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MECANISMOS DE DEMOCRACIA SEMIDIRETA E O ESTATUTO DAS MINORIAS: ENTRE A BUSCA POR PARTICIPAÇÃO E A PREDOMINÂNCIA DA MAIORIA

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Academic year: 2018

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UNIVERSIDADE FEDERAL DO CEARÁ

FACULDADE DE DIREITO

YGOR COELHO SOARES

MECANISMOS DE DEMOCRACIA SEMIDIRETA E O ESTATUTO

DAS MINORIAS: ENTRE A BUSCA POR PARTICIPAÇÃO E A

PREDOMINÂNCIA DA MAIORIA

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YGOR COELHO SOARES

MECANISMOS DE DEMOCRACIA SEMIDIRETA E O ESTATUTO

DAS MINORIAS: ENTRE A BUSCA POR PARTICIPAÇÃO E A

PREDOMINÂNCIA DA MAIORIA

Monografia apresentada ao Curso de Direito, da Universidade Federal do Ceará (UFC), como requisito parcial à obtenção do grau de Bacharel em Direito.

Orientador: Prof. Dr. Hugo de Brito Machado Segundo.

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YGOR COELHO SOARES

MECANISMOS DE DEMOCRACIA SEMIDIRETA E O ESTATUTO

DAS MINORIAS: ENTRE A BUSCA POR PARTICIPAÇÃO E A

PREDOMINÂNCIA DA MAIORIA

Monografia apresentada ao Curso de Direito, da Universidade Federal do Ceará (UFC), como requisito parcial à obtenção do grau de Bacharel em Direito.

Aprovada em ___/___/_____.

BANCA EXAMINADORA

_______________________________________

Prof. Dr. Hugo de Brito Machado Segundo.

Universidade Federal do Ceará – UFC.

_______________________________________

Prof. LD. Raimundo Bezerra Falcão.

Universidade Federal do Ceará – UFC.

_______________________________________

Prof. Ms. Bruno Cunha Weyne.

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AGRADECIMENTOS

A meus pais, pelo auxílio infalível que jamais faltou e por me terem ensinado, ainda longe da academia, a tentar aproximar-me da justiça no caminho da conciliação e da consideração para com os outros.

A meus irmãos, pela fraternidade que, somada à amizade, representa um forte apoio nos momentos difíceis, especialmente ao meu irmão Yuri, verdadeiro conselheiro que foi em inúmeros momentos de dúvidas e ansiedades.

Ao Professor Hugo de Brito Machado Segundo, pela sempre pronta orientação e pelo impulso que suas instigantes aulas de Ética e Deontologia Jurídica deram à escolha do tema deste trabalho.

Aos colegas de turma, que, durante anos, foram uma presença invariavelmente agradável e fomentaram tantas discussões interessantes, tendo, nestes momentos finais, oferecido generosas sugestões e esclarecimentos.

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“[...] a atitude do bom democrático é a de não se iludir sobre o melhor e a de não se resignar com o pior.”

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RESUMO

Objetiva examinar as implicações dos procedimentos democráticos para o estatuto das minorias sociais e políticas, com foco nos mecanismos de democracia semidireta. A expansão da consagração e utilização desses instrumentos no processo decisório é uma importante tendência da evolução recente dos Estados democráticos. Em face do simultâneo crescimento do pluralismo e das demandas por participação direta, ganha relevo a secular discussão sobre o adequado equilíbrio entre a vontade da maioria e a esfera de direitos e interesses das minorias. A defesa da soberania popular e de um governo do povo e para o povo, desde o passado, foi acompanhada de questionamentos sobre se a aplicação radical daqueles propósitos poderia corromper a democracia em prejuízo das minorias, gerando uma tirania da maioria. Destarte, analisa as principais concepções teóricas que conformaram a noção moderna de democracia, visando a identificar seus fundamentos e os elementos que constituem sua essência, embora reconhecendo o caráter dinâmico da ideia e da prática da democracia. Com tal embasamento, estuda o desenvolvimento da democracia semidireta e os principais questionamentos que a doutrina nacional e estrangeira fizeram a ela, de modo a identificar suas possíveis vantagens e inconvenientes em sentido amplo e, sobretudo, com relação às minorias. Ademais, examina os resultados de estudos empíricos a respeito dos efeitos da democracia semidireta sobre os direitos das minorias, com o propósito de extrair, se não constatações definitivas, evidências que permitam observar as posições doutrinárias à luz da realidade das democracias e tomar uma conclusão fundamentada sobre os riscos e carências que cumpre reduzir a fim de assegurar a estabilidade e legitimidade da democracia. Demonstrada a tensão entre a necessidade de proteger e integrar as minorias e a realização da vontade da maioria, assentada sobre uma norma democrática básica – a regra da maioria –, analisa esta e as diferentes perspectivas com que a doutrina clássica e contemporânea abordou essa problemática. Adota a premissa de que a harmonização da vontade da maioria com a garantia de um estatuto favorável às minorias é imprescindível para o aperfeiçoamento do processo de democratização nas sociedades plurais da atualidade. Com fulcro em importantes teorias democráticas, conclui que a efetiva inclusão das minorias nos benefícios da cooperação social e da participação democrática demanda a consecução de algumas medidas primordiais, que se erguem sobre as bases da tolerância e dos verdadeiros pressupostos da democracia, a liberdade e a igualdade. Esboçam-se, assim, três proposições: a consagração constitucional dos direitos fundamentais e a imprescindível proteção deles pela justiça constitucional; a institucionalização, junto aos procedimentos democráticos, de amplos meios de deliberação pública e compromisso, nos quais as minorias tenham chances equitativas de participação; e a conformação de um sistema jurídico-político que não ignore a pluralidade e as desigualdades e busque, por conseguinte, assegurar que os indivíduos de todos os grupos tenham as mesmas oportunidades de exercer seus direitos, isto é, de ser igualmente livres.

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ABSTRACT

Aims to examine the implications of the democratic procedures to the status of the social and political minorities, focusing on the mechanisms of semi-direct democracy. The expansion of the adoption and utilization of these instruments in the decision-making process is a relevant trend in the recent evolution of the democratic states. Due to the simultaneous growth of pluralism and the demands for direct participation, the debate about the proper equilibrium between the majority will and the sphere of rights and interests of the minorities is increasingly important. The promotion of popular sovereignty and of a government of the people and for the people, since long ago, was accompanied by questionings on whether the radical application of those aims could corrupt democracy to the detriment of minorities, creating a tyranny of the majority. Hence, analyzes the main theoretical thoughts that shaped the modern notion of democracy in order to identify its fundamentals and the elements that constitute its essence, albeit recognizing the dynamic character of the idea and practice of democracy. With such a basis, studies the development of semi-direct democracy and the main criticisms that national and foreign authors have made about it, with the purpose of identifying its possible advantages and disadvantages in a broad sense and, especially, in relation to the minorities. Besides, examines the results of empirical studies on the effects of semi-direct democracy on minority rights, aiming to extract, if not definitive assertions, evidences which allow one to observe the doctrinal arguments in the light of the reality of democracies and to make a reasoned conclusion about the risks and shortcomings that need to be reduced to secure the stability and legitimacy of democracy. Once demonstrated the tension between the need to protect and integrate the minorities and the realization of the majority will, which lies on a basic democratic norm – the majority principle –, analyzes this one as well as the different perspectives with which classical and contemporaneous authors addressed that problem. Thus, adopts the premise that the harmonization of the majority will with the guarantee of a favorable status to the minorities is indispensable to the perfecting of the democratization process in plural contemporary societies. Based on important democratic theories, concludes that the effective inclusion of the minorities into the benefits of the social cooperation and democratic participation demands the achievement of some primary measures, which lay on the bases of tolerance and the true postulates of democracy: liberty and equality. Hence, drafts three propositions: the constitutional provision of fundamental rights and their crucial protection through judicial review; and the institutionalization, alongside the democratic procedures, of ample means of public deliberation and compromise, in which the minorities should have a fair chance to participate; and the shaping of a legal and political system that doesn’t ignore the plurality and the inequalities and, thus, seeks to secure to people of all groups the same opportunities to exercise their rights, that is, to be equally free.

Keywords: Semi-direct democracy. Majority rule. Minority rights. Pluralism. Liberty. Equality.

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SUMÁRIO

1 INTRODUÇÃO ... 10

2 DEMOCRACIA: CONCEITO E EVOLUÇÃO ... 15

2.1 Desenvolvimento histórico ... 15

2.1.1 Democracia antiga ... 16

2.1.2 Do Estado medieval ao Estado moderno ... 19

2.1.3 Primórdios da democracia moderna ... 21

2.1.4 Das revoluções liberais às socialistas ... 26

2.1.5 Democracia na contemporaneidade ... 30

2.2 Definição de democracia ... 35

2.2.1 Democracia direta ... 39

2.2.2 Democracia indireta e a crítica ao sistema representativo ... 43

3 DEMOCRACIA SEMIDIRETA ... 47

3.1 Desenvolvimento ... 52

3.2 Questionamentos ... 55

3.3 Mecanismos da democracia semidireta ... 64

3.3.1 Referendo ... 65

3.3.2 Plebiscito ... 70

3.3.3 Iniciativa popular de lei ... 73

4 DEMOCRACIA SEMIDIRETA NO BRASIL ... 78

4.1 Evolução da democracia semidireta no direito pátrio ... 81

4.2 Mecanismos de democracia semidireta no ordenamento vigente ... 86

5 DA RELAÇÃO ENTRE A MAIORIA E AS MINORIAS NA DEMOCRACIA ... 94

5.1 Efeitos da democracia semidireta sobre as minorias: experiência internacional ... 96

5.2 Regra da maioria ... 102

5.3 Vontade da maioria e proteção das minorias na evolução teórica da democracia .. 110

5.4 Vontade da maioria e o estatuto das minorias nas democracias contemporâneas .. 122

6 DA HARMONIZAÇÃO ENTRE A VONTADE DA MAIORIA E OS DIREITOS DAS MINORIAS ... 133

6.1 Consagração constitucional e proteção jurisdicional dos direitos fundamentais .... 136

6.2 Aprimoramento dos mecanismos de deliberação pública e compromisso ... 145

6.3 Consolidação de um sistema jurídico-político equitativo e pluralista ... 156

7 CONCLUSÃO ... 165

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1 INTRODUÇÃO

A democracia é um processo ainda em evolução, o que, além de dificultar a abordagem de seu conceito e de suas características, é também um estímulo para que se prossiga na busca de arranjos institucionais e mudanças de valores que estendam os benefícios do regime democrático a uma proporção cada vez maior da população, reduzindo as tensões e insuficiências naturais num processo de convivência tão complexo. É mister, portanto, criticar e analisar os problemas da democracia observando a lição de Comparato (1999, p. 413) de que “a salvação da democracia é mais democracia, não menos democracia”.

Uma das mais fortes tendências atuais da democracia é a crescente demanda por participação política direta tanto entre a maioria do povo, frustrada com a insuficiente correspondência dos governos representativos com a vontade popular, como entre as minorias esperançosas de ganharem mais voz na formação da vontade estatal (WIRTH; HAMEL, 2006, p. 161). Se a democracia direta é apenas residual e, mesmo, pouco factível nos Estados contemporâneos, dadas a extensão e complexidade destes, os institutos de decisão popular imediata seguem inspirando aqueles que buscam mais democracia, a tal ponto que Bobbio (1986, p. 41) constata que “a exigência, tão frequente nos últimos anos, de maior democracia exprime-se como exigência de que a democracia representativa seja ladeada ou mesmo substituída pela democracia direta”.

Diante das críticas ao sistema exclusivamente representativo e ao relativo afastamento dos cidadãos em relação às decisões coletivas relevantes, tem-se expandido nas últimas décadas a democracia semidireta, que mescla elementos de decisão popular direta com as instâncias representativas tradicionais. Foi expressamente consagrada na Constituição Federal brasileira de 1988 e nas Constituições estaduais, assim como regulada no direito pátrio, mediante a Lei nº. 9.709/98. Na doutrina nacional, a utilização dos mecanismos de democracia semidireta tem sido largamente defendida como meio de aproximar a vontade estatal dos interesses do povo. Apesar de significativo apoio, a utilização dos mecanismos de democracia semidireta ainda é incipiente no País, o que reforça a importância de aferir os seus efeitos e de buscar propostas para a melhor institucionalização e concretização dos procedimentos correlatos.

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jurídico-política. Em alguns casos, como na França e na Alemanha, os contextos em que foram utilizados os referendos foram dramáticos o bastante para influenciar a própria doutrina desses Estados e a internacional. A par disso, a análise dos efeitos da democracia semidireta reacende antiga discussão em torno do predomínio da maioria na democracia, que inspira um governo baseado na prevalência da vontade da maioria do povo. O estudo desses temas é fundamental para a contínua evolução dos regimes democráticos, cujos aspectos substantivos e procedimentais se vêm modificando ao longo dos séculos para abranger um âmbito cada vez mais amplo de direitos.

No passado como no presente, tem sido difícil a relação entre a maioria nacional ou política e as minorias, frequentemente excluídas ou, pela própria escassez de seus números, incapazes de influenciar decisivamente nos processos de decisão coletiva. A experiência histórica, sobretudo no século XX, já demonstrou várias situações de opressão das minorias por maiorias supostamente legitimadas pelos procedimentos democráticos, bem como por regimes autocráticos que justificaram suas ações com base na promoção do bem da maioria. Em países onde a democracia semidireta foi adotada há mais tempo, como Estados Unidos e Suíça, a maioria do povo, em referendos e iniciativas populares, já votou ou propôs projetos de lei para a restrição de direitos de certas minorias sociais.

Em que pese o evidente caráter democrático de mecanismos como o referendo e a iniciativa popular de lei, o desempenho das minorias sociais e políticas no processo decisório – tanto o representativo quanto o direto – e na sociedade democrática tem sido tema de amplos estudos da filosofia e das ciências jurídica e política. Desde Aristóteles até John Rawls, passando por Hans Kelsen, grandes pensadores ofereceram diversas interpretações úteis para a busca de uma forma de exercer e estruturar o poder político que evitasse a opressão de minorias e não acarretasse a degeneração da realização da vontade da maioria em um novo absolutismo baseado no número, isto é, numa “tirania da maioria”, expressão que se tornou célebre a partir do famoso Democracia na América de Alexis de Tocqueville.

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corrigir distorções do regime democrático tradicional e manter a legitimidade do Estado em face duma população mais plural e exigente, cujas demandas não se contentam mais somente com a representação política.

Ante a crescente contestação da democracia exclusivamente representativa, bem como da centralização das decisões nos órgãos centrais do Poder Público, é relevante analisar as vantagens e desvantagens dos mecanismos de participação direta não só em sua viabilidade e eficácia, mas também em sua capacidade de efetivamente estabelecer uma democracia mais plural, em que a participação não apenas aproxime a maioria das deliberações políticas, mas também propicie que o processo decisório decorra da síntese de efetivos debates entre os grupos formadores da sociedade, sejam eles numericamente superiores, sejam inferiores.

A par disso, as sociedades contemporâneas tornam-se cada vez mais heterogêneas em virtude de fenômenos variados, tais como o crescimento das migrações, a renovada valorização das identidades culturais e a progressiva diversificação das manifestações culturais e políticas. A crescente pluralidade é também decorrência do próprio desenvolvimento da democracia, cujos pressupostos de liberdade e igualdade estimulam a admissão das divergências e a integração entre grupos distintos como iguais na cidadania.

Portanto, um problema que, à primeira vista, poderia ser considerado, inadvertidamente, como relativamente fácil de solucionar (evidenciada a tendência de associar maior participação direta do povo com melhores condições para os indivíduos se expressarem livremente e otimizarem sua integração social), revela-se uma questão complexa e, apesar de há muito debatida, ainda pouco conclusiva. Assim, cumpre à doutrina e à academia seguir refletindo sobre a situação das minorias na democracia a fim de se alcançar, afinal, uma democracia plural e promotora da inclusão de todos. É o que o presente trabalho visa a realizar, em que pese suas evidentes limitações em face de assunto tão amplo e controverso.

Embora a diversidade marque a maioria das democracias modernas, percebe-se uma tensão, que urge minorar através das instituições estatais e principalmente da ordem jurídica, entre a vontade da maioria – que tende naturalmente a preponderar nas decisões coletivas – e os direitos e interesses das minorias, cuja proteção é igualmente considerada um elemento primordial do regime democrático. A harmonização de ditos elementos intrínsecos à noção hodierna de democracia deve ser buscada não só em prol das minorias, como também para a própria estabilidade e legitimidade do governo da maioria.

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e estabelecer diretrizes voltadas à compatibilização entre a regra da maioria, que permanece como uma das normas de legitimação das decisões do Estado, e o anseio dos grupos sociais minoritários não só por respeito a seus direitos básicos, mas também por reais oportunidades de participar do âmbito político e desenvolver-se plenamente.

O presente estudo dedica-se à análise das teorias sobre a democracia desenvolvidas por filósofos, juristas e cientistas políticos – o que é necessário pela amplitude secular do tema –, bem como à crítica das pesquisas empíricas internacionais sobre o uso dos mecanismos de democracia semidireta. Destarte, pretende-se abordar a temática com a devida atenção à realidade da democracia, de modo a perceber os seus efeitos e problemas, mormente em relação às minorias, oferecer propostas condizentes com as carências do regime democrático, sem olvidar a importância essencial do “dever ser” da democracia consoante seu desenvolvimento na doutrina, sob perspectivas distintas, e numa gradual evolução conceitual.

No primeiro capítulo, realizar-se-á uma breve retrospectiva da evolução da concepção e da prática da democracia, inclusive em suas formas direta e representativa, desde suas origens na Antiguidade Clássica até a contemporaneidade. Isso se faz necessário para contextualizar os desafios ainda hoje enfrentados pelos governos democráticos e, acima de tudo, para esclarecer como a noção de democracia foi incorporando, sob o influxo de correntes de ideias e necessidades socioeconômicas, conteúdos e procedimentos que não podem ser desconsiderados quando da aferição do estatuto das minorias sob a democracia semidireta, pois integram a moderna noção de quais institutos constituem e preservam a liberdade e a igualdade dos homens sob a ordem do Estado, pilar sobre que se ergue a democracia.

O segundo capítulo enfocará a democracia semidireta, buscando identificar o contexto e os efeitos de seu surgimento e desenvolvimento em vários Estados. Em seguida, serão analisados os principais questionamentos encontrados na doutrina nacional e alienígena, a respeito dos mecanismos de democracia semidireta, incluindo a relação entre estes e as condições de participação política e proteção das minorias. Em razão da variedade de institutos associados à democracia semidireta, serão estudados, especificamente, os três mecanismos fundamentais seja na ordem jurídica brasileira, seja em nível internacional: o referendo, o plebiscito e a iniciativa popular de lei. No terceiro capítulo, esta pesquisa se debruçará sobre a evolução e as condições históricas em que foi acolhida a democracia semidireta no Brasil, assim como sobre a regulação de seus institutos no direito nacional.

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democracia, com ênfase nos mecanismos da democracia semidireta. O esclarecimento dessa questão demanda a análise do sentido, dos fundamentos e dos efeitos da regra da maioria prevalecente nos governos democráticos. Requer, ainda, a abordagem de algumas das interpretações teóricas sobre os riscos e desafios relativos à realização da vontade da maioria, associada à soberania popular, e à sua compatibilização com as autonomias privada e pública das minorias, associadas aos direitos fundamentais, cuja efetivação é outro requisito fulcral da democracia moderna.

Além dos posicionamentos historicamente relevantes sobre o tema, intentar-se-á identificar as concepções teóricas mais adequadas aos desafios e ao contexto da democracia hodierna. Ademais, como é recomendável, o estudo da doutrina política e jurídica será acompanhado pela observação dos resultados de pesquisas sobre a experiência internacional com a aplicação dos procedimentos da democracia semidireta, no tocante a seus efeitos diretos e indiretos sobre as minorias sociais e políticas.

Conjugando a percepção dos reais déficits democráticos ao adequado embasamento teórico, pretende-se, no último capítulo, identificar algumas proposições idôneas a assegurar para as minorias um estatuto mais favorável nas sociedades democráticas, minorando, concomitantemente, as tensões entre seus legítimos interesses e a expectativa da maioria do povo de ver sua vontade refletida nas medidas políticas e na ordem jurídica.

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2 DEMOCRACIA: CONCEITO E EVOLUÇÃO

Intentar uma compreensão relativamente clara do que é democracia põe grandes dificuldades para uma pesquisa desta espécie, vez que aquela foi e é construída historicamente, tanto como conceito quanto como realização política, e se insere na complexa teoria das formas de governo, que, segundo Bobbio (2007, p. 135-136), emprega o termo em usos variados e frequentemente combinados: descritivo, essencialmente voltado à análise e classificação; prescritivo, enfocando-a em sentido axiológico frente às demais formas de governo; e histórico, situando-a, positiva ou negativamente, no desenvolvimento dos governos. Ademais, para Sartori (1993, p. 132), o uso comum tende a confundir toda discordância com a democracia com “não democracia”, tomando por democracia o que é uma questão de democraticidade.

Destarte, a complexidade conceitual da democracia, vinculada à ampla e amiúde controversa teoria do Estado, sua utilização plurívoca na linguagem e, sobretudo, sua longa e central importância na História recomendam estar-se consciente de que qualquer pesquisa sobre o tema certamente não será definitiva, mas poderá lançar luzes sobre os problemas ainda por resolver e os desafios que se avizinham no aprimoramento e adaptação contínuos da democracia. Destarte, é relevante o estudo da gradual e dinâmica evolução da democracia e dos conceitos a ela relacionados, conjugado à tentativa de traçar os contornos de sua forma contemporânea.

2.1 Desenvolvimento histórico

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Esses três conceitos evolveram conjuntamente na teoria e na prática do Estado, e a Era Moderna veio trazer o conceito de soberania como um dos fundamentos do Estado, objeto de discussões e reformulações na doutrina política, nas Revoluções e nas reformas dos Estados. Qualificada, a soberania popular foi também historicamente determinada, servindo de base às instituições peculiares ao Estado democrático (COMPARATO, 2006, p. 86), em que pese seja oportuna a observação de Sartori (1993, p. 151) de que “ninguno de nosotros

piensa en el fondo que la democracia toda sea sólo esto: lo que el pueblo soberano quiera”.

A análise que se segue, em que pese sua incompletude, permite compreender o verdadeiro significado com que se afirmam as características da democracia contemporânea, bem como as origens e razões de ser ela concebida como é. Ademais, a evolução histórica da democracia demonstra que a problemática da relação entre a maioria e a minoria no “governo do povo” sempre esteve presente explícita ou implicitamente na construção do governo democrático, incitando reações e interpretações diversas na doutrina política e jurídica.

2.1.1 Democracia antiga

Como conceito e regime político, a democracia surgiu em cidades-Estados gregas da Antiguidade Clássica, ali se aproximando ao máximo do exercício direto do poder pelo povo e tornando-se, por isso, o paradigma da democracia direta, viabilizada em pequenos Estados onde as deliberações políticas relevantes envolviam, em tese, o vasto contingente de cidadãos reunidos nas ágoras (BONAVIDES, 2010, p. 288-291).

Sem conceber a noção de soberania ou de distinção entre titularidade e exercício do poder, as democracias gregas, para Sartori (1993, p. 139), não constituíram Estados no sentido contemporâneo de estruturas complexas de mando e estabeleceram uma existência política sem políticos, dado que os cargos eram normalmente ocupados mediante sorteio. Contudo, adverte Azambuja (2008, p. 243), tal regime democrático não foi, nem em seu apogeu, uma forma pura de governo direto e exclusivo pelo povo.

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critério de governos aristocráticos. O “povo” detentor do poder se limitava aos homens livres, excluindo, na democracia ateniense, a maioria dos habitantes: mulheres, crianças, escravos e estrangeiros. Assim, o demos era, numericamente, uma minoria que, com significativa proporção de senhores de escravos, podia ocupar-se intensamente com as diligências e reflexões imprescindíveis ao governo da cidade-Estado, pois estava amparada por privilégios jurídicos, e a escravaria cuidava de sustentar a economia.

O cidadão se via envolto na pólis a tal ponto que sua condição de homem livre era identificada com a capacidade de intervir e participar da produção das normas, que, uma vez promulgadas, eram de cumprimento incondicional. Não cabia ao povo agir ou pensar em discordância com as leis produzidas democraticamente, determinando estas, inclusive, questões de consciência individual, a exemplo da crença religiosa (AZAMBUJA, 2008, p. 244-245). Essa forma de governo realçava a importância da sociedade em detrimento do indivíduo, talvez pelo caráter religioso que, originalmente, esteve presente na organização das cidades (COULANGES, 1987, p. 265-266). Nenhuma noção de liberdade, para os gregos das

poleis, jamais implicou uma proteção específica de cada indivíduo como ser dotado de direitos independentemente da cidade-Estado (SARTORI, 1993, p. 143).

À intensa participação cívica correspondia, no âmbito privado, a severa limitação da autonomia individual (DALLARI, 1998, p. 64). Como diz Paulo Bonavides (2007b, p. 498), parodiando a célebre frase de Lincoln, “todo cidadão vivia integralmente da pólis, para a

pólis e pela pólis”. O povo nas ágoras tinha legitimidade para tudo impor, sem que os cidadãos, com isso, reputassem violada sua liberdade. As leis só eram limitadas, na prática, pelas “leis eternas” dos costumes e preceitos religiosos e morais (AZAMBUJA, 2008, p. 244). Nesse sentido, Bonavides (2007b, p. 267) ressalta que a liberdade, na concepção dos atenienses de antanho, consistia em ser o cidadão um agente criador da lei, sujeitando-se, a partir daí, ao Estado sem que possuísse uma esfera de direitos inalienável e independente do poder estatal.

Com efeito, não foi formulado, na Antiguidade – mesmo na Grécia democrática –, um conceito de direitos do homem. É significativo que os dois filósofos de maior relevo da Grécia Antiga, Platão e Aristóteles, tenham aduzido em prol da desigualdade natural entre os homens a justificar a escravidão de alguns por outros. Rousseau (1996, p. 11), no século XVIII, criticaria tal concepção ao asseverar que “se há, pois, escravos por natureza, é porque houve escravos contra a natureza”.

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homens sob um nomos unitário que, tornando-os cidadãos duma sociedade universal, conferia-lhes direitos comuns. Tais ideias, porém, não vieram a prevalecer nem trouxeram resultados concretos de mudança na ordenação social e jurídica (CANOTILHO, 1999, p. 357).

Portanto, a democracia, na Antiguidade, não foi o regime de cidadania universal e guarda dos direitos individuais a que associamos aquele termo atualmente. Se havia meios de garantir aos cidadãos participação intensa e influente na formação da ordem jurídica das

poleis, o sufrágio era conferido à minoria privilegiada, e não se cogitaria da inclusão de certas minorias ou grupos vulneráveis, como imigrantes (AZAMBUJA, 2008, p. 180). Daí asseverar Azambuja que não existiram, nas democracias antigas, nem a liberdade, nem a igualdade civis, mas somente a liberdade política. A despeito disso, para autores como Rousseau, Hegel e Nietzsche, o homem antigo, e não o moderno, é que foi verdadeiramente livre nessas democracias que amalgamavam o homem-cidadão ao Estado (BONAVIDES, 2010, p. 290).

Ressalte-se, porém, que Platão foi ferrenho opositor da democracia, reputando-a uma forma de governo só não mais degenerada que a tirania e, em essência, um governo dos pobres reunidos na fúria contra os ricos e numa espécie de libertinagem (BOBBIO, 2007, p. 141), uma teatrocracia (BOBBIO, 1986, p. 29), e não um governo livre e de todos. Aristóteles foi menos radical em sua crítica e, na sua clássica classificação das formas de governo, reservou ao “governo de muitos” uma forma pura (politeia), voltada ao bem comum como as demais formas (monarquia e aristocracia), e uma corrompida pela persecução de interesses tão-somente particulares, verdadeiro governo dos pobres: a democracia, termo que certos autores contemporâneos substituem por demagogia a fim de adaptá-lo à linguagem atual. Portanto, Aristóteles não chegou a rejeitar de todo o governo do povo, mas sim o governo dos pobres em prol apenas dessa parte do povo, ainda que fosse a maioria (AZAMBUJA, 2008, p. 231-232; SARTORI, 1993, p. 140).

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Essa democracia, ao contrário da moderna, legitimaria um poder quase absoluto para a comunidade, afastando a autonomia pessoal e a proteção de direitos particulares. Ao final, a democracia grega ter-se-ia tornado a forma de governo degenerada mencionada por Aristóteles, um governo do demos como a parte pobre do todo, em contraposição à forma pura da politeia. Não obstante, baseando-se nas palavras atribuídas a Péricles, Bobbio (2007, p. 141) afirma que, já na antiga democracia, era defendido um “governo das leis” paritárias para todos, em oposição a um “governo de homens”.

Ainda para Sartori (1993, p. 146-147), o termo “democracia” só voltaria a ser prestigiado no século XIX, com nova concepção de inspiração liberal, perdendo lugar – e sendo usado em contraposição –para a noção de “república”, mais voltada ao bem comum do que à participação política de todos. Hodiernamente, Comparato (2006, p. 83) ensina que são complementares as noções de república e democracia, mas mantém a distinção: a república é a “supremacia permanente e inabolível do bem comum do povo sobre todos os interesses particulares”, incluindo como tais não só os dos indivíduos, mas de grupos, classes e do próprio Estado; ao passo que a democracia se prende à definição da titularidade e do exercício da soberania, atribuindo-os ao povo.

Com o hiato histórico, a democracia atual seria, para Sartori e outros autores, fundamentalmente distinta da antiga. Bobbio (2000, p. 31-32), todavia, entende que não: a democracia, como termo, continua a descrever a mesma forma de governo, variando, ao longo da história e das doutrinas, somente seu aspecto valorativo e o modo de exercer o poder cuja titularidade pertenceu e pertence sempre ao povo.

2.1.2 Do Estado medieval ao Estado moderno

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Da instabilidade sociopolítica nasceu a aspiração por uma unidade política sob novas bases, inspirada pelas ideias de universalidade e igualdade trazidas pelo cristianismo: uma unidade que possuísse, conforme Dallari (1998, p. 65-66), “um poder eficaz como o de Roma e que, ao mesmo tempo, fosse livre da influência de fatores tradicionais, aceitando o indivíduo como um valor em si mesmo”. Com efeito, a ascensão do cristianismo teria influenciado a superação da noção de primazia dos romanos sobre os demais homens.

Os problemas e aspirações surgidos no medievo fariam germinar as características do Estado moderno e concepções políticas e filosóficas novas, mormente a de soberania do Estado, conceito desenvolvido pelos teoristas, a começar por Jean Bodin no século XVI. Qualificada como soberania popular, esta viria a constituir uma das ideias mais influentes da democracia propugnada após o iluminismo (DALLARI, 1998, p. 75-79; 182).

A Inglaterra, nascedouro dos avanços que levariam à democracia moderna, iniciou seu longo processo de desenvolvimento de um governo representativo ainda na Idade Média. Com a invasão normanda de Guilherme, o Conquistador, estabelece-se uma realeza no modelo trazido da Europa continental, com pretensões de poder autocrático, num Estado com características sociais e geográficas peculiares, daí decorrendo uma tensão entre a ambição arrecadatória e centralizadora dos monarcas e a resistência da nobreza e, de resto, da população (BONAVIDES, 2007b, p. 238-240).

Os conflitos não resultaram no triunfo da centralização monárquica como na França, onde surgiria o modelo típico do absolutismo, alvo maior das críticas iluministas que conformariam a moderna concepção de democracia. Ao revés, da disputa entre o rei João Sem Terra e os nobres deriva a Magna Carta, a normatizar prerrogativas do rei e alguns direitos em face do Estado (e.g. a garantia contida no 39º parágrafo, contra a prisão ou expropriação sem prévio julgamento pelos pares ou disposição de lei), bem como garantia de participação na formação da vontade estatal, mormente em matéria tributária, ainda que restrita aos barões e prelados (AZAMBUJA, 2008, p. 181-182). Assim, evolveu a monarquia inglesa já com instituições que prenunciavam o regime representativo, o qual se tornaria marca das democracias contemporâneas.

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aduz que a Constituição de Rhode Island, colônia de fiéis perseguidos na Inglaterra, já em 1663 proclamara o princípio da liberdade religiosa.

Na Inglaterra do século XVII, décadas de insurreição do povo culminaram na Revolução Gloriosa de 1688, fundando-se nova dinastia com a entronização de Guilherme de Orange. Nesse contexto, o Bill of rights de 1689 –“verdadeiro documento constitucional que afiança as liberdades públicas, as liberdades de opinião, de ação política e consciência”, no dizer de Bonavides (2007b, p. 241) – positivou os poderes do Parlamento frente ao rei.

Tais revoluções, ainda segundo Bonavides (2007b, p. 241), foram “o mais glorioso marco na história do pensamento político”, propiciando, após o século XVII, a gradual evolução rumo ao governo representativo, bafejada, na Inglaterra, pela sequência de “reis impossíveis” que, sem interesse, habilidade ou força para impor o fortalecimento de sua autoridade, permitiram ao país seguir construindo suas instituições representativas, caminhando para a contemporânea afirmação da soberania da vontade popular no Estado e, com isso, a consolidação da democracia.

2.1.3 Primórdios da democracia moderna

No século XVII, a Inglaterra produz o primeiro teorista antiabsolutista de grande influência, John Locke. De importância decisiva para as Revoluções Americana e Francesa do século XVIII, a doutrina contratualista de Locke iniciou a crítica do poder excessivo do Estado, causador – e não limitador, como aduzia Thomas Hobbes – de insegurança e opressão, assim como formulou a teoria da separação de poderes.

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A demonstrar seu papel pioneiro na concepção que viria a caracterizar a “democracia dos modernos”, Locke (1963, p. 81 apud DALLARI, 1998, p. 148) aduziu:

Tendo a maioria, quando de início os homens se reúnem em sociedade, todo o poder da comunidade naturalmente em si, pode empregá-lo para fazer leis destinadas à comunidade de tempos em tempos, as quais se executam por meio de funcionários que ele próprio nomeia: nesse caso, a forma de governo é uma perfeita democracia.

Com a decadência do absolutismo na França e, de resto, na Europa continental, na qual a burguesia já ascendera a ponto de reclamar participação mais estável e ativa no processo decisório do Estado, o barão de Montesquieu, largamente inspirado em Locke, definiu alguns dos parâmetros que informariam a moderna compreensão da liberdade e da democracia.

Em O Espírito das Leis, o célebre filósofo francês partiu da arguta observação da realidade dos Estados, sobretudo das instituições da Inglaterra há pouco saída de um século de revoluções, para desenvolver uma teoria das formas de governo e propor instrumentos de garantia da liberdade e equilíbrio dos poderes, tendentes a evitar a corrupção dos Estados em tiranias irracionais (BONAVIDES, 2007b, p. 245-250).

Montesquieu rompe com a tradicional lição de Aristóteles e identifica como forma de governo: o monárquico, em que só um homem governa sob o império de leis estáveis e com poderes intermediários subordinados e dependentes; o despótico, no qual o poder se concentra em um só homem, que o exerce conforme seus caprichos num governo movido pelo temor e desprovido de leis fundamentais; e o republicano, subdividido em democracia e aristocracia, conforme seja o poder soberano conferido ao povo em geral ou a apenas parte dele, respectivamente.

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povo-legislador, o povo-administrador, o povo-juiz, eis a democracia corrompida, segundo o autor do Espírito das Leis”.

O francês desenvolveu já um conceito moderno de liberdade política, distinto daquele dos antigos democratas gregos. A liberdade de que fala tem como base o indivíduo, autônomo e prevalecente em relação ao Estado (BONAVIDES, 2007b, p. 267-268). Aduz que, longe de ser um fazer o que se quer, consiste em “poder fazer o que se deve querer e em não ser forçado a fazer o que não se tem o direito de querer”, relacionando-a, assim, ao respeito às leis (MONTESQUIEU, 2000, p. 165-166).

Em relação à Constituição, a liberdade política foi vinculada à imprescindível separação entre os poderes e, quanto ao cidadão, consistiria na percepção de segurança de que desfruta o cidadão na ordem jurídica, devendo as leis favorecê-la (MONTESQUIEU, 2000, p. 197-198). O francês tornou a separação de poderes, desde já, um axioma de todo regime de liberdade, ideia que ganharia especial vigor dentre os liberais do século XIX (BONAVIDES, 2007b, p. 317). Por outro lado, a democracia não seria por natureza um Estado livre, vez que a liberdade política só está presente nos governos moderados, em que pese a aparência de maior liberdade que há nela:

[...] e como numa república não se têm diante dos olhos, e de maneira tão presente, os instrumentos dos males dos quais se queixa, e como até as leis parecem falar mais e os executores da lei falar menos, ela é normalmente situada nas repúblicas e excluída das monarquias. Enfim, como nas democracias o povo parece mais ou menos fazer o que quer, situou-se a liberdade nestes tipos de governo e confundiu-se o poder do povo com a liberdade do povo. (MONTESQUIEU, 2000, p. 165-166)

Montesquieu sustentou a necessidade de representação popular no regime democrático. Ao mesmo tempo em que reconheceu no povo inegável capacidade de informar-se, decidir pelo mérito e exigir prestação de contas da gestão de outrem, considerou-o impulsionado pelas paixões e incapaz de gerir por si os negócios ou reconhecer os momentos e oportunidades adequados (MONTESQUIEU, 2000, p. 19-23). Sendo o povo inábil para governar-se bem diretamente, primou pelo princípio representativo e estabeleceu os princípios da democracia representativa ao tratar dos poderes executivo, legislativo e judiciário separados e harmônicos entre si, num sistema de freios e contrapesos (BONAVIDES, 2007b, p. 258; 269-271).

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ressaltar que os maiores pensadores políticos, até a Revolução Francesa, preferiram a monarquia à democracia, salvo Spinoza, e nisso não foi diferente Montesquieu, para quem a monarquia era mais adequada para os Estados a ele contemporâneos (BOBBIO, 2007, p. 143). O legado de Jean-Jacques Rousseau é, ainda hoje, controverso, havendo quem o considere defensor da democracia direta – a exemplo de Bobbio (2000, p. 33) –, bem como quem compreenda sua doutrina como base para democracias totalitárias. Segundo Pierre Burgelin (1996, p. XXI), em prefácio a O Contrato Social, e Bobbio (2000, p. 9), a polêmica parece ignorar que, para Rousseau, a “vontade geral” que se impõe soberana não é atribuída nem ao povo concretamente formado por indivíduos dotados de interesses e aspirações pessoais, nem ao corpo político por si só, como se adquirisse um poder ilimitado. Aquela vontade seria resultado da razão direcionada para o bem comum.

Como ressalta Comparato (2006, p. 73), o fator que torna a vontade geral é “menos o número de votos que o interesse comum a uni-los”. Nesse sentido, parece-nos que, inobstante as distorções que se fizeram posteriormente, Rousseau propugnou um governo inspirado pela razão encontrada na síntese dos interesses dos indivíduos, longe de submeter a atividade do Estado aos desejos contingentes das pessoas – mesmo que fosse a maioria – num protótipo de tirania popular ou da maioria.

Para Rousseau (1996, p. 19-20), o ato que constituiu o povo seria o verdadeiro fundamento da sociedade, tendo lugar antes da eleição de qualquer rei. Tal ato deveria consistir numa convenção primordial que, ao menos nessa ocasião, fosse unânime, pois só tal deliberação poderia estabelecer que a minoria se submetesse à decisão da maioria. Naturalmente livres, os homens, em face de obstáculos que teriam inviabilizado a possibilidade de conservar seu estado, ter-se-iam associado por um contrato social efetuado como solução para o desafio enunciado nestes célebres termos: “encontrar uma forma de associação que defenda e proteja com toda a força comum a pessoa e os bens de cada associado, e pela qual cada um, unindo-se a todos, só obedeça, contudo, a si mesmo e permaneça tão livre quanto antes” (ROUSSEAU, 1996, p. 21).

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Nessa concepção, os particulares se comprometem íntima e reciprocamente com o público numa relação dupla: “como membro do soberano em face dos particulares e como membro do Estado em face do soberano” (ROUSSEAU, 1996, p. 23). Os cidadãos, simultaneamente, submetem-se ao Estado e são parte dele. Destarte, lesar um membro do “corpo” acarretaria lesão ao próprio “corpo”, e vice-versa. Não teria o soberano a faculdade de ofender qualquer particular, já que existe tão-somente pela associação daqueles que o compõem (ROUSSEAU, 1996, p. 24).

Rousseau (1996, p. 24-25) asseverou que a vontade do particular pode ser distinta da sua vontade como cidadão, isto é, da vontade geral que presidiu aos termos do pacto social, para cuja preservação o homem deveria, então, ser “obrigado a ser livre”. Contudo, o contrato fundamental não só eliminaria a igualdade natural dos homens, pelo contrário, substituiria essa por uma igualdade fundada no direito, que assegura aos homens igual estatuto a despeito das desigualdades a que a natureza lhes poderia levar (ROUSSEAU, 1996, p. 30).

O exercício da vontade geral – a soberania inalienável e indivisível do povo – não se confundiria com a formação duma vontade de todos. Ao revés, normalmente haveria grande diferença entre ambas: a vontade geral surge como síntese dos interesses particulares expressos em livre deliberação; a vontade de todos, porém, não passa da soma dos interesses privados.

Nesse contexto, facções e “sociedades parciais” limitariam a possibilidade de alcançar a vontade geral, por formarem em seu interior vontades gerais próprias e reduzirem as vontades ao número desses grupos, não ao de homens. O genebrino advertia que a verdadeira expressão da vontade geral adviria dos cidadãos deliberando apenas conforme suas opiniões próprias. Indispensável, ainda, que a vontade geral não tivesse objetos particulares, sob pena de degenerar-se, pois aquela só viabiliza atos que impõem ou beneficiam genérica e igualmente a todos (ROUSSEAU, 1996, p. 33-43). Seria necessário extrair todas as pequenas distinções dos interesses privados para depurar uma vontade racional, aplicável em geral a todas as razões. Logo, a vontade geral não se cuidaria de mera contagem dos votos. Daí ressaltar Pierre Burgelin (1996, p. XVI):

Por exemplo, a designação por unanimidade de um chefe não é uma lei: o objeto disso é particular e a razão, saindo dos princípios para participar na preferência do melhor, pode errar. Desse modo, o voto e a decisão da maioria são somente meios cômodos de presumir a vontade geral. Se a manobra, a propaganda insinuante, as paixões intrometem-se, já não lidamos senão com a vontade do número. A lei apenas pode dizer que nos casos duvidosos é mais racional que a minoria ceda diante da maioria.

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Apesar de consolidar noções básicas para a democracia contemporânea, Rousseau duvidava que houvesse existido ou viesse a existir uma democracia verdadeira, reputando-a propensa à instabilidade e à guerra civil. Concluía que a viabilidade de tal forma de governo dependeria de condições excepcionais, dentre as quais cidadãos com absoluta dedicação às atividades democráticas e capazes de reunir-se para deliberar direta e facilmente (ROUSSEAU, 1996, p. 82-84). Ademais, o filósofo opôs-se fortemente à ideia de governo representativo, vendo-o como herança do feudalismo e considerando ilusória a “liberdade” dos ingleses através dos membros de seu Parlamento. Inclinou-se para a participação direta dos cidadãos, distinguindo-se nitidamente, nesse ponto, de Montesquieu:

A soberania não pode ser representada pela mesma razão que não pode ser alienada; consiste essencialmente na vontade geral, e a vontade não se representa: ou é a mesma, ou é outra – não existe meio-termo. Os deputados do povo não são, pois, nem podem ser os seus representantes; são simples comissários, e nada podem concluir definitivamente. Toda lei que o povo não tenha ratificado diretamente é nula, não é uma lei. (ROUSSEAU, 1996, p. 114)

2.1.4 Das revoluções liberais às socialistas

Em fins do século XVIII, os Estados Unidos e a França irradiaram a influência da nova concepção de democracia (não necessariamente denominando o regime como tal), porém em modelos significativamente distintos: consoante Sartori (1993, p. 132-133), os Estados Unidos desenvolveu sua democracia por um processo histórico interno e contínuo, advindo da Inglaterra, e ocorreu sobre bases empíricas; ao passo que a França erigiu seu regime democrático a partir de ideais abstratos que convinham à nova situação sociopolítica e representavam uma ruptura em relação ao sistema antecedente.

Nos Estados Unidos, os founding fathers tiveram forte influência de Locke (COMPARATO, 2006, p. 69). Na pena de Alexander Hamilton e James Madison em O Federalista, foi explícita a oposição à “democracia”, que associavam à democracia direta – para eles intrinsecamente turbulenta e desconhecedora das garantias dos indivíduos –, em contraste com a “república”, concebida como o governo representativo voltado para o interesse comum (SARTORI, 1993, p. 147).

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populoso. A ideia de que os Estados não podiam prescindir de um governo representativo (e não direto), se quisessem democratizar-se estavelmente, tornou-se marcante na moderna concepção do Estado democrático (BOBBIO, 2007, p. 150-151). Ademais, os Estados Unidos lograram desenvolver sua democracia em torno da soberania do povo – e não do expediente unificador da nação – e da regra da maioria, tida por Thomas Jefferson (1964, p. 79 apud DALLARI, 1998, p. 149) como lei fundamental de toda sociedade com igualdade de direitos entre os indivíduos.

Por sua maior influência, a França revolucionária, após 1789, propagaria os ideais liberais para o resto da Europa e pelo Novo Mundo. Já a partir da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, positivou-se a liberdade e igualdade de direitos entre os homens, porém admitindo a desigualdade social na medida da “utilidade comum”. Segundo Bonavides (2001, p. 148-149), a duradoura influência da Revolução Francesa se deve ainda à universalização que efetuaram dos ideais de igualdade e liberdade, ampliando-os para toda a humanidade.

Por outro lado, começou-se a transmutar a soberania popular em soberania da Nação, distinta, abstrata e superior em relação ao “povo”, cujo alargamento conceitual poderia incluir as massas a par da burguesia. Isso tornou imprescindíveis os representantes da soberana, mas impessoal, Nação. Assim, ficava clara a distinção em relação ao governo do povo afirmado na Constituição estadunidense de 1787 (COMPARATO, 2006, p. 76).

A luta pelo sufrágio universal, afirmação de uma soberania popular que os franceses reconfiguraram como soberania nacional, ali se iniciou e se prolongou por todo o século XIX como um dos pilares da democratização dos Estados. Não obstante, aquele termo seria longamente usado a fim de extinguir os privilégios de classe na participação política, sem pretensões de estender o direito de voto a todos, pois, como ressalta Darcy Azambuja, os legisladores revolucionários contradisseram-se ao consagrar a igualdade dos homens, mas advogarem um governo formado por uma elite mais “sensata” que o populacho, formulando critérios econômicos, intelectuais e de gênero para conferir o direito à participação política (DALLARI, 1998, p. 183-184).

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impulsionou a moderna ideia de cidadania já com algumas das contradições que marcariam, na era contemporânea, a compreensão do ser cidadão e suas relações com a democracia.

O contratualismo desenvolvido a partir de meados do século XVII fundamentalmente viabilizou o liberalismo do século XIX ao conceber o Estado como posterior aos indivíduos e criação destes (BOBBIO, 2000, p. 16). O movimento liberal viria a opor-se à “liberdade antiga”, associada a uma participação ativa e geral na formação da vontade estatal, e privilegiou a defesa das liberdades individuais sobre as públicas. Seu papel na progressiva democratização é controverso, pois, como assinala Bobbio (2000, p. 7-8), o Estado liberal clássico veio mesmo a decair após a democratização do Estado impelida pela conquista do sufrágio universal. Os liberais, em sua maioria, desconfiavam bastante dos governos populares (BOBBIO, 2000, p. 36).

Daí o liberal Benjamin Constant ter formulado a famosa separação entre a “liberdade dos antigos” e a “liberdade dos modernos”, reputando-as inconciliáveis: a participação direta de todos resultaria em posterior sujeição total do indivíduo à vontade coletiva, destituído de sua liberdade privada (BOBBIO, 2000, p. 8). Essa concepção liberal efetivamente contrastava o liberalismo à democracia, pelo menos em sua concepção antiga ou naquela rousseauniana, em cujo governo os homens alienariam seus poderes até onde o soberano considerasse relevante à comunidade, submetendo-se a uma vontade geral limitada tão-só nas restrições inúteis para o bem comum, algo que aquela mesma vontade soberana determinaria (BOBBIO, 2000, p. 10).

Sem embargo, Kelsen (2000, p. 139) considerou que o século XIX foi marcado pela luta em prol da democracia, atribuindo à burguesia emergente o papel de protagonista. Ademais, Bobbio (2000) aduziu que a democracia moderna não é incompatível com o liberalismo, podendo mesmo ser tida como sucessão natural dele. De fato, o constitucionalismo e o liberalismo consolidaram a noção de Estado juridicamente limitado (não necessariamente democrático). Dentre sistemas diversos, Canotilho (1999, p. 89-93) ressalta o Rule of Law inglês, do qual derivou o governo constitucional e under the law dos Estados Unidos; o État légal da França; e o Rechtsstaat (Estado de Direito) dos constitucionalistas alemães. Todos esses manifestavam um Estado com poderes limitados pelo direito e, no liberalismo clássico, pautado pela distanciação entre o indivíduo e o governo em nome da liberdade negativa.

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do poder do povo para direcionar a ordem jurídico-política consoante sua vontade. Entretanto, faltava a esse Estado liberal, que lograra legitimar a produção do direito, uma legitimação do poder político em si, atingível somente pela democratização do Estado de direito com a efetivação do princípio da soberania popular.

A liberal-democracia foi de notório caráter individualista e buscou afastar os corpos intermediários entre o Estado e os indivíduos, como ressaltaram Barthélemy e Duez (1933, p. 60 apud AZAMBUJA, 2008, p. 246). A existência de elementos de intermediação entre os cidadãos e o Estado foi rejeitada desde os primórdios, seja com Rousseau, defensor da participação imediata dos cidadãos nas deliberações em busca da vontade geral; seja com Emmanuel-Joseph Sieyès, o influente pensador e político da Revolução Francesa, cujo O que é o Terceiro Estado? intentou consolidar, através da abstração da Nação, a representação política, a unidade nacional (abandonada a divisão estamental da sociedade) e a primazia do interesse nacional, visto como permanente, sobre o interesse fugaz do povo (ACQUAVIVA, 1987, p. 144-146).

Na perturbação política e social de meados do século XIX, emerge o socialismo científico, tendo Karl Marx por principal expoente. Conforme Bonavides (2007b, p. 301-305), o marxismo veio desvalorizar a democracia – tal como então concebida – ao reputá-la parte integrante, como de resto a filosofia, da superestrutura que sustenta a sociedade de classes. A partir de concepção pejorativa da ideologia, os marxistas consideraram-na elemento ideológico a serviço dos interesses da burguesia dominante, cujos pensadores liberais haviam propugnado o regime nas gerações antecedentes. Todavia, contraditoriamente, assinala Bonavides (2007b), os socialistas chegaram a mencionar uma “democracia popular” ou “socialista”.

Conforme Kelsen (2000, p. 146-147), os socialistas operaram a ênfase da “democracia” como “governo para o povo”, desprezando os procedimentos e instituições representativos. Essa espécie de governo seria tanto mais democracia quanto mais concretizasse os interesses da grande maioria da população. Assim, confundiu-se a democracia com o governo capaz de atender ao interesse da maioria, o que, em tese, governos sem participação popular também podem realizar.

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de procedimentos e instituições de representação popular. Nessa esteira, o austríaco cita a declaração de Lênin (1935-1938 apud KELSEN, 2000, p. 147):

A democracia socialista não se coloca, de modo algum, em contradição com o governo individual ou a ditadura e a vontade de uma classe pode às vezes ser concretizada por um ditador, que em determinados momentos pode fazer mais sozinho e que frequentemente se faz mais necessário.

2.1.5 Democracia na contemporaneidade

Consoante Bobbio (1986, p. 18-20), o Estado liberal é tanto pressuposto histórico como jurídico do Estado democrático, ligando-se à democracia reciprocamente: para esta ser efetiva, são necessárias certas liberdades afirmadas pelo liberalismo; e, para garantir a existência daquelas liberdades centrais no ideário liberal, é mister um governo democrático. Entretanto, se Bobbio (1986, p. 21), de um lado, credita à interdependência entre o Estado liberal e o democrático o fato de que, se caem, caem juntos, os críticos da liberal-democracia, de outro, consideram errada a frequente menção a uma crise da democracia que, para eles, não passa de declínio do modelo liberal de democracia (ACQUAVIVA, 1987, p. 155; BONAVIDES, 2010, p. 233).

Como ressalta Azambuja (2008, p. 246), a democracia de moldes liberais sofreu, desde sua ascensão, a oposição e, consequentemente, a influência transformadora de outras correntes doutrinárias e passou por mudanças significativas especialmente após a Primeira Guerra Mundial, impulsionadas pela reconfiguração de valores, pela instabilidade das ideias e da prática nos campos político e intelectual e por fatos históricos que indicaram a necessidade de nova concepção do regime democrático.

Pode-se afirmar que, apesar de ter enfrentado no século XX decisivos desafios, a democracia tem passado por um processo de alargamento: expansão dos direitos que são considerados inerentes a ela, do âmbito de participação ativa dos cidadãos e da própria esfera da sociedade em que se considera que a democracia deve atuar.

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positivação e efetivação destes se fazia necessária pela crescente percepção das classes trabalhadoras da insuficiência – ou, para muitos socialistas, do caráter fraudulento (LÊNIN, 1987, p. 268) – das liberdades asseguradas às pessoas em sua exclusiva dimensão individual, sem qualquer proteção à sua vulnerável situação no campo socioeconômico (CANOTILHO, 1999, p. 361-362).

Destarte, segundo Bonavides (2001, p. 143-147), o Estado Social veio a firmar-se como esperança das sociedades em face de um Estado liberal clássico em decadência e da ascensão de teorias socialistas favoráveis à ditadura do proletariado. O Estado Social teria emergido a fim de preservar os ideais liberais voltados à personalidade num contexto de crise e contestação, desfazendo a antiga concepção do individualismo e adotando um intervencionismo outrora desconhecido, porém distinto do dos Estados marxistas em razão de sua natureza consensual, “de baixo para cima”.

Progressivamente, o “Estado Social do Estado” inicial, de cunho dirigista e pautado por normas programáticas, teria evolvido para um “Estado Social da Sociedade”, em que ganha proeminência a sociedade, e os direitos fundamentais são dotados de normatividade (BONAVIDES, 2001, p. 151-152). Nessa esteira, aduz Canotilho (1999, p. 323), que “a

realização da democracia económica, social e cultural é uma consequência política e lógico-material do princípio democrático” (grifo nosso).

Como já citado, para Canotilho (1999, p. 95-96), o Estado de Direito liberal, alcançando a legitimação do direito, permaneceu impotente para legitimar o poder estatal, dilema que contribuiu para o desenvolvimento do Estado Democrático de Direito expressamente vitorioso na ordem constitucional de diversos países, incluindo o Brasil (art. 1º, caput, da Constituição Federal de 1988) e Portugal (art. 2º da Constituição de 1976). Nesse modelo, conciliam-se o governo “sob e através das leis”, de herança liberal, e o governo da participação ativa e permanente do povo soberano.

Sucedâneo do Estado Liberal, o Estado Social de Direito prometia justiça social, mas não assegurava seu caráter democrático. De fato, emergiram formas de Estado Social em países autocráticos, tanto no modelo socialista (BONAVIDES, 2001, p. 145) como no fascista ou nazista. Em virtude disso, na Alemanha e na Espanha, procurou-se enfatizar o regime adotado, explicitando na Lei Fundamental a denominação de Estado Social e Democrático de Direito (SILVA, J. A, 2000, p. 119-120).

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“colação” dos elementos do Estado de Direito clássico, liberal, com o Estado democrático, na verdade congregando ambos para constituir um conceito novo de democracia, que José Afonso da Silva (2000, p. 123) descreveu brilhantemente em referência à Constituição Federal brasileira:

A democracia que o Estado Democrático de Direito realiza há de ser um processo de convivência social numa sociedade livre, justa e solidária (art. 3º, I), em que o poder emana do povo, e deve ser exercido em proveito do povo, diretamente ou por representantes eleitos (art. 1º, parágrafo único); participativa, porque envolve a participação crescente do povo no processo decisório e na formação dos atos de governo; pluralista, porque respeita a pluralidade de idéias, culturas e etnias e pressupõe assim o diálogo entre opiniões e pensamentos divergentes e a possibilidade de convivência de formas de organização e interesses diferentes da sociedade; há de ser um processo de liberação da pessoa humana das formas de opressão que não depende apenas do reconhecimento formal de certos direitos individuais, políticos e sociais, mas especialmente da vigência de condições econômicas suscetíveis de favorecer o seu pleno exercício.

Em geral reconhecida a inviabilidade da democracia direta dos antigos gregos nos Estados modernos, por suas dimensões territoriais e humanas (ACQUAVIVA, 1987, p. 155; CANOTILHO, 1999, p. 288), são numerosos os doutrinadores e os ordenamentos constitucionais hodiernos que conformam uma democracia que supera a oposição entre o sistema representativo e o governo democrático com participação direta dos cidadãos. Assim, a essência do princípio democrático passa a estar tanto na preservação das instituições e princípios concernentes à representação popular quanto na otimização dos mecanismos de participação política, que tendem à democratização da democracia. Logo, cuida-se de democracia simultaneamente representativa e participativa (CANOTILHO, 1999, p. 282-283, 293).

Para Friedrich Müller (2003, p. 132) – crítico da democracia burguesa, a seu ver reducionista no tocante à autodeterminação do povo –, os variados instrumentos formais e informais da democracia participativa, em espaços geográficos relativamente pequenos, serviriam para realizar o máximo possível a experiência da democracia direta, que não reputa uma utopia, mas sim uma meta factível para a construção da democracia legítima. Não obstante, Müller (2003, p. 127) concorda que a atividade democrática depende de direitos humanos eficazes, prestação de políticas de redução das desigualdades e, o que é relevante, a preservação de procedimentos do Estado de Direito, vias de manifestação das atividades e da resistência democráticas.

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evolução da democracia supracitado, as ordens constitucionais, já desde a Constituição de Weimar (1919), vêm absorvendo uma nova concepção da representação democrática, marcada por maior imperatividade dos cidadãos e partidos sobre a atuação dos representantes. Isso se reflete na expansão dos instrumentos de participação popular direta em meio ao sistema representativo tradicional.

Em conjunto com esse compromisso entre democracia representativa e direta – e não substituição de uma pela outra, como alguns autores aduzem –, Bobbio (2007, p. 155-157) assevera que tão ou mais importante no presente alargamento da democracia tem sido o fenômeno pelo qual a democratização desborda das instituições estritamente políticas (democracia política) para abranger também as demais esferas de atuação da sociedade, cujo caráter democrático passa a ser visto, igualmente, como condição para se aferir a existência ou não de uma ordem democrática.

A democracia, assim, adentra o âmbito social (democracia social), não se relacionando com o indivíduo-cidadão apenas, mas com o indivíduo inserido em seus múltiplos papéis e identidades. Consoante o filósofo italiano, os cidadãos das democracias avançadas perceberam que a participação política em bases democráticas, sozinha, não era suficiente, porque todo o espectro político está inserido no espaço mais amplo da sociedade civil, de modo que, se suas várias instituições e grupos não são dirigidos democraticamente, resta ameaçado o próprio caráter democrático do Estado.

Segundo Sartori (1993, p. 5-6), a concepção de democracia social remonta ao

Democracia na América de Alexis de Tocqueville e demais interpretações do “espírito” da república nos Estados Unidos. Esta seria uma democracia instaurada num ambiente em que os indivíduos se relacionam como iguais não só no âmbito estatal, mas social. Portanto, consistiria numa democracia como modo de coexistência da sociedade, em que comunidades e associações influentes na sociedade civil reforçam a “macrodemocracia”, ou seja, o ente político estatal.

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sendo integrados como corpos de congregação de pessoas com interesses comuns (BOBBIO, 2007, p. 153-154).

Uma das transformações contemporâneas da democracia, também relacionada ao declínio do individualismo liberal, foi o gradual reconhecimento de que os indivíduos pertencem a grupos sociais e, mais, de que esses núcleos devem ser juridicamente estimulados e protegidos, garantindo-lhes, inclusive, e até certo ponto, participação nos processos decisórios da democracia (AZAMBUJA, 2008, p. 248).

Nas atuais democracias, Canotilho (1999, p. 71-72) argumenta que o povo deve ser entendido como “grandeza pluralística”, consoante o pensamento de Peter Häberle, a significar o amplo complexo de “forças culturais, sociais e políticas” que participam das deliberações e influenciam a formação da ordem constitucional. Assim, o “povo” não é mais limitado por critérios de etnia ou raça, nem é mero conjunto de indivíduos, identificados como “eleitores”, “cidadãos ativos” ou “proletários”.

Ademais, Canotilho ressalta que o povo político não constitui nem o “povo ativo”, visto como minorias pretensamente representantes do povo, nem o “povo maioritário”, no sentido de maioria que estabelece as decisões que valem como a do povo, uma vez que as minorias subsistem como “povo”. Para o autor, o povo não pode ser identificado meramente em sentido normativo, ou seja, como os titulares do direito de sufrágio, pois inclui outros indivíduos que não os eleitores.

Contudo, Bonavides (2010, p. 80-81) insiste em que, como formação histórica recente e decorrente da vitória da ideologia burguesa, o conceito de povo passou da concepção política, que o definia como o corpo eleitoral, para uma caracterização jurídica a seu ver insuscetível de controvérsias e variações. Assim, define o povo como o conjunto das pessoas com vínculo de cidadania para com o Estado, sendo essa relação o traço primordial do conceito de povo.

Referências

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