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Processos, discursos e lógicas aquisitivas na arte contemporânea mundial: Des Artistes Chinois à la Fondation Louis Vuitton, uma leitura sociológica 1

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Processos, discursos e lógicas aquisitivas na arte contemporânea mundial: Des Artistes Chinois à la Fondation Louis Vuitton, uma

leitura sociológica

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Henrique Grimaldi Figueredo (IFCH/UNICAMP)

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What makes a work of art a work of art and not a mundane thing or a simple utensil? What makes an artist an artist, as opposed to a craftsman or a Sunday painter? - Bourdieu, The Rules of Art

1. Notas introdutórias

O campo artístico pode ser descrito como um campo de forças no qual a distribuição e intensidade das forças são análogas à produção de uma certa autoridade. As posições hierarquicamente distribuídas encarnam um espaço estruturalizado de relações objetivas através das quais agentes, instituições e grupos específicos disputam o monopólio discursivo de definição dos conceitos artísticos, operacionalizando os modos de legitimação e apreciação da arte. As definições que organizam de modo prático um universo dos possíveis na arte são, portanto, um conjunto de lutas classificatórias sobre arbitrários culturais, cuja eficácia simbólica depende de meios materiais de manifestação

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. Posicionar-se - e manter-se objetivamente localizado - nessa macroestrutura exige o acúmulo e manejo de distintas formas de capitais - variantes em tipos, volumes e trajetórias - assim como certa perícia em encetar, distribuir e assegurar a validade da crença em certas práticas, objetos e agentes, posicionando- os hierarquicamente em detrimento de outros (BOURDIEU, 1977). O gerenciamento dos capitais, crenças, discursos e autoridades estabiliza-se na medida em que se apreende e se domina o conjunto de regras desse jogo (BOURDIEU, 1996), agenciando um funcionamento específico que seria, a um só tempo, causa e consequência do próprio jogo e de uma dada autonomia do campo. Assim, se “a sistemacidade e a unidade só estão no opus operatum porque

1 Texto apresentado no 44º Encontro Anual da ANPOCS no GT 28 - Narrativas, disputas e representatividade no sistema das artes: abordagens multidisciplinares, sob coordenação de Eduardo Dimitrov (UnB) e Ana Letícia Fialho (UNIFESP).

2 Doutorando em Sociologia pelo Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Estadual de Campinas (IFCH/UNICAMP). Bolsista da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp) e editor executivo do periódico Todas as Artes - Revista Luso-Brasileira de Artes e Cultura, sediado no Instituto de Sociologia da Universidade do Porto, Portugal. ORCID: 0000-0002-6324-4876. E-mail:

henriquegrimaldifigueredo@outlook.com.

3 A crença, na perspectiva de Bourdieu, apenas exerce sua eficácia simbólica quando manifestada no mundo prático. Essa noção deve muito aos estudos do antropólogo Marcel Mauss sobre a mágica e seu funcionamento grupal, assim como ao trabalho do sociólogo Roger Bastide - um dos precursores da sociologia da arte - que em sua pesquisa acerca das religiões de matriz africana argumentava ser imprescindível os meios físicos para a manifestação do divino. A manutenção da crença nos orixás era garantida pela manifestação dos mesmos no mundo físico através dos “cavalos” que os incorporavam nas cerimônias (BASTIDE, 1997).

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2 elas estão no modus operandi” (BOURDIEU & SAINT-MARTIN, 1976, p. 19) - isto é, a manutenção do rigor dessa estrutura mantêm-se nos modos próprios de interiorização da exterioridade e exteriorização da interioridade, cujas formas legítimas são produzidas e reproduzidas pelos árbitros da própria legitimidade (dos gostos, consumos, estéticas, etc) - há uma certa homologia entre os campos da arte e os campos de poder. Em suma, os procedimentos artificialmente engendrados de produção e classificação da arte - formadores de fórmulas generativas - dependem de uma cadeia simbólica que inscreve o próprio campo em uma lógica outra, a de uma economia dos bens simbólicos tida como autonomizada (BOURDIEU, 1971).

Nossa hipótese nesta reflexão é a de que a montagem deste quadro prático-simbólico passou por alterações substanciais nas últimas décadas configurando, em alternativa, a diminuição de uma autonomia do campo - com regras bastante aproximadas e dependentes do universo econômico quando tratamos dos mercados da arte, p.ex. - ou ainda na geração de subcampos - funcionamento específico do campo da arte contemporânea no interior no campo da arte - que carecem de urgente avaliação e diagnóstico. Partimos, portanto, do pressuposto que uma história social da arte recente, sobretudo após os anos 1980, é indissociável de um debate síncrono sobre a globalização dos mercados e de uma acelerada financeirização da cultura; e simultânea também a uma argumentação que versa sobre o crescimento do colecionismo (em especial o corporativo) e o papel das instituições privadas - cada vez mais numerosas (FIGUEREDO, 2019) - na grafia daquilo que se compreende como arte contemporânea de qualidade internacional. Assim, primeiramente abordaremos a diferenciação entre globalização e mundialização sob a ótica da conservação de certas assimetrias estruturais, para avançar em um segundo momento à emergência (e suas respectivas consequências) da consolidação da figura dos megacolecionadores de arte contemporânea. Agentes centrais dessa análise, os megacolecionadores serão abordados via suas coleções e fundações privadas, e ademais, como estas participam de eventos promotores e formadores de uma história da arte.

Para tanto estudaremos a exposição Des Artistes Chinois à la Fondation Louis Vuitton, em cartaz de 27/01 a 29/08/2016, na sede da Fondation Louis Vuitton em Paris.

2. A assimetria é a norma: globalização e mundialização

Temática incontornável nos debates sociológicos da cultura, as singularidades entre

globalização e mundialização firmam-se, de fato, como um chave de leitura profícua das

assimetrias simbólicas e materiais presentes no universo das artes. Certamente essa distinção -

como trabalhada pelo sociólogo Renato Ortiz (1998) - versa sobre as variações constitutivas de

todo universo cultural, mas podem aqui ser aplicadas como lente teórica na compreensão das

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3 hierarquias mantidas entre lugares, instituições, agentes e mercados próprios a um determinado campo narrativo: as artes visuais, particularmente a partir do final dos anos 1980

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.

Ortiz estabelece tal distinção frente à noção equivocada de que a globalização estaria homogeneizando os processos em escala global. Embora passível de ser assim percebida do ponto de vista econômico, dificilmente tal feito repete-se a nível cultural. A relação entre a distribuição do capital e o poder político da cultura encontra-se, no contexto globalizado, sob um regime complementar mas não simultâneo; isto é, economia e cultura são campos que reagem de formas diferentes à globalização (ORTIZ, 1998). O sociólogo irá clarificar esta dimensão ao propor uma distinção entre globalização e mundialização. A ideia de globalização estaria atrelada a uma homogeneização ou unicidade aplicáveis aos domínios econômicos ou tecnológicos. A cultura, por outro lado, se comportaria de modo distinto: não há, de fato, uma cultura globalizada, esta deve ser compreendida sob uma lógica outra, a da mundialização, uma composição heterogênea em escala espacial transnacional na qual capital e cultura distribuem- se de maneiras assimétricas. Outros dois conceitos desenvolvidos por Ortiz são também necessários para a delimitação desse objeto sociológico: standard e pattern. A definição de standard associa-se aos processos de serialização dos bens culturais, enquanto os pattern correspondem ao conjunto de normatizações estruturalizantes das relações sociais, legitimando e hierarquizando alguns padrões em detrimento de outros. Tais movimentos poderiam ser correspondentes ao que Bourdieu define como produção da crença, na qual a credibilidade em determinados bens ou objetos da cultura é produzida através da “crença coletiva como desconhecimento coletivo, coletivamente produzido e reproduzido” (BOURDIEU, 1996, p.

198); isto é, a obra ou os bens culturais tem sua legitimidade assegurada por padrões estabelecidos através do discurso de agentes e instituições específicas, simbolicamente autorizados e em disputa constante na reafirmação de seus capitais específicos.

Nessa conjuntura, embora exista uma sensível internacionalização na circulação de artistas e de suas obras, permanece todavia o esforço do próprio campo em gerir e estabilidade de seus núcleos duros: os lugares irradiadores da crença e das narrativas, que por seu acúmulo de capitais preservam uma intangível baliza da “arte de qualidade”. As diferenças funcionais entre globalização e mundialização nos permitem, portanto, clarificar e deflagrar a falácia de certos mitos do campo artístico. É possível citarmos rapidamente três pesquisas que nos auxiliam a perceber a distribuição assimétrica dos capitais e autoridades nesse espaço. Primeiro, o sociólogo francês Alain Quemin (2016, p. 14) ao analisar as listas de ranqueamento da

4 Wu (2006) destaca a transição de um modelo público para um modelo privado nas artes simultâneo à globalização dos mercados. Forma-se aí a prática do colecionismo corporativo, acelerada pela mudança no capital.

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4 consagração artística de agências especializadas como Atfacts e KunstKompass, argumenta que

“embora a maioria dos agentes prefiram acreditar que a nacionalidade, o país ou o local de residência não exerçam qualquer influência à trajetória dos artistas para o sucesso”, cinco países

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- todos Ocidentais - ainda representam sozinhos quase 80% dos artistas mais reconhecidos a nível internacional. Constata ainda que há uma evidente desigualdade na distribuição dos valores artísticos e certas tendências nos discursos que as promovem: um esquema gerador de uma desigual diferença na legitimação da arte contemporânea necessário para a manutenção de seus núcleos duros (irradiadores da crença) e para a estabilização de uma verdadeira indústria de produção e reprodução de stars da arte (QUEMIN, 2002, 2013).

Segundo, resultados aproximados - e notadamente assimétricos - emergem quando computada a concentração de colecionadores ‘importantes’, bienais, feiras de arte e galerias em determinados espaços geográficos (VELTHIUS, 2007; VELTHIUS & LIND, 2012; MOREAU, SAGOT-DUVAUROUX & VIDAL, 2016). Focalizando o mercado, Thompson (2008, 2017) e Woodham

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(2017) descrevem, por seu turno, as imensas comunidades artísticas em Londres ou Nova York disputando sua entrada nos liames da arte legitimada: uma massa formada por agentes (artistas) auto deslocados para essas cidades em busca de formação escolar, reconhecimento e estreitamento com galerias, curadores e instituições, orbitando insistentemente ao redor desses polos de confirmação de valor. Logo, não é de todo o espanto quando ao veicularem a listagem dos vinte e cinco artistas contemporâneos com maior recepção mercadológica, entre 2011 e 2015, quatorze sejam europeus ou norte-americanos, e que das cinco galerias de arte consideradas mais importantes por seus projetos globais, quatro tenham suas sedes na Europa e uma nos Estados Unidos

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(WOODHAM, 2017, pp. 37-41).

E terceiro, já em relação às coleções de arte internacionalizadas, a socióloga Maria Lucia Bueno (2020) destaca suas funções como verdadeiros agentes da mundialização. Ao analisar a coleção Patricia Phelps de Cisneros (iniciada nos anos 1970 e formalizada institucionalmente em 1992, com foco em arte latino-americana), a pesquisadora demonstra como suas doações recentes “introduziram 37 artistas originários da América Latina na coleção do museu de Nova York, 21 dos quais pela primeira vez” (Bueno, 2020, p. 72). Assim, se por um lado há, de fato,

5 Na análise de Quemin (2016): EUA, Alemanha, Reino Unido, Suíça e França, respectivamente.

6 Woodham (2017, p. 27), por exemplo, aponta que para cada “artista de marca” presente em Nova York, temos uma média de 5 mil outros tentando sobreviver nesse espaço. Estima-se que em 2015 haviam cerca de 80 mil autodeclarados artistas apenas na cidade de Nova York.

7 As galerias em questão por ordem de importância segundo a classificação divulgada na extensão de seus programas globais (2011-2015): Gagosian Gallery (8 espaços na Europa, 7 espaços nos EUA, e um espaço na Ásia); Pace Gallery (6 espaços nos EUA, 2 na Europa e um na Ásia); Hauser & Wirth (3 na Europa e 3 nos EUA);

Sprüth Magers Gallery (3 na Europa, uma nos EUA e uma na Ásia) e David Zwirner Gallery (2 nos EUA, uma na Europa e uma na Ásia).

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5 uma positiva atuação na circulação e popularização de certos artistas provenientes de outras geografias, em oposição mantém-se uma operacionalização dos meios que acabam por reafirmar as distâncias e a distribuição dos poderes nesse espaço social teoricamente constituído: de origem venezuelana mas radicada nos Estados Unidos há mais de três décadas, Patricia de Cisneros ocupa - estrategicamente - cadeira nas diretorias e conselhos curadores de importantes instituições - diga-se, bem posicionadas no campo da arte - com destaque para o MoMA (Nova York), Museu Reina Sofía e Museu do Prado (Madri), Museu Berggruen (Berlim), Fundação Bienal de São Paulo (São Paulo), Association Centre Pompidou (Paris) e Tate (Londres)

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, nos quais assume um papel de considerável importância decisiva.

Os debates supracitados, mobilizados aqui como uma rápida exemplificação, corroboram para apreensão das dinâmicas do campo sob um regime de disparidade.

Diferentemente do que os mitos globalizadores fazem crer, a mobilidade dos capitais não encontra equivalência direta nas operações de criação, gerenciamento e sobredeterminação cultural. Os poderes de definição - e legitimação - permanecem ainda bastante concentrados e o acúmulo de coleções, galerias, museus e até mesmo certos entraves (em cidades como Paris, Nova York, Londres, Los Angeles, Berlim, e outras) ocupam ainda posições determinantes nas hierarquias desses valores sinalizando, com efeito, a distribuição assimétrica dos discursos sobre a arte no mundo prático: uma incontornável corporificação das dinâmicas e princípios desiguais nos juízos de criação de valor que condicionam, portanto, o campo e suas fronteiras.

Sob essa lente teórico-metodológica, poderíamos deflagrar dois debates cuja insistência descomplexifica um entendimento mais consistente das relações organizadoras desse universo.

Em primeira instância, aquilo que Quemin (2016) nomeia de mito da errância artística:

mobilizados por uma nova lógica de desterritorialização global, os artistas incorporariam um novo processo epistemológico de criação deslocada, isto é, mantendo - por sua ‘nova’ natureza - relações pessoais e profissionais em diferentes cidades e continentes e vivendo também entre dois ou mais países

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. Se requalificarmos esse debate a partir do comportamento assimétrico dos poderes discursivos da arte podemos, na verdade, perceber que parte desse deslocamento deve- se à manutenção de polos de poder em coordenadas específicas, cuja consequência mais imediata é a migração como elemento facilitador de acesso. Assim, o artista não desloca-se

8 A colecionadora Patricia Phelps de Cisneros, aqui elencada como exemplo de nosso argumento, a partir das análises de Bueno (2020), ocupa lugar em diretorias, conselhos curadores e fundos de financiamento de 27 museus/eventos artísticos ao redor do mundo. Fonte: https://www.coleccioncisneros.org/founder

9 Quemin (2016) mostra que dos cem artistas vivos pesquisados, 96 viviam em apenas uma cidade/país, em oposição ao que é geralmente - e mitologicamente - promulgado, isto é, de “artistas globais” que vivem e mantém espaços de trabalho em diferentes cidades e/ou continentes, deslocando-se todo o tempo.

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6 movido por uma héxis corporal - um modo de ser inquieto - mas migra ou esforça-se em manter relações transnacionais frente a ciência de que seu acesso ou a construção dos valores seriam mais habilmente geridos quando tomados estes marcadores simbólicos de êxito. Em segunda instância, esse debate nos permite aditivamente desvelar a concepção de que viveríamos sob novas regras da arte, um conjunto de disposições completamente inauditas. A relação globalização/mundialização acaba, de modo contrário, a retificar uma antinomia: em alternativa às ‘novas regras do jogo’, revelam-se ‘outras regras’, já predispostas no próprio campo mas que assumem agora um peso diferente a partir de um conjunto de transformações socioeconômicas, estéticas, logísticas e comunicacionais

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responsáveis por deslocar e redistribuir os poderes discursivos. Tal rearranjo fica patente, por exemplo, no esgotamento da influência da crítica de arte a partir dos anos 1970 na definição de novas tendências e obras de importância (SCHULTTHEIS et al., 2016), repercutindo na ebulição do papel dos colecionadores

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cuja destreza é consequência de um novo paradigma econômico - capitalismo financeiro global (BOLTANSKI & CHIAPELLO, 1999) - aliado a um vigorosa e bem estruturada entrada no contexto da arte mundial.

Em suma, inúmeras são as mudanças e mais sensíveis ainda as atualizações no funcionamento do campo da arte a partir da redistribuição dos pesos, medidas e discursos encetados e consolidados pelas divergências funcionais entre mundialização da cultura e globalização dos mercados. Influências e superposições entre essas instâncias são sim possíveis, mas não prescritas e/ou condicionadas. Assim, pensamos que um diagnóstico dessas relações - ora deslocadas ora altamente concentradas no campo da arte - exige a retomada daquela inquietante indagação lançada por Bourdieu (1981, p. 207), “mais qui a créé les créateurs?”

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, e uma das repostas plausíveis a este problema complexo parte justamente de uma postura de pesquisa que, para além das definições estabilizadas no campo, mobilizem a atual centralidade dos colecionadores - como árbitros e balizadores - em um mundo que para manter-se busca inerentemente a reafirmação de suas assimetrias constitutivas.

10 Em relação às mídias digitais Moureau (2020) destaca o poder das novas plataformas na promoção do que denomina hype informations, capazes de provocar alterações na precificação e consumo de determinadas tendências estéticas, sobretudo por meio dos colecionadores neófitos ou com pouca destreza em gerenciar as dinâmicas do campo da arte. Estes colecionadores apoiam-se nas tendências dos megacolecionadores como Saatchi ou Arnault, consumindo o que estes geralmente consomem (colecionador como produtor de procedência).

11 Um novo tipo de colecionador: se antes os colecionadores estavam associados às grandes fortunas industriais do século XIX, após a virada administrativa dos anos 1980 serão os CEO das grandes empresas globais, grandes empresários e corporações. Para Wu (2006) essa transformação assume peso epistemológico alterando como se coleciona e o que se coleciona.

12 “Mas quem criou os criadores?” (BOURDIEU, 1981, p. 207) (tradução nossa).

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7 3. Mais qui a créé les créateurs? A emergência dos megacolecionadores e seu papel na arte contemporânea

Qual a operação envolvida na precificação de uma obra de arte? Há um rebatimento automático entre valor artístico e valor econômico? O que faz uma almôndega produzida com a gordura de um ‘artista’ ser comercializada por US$ 4.390

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? O que constatamos de imediato ao refletirmos brevemente sobre essas questões é que a economia envolvida nesses processos é ligeiramente distinta, assim como o é a noção de capital em seus cálculos. Para explicar a transubstanciação e a requalificação de determinadas práticas e objetos no espaço social, Pierre Bourdieu (1971, 1996) define uma economia dos bens simbólicos que subsiste numa tensão constante entre uma economia econômica e uma economia simbólica. O capital envolvido nesses processos afasta-se, portanto, de uma noção marxiana - em seu cálculo da mais-valia - e inscreve-se numa operação de ordem sígnica condicionada a práticas coletivas organizadas por uma crença e interdependentes dela (na percepção de Mauss recuperada por Bourdieu (1977), o poder do mago em definir uma sacralidade depende do grupo mágico que performa um depósito de fé). Logo, se o valor da arte não é intrínseco e depende de um processo de legitimação social (CRANE, 1987; HEINICH, 2001), toda arte existente atravessou um processo prévio de artificação, de transformação de uma prática ou do objeto não-artístico em arte (HEINICH & SHAPIRO, 2012).

A noção de artificação aqui nos é muito cara, uma vez que, o início, aceleramento ou paralisação dos processos de artificação associam-se, portanto, a um ou mais agentes (individual e/ou institucional, que exerce(m) a função de mago) e a seu poder discursivo (controle sobre a crença), que varia em relação à sua posição no campo e a antiguidade/volume (e legitimidade) dos capitais que manipula. A artificação como descrita por Shapiro e Heinich (2007, 2013) está condicionada a uma série de processos - “deslocamento, renomeação, recategorização, mudança institucional e organizacional, patrocínio, consolidação jurídica, redefinição do tempo, individualização do trabalho, disseminação e intelectualização”

(SHAPIRO & HEINICH, 2013, p. 18) - que arregimentam, quando atendidos, o deslocamento das fronteiras da arte - agora mais porosas - (ZOLBERG & CHERBO, 1997). Assim, a questão que podemos colocar tende a tornar-se elucidativa quanto mais focalize grupos específicos na arbitragem desses procedimentos. Quais são os agentes que nesse estrato superior ou mais interno (próximo aos núcleos duros) do campo da arte possuem as ferramentas necessárias para iniciar/concluir esses processos previamente elencados?

13 Uma referência direta ao trabalho do artista chileno-dinamarquês Marco Evaristti, Polpette al grasso di Marco, de 2006, exposto e comercializado em uma galeria do circuito internacional em Aalborg, na Dinamarca.

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8 Alicerçados em debates basilares na sociologia da arte - (MOULIN, 1985, 1992, 2007;

HEINICH, 1998; BOWNESS, 1989) - poderíamos descrever uma perturbação na autonomia do campo a partir de uma componente do mercado, isto é, do papel dos colecionadores que agora dispõem de ferramentas logísticas e capitais - não só econômicos, mas sociais, simbólicos, e até mesmo artísticos - altamente agregados, disputando - e ganhando nas últimas décadas - maior relevância nessas definições (FIGUEREDO, 2019). Há dados que corroboram para esta leitura associando a consolidação do capitalismo financeiro global com o número de agentes dispostos a investirem em arte. Moureau (2020) destaca, por exemplo, que se em 1987 o número de bilionários ao redor do globo era de 139, esse salta para 2.208 a partir de meados da década de 2010, sendo que dentre eles uma parcela considerável dedica-se ao colecionismo como forma de diversificação de sua cartela de investimentos ou por um gosto adquirido

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. Em relação aos milionários essa curva é ainda mais acentuada. Para a autora esse crescimento “têm mudado a distribuição do poder dentro dos órgãos legitimadores em favor dos grandes patronos

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” (Moureau, 2020, p. 89). É o caso do megacolecionador ucraniano Victor Pinchuk que gastou apenas em 2011 e somente na galeria londrina White Cube, cerca de US$ 180 milhões; em comparação, no mesmo período o orçamento de aquisição da Tate Modern em Londres foi de apenas £ 3,9 milhões (ADAM, 2014). Estamos aqui, portanto, tratando de um outro tipo de colecionador cuja emergência e consolidação produz efeitos consideráveis no campo da arte (CABANNES, 2004).

A terminologia megacolecionador não é particularmente nova. Raymonde Moulin (1992, 2007) já havia delineado seus parâmetros frente a observação do crescente poder desses agentes para o campo artístico: o megacolecionador é aquele que exerce um poder de mercado a partir da aquisição de um grande número de obras - entre as quais várias do mesmo artista - a um preço relativamente baixo (quando no mercado primário) estando aptos em acordo com os marchands, a controlarem a oferta. Além disso, possuem ativa participação em conselhos

14 O investimento não é, muitas vezes, a principal razão para se colecionar. Muitas são as variáveis envolvidas, desde a influência da educação familiar, passando pela aquisição de capital escolar e a arte como ferramenta de distinção social. Entretanto, as oportunidades de altos lucros líquidos e abatimentos tributários acaba atraindo alguns colecionadores (MOUREAU, 2020).

15 Nathalie Moureau não utiliza a terminologia megacolecionador, mas define nos seguintes termos - e em concordância com Moulin (2007) - o papel desses agentes:

Grandes colecionadores que possuem estrutura privada – museus ou fundações – competem com museus públicos, pois empregam curadores famosos para cuidar de suas coleções e exposições. A gama disponível aos colecionadores ricos para que se aumente o valor artístico das obras é muito mais ampla que a mera aquisição e/ou exposição das obras em um museu privado: estes podem pedir aos curadores que escrevam catálogos a respeito dos artistas que apoiam. Podem fazer doações para instituições públicas ou fazer empréstimos para exposições em muitas instituições. Alguns colecionadores também organizam prêmios. Por exemplo, na França o prêmio Marcel Duchamp é uma inciativa de um grupo de colecionadores franceses, o ADIAF, cujo objetivo é apoiar artistas que residam em território francês” (MOUREAU, 2020, p. 89).

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9 curadores de importantes museus, aos quais garantem - por meio de doação - a presença de artistas dos quais possuem obras. Podem também negociar a aquisição de um trabalho de interesse de um museu público de importância desde que esse também aceite uma ou mais obras de artistas de sua escolha. Esses agentes de boa saúde financeira e circulação social e artística internacional têm, com efeito, o cuidado de não desvalorizarem os artistas dos quais possuem obras, as quais constituirão - e essa é uma tendência - o fundo de um museu com seu nome.

Atuando simultaneamente como “ator cultural e ator econômico, o megacolecionador desempenha alternativamente todos os papéis, o de marchand (ele compra e, eventualmente, revende), de curador, de mecenas (doações e fundações)” (MOULIN, 2007, pp. 28-29), e ao intervirem enquanto prescritores, os megacolecionadores formam e informam a demanda -

“demanda da qual eles próprios constituem um segmento dominante” (MOULIN, 2007, p. 31).

Tais relações são mais facilmente perceptíveis quando produtoras de processos de artificação ou desartificação que podem ser mapeados nas práticas objetivas do campo da arte:

vejamos o caso do megacolecionador britânico de origem iraquiana Charles Saatchi. Saatchi não só promoveu, fez circular e inflou o valor artístico - e o preço - da geração do Young British Artists

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, como também exerceu influência direta na carreira, absorção e dispersão do êxito de importantes artistas. Em 1978, o colecionador adquiriu 11 quadros do jovem Julian Schnabel por US$ 2 mil cada. Entre 1993 e 2007, Saatchi desfez-se de todos os seus Schnabels que alcançaram valores entre US$ 319 mil e US$ 3 milhões. Apesar da recepção calorosa do mercado, a notícia de que Saatchi havia comercializado todo o seu estoque do artista fez com que nos anos seguintes os valores despencassem e a obra de Schnabel encontrasse certa resistência em leilões. O mesmo aconteceu com Sandro Chia, quando Saatchi anunciou que estaria “expurgando” sua coleção das obras do artista italiano e devolveu para as galerias de Zurique e Nova York os sete quadros que havia adquirido, estava afirmada a capacidade retaliação do colecionador. Desde “o episódio Chia todos os artistas sabem que toda validação e fama que Saatchi dá, Saatchi pode tirar. A demanda da obra de Chia diminuiu e atualmente ele não é representado por nenhuma das duas galerias” (THOMPSON, 2008, p. 136)

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.

Alguns dos megacolecionadores da atualidade possuem certa destreza na promoção de carreiras artísticas e tendências estéticas contemporâneas, daí acresce-los à reposta da questão bourdieusiana inicialmente colocada: quem cria(ou) os criadores? Não queremos dizer com isso

16 Alguns autores debatem a criação dos YBA’s como o projeto de marketing mais bem sucedido de Saatchi, que foi o marqueteiro oficial do Governo Thatcher. Alguns dos artistas “lançados” por ele, ocupam posições proeminentes no campo da arte mundial com grande sucesso financeiro e artístico. Vide Damien Hirst, Sarah Lucas, Tracey Emin, Chris Offili, entre outros (THORNTON, 2012).

17 Outros debates acerca da relação do mercado com os museus podem ser encontradas em Moulin (1995).

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10 que a formulação tradicional do campo da arte tornou-se obsoleta. Ao contrário, os modos de operação do campo e seus agentes tradicionais permanecem exercendo seu poder discursivo.

Não à toa tais colecionadores carecem de acercar-se de museus importantes e curadores de renome em uma negociação de seu próprio poder e posição na arte contemporânea: a manutenção das regras - e da crença - dependem da reafirmação das mesmas. Não tratamos também de uma generalidade de colecionadores, mas de uma parcela ínfima em seu meio que conquistaram as ferramentas necessárias para influenciar os processos de credibilização na arte.

Estes poucos agentes que exercem “influências que o mundo da arte prefere ignorar, no que diz respeito à regra da presunção da inocência ” (MOUREAU, 2020, p. 92), são os que mais bem condizem com as regras postas: não desafiam por completo seu léxico, visto que carecem dessa autoridade para produzirem a própria. Na tensão constante entre concordância e novidade que configura o campo e suas disputas; a produção do novo (novos artistas, novas tendências, etc) carece de certa concordância com aquilo que o subjaz. A disputa narrativa da arte será, portanto, a disputa entre subordinantes e subordinados, estes últimos galgando capitais e autoridades para produzirem novas subordinações.

O campo da arte configura-se assim como uma espaço de relações duráveis - apesar das constantes perturbações - sendo o modo mais eficiente de eficácia simbólica a reprodução (ou emulação) de seus meios. Para Moulin (2007, p. 30) “os museus de arte contemporânea são, pela aura do lugar e pela erudição do conservador, a instância maior de validação da arte”. Esta argumentação explicaria o crescimento considerável de fundações e museus privados de arte contemporânea abertos ao público na última década

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e ainda a absorção por esses espaços de nomes já consolidados nesse campo (artistas, críticos, curadores, acadêmicos, marchands, editores, etc): ao reproduzirem as ferramentas do campo, aproximam-se da disputa pela sua normatização. Fato é, variando de modo mais ou menos significativo segundo sua posição, um diagnóstico das relações vigentes na arte contemporânea torna-se agora irrespondível se obliterada a participação dos colecionadores.

Por fim, se concordarmos com a hipótese levantada por Moureau (2017) de que a entrada e estabilização da relevância artística depende de um acúmulo constante de “pequenos

18 Neue Galerie (Nova York), Fondation Louis Vuitton (Paris), Collection Pinault (Paris e Veneza), Fondazione Prada (Milão e Veneza), Broad Contemporary Art Museum (Los Angeles), Museu Berardo (Lisboa), Museu de Arte Moderna de Istambul (Istambul), Centro de Arte Pinchuk (Kiev), Museu de Arte Aven (Moscou) e Leeum Samsung Museum (Seul) apenas para citar os maiores. Todos estes espaços tem em comum o fato de estarem associados a coleções pessoais e terem sido financiados por estes megacolecionadores ou suas corporações. Juntos possuem uma acervo de mais de 13 mil obras de arte (9 mil se retirarmos as coleções Pinault e Prada) de obras consideradas de grande qualidade internacional, um marco que poucos museus públicos de arte contemporânea conseguem acompanhar - sobretudo por suas limitações orçamentárias - (THOMPSON, 2008, p. 323).

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11 eventos históricos (...) que consistem em sinais objetivados, tangíveis e duráveis de reconhecimento artístico que contribuem para fazer entrar o nome do artista na história”

(MOUREAU, 2017, p. 450); não estariam estes megacolecionadores - com suas fundações/museus e controle de agentes especializados - mais aptos a executarem esses sinais consubstanciados e assim escreverem a história da arte?

4. Des Artistes Chinois à la Fondation Louis Vuitton: um debate sobre a consagração artística e a crença na arte contemporânea

A consagração de certas práticas e tendências como legítimas desdobra-se consequentemente na produção de uma ideia de êxito na arte contemporânea. Quanto mais arrolado ao universo de possíveis legitimados, melhor posicionado encontra-se o artista no campo da arte. A distribuição das posições no espaço social teórico nada tem de aleatória e depende inexoravelmente de como os capitais, discursos e crenças são gestados e gerenciados, e mais, interdependem dos agentes que as controlam. Para Nathalie Moureau (2017, p. 450) a mecânica desse campo vetorial de valores - a formação do valor artístico em si - assenta-se na capacidade do mercado de arte e de seus muitos agentes em fomentarem “pequenos eventos históricos”, sinais objetivados e duráveis de reconhecimento das práticas. Ao refletir sobre os diferentes papéis assumidos pelos agentes nessa operação, Moureau destaca a contribuição dos colecionadores para a

[...] criação desses pequenos eventos não somente através das fundações que os mais ricos entre eles estabelecem, mas também através de empréstimos de obras em vista de exposições nos lugares de legitimação. Os depósitos ou doações que alguns fazem a instituições são outros exemplos de sua capacidade de contribuir para a legitimação artística do trabalho de um artista. Cada um dos ‘pequenos eventos’ assim produzidos oferece um certificado tangível credenciando a qualidade de um trabalho artístico [...]

É somente no processo de sedimentação desses pequenos eventos, que se sobrepõem uns aos outros, que o nome do artista se inscreve na trajetória da história por vir.

(MOREAU, 2017, p. 451).

A superposição entre esses pequenos eventos históricos - que podem ser múltiplos, uma

exposição, a edição de um catálogo, a venda de um trabalho para uma coleção importante, a

participação em um bienal, e até mesmo a inclusão nas listas de ranqueamento - atuam como

procedimentos de manifestação prática da crença, de sua eficácia simbólica, gerando

marcadores de êxito que permitem não só uma hierarquização das práticas mas também uma

cartografia objetiva do campo metafórico, no qual cada posição/coordenada carece de um

somatório de marcadores para sedimentar-se. É imperativo, entretanto, salientarmos que as

posições são duráveis mas não eternas, e o campo - em sua definição - articula-se como um

espaço de mobilidades vetoriais e disputas constantes, o que explicaria as razões para um agente

(12)

12 decair diversas posições de um ano para outro. A manutenção dessas coordenadas - e da promoção e validação do valor artístico - dependem, portanto, de um trabalho constante e interessado de defesa das posições, que a partir dos anos 1980/1990, tem sido desempenhado muitas vezes por grandes colecionadores (WU, 2006).

A consolidação de grandes coleções de arte contemporânea a partir dessas décadas (Charles Saatchi no Reino Unido; Bernard Arnault e François Pinault NA França; ou ainda as coleções de Ronald Lauder de Patricia de Cisneros, nos EUA), reforça o caráter de arbitragem desses agentes bem posicionados para a legitimidade e circulação de certas tendências estéticas.

A promoção dos ‘pequenos eventos históricos’ de Moureau (2017), alinha-se, portanto, aos procedimentos discursivos que Bourdieu considerava inerentes à manutenção de uma dada economia dos bens simbólicos, isto é, “o discurso sobre a obra não é um simples adjuvante, destinado a favorecer-lhe a apreciação, mas um momento da produção da obra, de seu sentido e seu valor” (BOURDIEU, 1996, p. 197). O acúmulo de pequenos eventos históricos seriam análogos à uma sobreposição discursiva, materializada na prática sob diversos formatos com um fim comum, “a produção e reprodução permanentes da illusio, adesão coletiva ao jogo que é a um só tempo causa e efeito da existência do jogo” (BOURDIEU, 1996, p.192).

A produção da crença corroboraria, assim, a uma insistência social na illusio, uma operação coletiva que transcende o ato de fabricação material para comportar um conjunto de operações que asseguram uma promoção ontológica e a transubstanciação de certas práticas e objetos, reposicionados hierarquicamente como mais válidos ou legítimos (BOURDIEU, 1977). A realização dos procedimentos de transubstanciação envolvem, contudo, um esforço e uma mobilização de capitais - econômicos, sociais, escolares, simbólicos - que poucos acumulam - e transformam - tão bem na contemporaneidade quanto os grandes colecionadores.

Bueno ao discorrer sobre as práticas aquisitivas da Coleção Patricia de Cisneros mais uma vez assessora o debate ao argumentar que existem “algumas estratégias de ação adotadas por colecionadores” (BUENO, 2020, p. 70). No caso específico de Cisneros seriam:

1) A primeira etapa do trabalho, numa equipe menor composta por um curador e conselheiros, foi definir o conceito que iria nortear o projeto; [...], Para vislumbrar a nova via de abordagem da arte foi fundamental a presença nas equipes de intelectuais e curadores; 2) Uma vez definido o conceito, inicia-se uma seleção dos artistas e movimentos priorizados, o que envolve em pesquisas e viagens para diferentes regiões da América Latina. Só então implanta-se o programa de aquisições e a ampliação da equipe para organização do acervo (catalogar as obras, conservar, organizar a documentação, entre outros); 3) A seguir estabelecem parcerias com museus e universidades para a constituição de arquivos sobre arte latino-americana, que também serão localizados e recolhidos em diferentes países; 4) Após todas essas etapas, as coleções começam a ser difundidas com exposições em museus, a publicação de catálogos luxuosos com muitos textos e ilustrações, contendo inclusive informações sobre a formação do acervo e entrevistas com os colecionadores.

(13)

13

Simultaneamente os colecionadores passam a anunciar uma série de doações, inicialmente para os museus norte-americanos e um pouco mais a frente para os museus europeus (BUENO, 2020, pp. 70-71).

Essas coleções atuariam, desse modo, em estreita conexão “com instituições de prestígio (museus e universidades) fomentando, entre outros, a organização e digitalização de arquivos, exposições e publicações”, objetivando não apenas circular seus acervos (coleções como agentes da mundialização), mas também construir “uma narrativa que fundamente a inserção”

(BUENO, 2020, pp. 71-72). A horizontalidade da atuação da Coleção Cisneros - museus, universidades, publicações, agentes altamente especializados e legitimados no campo da arte

19

- estaria, sob a chave dos ‘pequenos eventos históricos’ de Moureau, produzindo vibrações no campo da arte, criando condições de acesso, permanência e legitimidade de um corpus artístico.

Embora já em disputa por uma posição, esse conjunto de criadores e obras adquire - via capitais específicos mobilizados pela colecionadora (seus investimentos econômicos, sua relação com museus e fundações públicas, o patrocínio de pesquisas em universidades) - maior envergadura discursiva e eficácia na arte contemporânea.

O jogo da arte manifesta-se, portanto, como um jogo de interesses e investimentos, no qual conluios - por vezes invisíveis - mas particularmente estimulados por questões próprias trabalham para posicionar mais centralmente suas práticas, assegurando-lhes valores.

Semelhantemente à Coleção Cisneros, podemos identificar a atuação da Fondation Louis Vuitton na determinação e defesa de pequenos eventos históricos, que sobrepostos, constituem esforços na produção de valores artísticos na contemporaneidade e uma disputa constante na escrita de uma história da arte. Idealizada em 2005 a partir da coleção do presidente do conglomerado de luxo LVMH, Bernard Arnault, a coleção Louis Vuitton abre ao público em 2014 em edifício projetado por Frank Gehry, no Bois de Bologne em Paris. Composta por cerca de 330 obras de 120 artistas, a coleção é relativamente pequena se comparada a outras constituídas a partir de preceitos semelhantes (a Coleção Pinault, sediada em Paris e Veneza, em paridade ilustrativa, possui cerca de 3500 obras). O que exige, contudo, um olhar apurado sobre a Fondation Louis Vuitton são os investimentos massivos - tanto econômicos quanto simbólicos - em sua disputa por uma posição no liames da arte contemporânea. Do ponto de vista financeiro, os recursos monetários disponíveis para uma única mostra da fundação chegam a superar o orçamento anual para os mesmos fins do Centro Georges Pompidou. Já de ordem simbólica, ficam evidentes os investimentos para um posicionamento habilitado para a disputa:

sob a direção artística de Suzanne Pagé (curadora encarregada da plataforma l’ARC do Musée

19 Por exemplo, a curadora mexicana Sofía Chong e o brasileiro Paulo Herkenhoff, curador do pavilhão brasileiro na 47º Bienal de Veneza, curador da 24º Bienal de São Paulo e diretor do Museu de Arte do Rio (BUENO, 2020).

(14)

14 d’Art Moderne de la Ville de Paris (1973-1988) e posteriormente diretora geral da mesma instituição até 2006; duas vezes curadora do pavilhão francês na Bienal de Veneza (1986 e 2005); ganhadora do Art Cologne Prize de 2004

20

e listada pela Artnet como uma das mulheres mais influentes no mundo da arte europeia

21

) ocasionalmente a coleção tem mostras assinadas por curadores ‘de giffe’, além de manter uma publicação bilíngue - Fondation Louis Vuitton Le Journal, em inglês/francês - com críticas e comentários desenvolvidos por especialistas e acadêmicos.

Ademais da proximidade com curadores e agentes bem posicionados, o próprio Arnault figurou dezesseis vezes na lista Power100 da ArtReview

22

, que desde 2002 realiza o ranking das cem personalidades mais influentes do mundo da arte. Ele disputa diretamente uma posição nesse universo através de sua atuação como colecionador

23

e nos últimos anos mediante as relações de promoção da arte via sua institucionalização e musealização. Confirmando o diagnóstico de Moulin (2007), ao mesmo tempo ator cultural e econômico, ele acumula uma pluralidade de frentes de atuação (acionista de importantes casas de leilão

24

, controle majoritário do LVMH, colecionador, construtor de um novo local artístico), dispondo, portanto,

“ao mesmo tempo de uma capacidade de valorização estética das obras e de um poder de mercado” (MOULIN, 2007, p. 91). Carece de certo destaque o fato de que ao monopolizarem ferramentas logísticas, comerciais e institucionais, os megacolecionadores - como Arnault - exercem um papel importante: conseguem habilmente realizar uma conversão de seus capitais (WU, 2006) e concentrar autoridades específicas que podem, em consequência, facilitar os procedimentos de reconhecimento e valorização de determinados artistas.

Tomemos como estudo de caso a exposição Des Artistes Chinois à la Fondation Louis Vuitton, de 2016. O fomento de uma mostra com um recorte tão específico já denota um certo esforço discursivo de defesa, uma luta classificatória. Certamente a presença de um número considerável de artistas chineses em uma instituição ocidental relaciona-se ao boom desse nicho de mercado nos anos 2000 e sua absorção por instituições e galerias do eixo EUA-Europa (SCHULTTHEIS et al, 2016). Sabemos, entretanto, que o crescimento de um mercado não sugere um rebatimento instantâneo de seu reconhecimento artístico. Moureau argumenta, por

20 Fonte: https://www.artforum.com/news

21Fonte: https://news.artnet.com/market/who-are-the-most-influential-women-in-the-european-art-world-13179

22 Fonte: https://artreview.com/artist/bernard-arnault/

23 Thompson (2008), ao estudar a influência dos colecionadores nas tendências artísticas descreve um episódio de 2006 na Art Basel, no qual Bernard Arnault, Charles Saatchi e Frank Cohen disputam a aquisição de uma obra do artista sino-canadense Terence Koh e como isso inflaciona a circulação, preço e consagração do artista.

24 Bernard Arnault é acionista da Phillips - a terceira maior casa de leilão em volume de vendas e a primeira em comercialização de arte contemporânea - e da francesa SVV Tajan, voltada majoritariamente ao mercado interno (THOMPSON, 2008; MOULIN, 2007).

(15)

15 exemplo, que apesar do norte-americano Jeff Koons figurar como o artista que atinge os maiores preços de mercado, nas listagens de 2019 que computam a relevância artística “seu ranking [...] era 83, segundo a base da dados da Artfacts” (MOUREAU, 2020, p. 83). Woodham (2017) ao estudar os rankings entre 2011-2015 obtém um resultado aproximado: dos vinte e cinco artistas vivos recordistas em leilão, nove são chineses, mas nenhum desses figura nas listas dos artistas de “maior valor artístico”.

Esses dados sugerem que há, de fato, duas instâncias de valoração: uma econômica e outra cultural, e que embora possam ocasionalmente sobreporem-se, tal fenômeno não ocorre de forma automática. A importância da promoção de uma exibição de grande porte destacando a obra de artistas chineses em uma coleção ocidental emerge, dessarte, como um possível método de correção das discrepância, uma tentativa discursiva de minoração das distâncias entre precificação e valor artístico. Moulin (2007) já argumentava que os megacolecionadores prestam particular atenção a esses processos, orientando suas práticas de modo a não desvalorizarem - economicamente e artisticamente - os artistas dos quais possuem obras.

Em uma rápida análise dos artistas e obras que compuseram essa mostra podemos elencar alguns dados de substancial importância: dos onze artistas apresentados, apenas um não possui origem chinesa, a obra de Isaac Julien, artista britânico de origem antilhana, foi incluída pela importância de sua pesquisa sobre as diásporas asiáticas. Dos dez artistas chineses, apenas um (Yan Pei-Ming) usufruiu de uma trajetória escolar e profissional em um país ocidental (França). Os demais, embora desfrutem de certa circulação e reputação internacional, obtiveram seus diplomas em território chinês, e vivem e trabalham na China

25

. Dos vinte e cinco trabalhos apresentados, 52% consistiam em vídeos/videoinstalação; 28% em esculturas; 16%

pintura/desenho (8% cada) e 4% instalações. Todos os trabalhos, com exceção de uma escultura de 1997, datam das décadas de 2000/2010

26

.

25 Computamos a atual residência dos artistas. É notável, entretanto, que alguns usufruíram de uma circulação internacional mais efetiva, passando longos períodos no exterior. Vide Ai Weiwei (Nova York e Berlim) e Zhang Huan (Nova York), ou ainda Cai Guo-Qiang (residente em Nova York).

26 Os artistas e trabalhos participantes da mostra com seus anos de criação: Yan Pei-Ming: All Crows Under the Sun are Black! (2012), Les Temps Modernes (2015) (ambos pintura); Xu Zhen: New (2014), Eternity- Tianlongshan, Grottoes Bodhisattva, Winged Victory of Samothrace (2014) (ambos escultura); Cao Fei: Whose Utopia (2006), RMB City secondlife planning (2007), Live in RMB City (2009) (vídeos); Yang Fudong: Tonight Moon (Jin Wan De Yue Liang) (2000), Seven Intellectuals in Bamboo Forest Part I (2003), Part II (2004), Part III (2005), Part IV (2007), Part V (2007) (videoinstalação e vídeos); Isaac Julien: The Thousand Waves (2010) (video); Zhang Huan: Sudden Awakening (2006), Great Leap Forward (2007), National Day (2009), Long Island Buddha (2010) (Desenhos cinza sobre tela e esculturas); Ai Weiwei: Tree (2010) (escultura); Xiaogang Zhang:

My Ideal (2008) (instalação); Huang Yong Ping: L’Arc de Saint Gilles (2015), Cinquante bras de Bouddha (1997) (esculturas); Zhou Tao: Chick speaks to duck, pig speaks to dog (2005), One Two Three Four (2008) (vídeos); e Tao Hui: The Dusk of Tehran (2014) (video). Fonte: https://www.fondationlouisvuitton.fr

(16)

16 Se cruzarmos essa análise com os dados anteriormente citados constatamos que um dos artistas (Xiaogang Zhang) encontra-se na listagem (2011-2015) de recordistas em leilão, e que apenas um artista (Ai Weiwei) figura entre os vinte e cinco artistas vivos mais importantes (WOODHAN, 2017; Artfacts). Uma das interpretações alternativas a este descompasso poderia ser explicado a partir da argumentação levantada por Quemin (2002, 2013), que condiciona - em parte - o êxito das carreiras artísticas à ostentação de diversos marcadores simbólicos (escolas prestigiadas, galerias, feiras de arte, premiações, etc) que participam da acreditação dos valores simbólicos que melhor posicionam os criadores na cena internacional da arte.

Em um debate crítico sobre a gênese, consolidação e internacionalização da arte contemporânea chinesa, Gladston (2016) argumenta que em decorrência de sua realidade política, a maioria dos artistas chineses voltam-se para um mercado interno bilionário, sendo reduzidos - em comparação com o a comunidade artística interna - os casos de grande sucesso no mundo Ocidental. É importante notarmos que alguns artistas chineses figuram nas listagens de sucesso econômico, mas uma paridade nas listas de relevância artística por vezes não se concretiza. Absorvidos por colecionadores chineses no Ocidente, ou ainda pelos neófitos no campo (colecionadores do Oriente Médio, os oligarcas russo, empresários asiáticos da tecnologia que passam, a partir da virada do milênio, a frequentarem e dispararem os recordes de casas de leilão como Sotheby’s e Christie’s), que dispõem de elevada condições financeiras mas baixo acúmulo de capitais (simbólico, artístico), não é raro que estes artistas galguem primeiro credibilidade econômica. Em relação a sua absorção e validação museológica nos países ocidentais - na falta de tradicionais marcadores simbólicos e capitais específicos - tende a ser mais demorada e/ou dificultada; o que explicaria a discrepância e o lapso de representação desses artistas, privilegiando-se aqueles poucos com posições já bem definidas e uma consagração artística consolidada ou na iminência de consolidação: não gratuitamente nomes como Ai Weiwei e Cai Guo-Quiang figuram como referências imediatas da arte chinesa nas instituições americanas e europeias (GLADSTON, 2016).

Pautados nos debates que focalizam o papel dos colecionadores e suas instituições para a produção de valores - artísticos e econômicos - na arte contemporânea seria sensato questionarmos como as instituições e coleções que dispõem de obras desses criadores em seus acervos contornam essa incompatibilidade. Tendo como pressupostos que a entrada e manutenção da relevância desses artistas depende do acúmulo de ‘pequenos eventos históricos’

e de uma manifestação prática da crença em suas obras - a eficácia simbólica - podemos

especificar algumas práticas que norteiam a aquisição e promoção dessas obras a partir da

exposição analisada: (1) uma predisposição ou tendência em se colecionar obras cujos

(17)

17 dispositivos rompam com uma visão autóctone/regionalista do que se imagina como temas e linguagens artísticas tradicionalmente chinesas (porcelana, nanquim, etc), dado isso, o grande volume de peças de vídeo/videoinstalação, formato já consolidado na institucionalização por museus importantes nos EUA e Europa; (2) a manutenção de páginas, constantemente retificadas, sobre cada um dos artistas pertencentes ao acervo nas quais se computam os prêmios, as exposições e participações em bienais, obras em acervos importantes e um conjunto de publicações especializadas com comentários de acadêmicos, curadores e críticos; (3) a base de dados é desenhada de modo a cruzar as peças da mostra com outras exposições que as incluíram, reafirmando seu caráter internacional e dialógico. Além disso, informações sobre o empréstimo dessas obras para museus públicos de importância (como MoMA, Georges Pompidou e Tate) tendem a receber certo destaque; (4) há uma tendência em se privilegiar artistas já consolidados, isto é, cujas relações pessoais e profissionais tenham lastros em coordenadas específicas do campo com obras em mostras coletivas e/ou individuais em museus públicos na Europa ou EUA; (5) privilegia-se a aquisição de obras em feiras de renome - Art Basel, Tefaf, Fiac, Freeze, ARCO

27

- e em galerias bem consolidadas de forma a se garantir uma procedência (capitais específicos acumulados) e minorar qualquer dúvida sobre acreditação ou relevância

28

; (6) quando adquiridas em leilões, privilegiam-se as três principais casas - Sotheby’s, Christie’s e Phillips - também especificadoras de procedência; no mercado primário (out of art fair) beneficiam-se os artistas - salvaguardados raras exceções de compra direta - representados por galerias majors (blue chip) com sedes em Nova York, Londres, Los Angeles, Berlim ou Paris; (7) há também a tendência de criarem-se vínculos relacionais de artistas cujas posições são incertas com outros mais bem estabelecido - por exemplo, a inclusão de Ai Weiwei na mostra, de quem a fundação possui apenas uma obra, ao lado de artistas menos reconhecidos, ressaltando a participação desse criador em exposições na Royal Academy of Arts (Londres), Jeu de Paume (Paris), e a publicação do livro Conversations, realizado em 2012 sobre sua obra, pelos curadores Olivier Collete e Hans Ulrich Obrist, este último diretor da Serpetine Gallery, figura em diversas listas especializadas como um dos agentes mais influentes do mundo da arte, ocupando a primeira posição da ArtReview em 2009 e 2016

29

; e (8) a midiatização em veículos especializados - revistas de arte - e na imprensa comum sobre a

27 Schulttheis et al. (2016) descreve justamente a importância das feiras bem posicionadas no campo da arte como definidoras de procedência (capitais específicos), sobretudo no que concerne aos jovens artistas de outras geografias - chineses incluídos - como método de minoração da dúvida e de promoção de credibilidade.

28Thompson (2008, 2017) e Schulttheis et al. (2016) descrevem a participação desses grandes nomes do colecionismo nas feiras de arte. Os franceses Bernard Arnault e François Pinault participam de um estrato bastante restrito - os VIP Collectors - que acessam, inclusive, as feiras horas antes dos compradores “comuns”.

29 Fonte: https://artreview.com/artist/hans-ulrich-obrist/

(18)

18 mostra e sua importância, mantendo ainda publicação própria que mobiliza - por convite e/ou contrato - agentes especializados e bem posicionados no campo para debater e - enaltecer - a relevância e o mérito desses esforços institucionais

30

.

Vista sob essa angulação, a consagração do artista regula sua acreditação de forma análoga - resguardadas algumas especificidades - ao que Bourdieu (1983) descreve como uma atribuição de griffe, uma confirmação de seu valor simbólico, e é tão mais eficiente na proporção de sua complexidade,

O que faz o valor, o que faz a magia da griffe, é o conluio de todos os agentes do sistema de produção de bens sagrados. Conluio perfeitamente inconsciente, é claro.

Os circuitos de consagração são mais potentes quando são mais longos, mais complexos e mais ocultos aos próprios olhos de quem deles participa e se beneficia [...] um ciclo de consagração eficaz é um ciclo onde A consagra B, que consagra C, que consagra D, que consagra A. Quanto mais complicado é o ciclo de consagração, mais ele é invisível, mais sua estrutura não é reconhecida, maior é o efeito da crença (BOURDIEU, 1983, p. 161, grifo nosso).

Procedimento e discursos dignificadores da prática artística, a griffe do artista assume sua justaposição no que Quemin (2013) identifica como a máquina de produção de stars da arte contemporânea, mecanismo que opera a um só tempo a criação do valor (crença) e a reafirmação contínua (discurso) de sua dimensão superavitária e hierárquica. À sombra desse debate, a exposição Des Artistes Chinois configura mais um ‘pequeno evento histórico’, que carece continuamente de sobreposições outras - publicações especializadas, os curricula reificados na página da fundação, o empréstimo de obras para outras fundações e museus importantes, a midiatização, a incorporação das mesmas obras em outras exposições, etc - como método de produção e reafirmação de seu valor artístico. Será através desse somatório simbólico que uma tensão poderá ser executada, elaborando o (re)posicionamento e - quiçá - azeitando a entrada - artificialmente esboçada - do criador na história da arte. O êxito e a consagração do artista encontra, assim, sua homologia com a atribuição de uma ‘griffe’.

5. Notas de saída

Os elementos exibidos como marcadores de êxito e profissionalização visam mitigar quaisquer dúvidas que possam ser lançadas sobre a acreditação de uma obra ou artista;

trabalham lentamente na minoração das distâncias entre preço e valor artístico, estabilizando e disputando a posição de certas práticas, carreiras e tendências estéticas no campo da arte contemporânea. Todavia, esse modelo quase matemático que propusemos é somente um

30 Para a construção desse parágrafo realizou-se a aferição de diversos dados via bibliografia e notícias sobre feiras, sites de galerias, relatórios de casas de leilão, e a página web da fundação em si. Dados pesquisados e contabilizados de setembro de 2019 a julho de 2020 como campo remoto da tese em desenvolvimento.

(19)

19 esquema ilustrativo das relações complexas desse meio e adotá-lo como axiomático seria certamente simplista. A produção de valores artísticos - assim como o próprio ato de se colecionar - assentam-se em inúmeras variáveis e é apenas como recurso alternativo a um quadro analítico dessas dinâmicas que podemos propor certas metodologias de análise e diagnóstico, que serão, seguramente, sempre perspectivadas. Não obstante, uma leitura sociológica sobre a arte na atualidade deve atentar-se ao papel desempenhado pelos colecionadores e suas fundações na promoção de certas práticas, e mais, na capacidade narrativa de encetar e acelerar procedimentos de artificação e precificação. Seria insensato cedermos à aleatoriedade o fato, por exemplo, da obra de Zhang Huan (artista participante da mostra e do acervo da Fondation Louis Vuitton) há alguns anos avaliada em menos de um cento de milhares de dólares possa atualmente ser disponibilizada em um site secundário de leilões por um preço de reserva de US$ 188 mil

31

. Refletir sobre os esquemas da arte contemporânea através dos discursos, práticas aquisitivas e das grandes coleções - sobretudo as corporativas - mostra-se uma maneira profícua de debatermos questões de interesse da sociologia, e mais, permite refletirmos sobre uma inerente necessidade de enfrentamento dos desafios conceituais e metodológicos no esboço de uma sociologia - efetiva - dos mercados da arte.

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31 Na plataforma australiana Invaluable, pesquisa realizada em 2019, a obra pode não estar mais disponível. Fonte:

https://www.invaluable.com/artist/huan-zhang-7ctgt39vvp/sold-at-auction-prices/

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Referências

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