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36º Encontro Anual da ANPOCS 21 a 25 de outubro de 2012
GT 29: Políticas Públicas
MODERNIZAÇÃO DA GESTÃO PÚBLICA: considerações sobre o dirigente público como um novo ator do aparelho de Estado
Leonardo Queiroz Leite
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Introdução
Este trabalho aborda o debate sobre a Profissionalização da Administração Pública no Brasil a partir de um tema atual e contemporâneo, porém ainda pouco explorado nos estudos de Ciência Política e Gestão Pública no Brasil: a formação de um perfil emergente de profissional e gestor público, o chamado dirigente público. Este tema é assinalado por dois legados: um legado histórico, informado pelas práticas tradicionais de nomeação de dirigentes públicos no Brasil e um legado analítico, constituído pela predominância do paradigma weberiano da Administração Pública. (PACHECO, 2008).
Será traçado um panorama teórico destacando as características principais e a importância do dirigente público como um novo ator do Aparelho de Estado - aqui tomado como uma categoria analítica distinta dos tradicionais atores do Estado - a contribuir decisivamente para a modernização dos Recursos Humanos públicos. O principal objetivo é demonstrar que o debate e o reconhecimento do dirigente público como novo ator institucional do aparelho de Estado podem representar uma oportunidade importante de inovação na Gestão Pública, com implicações relevantes para a implementação da Administração Pública Gerencial.
Acreditamos que o aprofundamento deste debate, juntamente com o avanço nos
estudos acadêmicos sobre o tema e o reconhecimento político-institucional do dirigente
público como novo ator do aparelho de Estado, imbuído do ethos da racionalidade
econômica, podem representar uma oportunidade de modernização da Gestão Pública,
com implicações relevantes para a implementação de uma Administração Pública
Gerencial. Por fim, concluiremos com algumas considerações gerais sobre o tema mais
amplo da Reforma do Estado, buscando refletir criticamente sobre as Políticas de
Reforma da Gestão Pública.
A Profissionalização da Administração Pública
A profissionalização da Administração Pública é um tema clássico em Políticas de Reforma da Gestão Pública, uma vez que a construção e o aperfeiçoamento permanente de um Serviço Público Profissional é um desafio perene para todos os governos, em todos os níveis, e constitui um tópico extremamente importante para os formuladores da Reforma do Estado. Alguns estudiosos da área afirmar que através do aprofundamento e ampliação das iniciativas de profissionalizar o funcionamento do Estado será possível eliminar a cultura clientelista e aumentar a eficiência dos serviços públicos:
A profissionalização é um desafio histórico, inescapável, permanente e contemporâneo. Histórico porque se trata de uma tarefa inacabada. É inescapável porque nenhum país desenvolveu-se de forma sustentável sem profissionalizar sua Administração Pública. É um desafio permanente porque vai colocar-se sempre, para qualquer tipo de Estado.
Finalmente, trata-se de um desafio contemporâneo porque precisa incorporar novos conteúdos, necessidades e tecnologias para ser enfrentado. (DE FARIAS E GAETANI, 2002:2)
No âmbito da discussão sobre os atores do setor público, é importante ressaltar que a interpretação recorrente na literatura sobre “profissionalização” reflete a centralidade da proteção à burocracia, ignorando outros aspectos:
[...] o conceito prevalecente de “profissionalização” no Estado brasileiro: é expressão que equivale à existência de corpos fortemente protegidos por meio de disposições rígidas, homogêneas e extensivas a todos indistintamente, dificilmente alteráveis, que permanecem no imaginário de todos como a solução para o que é considerado o principal obstáculo à constituição de corpos permanentes do Estado: seu uso político clientelista. (PACHECO, 2010: 292)
Assim, percebemos que o debate tradicional sobre a profissionalização da
Administração Pública está focado na diminuição do risco de interferência política sobre
a burocracia, ou seja, busca discutir formas de proteção e consolidação de um serviço
público burocrático tradicional e está vinculado ao paradigma clássico da burocracia
weberiana. É evidente que essa é uma demanda constante e necessária, pois o corpo
burocrático deve estar devidamente resguardado de investidas políticas para que a
Administração Pública Burocrática esteja consolidada.
Entretanto, em contraposição a essa abordagem clássica e buscando definir as diretrizes básicas para a implantação de uma Administração Pública Gerencial no Brasil, a Reforma da Gestão Pública de 1995 veio dar uma nova orientação à reforma do serviço civil, ao proclamar a necessidade de se buscar resultados maximizadores nas políticas públicas e exigir um desempenho satisfatório dos funcionários públicos com foco em resultados, levando o Estado a repensar de maneira mais profunda as suas políticas de Gestão de Pessoas.
Os movimentos reformadores de 1995 levaram os pesquisadores e estudiosos da Administração Pública a buscar novas abordagens para a questão dos Recursos Humanos no Estado, o que se traduziu numa atualização sobre o que é profissionalizar a burocracia. Assim, nessa visão revisada, a Reforma de 1995 passou a conceituar a profissionalização como a capacidade de mensurar e avaliar resultados, controlar custos e buscar eficiência, comunicar, comparar resultados e avaliar desempenho. Segundo essa interpretação, o principal desafio a enfrentar não é somente proteger o funcionalismo contra as ações arbitrárias do governo, mas principalmente prover melhores políticas públicas e melhores resultados na ação do Estado (PACHECO, 2010). Em suma, a discussão do conceito de profissionalização do servidor público passa por uma definição clara de quais são as competências específicas necessárias e como desenvolver políticas de pessoal capazes de obter ou desenvolver profissionais com este perfil renovado.
(PACHECO apud DE BONIS, 2008)
Ademais, para lidar com a pressão social por resultados mais eficientes nas políticas públicas, a atualização do sentido de profissionalização da Gestão Pública requer necessariamente a incorporação de novos elementos e critérios que caracterizem a atuação e o perfil dos atores institucionais do aparelho de Estado, quais sejam, qualificação técnica adequada, capacidade política, diferenciação e reconhecimento institucional, competências específicas e avaliação permanente de resultados. Isso nos remete aos novos perfis desse profissional, que não pode mais apenas estar restrito aos papéis clássicos dos políticos e dos burocratas, abrindo espaço para a atuação dos gerentes e dirigentes públicos (PACHECO, 2010; LONGO, 2003)
Portanto, trata-se de promover um avanço inovador na Gestão de Pessoas no
Setor Público, que seja capaz de lidar com toda a complexidade das demandas do novo
paradigma da Administração Pública, como assevera Bresser Pereira, sugerindo o perfil
de um novo Gestor Público que se encaixa nas características do dirigente público que analisaremos adiante:
Se a Administração Pública burocrática exigia administradores profissionais competentes, a Gestão Pública contemporânea exige administradores profissionais ainda mais competentes e mais prestigiados, porque auxiliam os políticos a desenhar instituições e políticas públicas, se encarregam de sua implementação, controlam os recursos públicos, e dirigem agências descentralizadas, devendo, em todas essas tarefas, tomar decisões continuamente – algo a que no modelo burocrático não era apenas dificultado pelo seu caráter centralizado: era proibido, porque visto como marcado pelo vício da
“discricionariedade”. (BRESSER-PEREIRA: 15 apud ARVATE e BIDERMAN, 2004)
Assim sendo, é preciso desenvolver o debate sobre a profissionalização dos Recursos Humanos do Estado, à luz dos preceitos básicos da Reforma Gerencial de 1995, e buscar novos elementos que subsidiem a construção da Administração Pública Gerencial no Brasil. Nesse sentido, é fundamental pensarmos novas formas de promover a profissionalização da Administração Pública que vão além da mera blindagem da burocracia, buscando analisar os novos espaços políticos, institucionais, organizacionais e gerenciais devem ser devidamente ocupados pelos atores adequados a cada um deles.
Esse ponto nos conduz à discussão central deste trabalho, que é a superação da dualidade entre os dois atores institucionais tradicionais do aparelho de Estado, o burocrata e o político, representantes do paradigma clássico da Administração Pública Burocrática, e a introdução da figura do dirigente público como novo ator institucional capaz de promover mudanças organizacionais que confiram eficiência e bons resultados de políticas públicas, reforçando o novo modelo da Administração Pública Gerencial e oxigenando o debate político e acadêmico sobre a profissionalização dos cargos de direção na Administração Pública.
Os Dirigentes Públicos: o surgimento da função diretiva pública e a ruptura com os atores tradicionais do Estado
Para podermos definir quem são os dirigentes públicos na discussão atual da Gestão Pública, é necessário utilizar o conceito weberiano de tipo ideal
1, uma vez que essa função ainda está em definição e sua institucionalização é incerta. Assim sendo, a
1 Tipo ideal quer significar a “construção da realidade numa concepção logicamente precisa”, com a finalidade analítica de compreender a multiplicidade de situações do mundo empírico a partir de uma referência teórica de maior nível de abstração. (Gerth e Mills, 1971: 28 apud DE BONIS, 2008)
análise que será feita aqui é puramente teórica, com base na literatura mais relevante e atual, e com alguns apontamentos críticos nas considerações finais deste trabalho.
Para De Bonis e Pacheco (2010), apesar da crescente importância no desempenho das organizações públicas, o dirigente público permanece negligenciado na maior parte dos estudos de Ciência Política sobre o funcionamento do aparelho de Estado. No Brasil, são poucos os estudos que adotam o dirigente público como categoria analítica distinta.
O tema foi introduzido por Bresser Pereira, na proposta de Reforma Gerencial do Estado, defendendo maior flexibilidade a ser concedida aos administradores, em troca da cobrança de resultados. Segundo esta linha de pensamento, o Estado precisa de administradores, não apenas de burocratas organizados em carreiras, explicitando ainda que os avanços da Administração empresarial seriam úteis sempre que adaptados ao Setor Público e aos valores republicanos. (PACHECO, 2008)
Considerando a dificuldade de se tratar de um novo ator do aparelho de Estado, cuja função ainda está em fase de desenvolvimento, será preciso antes definir o dirigente público contrapondo seus traços básicos e suas funções às dos burocratas e dos políticos, como faremos a seguir, a partir dos critérios estabelecidos por De Bonis (2003) e Longo
2(2003; 2007).
Antes disso, faz-se necessário situar o surgimento dos dirigentes públicos e da função diretiva pública no seu contexto político-administrativo. Devido à grande expansão da capacidade de prestação de serviços públicos e ao aumento da complexidade e da demanda desses serviços, associado à crise do paradigma weberiano e ao questionamento e insuficiência de desempenho dos dois tradicionais atores do Estado, abriu-se caminho para o surgimento de agentes públicos que deveriam ser capazes de estar à frente dos processos de produção de políticas governamentais, de modo a garantir primordialmente a sua eficiência e maximizar a alocação de recursos.
Logo, é nesse cenário que floresce o fenômeno gerencial e a função de direção pública, uma vez que as severas restrições nas políticas orçamentárias, no contexto da crise do Estado, passaram a questionar e a inviabilizar o modelo weberiano, impondo a necessidade de dirigentes públicos capazes de orientar a Administração Pública em direção à produção de melhorias de eficiência (LONGO, 2003).
2 Longo baseia suas análises sobre o dirigente público nas experiências de países desenvolvidos e democracias “avançadas”, com ênfase nos países da OCDE.
Desse modo, atualmente, a polarização entre políticos e burocratas nas análises da Administração Pública é anacrônica e insuficiente, e há uma tendência de superação desse dualismo entre os dois atores clássicos do aparelho de Estado, com o surgimento da função diretiva pública, como assevera Francisco Longo:
[...] a função pública tem estado repartida, durante séculos, de acordo com o conhecido modelo weberiano, entre dois grandes protagonistas:
uma classe política, investida de autoridade formal através dos mecanismos de democracia representativa, e um serviço público profissional, regido pelo sistema de mérito. [...] A aparição dos administradores pressupõe a ruptura desse dualismo, profundamente interiorizado durante um longo tempo. (LONGO, 2007:165)
Assim sendo, para compreender essa ruptura e para uma apurada descrição e análise da figura do dirigente público, é necessário antes tecermos conceitos básicos sobre os burocratas e os políticos para, em seguida, podermos estabelecer quais são as suas características distintivas em relação ao novo ator do aparelho de Estado que pretendemos analisar.
O burocrata do tipo ideal weberiano é a figura típica que integra os quadros do serviço público civil profissional, sendo a referência mais tradicional quando pensamos o profissional do Estado. Trata-se de um ator que busca a aplicação imparcial da norma e suas atividades são fixas e estáveis. Seu nível de discricionariedade é baixo e o conhecimento técnico é o seu principal recurso de poder. A sua posição é definida em hierarquia e o seu recrutamento e ascensão se dão por critérios exclusivamente meritocráticos e de senioridade, sendo o concurso público o instrumento fundamental de legitimação da meritocracia
3. Em contraste, o político tem a função da representação do interesse coletivo, estando sempre inserido nas lutas político-partidárias eivadas de paixões, e sua disposição para defender ideias e interesses é permanente. Deve ser capaz de assumir riscos na esfera pública e marcar posições, sendo responsabilizado pelas suas ações perante a população, que é quem promove seu recrutamento via eleições (em se tratando de um contexto democrático) e o legitima, outorgando-lhe a autoridade que permite que a sua ação tenha um alto grau de discricionariedade. (DE BONIS e PACHECO, 2010).
3Para uma análise mais completa sobre o instituto do concurso público e profissionalização da burocracia no Brasil, ver PACHECO (2010: 277-305).
Então, para entender a importância desses agentes tradicionais na condução dos trabalhos do Estado, é importante resgatar o conceito de Max Weber sobre o ethos que orienta a ação de cada um deles:
Segundo sua vocação, o funcionário autêntico não se dedicará à política. Deve dedicar-se, de preferência, à ‘administração’ imparcial.
(...) Sem ressentimento nem preconceito, ele administrará o seu cargo.
Daí não fazer precisamente o que o político, o líder bem como seu séquito, tem sempre e necessariamente de fazer, ou seja, lutar. Tomar uma posição, ser apaixonado, é o elemento do político e, acima de tudo, o elemento do líder político. Sua conduta está sujeita a um princípio de responsabilidade muito diferente e, na verdade, exatamente contrário ao princípio do servidor público. A honra deste está em sua capacidade de executar conscienciosamente a ordem das autoridades superiores, exatamente como se a ordem concordasse com sua convicção pessoal.
Isso é válido até mesmo se a ordem lhe parece errada e se, apesar dos protestos do servidor civil, a autoridade insiste nela. Sem essa disciplina moral e essa omissão voluntária, no sentido mais elevado, todo o aparato cairia aos pedaços. A honra do líder político, do estadista importante, porém, está numa responsabilidade pessoal exclusiva pelo que ele faz, uma responsabilidade que ele não pode e não deve rejeitar ou transferir. (WEBER, 1971, p. 116)
Enfim, os conceitos weberianos são cristalinos a respeito das funções típicas de cada um dos grandes atores da vida institucional do Estado, que tem predominado por séculos, desde a formação e consolidação do modelo de Estado-Nação. No entanto, para atualizarmos a leitura sobre o papel do Estado e seus principais agentes institucionais, faz-se necessário avançar e romper esse dualismo, como já ressaltado, sob pena de ignorarmos o paradigma emergente da Administração Pública Gerencial, que clama por inovações. Desse modo, conclusas as caracterizações dos atores clássicos do Setor Público e seus papéis institucionais, traçaremos agora as características fundamentais do dirigente público, um ator em emergência no aparelho de Estado, bem como discutiremos quais são os principais entraves para a consolidação da função diretiva pública.
Os Dirigentes Públicos: definição de identidade e desafios da emergência de um novo ator do aparelho de Estado
O dirigente público é um ator institucional em emergência na Gestão Pública
contemporânea. Trata-se de um agente que ganha relevância no atual contexto de
Reformas da Gestão Pública que privilegiam o foco em resultados e sua função e seu espaço dentro das organizações públicas e no aparelho de Estado cresce em importância na medida do questionamento do excessivo poder dos burocratas (DE BONIS e PACHECO, 2010), tradicionais atores do Estado que, devido às imperiosas necessidades de flexibilização e modernização da Administração Pública, passam a ter que dividir o espaço profissional dentro do Estado com esses novos profissionais modernizadores e dinâmicos. É importante assinalar que, como o dirigente público é ainda um ator em consolidação, nesse trabalho nos restringiremos a delinear, a partir de algumas referências teóricas relevantes, algumas variáveis que definem o dirigente público, discutindo seus principais desdobramentos. (DE BONIS, 2008)
Esse novo grupo de atores integra uma equipe de governo que deve implementar um programa de políticas governamentais específico, ou seja, os políticos eleitos devem nomear profissionais para a condução dos “negócios políticos”, para que possam converter as suas propostas e promessas de campanha em resultados eficientes em termos de políticas públicas. (DE BONIS e PACHECO, 2010). Em outras palavras, quando bem posicionados, os dirigentes públicos são importantes “ferramentas” de apoio aos políticos para o alcance de metas e resultados de políticas públicas.
Os dirigentes públicos ocupam cargos no alto escalão governamental e respondem pelo desempenho das políticas públicas e das organizações públicas, reportando-se diretamente a Ministros e Secretários de Estado. (DE BONIS e PACHECO, 2010). No entanto, definir sua exata função e cargo é muitas vezes complicado, mas consensualmente se reconhecem como dirigentes públicos os integrantes dos últimos níveis dos chamados cargos de livre nomeação e exoneração (DAS
4) da Administração Pública Federal.
Todavia, além desse tradicional “enquadramento” dos dirigentes públicos como uma elite governamental de alto escalão nomeada diretamente pelos políticos eleitos, é importante abordar algumas significativas contribuições no âmbito acadêmico que buscam trazer mais dados empíricos para mapear o perfil dos dirigentes públicos. Nesse aspecto, merece destaque a pesquisa de D’Araujo (2009), que é esclarecedora na identificação dos cargos de direção, pois faz uma análise empírica dos ocupantes de cargos de direção na Administração Pública Federal durante o governo Lula e tratando-os
4Os cargos de Direção e Assessoramento Superiores (DAS) foram criados pela Reforma Administrativa estabelecida com o Decreto-Lei nº 200, de 25 de fevereiro de 1967.
como “a elite do poder”. Ainda no âmbito acadêmico, merece igualmente destaque o levantamento de dados do trabalho de Daniel de Bonis (2008), que buscou explorar empiricamente alguns cargos de função diretiva pública do Poder Executivo municipal da cidade de São Paulo, de modo a reforçar e qualificar as caracterizações teóricas sobre os dirigentes públicos, contribuindo com ricos depoimentos sobre a função e os desafios encarados por esses atores na esfera municipal.
Isso posto, consideramos que o trabalho do dirigente público é caracterizado por uma série de dificuldades para identificar suas responsabilidades e funções, bem como o seu espaço institucional. É sabido que o dirigente público não é nem um político, nem um burocrata. Porém, as distinções entre a função política, a função burocrática e a função diretiva pública é tênue e muitas vezes obscura, já que estamos tratando de um perfil emergente e não institucionalizado em muitos sistemas político-administrativos.
Então, para lidar com essa complexidade e estabelecer referências teóricas e metodológicas para viabilizar o desenvolvimento e a consolidação da gerência pública, Longo traçou algumas diretrizes teóricas básicas que configuram o que esse autor chama de marco institucional para a função de direção no setor público, composto por quatro elementos básicos (LONGO, 2003: 15-20) que discutiremos agora.
O primeiro deles é a ampliação da discricionariedade
5de direção, uma vez que não há exercício de direção sem a capacidade de tomar decisões em caráter descentralizado. Isto é, não há como existir uma gerência pública se a atividade a ser desempenhada ficar “presa” na aplicação de normas e procedimentos, como ocorre com a atividade burocrática. Esse aspecto nos leva a uma conseqüência importante, que é a prestação de contas sobre os resultados do trabalho do dirigente, que deve permanentemente dar feedback ao seu superior político
6, pois é ele quem tem o poder para ampliar a autonomia de direção, permitindo que o dirigente possa trabalhar de maneira mais flexível na busca de otimização dos resultados das políticas públicas. O segundo ponto é como controlar o desempenho do dirigente (accountability). Esses
5 O dirigente necessita de alto grau de discricionariedade de ação, para poder escolher, entre as varias alternativas, aquela que maximiza resultados a partir do uso eficiente de recursos limitados. (DE BONIS e PACHECO, 2010)
6 A expressão superior político indica simplesmente o político a quem o dirigente público responde diretamente. (DE BONIS, 2008)
mecanismos são a contrapartida para a existência de um espaço descentralizado de atuação do dirigente e constituem uma das fontes da legitimação da Gestão Pública.
7O terceiro elemento do marco institucional proposto por Longo é o estabelecimento de um regime de prêmios e sanções, com a criação de estatutos específicos para o pessoal diretivo. Isso se justifica porque, se estamos formulando um espaço institucional de atuação para um gestor público empreendedor, é fundamental preservar o caráter profissional da direção pública, uma vez que esses novos atores estão sempre imersos num universo organizacional dirigido pela Política. Nesse sentido, a existência de prêmios e sanções para os dirigentes representa uma garantia destinada a evitar que a gerencia pública se degenere em arbitrariedade política ou puro clientelismo, não permitindo que as lealdades pessoais ou políticas prevaleçam sobre os imperativos de competência profissional, garantindo o profissionalismo gerencial voltado para a eficiência e desempenho das políticas públicas.
Finalmente, o quarto e mais importante elemento é a definição de um ethos próprio dos dirigentes públicos, ao seja, um conjunto de valores para reger o exercício da função diretiva pública, qualificando-a com uma identidade axiológica própria capaz de distingui-la dos outros atores institucionais presentes no aparelho de Estado.
Tendo em mente que o trabalho do dirigente é focado na busca de metas e resultados das políticas de governo, sendo sua principal preocupação o desempenho e a maximização dos recursos limitados de que ele dispõe para atingir seus objetivos, percebemos que a racionalidade econômica
8é o eixo principal dos valores que norteiam a atuação deste ator no aparelho de Estado. Em outras palavras, os dirigentes são criadores de “valor público” (MOORE, 2002) e podem ser comparados aos gerentes do setor privado. Ou seja, sua missão é transformar recursos escassos em impactos positivos para a sociedade, otimizando o conjunto de meios postos à sua disposição.
Por fim, seria a gerência pública, a partir desse marco institucional sugerido por Longo, uma profissão específica? A esse respeito, explica o próprio autor, em cristalina definição:
7Este trabalho abordará apenas a análise básica do marco institucional para a consolidação do dirigente público, não aprofundando a discussão sobre a accountability da gerencia pública, limitando-nos a apontar a centralidade desses mecanismos. Para uma leitura completa sobre esse elemento, consultar LONGO (2007: 177-179)
8 É importante ressaltar que o ethos da racionalidade pública que deve orientar a atuação do dirigente público está diretamente relacionado com o viés eficientista apregoado pela Reforma Gerencial de 1995.
Em todo o caso, o importante não é se a gerência pública se encaixa, em maior ou menor medida, em um determinado conceito de profissão [...] Em definitivo, isso é o mais importante: o fato de que os sistemas públicos contemporâneos precisam definir e organizar um espaço diretivo profissional, diferente dos que correspondem à política e às outras profissões públicas, e subordiná-lo a pessoas dotadas do elenco de competências necessárias e imbuídas do ethos gerencial que indicamos. (LONGO, 2007, p. 183)
Nesse sentido, claro resta que a centralidade do ethos gerencial está relacionada ao fato dos dirigentes públicos serem os únicos atores institucionais que trazem uma orientação axiológica específica, uma vez que a racionalidade econômica não está presente nos valores de nenhum dos dois outros grandes agentes do aparelho do Estado.
Concluídas as considerações sobre o que Longo (2003; 2007) entende por marco institucional para a consolidação dos dirigentes públicos, faremos agora alguns comentários sobre as importantes que diferenças que assinalam o espaço institucional dos dirigentes, dos burocratas e dos políticos.
Para analisar a diferença entre o dirigente público e o burocrata, Daniel De Bonis (2008), num exercício analítico de definição do dirigente público e do seu espaço institucional de atuação no aparelho de Estado, define seis variáveis para distinguir o espaço diretivo público, quais sejam: o ethos, que para o burocrata é a mera aplicação impessoal da regra, enquanto que para o dirigente público é o uso eficiente dos recursos visando à maximização dos resultados; o recurso de poder, que para o burocrata é o conhecimento técnico, e para o dirigente público é a competência gerencial; a discricionariedade, que para o burocrata é baixa e para o dirigente público é média; o acesso à posição, que para o burocrata é o concurso público e a progressão na carreira, e para o dirigente público é a indicação ou seleção aberta conforme laços pessoais e competência; a permanência no cargo, que para o burocrata é longa e para o dirigente público é curta; e por fim a responsividade, que para o burocrata é baixa e para o dirigente público é média-alta. (DE BONIS, 2008:31)
Finalmente, é fundamental analisar como a diferenciação tênue entre a atuação
institucional dos dirigentes públicos e dos políticos demarca os espaços institucionais
desses dois atores do Estado. Para tanto, são relevantes as contribuições de Moore
(2002), para quem a atuação do dirigente público tem o objetivo crucial de “criar valor
público”. Assim, para realizar essa missão, o dirigente deve atuar em três dimensões
9inter-relacionadas: a estratégica, que diz respeito à capacidade de conceber e liderar processos de mudança e inovação, de forma a melhor atingir a missão de seu órgão; a dimensão política, que se liga à legitimação de suas ações frente aos atores internos e externos ao governo; e a dimensão operacional se refere à gestão organizacional do conjunto de recursos à sua disposição de forma a melhor atingir os seus objetivos. Deste modo, notamos que o bom exercício da gerência pública, pelo menos no plano teórico, é marcado por um hibridismo que combina características empreendedoras e profissionais com competências marcadamente políticas e estratégicas.
Isso nos leva a algumas questões básicas: onde começam e onde terminam as responsabilidades políticas e gerenciais? Em quais situações devem prevalecer critérios profissionais? Para contribuir na identificação desses difíceis e obscuros contornos da função diretiva pública, Longo (2007:184-189) propõe quatro variáveis que orientam a concepção de um cargo como político ou diretivo, a saber: a matéria; o papel; o produto;
e o sistema de gestão. O elemento definidor, que incide estrategicamente nessas variáveis é a politização, conforme explica o autor:
Quanto maior for o grau de politização da matéria e do papel desempenhado, quanto menos estável e suscetível de padronização for o produto e mais simples o sistema de gestão associado a cargo, mais consistente será a tendência e a razoabilidade de definir um posto de direção como político. Pelo contrário, o arquétipo de um cargo próprio de um dirigente público profissional seria aquele que apresentasse exigências derivadas de um sistema de gestão sofisticado e um produto preferencialmente estável e padronizado, assim como um baixo grau de politização da matéria. (LONGO, 2007: 189)
Assim, percebemos que o dirigente público tem uma atuação de caráter político incontornável. No entanto, suas opiniões e escolhas estão sujeitas ao juízo do seu superior político. Nesse sentido, as questões de alta politização, envolvendo, por exemplo, intermediação de interesses e vocalização de posições na mídia e na opinião pública, ficariam a cargo exclusivo dos políticos, enquanto questões mais “neutras” e de âmbito administrativo, como, por exemplo, conseguir apoio político e institucional para os programas de políticas públicas, caberia aos dirigentes públicos. (DE BONIS e PACHECO, 2010); (LONGO, 2007)
9Para uma análise completa do modelo das três esferas de atuação dos dirigentes públicos, criado por Mark Moore, ver LONGO (2007:172)
Inquestionavelmente, o universo no qual o dirigente público atua é dirigido pela política, uma vez que Política e Gerência Pública são duas esferas destinadas à coexistência. Porém, a política subordina a gerência, e a implicação óbvia disso é que o dirigente público é permanentemente convocado à gestão do seu “entorno autorizante”
(LONGO, 2003), uma vez que “deve” a sua nomeação e a sua própria existência institucional ao político. Desse modo, o dirigente é obrigado a manter-se fiel às determinações políticas para legitimar-se e manter-se na função, relação que é regida pelo que a literatura da área denomina de “responsividade” do dirigente ao político.
Finalmente, um último aspecto importante a destacar sobre a definição de dirigente público é a sua forma de acesso à posição, isto é, seus mecanismos de recrutamento (possivelmente o critério que mais contribuí para o borramento das fronteiras entre a gerência pública e o tradicional clientelismo). Uma vez que a função diretiva pública não é plenamente institucionalizada e os dirigentes públicos não são facilmente identificáveis, os políticos, no momento de buscar perfis para nomear nas funções de direção, orientam-se predominantemente por alguns critérios, como o pertencimento a redes sociais e institucionais de confiança; expertise técnica na área específica de atuação; representatividade, no caso de partidos políticos ou grupos de interesse; ou mesmo critérios políticos, por afinidade e lealdade pessoal direta com o político que nomeia – talvez o critério que mais contribua para o borramento das fronteiras entre a gerência pública e o velho clientelismo. (DE BONIS e PACHECO, 2010)
A título de conclusão geral desde ponto, ficamos com a visão de De Bonis, que nos brinda com uma precisa visão sobre o papel estratégico do dirigente público enquanto novo ator do aparelho de Estado:
[...] é possível pensar em dirigentes públicos como atores sociais que não se confundem nem com burocratas, nem com políticos. O exercício de sua função exige um ethos centrado na busca de resultados por meio da melhor aplicação possível dos recursos disponíveis; para tanto, fazem uso de competências gerenciais e de sua capacidade de julgamento, sempre sujeita ao feedback do político, a quem devem demonstrar níveis significativos de responsividade. Seu prazo de permanência na posição é curto, e sua seleção se dá por processos formais ou informais de avaliação de suas competências e de sua afinidade e lealdade [...] (DE BONIS, 2008:42)
Por fim, abordamos aqui algumas características que definem a identidade do dirigente público. Intentamos analisar brevemente alguns critérios e variáveis, com base na literatura específica sobre o tema, a fim de traçar fronteiras, ainda que borradas em função da dificuldade do exercício analítico de definir um ator não institucionalizado, entre o papel institucional desse novo ator e o dos tradicionais agentes do Estado.
Em se tratando de um ator em emergência no aparelho de Estado, os dirigentes públicos enfrentam muitos obstáculos para consolidar o seu espaço institucional. Quais reformas são necessárias para desenvolver a direção pública a ponto de alcançarmos a sua institucionalização? Como incorporar ao sistema público o marco de responsabilidade? As mudanças na estrutura organizacional nos vários setores da máquina pública, com a descentralização e o espaço de discricionariedade são fundamentais para isso, aliados a construção de sistemas de controle de resultados. Além disso, o estabelecimento de regras formais na Gestão de Pessoas, com a demarcação de um marco jurídico regulador
10, que promova e proteja um sistema garantidor do profissionalismo como principio orientador da ação dos dirigentes, regulamentando também a flexibilidade, são pontos nevrálgicos para a consolidação da função diretiva pública. (LONGO, 2003)
Enfim, é preciso reconhecer a especificidade do dirigente público, olhando para este personagem como uma categoria analítica distinta, compreendendo-o como um ator social diferente dos atores tradicionais, com um ethos específico, sujeito a seus próprios dilemas e desafios na interação com políticos, burocratas e demais atores que atuam no e em interação com o aparelho de Estado. (DE BONIS e PACHECO, 2010)
Considerações Finais
A Reforma do Estado demanda, além das inovações gerenciais para a superação do burocratismo, um amplo programa de ação e uma verdadeira remodelagem das relações entre o Estado e sociedade. Para colocar isso em prática, é preciso, antes de tudo, promover os Recursos Humanos públicos à condição de personagem central da
10Longo (2003) afirma que o desenvolvimento da função de direção pública não deve esperar as reformas puramente legais, pois é o próprio governo e o aparelho de Estado que devem impulsionar a gerência pública, sendo o papel do legislador apenas dar o contorno legal ao que já existe na prática.
Reforma, medida absolutamente crucial para preencher o vazio estratégico que tem predominado nesse âmbito (NOGUEIRA, 1998). Assim, é hora dos reformadores e estudiosos da Gestão Pública analisar com mais apuro as virtudes cívicas e competências para além das habilidades meramente gerenciais requeridas aos novos profissionais do Estado, conforme ilustra o Professor Marco Aurélio Nogueira em interessante definição do perfil de um novo gestor público:
O Gestor Público de que se necessita hoje é um técnico altamente diferenciado, seja vis-à-vis os gestores do passado (que operavam em um ambiente de maior ‘simplicidade’ e maiores ‘certezas’), seja vis-à- vis seus congêneres privados. Como todos os demais gerentes, está obrigado a lidar com um mundo cambiante e complexo, a processar muitos dados e informações, a reciclar conhecimentos com rapidez, a ser polivalente e pouco ‘especializado’. Mas, diferentemente dos gestores privados, precisa ser técnico e político, isto é, operar como um agente de atividades gerais que possui conhecimentos específicos, como um ‘planejador’ que trabalha ‘fora dos gabinetes’, com os olhos no processo societal abrangente, em seus nexos contraditórios e explosivos; como um profissional cujo êxito depende de uma dinâmica que não é técnica, não é ‘racional’ nem friamente controlável, mas é essencialmente política e, como tal, não se deixa isolar dos interesses e das paixões humanas. Seu raio de ação está colado aos problemas da democracia, da representação e da participação. Entre suas novas atribuições, aliás, encontra-se precisamente, em lugar de destaque, a de atuar como difusor de estímulos favoráveis à democratização, à transparência governamental, à cidadania, à redefinição das relações entre governantes e governados, Estado e sociedade civil.
(NOGUEIRA, 1998: 189-90)
Ainda de acordo com Nogueira (1998), esses novos profissionais requeridos pela Reforma do Estado devem ter consciência do tipo especial da função pública e da natureza diferenciada do espaço público. Além disso, devido ao caráter sensivelmente estratégico dessa “cúpula sui generis
11”, composta por dirigentes estrategistas, eles devem ser quadros de nível superior capazes de desenvolver funções de liderança, coordenação e planejamento. Entretanto, não podem liderar nem dirigir com base na autoridade ou na hierarquia, porque dependem de ascendência política. Enfim, eles devem ser dotados de habilidade singular para reunir e orientar pessoas, para se credenciarem como uma cúpula gabaritada para entender que os Recursos Humanos são o único instrumento confiável para se chegar à fase de assimilação do novo e alcançar uma nova performance no Setor Público. (NOGUEIRA, 1998)
11 “São líderes, especialistas tecnopolíticos capacitados para pesquisar, negociar, aproximar pessoas e interesses, planejar, executar e avaliar”. (NOGUEIRA, 1998: 201)
Ao mesmo tempo, além da valorização desse novo perfil de Gestor Público que procuramos analisar, é necessário que os políticos verdadeiramente imbuídos de um espírito republicano e reformista difundam amplamente a idéia de que a consolidação de uma Administração Pública profissional é sinal de maturidade democrática e avanço político e institucional de um país, sendo o surgimento e consolidação dos dirigentes públicos uma conseqüência da lógica evolutiva do Estado moderno. (LONGO, 2007).
Em outras palavras, o desenvolvimento e a consolidação da direção pública são sinais inequívocos da identidade e do comprometimento de um sistema público com as Reformas modernizadoras da Gestão Pública Contemporânea.
Percebemos, portanto, a centralidade do tema da profissionalização da Administração Pública e a urgência da institucionalização de um novo Gestor Público, portador de competências multifacetadas e com capacidade de atuação técnica, estratégica, política e gerencial em várias vertentes, com o objetivo permanente de agir de forma empreendedora, buscando acelerar as inovações necessárias à modernização do Setor Público.
Por se tratar de um assunto fundamental para a governabilidade das sociedades democráticas atuais, uma vez que os dirigentes públicos são “criadores de valor público”, é importante enfatizar a necessidade premente da profissionalização e institucionalização dos quadros diretivos públicos ser elencada como uma prioridade para novas políticas de Reforma da Gestão Pública, a fim de contemplar as demandas básicas de um renovado marco jurídico regulador das políticas e práticas de Gestão de Pessoas. Ademais, como os sistemas tradicionais do serviço público carecem da capacidade de produzir gerentes públicos, urge aos governos verdadeiramente imbuídos do espírito reformista promover bons programas de desenvolvimento diretivo
12, com o devido investimento em capacitação, a fim de lapidar as competências gerenciais mais adequadas a cada realidade político-administrativa.
A busca por novas experiências organizacionais, de fato, evidencia o contraste da tradição burocrática com as novas propostas gerenciais, sendo somente com posturas empreendedoras dos reformadores, com vistas à transformação profunda da Administração Pública que esse novo ator institucional, fundamental para a Reforma do
12 Vale destacar o caso do Chile, que na América Latina implantou o pioneiro Sistema de Alta Direção Pública. Ver: http://www.serviciocivil.gob.cl/sistema-de-alta-direcci%C3%B3n-p%C3%BAblica-0.
Acesso em 06.08.2012.
Estado, poderá se consolidar. Em suma, o debate sobre o dirigente público e a institucionalização
13da sua função trará implicações importantes para a agenda de Reforma da Gestão Pública no Brasil e poderá subsidiar novos estudos teóricos e pesquisas empíricas de modo a enriquecer as análises da área acadêmica de Administração Pública e Ciência Política.
Ademais, é forçoso reconhecer que avanços reais e duradouros na profissionalização da Gestão Pública só serão possíveis quando ocorrer uma genuína revisão das relações entre Política e Administração no Brasil, de modo a desconstruir as visões e práticas arcaicas que reforçam a “colonização da Gestão Pública” pelas classes políticas (LONGO, 2007). Exemplo flagrante disso é o inaceitável abuso do poder de nomeação dos políticos, guiado pela prevalência da lógica eleitoral autointeressada e imediata (PACHECO, 2010), com desprezo absoluto pelas noções de eficiência e desempenho das políticas públicas, o que dificulta o posicionamento de perfis adequados nos cargos de direção pública e retarda o pleno desenvolvimento da função diretiva pública.
Portanto, evitar a colonização do espaço diretivo público e lutar contra as seculares tendências de loteamento político, clientelismo e burocratização da direção pública são pontos chave para repensarmos os Recursos Humanos públicos à luz dos novos conceitos de Reforma do Estado. Nesse sentido, a consolidação de uma Administração Pública profissionalizada passa necessariamente pelo reconhecimento de uma esfera gerencial independente no âmbito do Setor Público a ser preenchida por dirigentes dotados de competências específicas cuja função é guiada por um ethos peculiar.
Assim, o paradigma tradicional da Administração Burocrática weberiana, com seus atores institucionais clássicos, a saber, o político e o burocrata, tende a dar lugar, à medida que os países avançam em modernização e profissionalização das suas Administrações Públicas, ao paradigma da Administração Pública Gerencial. Na esteira desse novo modelo, constamos o surgimento de novos espaços político-administrativos e de novos atores como o dirigente público, sendo esse é um dos grandes temas do debate
13 A institucionalização da função passa necessariamente pela regulamentação e sistematização do processo de profissionalização, recrutamento, treinamento, desenvolvimento de competências, seleção e responsabilização da ação do dirigente público.
contemporâneo sobre Gestão Pública e Políticas de Reforma do Estado que este trabalho procurou analisar.
A título de conclusão geral, encerraremos com algumas considerações críticas mais gerais sobre o tema. A Reforma do Estado no Brasil ainda esbarra em muitos condicionantes que remontam à origem da formação do Estado brasileiro. Entretanto, a visão de que o Estado deve tornar-se mais eficiente através do aperfeiçoamento da Gestão Pública focada nos resultados, cuja missão primordial é prover os cidadãos com melhores serviços e políticas públicas mais eficientes, eficazes e efetivas parece difícil de ser contestada. Assim, é interessante a visão de Abrucio:
A Gestão por resultados é hoje a principal arma em prol da efetividade das políticas públicas. Para tanto, é preciso orientar a administração pública por metas e indicadores. Embora estes já tenham sido introduzidos em algumas experiências brasileiras, o seu uso ainda é bem restrito, pouco conhecido do público e, pior, de pequena assimilação junto à classe política.
Esta revolução gerencial dependerá, portanto, de um convencimento dos diversos atores políticos e sociais sobre a necessidade de se adotar este novo modelo de gestão. Daí que não bastarão alterações institucionais; serão necessárias mudanças na cultura política, como ocorreu no caso da responsabilidade fiscal. (ABRUCIO, 2007: 82)
Portanto, as perspectivas de implantação de uma Administração Pública Gerencial no Brasil ainda são pouco otimistas diante do amplo quadro de peculiaridades do contexto brasileiro, que se configuram como verdadeiros entraves a consolidação de um modelo mais progressista e moderno de Gestão Pública. Dentre esses condicionantes da Reforma do Estado no Brasil, destacam-se o patrimonialismo, o clientelismo, o personalismo, o mandonismo e muitas outras patologias sociais que estão no cerne da nossa formação política e cultural e que alimentam os velhos esquemas de manutenção de um status quo compromissado com o reforço de estruturas políticas e sociais arcaicas.
14A Reforma Gerencial de 1995, apesar dos reveses
15, deixou um legado institucional importante para o país, na medida em que inseriu na agenda política um tema novo e necessário que nunca havia sido discutido amplo e abertamente. Além disso,
14Para uma visão mais completa sobre as condicionantes da Reforma do Estado no Brasil, ver: COSTA (2007).
15A preponderância do ajuste fiscal e a dificuldade de promover as mudanças institucionais necessárias são dois fatores chave importantes para justificar a tese de descontinuidade dos movimentos reformistas de 1995 através das falhas seqüenciais, conforme sintetiza a obra de REZENDE (2004).
foi a primeira tentativa de modernização do Estado em um período de estabilidade democrática em um país de cultura política marcadamente autoritária, onde ainda coexistem elementos da Gestão Pública patrimonial, burocrática e pós-burocrática- gerencial.
A análise e compreensão do momento político em que se passou a Reforma Bresser são reveladoras dos embates ideológicos travados. O primeiro governo Fernando Henrique Cardoso, período em que se passa a Reforma que interessa diretamente a esse trabalho, foi rotulado
16de neoliberal e economicista, tentando-se fazer crer que o Governo teria renegado a responsabilidade pública com as políticas sociais em detrimento das políticas econômicas de ajuste fiscal e em obediência subserviente aos imperativos internacionais emanados do Consenso de Washington
17. Nesse particular aspecto, é interessante observar a tentativa de oposição à Reforma,
18com tom ideológico bastante acentuado, conforme o próprio Presidente Fernando Henrique procurar refutar:
Como poderia o conjunto de propostas que pretendemos aplicar à Administração Pública ser considerado neoliberal ou determinado pelo Consenso de Washington? Só na retórica pseudodemocrática, na verdade clientelista e conservadora (tudo que é moderno ou novo é suspeito), de uma “esquerda”
que perdeu o rumo. (CARDOSO, 2006:565)
É igualmente interessante observar o esforço de Bresser Pereira
19em desfazer esse “equívoco”, ao afirmar que os verdadeiros neoliberais querem a retirada total do Estado também da área social, adotando um individualismo radical carente de um realismo político que, na sua interpretação, não encontrou lugar nas propostas do Governo Fernando Henrique Cardoso para a Reforma do Aparelho de Estado.
De acordo com o formulador da Reforma Gerencial, tratava-se de promover no Brasil nem um Estado mínimo nos moldes neoliberais radicais de corte neoconservador,
16 Além da oposição petista à reforma com a estratégia de tachar de “neoliberal” qualquer reforma do Governo FHC, ressalte-se também a péssima influência do desastrado Governo Collor que executou políticas de mudanças bruscas na Gestão de Pessoas que causaram muito ressentimento e grandes resistências no funcionalismo público, fatores esses ajudaram no enfraquecimento da Reforma da Gestão Pública de 1995. (ABRUCIO, 2007)
17Dentre as principais medidas formuladas no Consenso de Washington, estão: disciplina fiscal, redução dos gastos públicos, abertura comercial, reforma tributária, privatização das empresas estatais, desregulamentação e afrouxamento das leis econômicas e trabalhistas, eliminação de barreiras ao investimento estrangeiro direto etc.
18 “Não se pode esquecer a oposição petista à reforma, movida pelo peso do corporativismo dentro do partido e por uma estratégia de tachar qualquer reforma da era FHC como “neoliberal”. (ABRUCIO, 2007)
19 O Ministro da Reforma do Estado considera muitas críticas como puramente ideológicas e dialoga com algumas vozes críticas à Reforma Gerencial de 1995 em BRESSER PEREIRA (2009: 357-362)
nem um Estado de Bem Estar Social nos moldes do Welfare State, mas sim um Estado Social-Liberal, que continua responsável pela proteção dos direitos sociais, mas que garante essa proteção deixando gradualmente de exercer a forma direta as funções de educação, saúde e assistência social para contratar organizações públicas não-estatais para realizá-las. (BRESSER-PEREIRA, 1998b); (BRESSER-PEREIRA, 2009)
A título de conclusão, e fazendo uma apreciação da questão política que permeia e dá a direção aos movimentos de Reforma do Estado, nota-se que o Governo Fernando Henrique Cardoso deixou uma herança de Reformas importantes ao país, tanto no plano institucional, como no âmbito econômico e jurídico, ao promover importantes reformas como a própria Reforma Gerencial aqui abordada, a Lei de Responsabilidade Fiscal e outras discussões de relevância para a modernização da Gestão Pública que se arrastam até a atualidade e que foram iniciadas nos governos FHC.
20Em contraposição, quando analisamos o governo Lula e a trajetória política do seu partido, de oposição sistemática a muitos dos avanços modernizadores preconizados pelos governos FHC, vemos a ilusão de que bastaria vontade política dissociada de uma Gestão Pública atualizada e eficiente para promover as mudanças prometidas no discurso histórico do PT, o que não se mostrou verdadeiro na árida realidade política, como demonstra Abrucio:
Eleito por um discurso em prol de uma ampla transformação da sociedade brasileira, o presidente Lula acreditava que bastava vontade política para mudar o país. A esta visão voluntarista se somou a ausência de um projeto de Reforma do Estado, pois o PT, até há pouco tempo, enxergava em qualquer projeto neste sentido uma natureza “neoliberal” — em outras palavras, um “pecado”. Resultado: muitas das promessas eleitorais não puderam ser cumpridas porque a gestão pública não estava preparada para atingir os fins propostos.
(ABRUCIO, 2007: 79)
Ainda em relação ao Governo Lula
21, além da constatação da necessidade de uma máquina pública eficiente e de novas formas de Gestão para implantar as políticas
20É evidente que os movimentos de Reforma do Estado conduzidos no Governo FHC não são consensuais e encontram argumentos plausíveis de oposição a muitas ações, para além da mera crítica estéril de cunho ideológico, os quais, por razões de limitação do escopo analítico desde trabalho, que tratou o tema da Reforma Gerencial a partir da perspectiva do Governo FHC, não puderam ser analisados. Para uma abordagem mais crítica da Reforma Gerencial de 1995, ver COSTA (2000).
21Em relação ao Governo Lula, apesar da ausência de uma política sistemática de Reforma do Estado, nos moldes da praticada no Governo FHC, Abrucio (2007) destaca algumas boas ações pontuais que merecem destaque, como o Programa Nacional de Apoio à Modernização da Gestão e do Planejamento dos Estados e do DF (Pnage) e o Programa de Modernização do Controle Externo dos Estados e Municípios Brasileiros
públicas pretendidas nos planos de Governo, deve-se mencionar a existência do reforço de alguns mecanismos políticos que inibem o avanço da Administração Pública Gerencial no Brasil, ao torná-la mais dependente das velhas moedas de troca clientelista, conforme salienta Abrucio:
A pior característica do modelo administrativo do Governo Lula foi o amplo loteamento dos cargos públicos, para vários partidos e em diversos pontos do Executivo federal, inclusive com uma forte politização da administração indireta e dos fundos de pensão. Este processo não foi inventado pela gestão petista, mas sua amplitude e vinculação com a corrupção surpreendem negativamente por conta do histórico de luta republicana do Partido dos Trabalhadores. Se houve algo positivo na crise política de 2005 é que, depois do conhecimento pelo grande público do patrimonialismo presente em vários órgãos da administração direta e em estatais, tornou-se mais premente o tema da profissionalização da burocracia brasileira. (ABRUCIO, 2007: 77)
Assim, vemos que no Brasil atual predomina um modelo de Gestão Pública fortemente baseada no paradigma Estadocêntrico, no qual a sociedade é súdita do Estado e refém dos muitos vícios que permeiam toda a máquina burocrática. A burocracia brasileira é caracterizada por um modelo fraco com foco exacerbado no processo em detrimento dos resultados, o que engessa a Administração Pública ao submetê-la a um universo ensimesmado que padece de isolamento, operando sob uma lógica própria afastada da realidade social. Essas questões nos fazem pensar na urgência de promover a profissionalização dos nossos quadros do Estado, especialmente no alto escalão da direção pública, bem como estimular a atuação e a institucionalização de novos atores que sejam capazes de induzir mudanças inovadoras no aparelho de Estado, como a figura do dirigente público, que este trabalho buscou analisar.
Portanto, para pensar a Reforma do Estado no Brasil e avançar nesse debate,
devemos analisar simultaneamente várias “Reformas” que estão englobadas nesse tema,
quais sejam: a econômica, que basicamente diz respeito aos ajustes estruturais
macroeconômicos, à redefinição do papel do Estado na economia e ao equilíbrio fiscal,
cujos fundamentos básicos já foram estabelecidos, principalmente com a estabilização
monetária do Plano Real e com a Lei de Responsabilidade Fiscal; a administrativa,
focalizando o delicado e estratégico tema dos Recursos Humanos no Setor Público (foco
(Promoex), os quais primam pela modernização da administração pública no nível subnacional e são mais participativos, reforçando modelos em rede e afastando a tradição centralizadora do Estado brasileiro.deste trabalho); promovendo avanços na questão das tecnologias da informação e aperfeiçoando o governo eletrônico; estimulando a melhoria da transparência das ações públicas, através do refinamento dos mecanismos de accountability e responsabilização dos agentes públicos, sempre tendo em vista o aumento progressivo da qualidade do serviço público entregue pelo Estado, com foco no cidadão; e finalmente a reforma de inovação, muito mais lenta que as demais, porque envolve valores e cultura política, e passa necessariamente pelo desenvolvimento de uma mentalidade de “empoderamento”
da população e pelo fortalecimento dos mecanismos de democracia participativa.
Finalmente, esse trabalho abordou alguns aspectos do vasto tema da Reforma do
Estado no Brasil. Primeiro, ao traçar um sucinto histórico das duas reformas que
antecederam a Reforma Gerencial de 1995. Depois, descreveu as principais diretrizes do
Plano Diretor da Reforma do Aparelho de Estado, trabalhando alguns conceitos-chave
para a compreensão do que é a Nova Administração Pública. Em seguida, analisou a
profissionalização da Administração Pública no Brasil à luz dos conceitos atuais da
literatura especializada na área, estabelecendo como foco o estudo de um novo ator do
aparelho de Estado, o dirigente público. E por fim, teceu alguns comentários críticos
sobre elementos políticos e culturais que induzem a discussão sobre a Gestão Pública no
Brasil, explorando suas conexões com as Políticas de Reforma do Estado.
Referências Bibliográficas
ABRUCIO, Fernando Luiz. Os avanços e dilemas do modelo pós-burocrático: a reforma da Administração Pública à luz da experiência internacional recente. In: BRESSER PEREIRA, Luiz Carlos; SPINK, Peter. A Reforma do Estado e a Administração Pública Gerencial. São Paulo: Fundação Getúlio Vargas, 1998.