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Um ensaio de aproximação entre Hobbes e Freud.

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Um ensaio de aproximação entre Hobbes e Freud.

Ruth Vasconcelos1

Pontuaremos, nesta breve reflexão, algumas questões que trouxemos para discussão no “Dialogando” ocorrido no dia 20 de Junho de 2000, onde ensaiamos uma aproximação entre o pensamento de Hobbes e Freud no que diz respeito ao lugar da Lei no processo de constituição do Sujeito e da Sociedade. Importante registrar que nossas reflexões estão referenciadas em dois mitos2

expostos nas obras O Leviatã (Hobbes 1651) e Totém e Tabu (Freud 1913), onde estes autores apresentam narrativas hipotéticas a partir de argumentos lógico-dedutivos, para explicar algumas operações sociais e subjetivas que resultaram no processo de constituição da civilização, que instalou a barra da interdição e da autoridade, colocando este como sendo o único caminho para o trilhamento da vida em sociedade.

O tema central que está na base de todo o enredo mitológico formulado por estes autores é o da instituição da Lei e da interdição como um campo organizante3 e estruturante para a edificação da

Ordem Social e do próprio Sujeito. Os mitos constróem um argumento que tenta explicar como o registro civilizacional, instaurado pela Lei, produziu o bordeamento a partir do qual o sujeito se fez sujeito, e a sociedade se instaurou como um campo estruturante para o desenvolvimento da vida social e cultural.

A despeito de ocuparem posições distintas no campo da produção do conhecimento, sendo Hobbes um filósofo da política, e Freud um psicanalista, identificamos alguns pontos de contato entre suas abordagens, particularmente no tratamento que oferecem à problemática que envolve o binômio violência e Ordem Social.

O resgate da teoria política Hobbesiana deve-se à atualidade de suas discussões em torno dos problemas sociais gerados pela ausência da Lei e pela fragilização da figura de autoridade que, nos últimos tempos, expressa-se pela falência do próprio Estado(Pai) Moderno. A implementação do projeto de Estado neo-liberal, que institui a política do Estado mínimo, produziu mudanças importantes na organização social, onde estão sendo impressos os efeitos do desamparo, da desassistência e da desproteção provocadas pelo alheamento do Estado aos problemas sociais. Não podemos esquecer que a instituição estatal surgiu como uma demanda social da modernidade, que passou a atribuir ao Estado o lugar de promotor da Ordem e da Segurança necessárias à vida em sociedade. Desta forma, o Estado Moderno assumiu o lugar de protetor e provedor da vida social devendo, além de implementar políticas públicas, fiscalizar o cumprimento das Leis que definem Direitos e Deveres para os cidadãos do mundo. Da mesma forma, a crise de autoridade instalada no mundo moderno presentifica as reflexões de Freud quando aborda os efeitos vivenciados pela horda primeva, que discutiremos a seguir.

O Estado Hobbesiano: a renúncia dos desejos em troca da paz

Defensor do Estado Absolutista, Hobbes inaugura na teoria política moderna, justificativas racionais para a defesa de um Estado forte, como única forma de conter os “impulsos e os desejos” humanos, particularmente aqueles que os levam a estabelecer disputas e competições em suas relações cotidianas.

Hobbes sugere, em seu enredo mitológico, que os Homens teriam vivido no percurso da história, num Estado de Natureza, no qual gozaram de plena liberdade e igualdade de condições e onde agiam apenas mobilizados pelos seus desejos ilimitados, nem sempre racionais.

O exercício pleno da liberdade e igualdade teria gerado a violência e a competição entre os homens, inviabilizando assim, a vida em sociedade. Isto porque no Estado de Natureza, "Se dois desejam a mesma coisa, ao mesmo tempo em que é impossível ser gozada por ambos, eles tornam-se inimigos"

(Hobbes 1983:74). Ou seja, se cada sujeito tem a capacidade de agir e se cada um possui o desejo de obter as coisas igualmente, cada um irá esforçar-se, de qualquer maneira, para destruir e subjugar o outro, com o objetivo de vencer na disputa do objeto desejado. A concorrência, a insegurança e a desconfiança recíproca instaura, portanto, uma situação de guerra perpétua de "cada um contra cada um e de todos contra todos". Hobbes descreve, nestes termos, o Estado de Natureza como um Estado de Guerra, onde cada um se sente, com ou sem razão, perseguido e traído. O clima de guerra entre todos só termina com a morte e a destruição. É assim que Hobbes entende que os homens se comportam no Estado de Natureza, movidos que estão por sentimentos de vaidade e competição comuns à própria natureza humana4.

Hobbes trabalha com uma visão negativa da natureza humana e sugere que se quisermos conhecer esta natureza basta que cada um olhe para si próprio, pois existe uma semelhança entre as

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paixões, os desejos (de vida e de morte), os medos e as esperanças de todos frente aos desafios postos pela vida. Ele acredita que há uma inscrição, na natureza humana, de um desejo perpétuo e incessante de poder, que coloca todos numa posição de rivalidade e concorrência entre si. O perigo da vida no Estado de Natureza reflete o próprio estado natural do homem, que é perigoso, pois está sempre sendo impulsionado à rivalidade, à competição e à destruição do outro. É desta reflexão que Hobbes extrai o aforismo de que "o Homem é o lobo do próprio Homem". 5

Na continuação do seu enredo mitológico, Hobbes descreve que os homens, experimentando o exercício da liberdade, teriam tornado a vida “grosseira, animalizada e breve”. A liberdade de fazer tudo, inclusive de matar, instaurou um clima de total insegurança, onde todos passam a viver sob o constante perigo e temor de serem surpreendidos com a morte violenta, fruto de um impulso de violência comum à natureza humana .

Segundo Hobbes, se não existe um Estado controlando e reprimindo, a atitude mais racional que se pode esperar dos homens é a guerra. Se não podemos controlar o desejo do outro, temos que nos antecipar à sua atitude frente a nós. A lógica expressa no pensamento de Hobbes, que demonstra a situação conflituosa que se instalou no convívio social é o que passou a orientar a vida no Estado de Natureza: "o mais razoável para cada um é atacar o outro, ou para vencê-lo, ou simplesmente para evitar um possível ataque".

Diante deste quadro caótico e inseguro, os homens teriam resolvido estabelecer um Contrato Social, onde todos abririam mão da condição de igualdade e liberdade que desfrutavam no Estado de Natureza, em troca da Paz e da Segurança que seriam obtidas com a instauração do Estado Civil e Político.

O impasse desta vida insegura só é superado quando os homens descobrem que mesmo sendo egoístas, vaidosos, invejosos e violentos, não podem viver isolados. Hobbes afirma que não existe uma disposição natural entre os homens para viver em sociedade, no entanto, frente às dificuldades criadas, resolveram optar, numa atitude inteligente e racional, pela preservação de suas vidas, instaurando a Lei e o Estado e renunciando aos seus direitos naturais (liberdade e igualdade) em favor da paz e da segurança. O argumento de Hobbes para justificar a defesa de um Estado forte que controle, limite e reprima os traços perversos do homem, sustenta-se na seguinte assertiva:

"Onde não há poder comum, não há lei, e onde não há lei, não há injustiça. Nada é injusto se não há lei que regule" (Hobbes 1983:77).

São as Leis positivas que oferecem um parâmetro de referência para definir o certo e o errado, o justo e o injusto, o legal e o ilegal, enfim, estabelecem direitos e deveres entre os sujeitos que compõem uma sociedade. Sem a definição de Leis que limitem os desejos dos homens, não há nada que ele não possa fazer. Ou seja, amparados no direito natural, não há como dizer que qualquer ato humano seja justo ou injusto, pois pelo direito natural o homem tem a liberdade plena e absoluta de fazer tudo que deseja.

A necessidade do Contrato Social que instaura o Estado advém da própria necessidade do estabelecimento de códigos e leis que regulem a vida do homem em sociedade. O pacto que dá origem ao Estado Hobbesiano é um pacto de renúncia, onde os homens passam a se submeter à vontade do soberano, que representará e substituirá a vontade de todos.

Eis os termos contidos neste contrato de submissão estabelecido entre os homens e que deram origem ao Leviatã: "Cedo e transfiro o meu direito de governar a mim mesmo a este homem, ou esta assembléia de homens, com a condição de transferires a ele o teu direito, autorizando de maneira semelhante todas as suas ações" (Hobbes 1983:79). Com estas palavras todos renunciam aos seus direitos naturais e transferem seus poderes individuais ao soberano, passando a se submeter à vontade do soberano como se esta fosse sua própria vontade. Ou seja, todos renunciam todo direito e liberdade que possuíam no Estado de Natureza, tornando-se súditos e autorizando todos os atos e decisões deste soberano. A resolução que o mito oferece para que a humanidade possa conquistar a paz social, libertando-se, definitivamente, da insegurança e instabilidade que a ameaçava no Estado de Natureza, é a constituição do Poder Absoluto, que passa a ser inquestionável. A condição para que o Estado garanta e preserve a paz é que todos concordem com a irrevogabilidade do pacto que o instituiu. Ou seja, o pacto jamais poderá ser rompido, sob pena de um retorno ao Estado de guerra que tornou a vida do homem perigosa e breve. A sentença está posta: o preço que se paga para viver em paz é o Absolutismo, que impõe a renúncia do desejo humano, que é ilimitado.

O Parricídio em Freud e o remorso que institui a Lei do Pai

Ainda que Freud não tenha assumido em nenhum escrito, sua filiação às idéias hobbesianas sobre estado de natureza e pacto social, não é de todo descabido afirmar que Freud é herdeiro da teoria política de Hobbes, particularmente na abordagem que apresenta o mito do Parricídio em seu livro

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de Freud, já estão presentes em Hobbes, quando apresentou sua explicação para o surgimento do Leviatã.

O argumento freudiano que apresenta o totemismo e o mito do parricídio assemelha-se ao argumento hobbesiano, tal como apreassemelha-sentamos no tópico anterior. Ambos estão assemelha-se utilizando de um argumento hipotético para explicar o surgimento do Estado/Pai e da Lei entre os homens. Entendemos que existem pontos de aproximação entre estes autores, e é o que tentaremos demonstrar nas reflexões que se seguem.

Freud explica, através do parricídio, como surgiu a Lei e o tabu do incesto e qual foi a operação simbólica que instituiu o lugar do Pai como aquele que teria o poder e a autoridade para impor o limite aos impulsos humanos, sendo assim o responsável pela organização e restauração da ordem perdida. O lugar do Pai/ Lei é o lugar da interdição, que cria um campo organizante para o estabelecimento da ordem familiar e social.

Em Totem e Tabu Freud refere-se ao ritual ou “espetáculo de uma refeição totêmica”, onde o clã mata o animal totêmico e o devora cru. Esta “matança e comilança sacramental” do Totem, que fazia parte de um ritual religioso totêmico, deveria estar restrita a ocasiões específicas de festa. Segundo Freud, no momento em que ocorre a refeição totêmica, os homens têm consciência de que estão executando um “ato proibido ao indivíduo e justificável apenas pela participação de todo o clã, não podendo ninguém ausentar-se da matança e da refeição” (1999:144). Neste acordo coletivo, onde todos executam um ato proibido, estabelece-se uma situação de igualdade, onde ninguém pode acusar ou ser acusado, julgar ou ser julgado, punir ou ser punido, pois em comum acordo, todos participavam de um ato “subversivo”, que colocava todos e cada um na mesma condição de “pecadores”, já que ocorrera uma ”ruptura solene de uma proibição” (1999:144).

A decisão de matar e comer o totem num momento festivo, representa, por mais que tenha sido resultado de um pacto entre todos, um momento de quebra da ordem e da lei totêmica. A matança e a comilança representam uma operação simbólica de rompimento da lei, permitida apenas nesta ocasião festiva, que é quando “os instintos são liberados” e quando é permitida “qualquer tipo de gratificação”, inclusive a de comer um animal proibido. A ruptura solene da proibição, no entanto, não exime a vivência do luto, como diz Freud, “O luto é obrigatório, imposto pelo temor de uma desforra ameaçada” (1999:144).

A importância do mito do parricídio para a Psicanálise deve-se à associação que se estabeleceu entre o Tótem e o Pai, que levou a Psicanálise a afirmar que “o animal totêmico é, na realidade, um substituto do pai e isto entra em acordo com o fato contraditório de que, embora a morte do animal seja em regra proibida, sua matança, no entanto é uma ocasião festiva – com o fato de que ele é morto e, entretanto, pranteado. A atitude emocional ambivalente, que até hoje caracteriza o complexo-pai em nossos filhos, e com tanta freqüência persiste na vida adulta, parece estender-se ao animal totêmico em sua capacidade de substituto do pai” (Freud 1999:154).

A posição do pai na horda primeva, numa suposição feita por Freud a partir de Darwin, é a de “um pai violento e ciumento que guarda todas as fêmeas para si próprio e expulsa os filhos à medida que crescem” (1999:145). A partir desta posição tirânica é que se justifica o desejo de matar o pai, como foi revelado no mito do parricídio. Através desta construção mitológica, Freud explica porque o sentimento de ambivalência marca a relação pai-filho e como este pai odiado, após ter sido morto, ocupou o lugar da lei.

Transcreveremos algumas passagens do Parricídio para acompanharmos as operações subjetivas que Freud demonstrou acontecer e que resultaram na instituição da Lei do Pai: “Certo dia, os irmãos que tinham sido expulsos retornaram juntos, mataram e devoraram o pai, colocando assim um fim à horda patriarcal. Unidos, tiveram coragem de fazê-lo e foram bem sucedidos no que teria sido impossível fazer individualmente. (...) Selvagens canibais como eram, não é preciso dizer que não apenas matavam, mas também devoravam a vítima. O violento pai primevo fora sem dúvida o temido e invejado modelo de cada um do grupo de irmãos: e, pelo ato de devorá-lo, realizavam a identificação com ele, cada um deles adquirindo uma parte de sua força. A refeição totêmica, que é talvez o mais antigo festival da humanidade, seria assim uma repetição, e uma comemoração desse ato memorável e criminoso, que foi o começo de tantas coisas: da organização social, das restrições morais e da religião” (1999:146).

Os efeitos é que explicam porque ao matar e devorar o Pai, os filhos instalaram este Pai no lugar da Lei, da ordem e da interdição. Para explicar esta operação subjetiva recorremos, mais uma vez, ao relato feito pelo próprio Freud: diz-se que após terem se livrado do pai, satisfazendo o ódio que os mobilizou a matá-lo, colocando em prática os desejos de se identificarem com ele, “a afeição que todo esse tempo tinha sido recalcada estava fadada a fazer-se sentir e assim o fez sob a forma de remorso. Um sentimento de culpa surgiu, o qual, nesse caso, coincidia com o remorso sentido por todo o grupo. O pai morto tornou-se mais forte do que o fora vivo – pois os acontecimentos tomaram o

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curso que com tanta freqüência os vemos tomar nos assuntos humanos, hoje. O que até então fora interdito por sua existência real, doravante será proibido pelos próprios filhos, de acordo com o procedimento psicológico que nos é tão familiar nas psicanálises, sob o nome de “obediência adiada” (1999:147). (Grifos nossos)

O remorso fez com que os filhos produzissem uma lei que anulasse “o próprio ato proibindo a morte do totem, o substituto do pai; e renunciaram aos seus frutos abrindo mão da reivindicação às mulheres que agora tinham sido libertadas. Criaram assim, do sentimento de culpa filial, os dois tabus fundamentais do totemismo, que, por sua própria razão, correspondem inevitavelmente aos dois desejos reprimidos do complexo de Édipo. Quem quer que infringisse esses dois tabus tornava-se culpado dos dois únicos crimes pelos quais a sociedade primitiva se interessava”: o parricídio e o incesto, ou seja: fica proibido matar o pai, assim como fica proibido ter a mãe como mulher (Freud 1999:147).

Com este mito, Freud fala como foi instituída a própria moralidade humana a partir desses dois tabus: o tabu do incesto em obediência à lei do pai.

Este mito fala também que apesar de terem se unido contra o pai para desfrutar das fêmeas da horda, os homens não se uniram após o seu feito, pois “os desejos sexuais não unem os homens, mas os divide”. Ao consumarem o ato da morte do pai, os irmãos descobriram que agora todos se tornaram rivais de todos, num estado equivalente ao Estado de Natureza para Hobbes. Na descrição mitológica de Freud ele afirma: “Cada um quereria, como o pai, todas as mulheres para si. A nova organização terminaria numa luta de todos contra todos, pois nenhum deles tinha força tão predominante a ponto de ser capaz de assumir o lugar do pai com êxito. Assim, os irmãos não tiveram outra alternativa se queriam viver juntos – talvez somente depois de terem passado por muitas crises perigosas -, do que instituir a lei contra o incesto, pela qual todos, de igual modo, renunciavam às mulheres que desejavam e que tinham sido o motivo principal para se livrar do pai. Dessa maneira, salvaram a organização que os tornava fortes (...)” (1999:148) (Grifos nossos)

Há muitos pontos de aproximação entre estes argumentos de Freud e aqueles descritos por Hobbes para falar sobre a necessária renúncia dos homens para viabilizar a vida em sociedade. Freud afirma que após a morte do pai instaurou-se um clima de insegurança em função das rivalidades entre os irmãos, que ficam sem Lei. A idéia que queremos destacar é que no mito de Freud, os homens criam uma situação de “luta de todos contra todos” porque todos estão numa situação de igualdade. “Se queriam viver juntos” e acabar com a “crise perigosa”, teriam que instituir a Lei que limitasse o desejo de ter o que antes era proibido pelo pai: as mulheres. Os irmãos “Renunciam” às mulheres para viabilizar a vida em sociedade. A culpa e o remorso de terem matado o pai é o que fez com que os irmãos, em situação de igualdade na culpa e no poder de desejar, renunciassem “ao prazer de ter as mulheres desejadas”, instituindo assim a lei do pai, ainda que este já estivesse morto.

Pontos de aproximação entre Hobbes e Freud

Há uma correspondência entre os argumentos de Freud e Hobbes quando estão a demonstrar as vantagens do pacto que institui o limite e a Lei: “A vida humana em comum só se torna possível quando se reúne uma maioria mais forte do que qualquer indivíduo isolado e que permanece unida contra todos os indivíduos isolados”. (Freud 1997: 49). Este também é o argumento de Hobbes quando afirma que, através do pacto, todos se uniram numa única vontade, a vontade do Soberano, renunciando assim à vontade individual em função da vontade coletiva. Na mesma perspectiva, Freud afirma que a “substituição do poder do indivíduo pelo poder de uma comunidade constituiu o passo decisivo da civilização” (1997:49).

Diz Freud, que “a primeira exigência da civilização” é a justiça. No estado civilizacional, a justiça é a “garantia de que uma lei, uma vez criada, não será violada em favor de um indivíduo”.(Freud 1997:49). Hobbes também alerta para a irrevogabilidade do pacto que instituiu o soberano e mostra que ninguém pode desrespeitar o pacto que criou o Leviatã, sob pena da humanidade voltar à desordem social, inviabilizando o projeto civilizacional.

O pensamento desses dois autores nesses mitos referidos, também expressa uma divergência fundamental entre ambos, particularmente no que se refere à questão do desejo. Como assinalamos anteriormente, para Hobbes, no estado de natureza, os homens desfrutavam de liberdade para fazer valer todos os seus desejos, ilimitadamente. Esta formulação jamais caberia nas reflexões de Freud, porque para este autor, o desejo surge a partir da lei, dos limites e da falta. Também numa perspectiva hipotética, se fôssemos imaginar um diálogo entre Hobbes e Freud, certamente este último argumentaria com Hobbes de que no Estado de natureza não existe desejo porque não há falta, porque não há lei que institua a falta. Ou seja, não há nada que diga: “isto é interdito”. Na perspectiva freudiana, a interdição é que institui o desejo, porque o desejo é algo que a lei funda a partir da interdição do objeto. Neste sentido, para Freud, o desejo só surgiria no momento em que este estado de natureza se parte.6

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De acordo com o que foi dito acima, temos que admitir que aquele momento de liberação e êxtase experimentado pelos homens na festa totêmica, eqüivaleria ao que é vivido de forma permanente no estado de natureza hobbesiano, apenas no que diz respeito à liberdade e à igualdade partilhada por todos. Não poderíamos argumentar que há uma equivalência entre os dois pensadores em relação à tese de que, naquele momento, não há limite à realização dos desejos humanos, seja para promover a vida ou a morte.

Ambos falam sobre o sentido da renúncia que os homens fazem de seus direitos e desejos em função dos benefícios desta renúncia: “O resultado final seria um estatuto legal para o qual todos – exceto os incapazes de ingressar numa comunidade – contribuíram com um sacrifício de seus instintos, que não deixa ninguém – novamente com a mesma exceção – à mercê da força bruta.” (1997:49). O projeto de civilização que construímos só foi viabilizado porque ocorreu a renúncia aos desejos pulsionais ou instintivos do homem Por isso Freud afirma que: “O desenvolvimento da civilização impõe restrições a ela (liberdade), e a justiça exige que ninguém fuja a essas restrições” (Freud 1997:50). (Grifo nosso)

A civilização impõe limites, leis e regras que limitam a expressão espontânea dos desejos e pulsões do homem. As regras frustram os desejos, no entanto, garantem a ordem e a harmonia no convívio social. O que esses autores tentam mostrar através de seus mitos é que se os homens levarem às últimas conseqüências a satisfação de seus desejos e pulsões de vida e de morte, inviabilizam a vida em sociedade. A renúncia exige uma compensação: a paz e a segurança.

Finalizamos nossas reflexões com a certeza de que há muito o que explorar sobre estas temáticas propostas por Hobbes e Freud, particularmente neste momento em que assistimos, por um lado, à falência do Estado/Pai/Provedor/Protetor, e por outro, à constituição de movimentos que revalorizam o individualismo e a competitividade como único caminho para os sujeitos ganharem um lugar no mundo, nesta corrida neo-liberal. Não é a toa que tem se generalizado um sentimento de desamparo, insegurança e medo, neste momento em que se vive uma crise de valores, agravada pela crise de legitimidade e credibilidade de instituições sociais e políticas que representam a Lei e a Segurança para a sociedade.

Bibliografia Citada.

Boadella, D. (1992) Correntes da Vida. Uma introdução à biossíntese. São Paulo: Ed. Sumus. Freud, S. (1997) Mal-Estar na Civilização. Rio de Janeiro: Ed. Imago.

Freud, S. (1999) Totem e Tabu. Rio de Janeiro: Ed. Imago.

Hobbes, T. (1983) O Leviatã. Coleção Os Pensadores. São Paulo: Ed Abril Cultural.

1 Professora da Universidade Federal de Alagoas, Departamento de Ciências Sociais. Doutoranda em Sociologia. 2 O mito do Estado de Natureza e o mito do Parricídio.

3 Conceito utilizado por Boadella (1992) para abordar sobre as condições apropriadas para potencializar o processo formativo do Sujeito.

4 "(...) a natureza humana é tal que, embora sejam capazes de reconhecer em muitos outros maior inteligência, maior eloquência, ou maior saber, dificilmente acreditam que haja muitos tão sábios como eles próprios" (Hobbes 1983:74).

5 Tal como Hobbes, Freud assinala o registro da agressividade na natureza humana, quando afirma que “os

homens não são criaturas gentis que desejam ser amadas e que, no máximo, podem defender-se quando atacadas; pelo contrário, são criaturas entre cujos dotes instintivos deve-se levar em conta uma poderosa quota de agressividade”. Nesta passagem do obra Mal-Estar na Civilização, Freud faz uma referência à expressão hobbesiana “homo homini lupus”, o homem é lobo do homem, citando uma obra de “Plauto, Asinária, II, iv, 88” (1997:67) 6 Sem a contribuição de Taciana Mafra não teria sido possível acrescentar esta reflexão no presente texto.

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