto a relíquias funestas de um tem po m órbido. A lém disso, com o
é possível fazer um a discussão estética sobre um a im agem de tal natureza? E ,
para finalizar, não há im agem nem testem unho possível sobre a S h o a h , pois
quem viveu a experiência concentracionária até o fim não sobreviveu.
A resposta aos críticos é um a longa discussão sobre a fenom enologia
da im agem e as relações entre ética e estética. O ra, não se trata de usar a
im agem com o ilustração dos cam pos ou com o chave de interpretação para
algo ainda não com preendido. A im portância de im agem - principalm ente no
caso dessas quatro - reside justam ente no gesto, no desejo, na necessidade da
produção; no ato fotográfico que perm ite sua existência.
E m nenhum a passagem do livro, a im agem fotográfica é tom ada
com o m ero objeto de atração, curiosidade ou ilustração. E la nunca é pensada
fora do evento, do acontecim ento, das condições de possibilidade de existência.
P ara tal, rem ete a um a tradição filosófica que rem onta a H annah A rendt,
W alter B enjam in e Jean-P aul S artre, segundo a qual, as im agens com põem o
pensam ento e perm item form ular form as de com preensão.
N ão se pode pretender ver tudo em um a im agem . E la não é portadora
de nenhum a verdade. E la é lacunar, toca a realidade em alguns pontos e é,
antes de tudo, um ato, que sem pre se dirige a alguém . A s fotos "arrancadas"
de A uschw itz são im agens da S h o a h em ato e feitos de resistência histórica.
A s s i m , segundo D idi-H uberrnan, que direito tem os nós de não olhar as
fotografias a nós endereçadas, buscando com preender visualm ente o terror
do que se passava nos cam pos?
N O T A
1C om andante Irm fried E berl falando sobre T reblinka.