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Diurno e Noturno no pensamento de Gaston Bachelard

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DIURNO E NOTURNO NO PENSAMENTO DE GASTON

BACHELARD

Diurne et nocturne dans la pensée du Gaston Bachelard

Fernando da Silva Machado1

Resumo: O presente artigo tem por objetivo caracterizar as duas fases do pensamento bachelardiano intituladas

diurna (epistemológica) e noturna (poética) e o modo como determinadas noções que permeiam essas duas etapas do pensamento do autor configuram uma comunicação recíproca entre si, fazendo com que haja uma troca assídua de valores entre ambas as vertentes. Deste modo, tentar-se-á demonstrar o quanto o fluxo de uma fase a outra de seu pensamento denota um sentido de completude ao invés de desconexão, negação ou mesmo oposição. Conceitos como descontinuidade, imagem e tempo orientarão nosso esforço em evidenciar tal complementariedade e aproximação entre as duas fases de pensamento de Gaston Bachelard.

Palavras-Chave: Bachelard; Diurno; Noturno; Descontinuidade, Tempo.

Resumé: Cet article vise à caractériser les deux phases de la pensée bachelardien intitulé diurne (épistémologique) et nocturne

(poétique) et comment certaines notions qui imprègne ces deux phases de la pensée de l'auteur constitue une communication bidirectionnelle avec l'autre, de sorte qu'il y ait un échange assidues de valeurs entre les deux parties. Ainsi, il sera tenté de montrer comment le flux d'une phase à l'autre de sa pensée désigne un sentiment de complétude plutôt que un sentiment de déconnexion, négation ou même opposition. Certains concepts comme discontinuité, l'image et le temps guideront nos efforts pour mettre en évidence une telle complémentarité et approximation entre les deux phases de la pensée de Gaston Bachelard.

Mots-Clés: Bachelard; Diurne; Nocturne; Image, Temps..

Introdução: As duas vias do pensamento bachelardiano

Talvez, para qualquer leitor que pela primeira vez encara a obra bachelardiana em sua complexidade, tanto quanto, para aqueles leitores “de estrada”, que redescobrem novas perspectivas ao relerem o pensador, o gesto recorrente frente ao caráter dual da filosofia desse cientista-poeta seja o da perplexidade. Na pele de um iniciante, ou mesmo de um leitor crebro da obra, nos interrogaríamos de que maneira as duas vertentes do pensamento de Bachelard (epistemológica e poética) se complementariam, compondo uma filosofia coesa entre as duas partes, já que à primeira vista parecem ser tão contrastantes e distintas?

Vocês [leitores] entrarão na obra de Bachelard por uma das vias que ele nos preparou – correspondentes aos que pensam, como se diz dos colegiais, estarem

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dotados: para as letras ou para as ciências –, duas vias estranhamente iguais em perfeição e força.2

Estranhamente iguais? Porque iguais? Para Bachelard, razão e imaginação são caminhos fundamentais e indispensáveis para a constituição do humano. Essas duas vias formam o espírito e a consciência no homem. Bachelard chamará esse homem de o homem

das 24 horas, pois, ele é o único capaz de transitar tanto pelas vias diurnas quanto pelas vias

noturnas do pensamento, sem nunca sessar e nem ceder. De tal modo, as duas vertentes do pensamento bachelardiano, definidas como diurna (conhecimento claro, objetivo) e noturna (conhecimento obscuro, subjetivo), revelam sendas que correm separadas, mantendo suas características e condições peculiares, mas que, no entanto, seguem em um mesmo sentido até chegarem ao mesmo ponto, ou seja, a formação do espírito do homem, como dois rios que correm em direções contrapostas, mas que deságuam no mesmo estuário. Fica evidente, então, que uma das tarefas principais da filosofia de Bachelard é promover a aproximação descreditada entre a racionalidade e a imaginação poética, entre o pensamento diurno e o noturno. Tidas pela tradição filosófica como áreas do conhecimento humano que se opõem drasticamente, na filosofia de Bachelard, pela primeira vez, nos é mostrado que é possível desfazer essa oposição marcante entre o racional e o poético, sem que necessariamente tenhamos que abandonar o percurso singular que nos é imposto por cada uma destas vertentes de pensamento. Sendo assim, é perfeitamente compatível coligar essas duas vias do saber de maneira “concordatária”, ou seja, de modo que concordem entre si, pedimos licença aqui, se nos é permitido, tomar de empréstimo esse termo incluído no título de um artigo de Canguilhem3, que por sua vez,

tomou-o emprestado de Bachelard, que cunhou o termo. Os eixos da razão e da imaginação, tidos como opostos a priori, nas obras bachelardianas, delineiam de maneira camuflada uma unidade de pensamento, que por sua vez, só seria possível devido à aproximação complementar entre esses dois eixos. Assim, diurno e noturno constituem duas faces distintas de uma mesma moeda para a filosofia perpetrada por Bachelard, faces que trocam valores, que unidas aperfeiçoam o homem das 24 horas.

Lecourt, comentador da obra de Bachelard, lança um questionamento importante a respeito das duas vertentes de pensamento existentes na filosofia de Bachelard4. O

comentador nos interroga se deveríamos nos inquietar com uma provável contradição presente na filosofia do pensador entre razão e imaginação. Parece-nos, um questionamento importante, já que somos coagidos a refletir se há mesmo uma lucidez combinatória entre as propostas apresentadas por Bachelard em suas duas vertentes de pensamento, a princípio, tão contrastantes. No decorrer de seu livro, o próprio Lecourt responde. Para ele, a “duplicidade” presente nas obras de Bachelard “é uma atitude natural de um sujeito dividido em si mesmo”.5 De uma forma ou de outra, torna-se ousada a

atitude de levantar falsos problemas que polemizam a co-existência entre as duas vertentes da filosofia bachelardiana, como se fossem sistemas de pensamento que simplesmente se justapõem, ou, na pior das hipóteses, que se excluem. Essa dualidade, descrita por Lecourt, “deve ser tomada como uma unidade”6 própria que constitui a filosofia de Bachelard.

Logo, se tentarmos desfazer a junção unitária entre as duas vertentes do pensamento bachelardiano (que fundam uma vida dedicada ao conhecimento racional e outra à criação poética), aos moldes da oposição estabelecida pela tradição filosófica clássica

2 QUILET, P. Introdução ao pensamento de Bachelard. Tradução César A. Fernandes. Rio de

Janeiro: Jorge Zahar, 1977, p.8.

3 CANGUILHEM, G. Sur une épistémologie concordataire. Paris: [s.n], 1979. p. 130-137. 4 LECOURT, D. L'épistémologie historique de Gaston Bachelard. Paris: Vrin, 1978, p.38. 5 Ibidem, p.41.

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(razão/imaginação), fatalmente, abdicaremos da possibilidade de apreender o verdadeiro sentido da contribuição deste autor para o pensamento ocidental, que por sinal, nos parece, bastante singular, ou no mínimo, curiosa.

I. Vertente epistemológica

Bachelard viveu em meio aos avanços da ciência do final do século XIX e início do século XX. Físico e químico, desde cedo concentrou seus esforços em promover a reflexão acerca da necessidade de superarmos as doutrinas denominadas pseudocientíficas ou cientificamente atrasadas. Poderíamos classificá-lo como sendo um filósofo insurgente diante cenário filosófico francês da virada do século. Na esfera da filosofia francesa, Bachelard foi um verdadeiro acontecimento, de “um estilo insólito, porque nada mundano, de um estilo ao mesmo tempo denso, forte e sutil, amadurecido no trabalho solitário, longe dos modos e dos modelos universitários ou acadêmicos, de um estilo filosófico rural”.7 Tal

parecer se justifica na medida em que constatamos que as filosofias predominantes em sua época eram de caráter essencialmente espiritualista ou de maneira obstinada reproduziam os postulados positivistas. Segundo Lecourt, os trabalhos filosóficos de Bachelard, em meio a sua elaboração, sofreram uma indiferença gritante por parte daqueles filósofos que oficialmente representavam a “grande filosofia”.8 Esse acontecimento em muito se deve

pela ruptura imposta por Bachelard com o modo vigente de se produzir filosofia.

Com Bachelard, tudo foi varrido de um só golpe, de Francis Bacon a Émile Meyerson. O abalo detonado em Zurique em 1917 com a relatividade generalizada fazia rachar o edifício pré-racionalista onde se detinham os epistemólogos. Virado do avesso o antigo espírito científico mostrara suas costuras, a suas junções [...] Esses paradoxos não assustarão ninguém porque Bachelard não é somente contemporâneo da nova física, mas também de toda uma série de explosões intelectuais que se tornaram um jogo de cunhar absoluto. As mais decisivas para sua orientação pessoal foram a psicanálise (a primeira voga da psicanálise na França no primeiro pós-guerra) e o surrealismo.9

.

Essa espécie de indiferença intelectual à abordagem inédita da filosofia de Bachelard por seus contemporâneos, em parte, se deu, em detrimento do caráter polêmico de seus postulados epistemológicos. Bachelard ergueu seu próprio tribunal da razão, engendrou uma epistemologia ativa. Através de uma filosofia da ciência apurada, o pensador quase que decretou a tarefa obrigatória de todo epistemólogo e historiador das ciências, qual seja: identificar as rupturas adjacentes entre o conhecimento comum e o conhecimento científico, dando margem para a implementação de uma epistemologia judicativa. Esse paradigma epistemológico tornou-se, reconhecidamente, um dos eixos nodais das obras diurnas do pensador. O resultado dessa abordagem epistemológica no campo conceitual possibilitou a criação de sua famosa noção de “obstáculo epistemológico”, que discutiremos adiante. Assim, com a tese geral de ruptura estabelecida entre senso comum e conhecimento científico, a filosofia bachelardiana vai de encontro, primeiramente, com a filosofia defendida pelos “espiritualistas”, pois, se tratava de uma corrente de pensamento amplamente difundida no cenário filosófico francês daquele tempo. Os “espiritualistas” defendiam que para chegarmos ao conhecimento da realidade primeira do mundo a experiência imediata (sensível) já nos bastaria. Para Bachelard, o

7CANGUILHEM, G. Sur une épistémologie concordataire. Paris: [s.n], 1979. p.132. 8 LECOURT, D. Bachelard le jour et la nuit. Paris: Grasset, 1974, p.14.

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Cadernos do PET Filosofia, Vol.7, n.13, Jan-Jun, 2016, p.11-23 ISSN 2178-5880 conhecimento comum, edificado pela aproximação primeira, é um das maiores chagas da história das ciências, denota regressão e atravancamento da produção do saber próprio da experiência científica. “A ciência não é o pleonasmo da experiência”.10 É justamente o

conhecimento comum, guiado pela experiência primeira, que impede a objetividade do conhecimento científico. Críticas frequentes foram dirigidas, por parte de Bachelard, a uma figura marcante nesse panorama: Émile Meyerson, maior representante da corrente “espiritualista” na França. Essa corrente específica de pensamento:

Era constituída por pensadores que defendiam uma doutrina idealista, sem interesses especulativos, cujo objetivo principal era combater o materialismo dos filósofos iluministas. Os espiritualistas exaltavam os valores morais e religiosos, que, segundo eles, estavam desaparecendo. Tratava-se de um idealismo cujas ideais fundamentais permaneciam as mesmas, ou seja, exaltava o espírito, procurando encontrar no ato espontâneo da consciência um acesso ao absoluto, acreditando que se podia chegar a um conhecimento do universo a partir da intuição e da experiência cotidiana.11

Outra escola de pensamento bastante contestada por Bachelard foi o positivismo comtiano. Com suas teses empiristas-realistas, o positivismo, em essência, defendia um único modelo científico, construído a partir de um ideal a priori de ciência, com leis rígidas e imutáveis. Se seguidas à risca (e havia um consenso e uma crença geral dos adeptos desta corrente no poder de seu sistema de pensamento), essas leis absolutas possibilitariam uma história efetiva das ciências por meio de um progresso contínuo do conhecimento. “Esta escola declarava fundar sua autoridade e fazer repousar seu crédito sobre a necessidade de sua própria chegada, em virtude de uma lei em desenvolvimento histórico do espírito humano”.12 Bachelard nega veementemente o fundamento dos

postulados positivistas, para nosso pensador, o conhecimento científico não pode ser concebido como uma prática cumulativa, contínua e homogênea. A ciência se tornou uma operação intelectual que tem uma história, mas que não tem origens, ela é a gênese do real, mas sua gênese não poderá ser contada, seu caráter agora é puramente “dinamogênico”. Para Canguilhem, “ela [a ciência] pode ser reescrita como re-começo, mas nunca apreendida no seu início. Ela não é a frutificação de um pré-saber. Uma arqueologia da ciência é um empreendimento que tem sentido, uma pré-história da ciência é absurdo”.13

Definimos desde já, concisamente, que Bachelard pode ser qualificado como um pensador anti-idealista (no sentido de um antimeyersonismo) e antirrealista (no sentido de um anticomtianismo) por excelência.

Na medida em que as distintas realidades científicas instituem seus próprios objetos, métodos e abordagens, o que surge daí é uma prática científica não linear, fruto das implicações ocasionadas pelas rupturas e descontinuidades presentes na própria prática científica. Versando que o progresso do conhecimento científico é dependente da construção dos novos objetos científicos, que não existem como um dado a ser colhido na natureza previamente, o progresso passa a ser histórico a partir do ato de criação de um sujeito inventivo, ou seja, da busca incessante dos homens da cidade científica pelas

desrealizações produzidas por uma espécie de surrealismo de laboratório. Como disse Kuhn:

“tal como os artistas, os cientistas criadores precisam em determinadas ocasiões, ser

10 BACHELARD, G. O racionalismo aplicado. Rio de Janeiro: Zahar, 1977, p.38.

11 BULCÃO. M. O racionalismo da ciência contemporânea: introdução ao pensamento de Gaston

Bachelard. Aparecida: Ideias & Letras, 2009, p.20.

12 CANGUILHEM, G. Estudos das ciências na obra epistemológica de Gaston Bachelard. In:

______. Estudos de história e filosofia das ciências. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2012, p.181.

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capazes de viver em um mundo desordenado”.14 Nesse contexto, “desrealização” e

“desordenado” tomam um contorno incomum e positivo na visão de Bachelard enquanto adjetivos desse novo racionalismo, denominado como aplicado ou aberto. Os termos

desrealização e desordenado são as qualidades da nova prática científica, que por sua vez, rompe

com a realidade do dado sensível e do senso habitual. A filosofia de Bachelard denuncia marcadamente a inadequação das filosofias positivistas e espiritualistas aos conceitos e teorias científicas novas, por outro lado, a filosofia engendrada pelo cientista busca adequar-se ao novo espírito científico, porquanto, as ciências contemporâneas contradizem a existência, sua ideia de real não é mais a ideal do real projetada pela razão imutável das filosofias tradicionais. A noção de real da ciência contemporânea é produzida dia após dia por meio do conhecimento objetivo. O realismo do objeto da nova ciência reage à noção de real imediato de primeira aproximação, trata-se então, de um realismo de segunda aproximação. Este objeto da ciência contemporânea, tangenciado por um realismo de segunda aproximação, passou a ser numênico, e não mais fenomênico. “O nômeno é um

objeto de pensamento como o fenômeno é um objeto da percepção. A coerência

nomenológica nada tem a ver com os vínculos percebidos nas imagens primeiras”.15

que se admitir agora, a partir desse novo momento histórico da ciência, que um objeto carece ser definido como sendo uma não-coisa, um nada, pois não pode mais se passar por um objeto com predicados de uma coisa, no sentido de um coisismo meyersoniano. Entendemos, que na prática da ciência contemporânea não pode haver nem sujeito e nem objeto definidos a priori como no racionalismo tradicional, ambos, sujeito e objeto, são constituídos por um processo ativo e circular de construção técnico-racional (fenomenotécnica) dos novos fenômenos que não aparecem mais naturalmente, eles são criados, estudados e reformulados em laboratório e pelos homens que compõem a cidadela científica. A ciência ganha, pela primeira vez, o estatuto de criadora de realidades, não basta a si mesma como uma mera conhecedora de da realidade ocasional do mundo. Estamos fazendo referência a um “realismo que não subscreve nada de antemão, que pesa o possível para lhe conferir seu peso de ser como um resultado, um realismo que é um surrealismo a preço convencionado. A física é uma poética eficaz e rigorosa”.16

Outro aspecto importante que devemos destacar do pensamento epistemológico bachelardiano é sua crítica às imagens e valores subjetivos amalgamados ao conhecimento objetivo, essa crítica foi apresentada por meio da noção de psicanálise do conhecimento objetivo, podemos acompanhá-la em pleno desenvolvimento em algumas obras pontuais do pensador, como por exemplo: “La Formation de l’Espirit Scientifique” (1937) e “La

Psychanalyse du Feu” (1938). Nessas obras, Bachelard definiu certas imagens psicológicas

como sendo causadoras de obstáculos ao conhecimento objetivo, segundo a proposta do pensador, elas deveriam ser psicanalisadas em prol de uma ciência pura que eliminaria de sua constituição os traumas culturais inconscientes implantados no cerne do conhecimento científico por meio das quimeras pré-científicas dos sábios, que por sua vez, misturavam valores e projeções sociais dos mitos, folclores e costumes às experiências objetivas. Em sua obra “La Psychanalyse du Feu”, especificamente, Bachelard define claramente o que pretende com seu método psicanalítico do conhecimento objetivo: “trata-se, com efeito, de encontrar a ação dos valores inconscientes na própria base do conhecimento empírico e científico”.17 Desde o “le Nouvel Esprit scientifique” e, sobretudo, em “la Formation de l’esprit Scientifique”, Bachelard não cansou de ressaltar a necessidade de estabelecermos um

14 KUHN, T. A estrutura das revoluções científicas. São Paulo: Perspectiva, 1975, p.109.

15 BACHELARD, G. O racionalismo aplicado. Tradução Nathaniel C. Caixeiro. Rio de Jeneiro:

Zahar, 1977, p.195.

16 QUILET, P. op. cit., p.10.

17 BACHELARD, G. A psicanálise do fogo. Tradução Paulo Neves. São Paulo: Martins Fontes,

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Cadernos do PET Filosofia, Vol.7, n.13, Jan-Jun, 2016, p.11-23 ISSN 2178-5880 avaliação psicológico sobre a história das ciências e de sua prática, assim, poderíamos promover uma despsicologização dos conceitos científicos, pois, supõe-se, que estes conceitos estejam carregados de “ideologias” produzidos pelos sábios da cidade social, que por sua vez, vivem à margem da cidade científica.

Uma das vantagens da psicanálise do conhecimento objetivo que propomos nos parece ser, precisamente, o exame de uma zona mais profunda do que aquela onde se desenrolam os instintos primitivos; e esta zona por ser intermediária, tem uma ação determinante para o pensamento claro, para o pensamento científico”.18

Na interpretação de Lecourt19, Bachelard forneceu nessas obras, designadamente,

uma espécie de teoria naturalista da ideologia do novo espírito científico. Aqui, a palavra “ideologia” assume o mesmo sentido de “valores subjetivos inconscientes”, que intervêm na atividade científica; já a palavra “naturalista”, revela a tendência a um purismo que deve ser alcançado pela prática científica por meio da supressão dos obstáculos epistemológicos que a tornam incauta.

II. Vertente poética

Em sua fase noturna, Bachelard se preocupa com uma prática não discursiva pelas imagens. Distintamente do modo como ele havia formulado seu pensamento crítico a respeito das imagens inconscientes amalgamadas ao conhecimento científico, em um segundo momento, o pensador se aproxima das imagens literárias criadas pelos poetas na tentativa de compreender melhor, através de suas produções, o funcionamento do núcleo das imagens, se pudermos assim nos referir. Por um viés ontológico, o pensador elabora sua teoria da Imaginação Material. Nessa teoria, o filósofo irá nos fornecer um diagrama completo de leitura das obras poéticas de diversos autores que lhe inspiraram por meio das imagens dos quatro elementos materiais (água, terra, fogo e ar) oferecidas em suas poesias. Dentre alguns poetas lidos e analisados por Bachelard, citamos: Bousquet, Shelley, Blake, Poe, Novalis, Stefan Zweig, Charles Boudouin, Woolf, Conrad, Rilke, Breton, Guide, Hoffmann, George Sand, Michelet, Rousselot, Rimbaud, Baudelaire, Apollinaire, Mallarmé, Éluard e uma lista quase que infindável de autores. Os elementos materiais presentes nas obras destes poetas funcionam como arquétipos do inconsciente coletivo. Quando essas imagens materiais são apanhadas pelo onirismo, prontamente, elas se transfiguram em “devaneio poético”. Os elementos materiais tidos como “imagens-princípios” deixam de existir enquanto realidade material e passam a fazer parte de um realismo fantástico evocado pelos devaneios da matéria. Por conseguinte, Bachelard propõe uma teoria da imaginação que acaba por estabelecer a própria imaginação como sendo um reino autônomo do pensamento, com suas próprias leis e refúgios, que supera a percepção em importância e que estabelece um novo fluxo que vai agora do “imaginário para o real”.20

O método estabelecido por Bachelard para sustentar suas definições bem localizadas de imagem e de imaginação material em sua fase poética permanece sendo o psicanalítico, porém, se distingue da abordagem metodológica aplicada em sua fase epistemológica por meio da psicanálise do conhecimento objetivo que visava eliminar as imagens negativas da prática científica, como explicamos anteriormente. Este novo período de pensamento vai de “La psychanalyse du feu” (1938) até “La terre et le revêries du Repos” (1947),

18Ibidem, p.18.

19 LECOURT, D. Bachelard le jour et la nuit. Paris: Grasset, 1974, p. 126.

20 FELECIO, V. L. G. A imaginação simbólica nos quatro elementos bachelardianos. São Paulo:

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muito embora, o filósofo acreditasse que algumas pesquisas psicanalíticas, como a freudiana, por exemplo, fossem insuficientes para explicar a constituição do reino liberto da imaginação. Um fato interessante ao lermos as obras epistemológicas de Bachelard, à medida que simultaneamente adentramo-nos nos estudos de suas obras de imaginação literária, é o fato de que quanto mais progredimos na análise de ambos os campos de pensamento do filósofo, mais demarcamos a diferença que se esboça entre o caráter excêntrico de suas teses psicanalíticas em franca oposição com as teses psicanalíticas freudianas, de seus contemporâneos, ou mesmo predecessores, “a tal ponto, que seus últimos escritos continuam uma crítica radical das teorias que ele denominou dali em diante de ‘psicanálise clássica”.21 Por isso, ele nunca seguiu com rigidez os preceitos psicanalíticos,

até porque, os métodos psicanalíticos tradicionais existiam para tratar das impressões internas dos sujeitos neuróticos, histéricos ou de traços clínicos variados que vinham à tona nas seções de transferência por meio de imagens recalcadas no inconsciente por força maior do superego. Segundo a interpretação proposta por Lecourt22, o que Bachelard

indica é uma dissociação entre a teoria analítica e uma ideia de terapêutica analítica da psicanálise. As referências a Jung e Adler sempre foram mais frequentes em suas obras que suas as referências à figura de Freud. Bachelard nunca escondeu, apesar de todos os riscos, que gostaria de estender a psicanálise a um domínio que ela nunca havia acessado. Outro ponto que incomodava bastante Bachelard em relação à teoria metapsicológica freudiana era que as imagens acabavam por se converter tão somente em simbolismos sexualistas, o valor dessa conversão se fixava no cerne da clínica de Freud, e na opinião do filósofo, as imagens eram desvirtuadas em detrimento de apenas um dos sentidos que as imagens podem formar, ou seja, o abstrato-sexual. Em vista de todos os desacordos com a teoria freudiana, Bachelard se aproxima da psicanálise de C.G. Jung. Nesse período em que Bachelard se aproxima da “psicologia profunda” do psicanalista suíço, Jung já havia rompido com a psicanálise clássica de Freud através de sua teoria dos arquétipos inconscientes que trabalhavam como símbolos motores da alma e também por se distanciar da teoria freudiana das imagens que sempre tendiam para uma interpretação sexualista. Assim, Bachelard usufrui de alguns elementos da teoria psicanalítica de Jung, o filósofo passa a identificar a imaginação poética como um “reino autônomo que escapa à causalidade psíquica”23. Além do que, Bachelard deixa à psicanálise clássica “os sonhos

noturnos entulhados de ouropéis e dos dossiês do nosso comércio com o outro, dos arquivos processuais de nosso fundo de loja mental: só há nela sindicâncias em curso, ressentimentos e transações entre erotismo e o crime”.24 No lugar do sonho noturno o

nosso filósofo assenta o “bom devaneio” acordado, que entra de “corpo e alma na substância da felicidade”.25

A partir de sua obra “La poétique de le espace” (1957), Bachelard modifica seu ponto de vista e o modo de conduzir seus estudos a respeito das imagens. Ele substitui sua interpretação psicanalítica das imagens materiais pelo método fenomenológica da imaginação. Podemos observá-lo definir seu novo método nos seguintes termos:

Pelo menos, a fenomenologia tem boas razões para tomar a imagem poética em seu próprio ser, em ruptura com um ser antecedente, como uma conquista

21 LECOURT, D. Bachelard le jour et la nuit. Paris: Grasset, 1974, p. 122. 22 Ibidem, p.123.

23 BARBOSA, E; BULCÃO, M. Bachelard: pedagogia da razão, pedagogia da imaginação. 2.ed.

Petrópolis: Vozes, 2004, p.44.

24 QUILET, P. op. cit., p.135.

25 BACHELARD, G. A poética do devaneio. Tradução Antônio de P. Danesi. 3.ed. São Paulo:

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positiva da palavra. Se déssemos ouvidos ao psicanalista, definiríamos a poesia como um majestoso Lapso da palavra.26

Essa transição de um método psicanalítico das imagens para um método fenomenológico das imagens demarca a grande mutação que sofreu sua filosofia poética. Em suas últimas três obras da fase noturna Bachelard renuncia abertamente o vocabulário da psicanálise clássica para adotar o vocabulário fenomenológico.27 A esse respeito

Bachelard diz:

Em nossos trabalhos anteriores sobre a imaginação, tínhamos considerado preferível situar-nos, tão objetivamente quanto possível, diante das imagens dos quatro elementos da matéria, dos quatro princípios das cosmogonias intuitivas. Fiel a nossos hábitos de filósofo das ciências, tínhamos tentado considerar as imagens fora de qualquer tentativa de interpretação pessoal. Pouco a pouco, esse método, que tem a seu favor a prudência científica, pareceu-nos insuficiente para fundar uma metafísica da imaginação.28

O alerta dado pelo filósofo versa que se quisermos adentrar no reino da imaginação, em busca da novidade do instante poético das imagens reveladoras de mundos, cada indivíduo que pratique e alimenta um racionalismo ativo pela ciência deve, necessariamente, romper de imediato com esses hábitos de pesquisa. “Por sua novidade, por sua atividade, a imagem poética tem um ser próprio, um dinamismo próprio. Ela advém de uma ontologia direta. É com essa ontologia que desejamos trabalhar”.29 Bachelard

havia percebido que sua primeira interpretação das imagens materiais estava sobrecarregada de objetividade. Em um terceiro momento, partindo do método fenomenológico da imaginação, o filósofo tentou restituir o caráter puramente subjetivo, próprio das imagens, que segundo ele tornara-se oculto em sua interpretação imagética-materialista das poesias.

Fiel a nossos hábitos de filósofo das ciências, tínhamos tentado considerar as imagens fora de qualquer tentativa de interpretação pessoal. Pouco a pouco, esse método [objetivo], que tem a seu favor a prudência científica, pareceu-nos insuficiente para fundar uma metafísica da imaginação [...] Pareceu-nos então que essa transubjetividade da imagem não podia ser compreendida em sua essência só pelos hábitos das referências objetivas. Só a fenomenologia — isto é, o levar em conta a partida da imagem numa consciência individual — pode ajudar-nos a restituir a subjetividade das imagens e a medir a amplitude, a força, o sentido da transubjetividade da imagem.30.

Partindo desse terceiro momento bachelardiano de interpretação das imagens poéticas, ressaltamos: o único caminho a ser percorrido na tentativa de restituir e capturar o caráter intersubjetivista da imaginação e das imagens seria por meio de um método estritamente fenomenológico, que em si, não se assemelha absolutamente em nada com o método psicanalítico usado anteriormente, tanto em vias de pensar as imagens presentes no conhecimento objetivo ou no conhecimento subjetivo. O mérito de uma fenomenologia da imaginação consiste na exclusão das considerações causais da interpretação psicanalítica da matéria, assim como, da revisão das noções de arquétipo e da apreensão da imagem-objeto

26 Ibidem, p.3.

27 LECOURT, D. Bachelard le jour et la nuit. Paris: Grasset, 1974, p. 123.

28 BACHELARD, G. O direito de sonhar – col. Os Pensadores. Tradução Joaquim José Moura

Ramos. 1.ed. São Paulo: Abril Cultural, 1978, p.184.

29 Ibidem, p.183. 30 Ibidem, p.184-185.

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em seu ponto de partida, em estado genuíno, instantaneamente. Segundo Bachelard, o método fenomenológico é o único “capaz de captar a imagem enquanto atualidade”.31

Todos estes fatores não fazem nada mais que fundar uma metafísica da imaginação através da significação pura e imediata das imagens. Assim sendo, imaginação e razão se constituem como pensamentos que esteiam a vida humana a lançando frente ao devir. Embora opostas, imagem e conceito, em todo seu dinamismo, tornam-se criadoras de mundos e de realidades. Como disse Lecourt32, a teoria poética, de certa maneira, se

projeta como uma realidade que preenche certas ausências e carências dos conceitos epistemológicas. Diríamos que o mesmo fluxo de pensamento escorre da epistemologia em direção à poética, preenchendo o buraco deixado pelas teorias estéticas e análises literárias que primam pelo excesso de abstração.

III. A descontinuidade temporal na epistemologia e poética bachelardiana como eixo nodal de sua reflexão filosófica

Em meio a essas duas vertentes muito bem delineadas do pensamento bachelardiano (que expusemos sinteticamente até aqui), subjazem duas obras peculiares. Elas abordam o tema e a problemática a respeito do tempo que transpassa toda a tradição do pensamento ocidental. Essa problemática ainda causa ressonância em nossa época e permanece sendo uma questão enigmática a ser debatida. As obras são: a “Intuição do

instante” (1935) e “A dialética da duração” (1936). É conveniente observarmos que essas duas

obras são escritas em um momento curioso do pensamento bachelardiano, pois, funcionam como uma espécie de ponte entre a fase diurna e noturna do autor. Esse fato não é mera coincidência. De um lado, em sua epistemologia, Bachelard percebe que a novidade conferida pelo instante permite que a história da ciência seja pensada descontinuamente por meio dos re-começos estabelecidos em seus métodos e abordagens que permanecem em um processo eterno de reformulação, “portanto o processo de estabelecimentos das verdades científicas é um processo sem fim”.33 O problema da prática científica é posto por

Bachelard como o redescobrimento das verdadeiras causas destes problemas através de uma análise do processo histórico do conhecimento científico como sendo constituído como uma série de “ilusões epistemológicas”. Portanto, visando não só libertar o leitor das intuições vulgares sobre tempo, mas também, realizar o refinamento de sua tese central do tempo a partir do instante, Bachelard irá se voltar para a ciência de sua época com a intenção de apontar para os filósofos de profissão e para os homens de opiniões que “a prática das ciências poderia ser o lugar onde se construiriam os valores racionais melhores assegurados”34 através das aquisições da ciência contemporânea. O próprio Bachelard

profere: “poucos pensamentos há que sejam filosoficamente mais variados que o pensamento científico. O papel da filosofia das ciências é de recensear essa variedade e mostrar o quanto os filósofos se instruiriam se quisessem meditar sobre o pensamento científico contemporâneo”.35 Por exemplo, no capítulo VII de “O racionalismo aplicado”,

Bachelard apresenta algumas formulações claras da distinção entre a ordenação das cores no estudo da Física, por um lado, e, por outro, uma ordenação das cores formada pelo sentido sensualista de primeira aproximação da biologia mesclada à interpretação psicológica. Partindo deste exemplo Bachelard conclui: “é preciso chegar à ciência contemporânea geral das radiações para bem situar a ciência especial das radiações

31 BARBOSA, E; BULCÃO, M. op. cit., p.48.

32 LECOURT, D. L'épistémologie historique de Gaston Bachelard. Paris: Vrin, 1978, p.40. 33 LECOURT, D. Bachelard le jour et la nuit. Paris: Grasset, 1974, p.75.

34 Ibidem, p.64.

35 BACHELARD, G. O racionalismo aplicado. Tradução Nathaniel C. Caixeiro. Rio de Jeneiro:

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Cadernos do PET Filosofia, Vol.7, n.13, Jan-Jun, 2016, p.11-23 ISSN 2178-5880 luminosas”36, pois, o “conhecimento sensível, o conhecimento vulgar, o conhecimento das

cores materializadas na paleta”37, por vezes, não revela o comprometimento fundamental com

o mais profundo das pesquisas científicas de segunda aproximação, como detém naturalmente a física contemporânea, pois, por meio dela, constatou-se a extensão dos estudos dos raios hertzianos e raios-X que culminaram nos estudos dos raios gama que especificam a ordenação linear das frequências luminosas das cores para além do nível sensível-biológico retiniano. O que anseia Bachelard com essa comparação explicativa, exposta em seu livro, rememorada aqui por nós, é definir a importância do realismo técnico-científico de segunda aproximação dos estudos físicos que está comprometido com a desmaterialização da experiência comum. A extensão dos métodos e a multiplicação dos objetos de pesquisa estabelecidos pelas novas disciplinas científicas não atraem a atenção dos filósofos; eles acreditam poderem se instruir a partir de situações elementares, aceitando sem discussão o postulado de que o conhecimento sobre o real advém tão simplesmente do conhecimento sensível de primeira aproximação. Deste modo, Bachelard irá ressaltar que certas aquisições confirmadas em dois campos distintos da física contemporânea romperam nitidamente com a “cultura geral” sobre o tempo, assim como ocorreu com as aquisições demonstradas nos estudos dos raios luminosos pela física contemporânea em relação aos estudos simplificados de primeira aproximação das cores. No que concerne o tema do tempo, referimo-nos especificamente às aquisições promovidas pela teoria da relatividade einsteiniana e das teorias físicas do campo da quântica e microfísica. Junto a Einstein, Bachelard pôde demonstrar: 1) que não existe uma duração absoluta; 2) como o espaço, o tempo também pode contrair-se; 3) que a noção de contínuo espaço/tempo da física é a única capaz de provar e apontar o instante (enquanto um ponto do espaço/tempo) como a síntese adequada do eixo de congruência entre lugar e presente. Junto aos postulados da microfísica, Bachelard legitimou: 1) O realismo de primeira aproximação pode ser abandonado se tivermos a intenção de descer ao registro mais ínfimo das experiências do tempo subatômico dos quanta; 2) que a noção de instante serve de fundamento para o tempo da microfísica, pois os corpúsculos existem na medida em que seus impulsos energéticos e radioativos recebem apenas o dom do momento.38.

Por outro lado, em sua fase poética, a noção de instante constitui um papel tão crucial quanto àquele estabelecido em seu pensamento epistemológico, diríamos até, que o instante é inspiracional e motivacional para a poesia e para a criação artística, pois é a partir dele que as imagens poéticas são produzidas no isolamento solitário do artista que desbrava e desvenda novos horizontes. O tempo em poesia se torna emergencial porque confere outra vida ao homem por meio das imagens. Pelas imagens, nos é delegado o papel de criadores e partícipes das realidades oníricas, dos sonhos acordados (devaneios). Para Bachelard, as noções de sonho e de devaneio se opõem drasticamente. Por meio do devaneio um mundo novo se forma diante de nós, um mundo que nos pertence, um mundo positivo, benigno, leve. “Veremos que certos devaneios poéticos são hipóteses de vidas que se alargam a nossa vida dando-nos confiança no universo”.39 A oposição tona-se

acentuada entre sonho e devaneio porque o filósofo crê que a noção de sonho está carregada de definições psicanalíticas que exploram as imagens negativas, traumatizantes, aterrorizantes que vêm à tona durante nosso sono noturno.

Para um sonho que se conta ao regressar à luz do dia, quantos sonhos cujo fio se perdeu! O psicanalista não trabalha nessas profundezas. Acredita poder explicar

36 Ibidem, p.137. 37 Idem.

38 BULCÃO, M. op. cit., p.189.

39 BACHELARD, G. A poética do devaneio. Tradução Antônio de P. Danesi. 3.ed. São Paulo:

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as lacunas sem atentar para o fato de que esses buracos negros, que interrompem a linha dos sonhos contados, são talvez a marca do instinto de morte que opera no fundo de nossas trevas. Muitas vezes só um poeta pode oferecer uma imagem dessa remota pousada, um eco do drama ontológico de um sono sem memória, quando o nosso ser se viu talvez tentado pelo não-ser.40

.

Parece-nos claro, que as imagens poéticas não são as imagens engendradas pelo senso comum, que nos lançam no tempo cotidiano, cálido e linear. Elas são necessárias, pois nos livram do sonho noturno cansado e nos lançam às profundezas repousantes do devaneio acordado através da poesia. Poesia que abre mundos, que cura e que desperta. Assim, o estudo da poesia e do tempo pode amparar-se. Segundo Bulcão,

É no instante que as imagens emergem no eu do poeta, permitindo que este viva num só instante todas as ambivalências da vida. A imagem vivida pelo poeta, fruto do instante, é única, não tem passado, não tem antecedentes, não possui causa, pois nada a determina, nada a continua. Como o instante a imagem emerge para logo em seguida morrer. Viver uma imagem é ter num único instante uma visão plena e total do universo.41

Na poesia de Lautréamont, por exemplo, Bachelard encontra a transcrição poética perfeita da violência instantânea em estado manifesto. A forma animal, em os “Chants de

Maldoror”, não são imagens retiradas da natureza como as descrevemos corriqueiramente.

As imagens reunidas no bestiário de Ducasse são induzidas pela ação, pelo gesto instantâneo, pela vontade latente. “A obra de Lautréamont é agressão pura no próprio estilo em que se fala de poesia pura”.42 Nesta obra, a vontade de agressão primitiva dos

homens, abrigada em sua psyché, transmuta-se poeticamente em pura violência animal através da supervalorização do instante, fruto de um tempo de investida visceral, como quando um gato preto salta sobre sua presa, nesse ato, jaz um instante particular, um “instant du mal” a priori, anterior a qualquer definição física ou fisiológica do impulso do salto, há somente “o instante simples e criminoso da decisão”, como dissera Bachelard de maneira bem humorada.43 Lautréamont realiza a superação comezinha da imagem literária

do humano demasiado humano presente nas obras de G.H.Wells, Laconte de Lisle, Sade e Kafka, por exemplo. Necessita-se, com efeito, passar do reino da imagem sedutora dos homens para o reino da ação instantânea das imagens poéticas ativas de Lautréamont, poesia erigida da cólera, que se opõe firmemente à poesia encantadora, pois, no mundo ducassiano, não há espaço para um encantamento pela vida que não seja aquele resultante do gesto que agride, surpreende e “a-garra”. “Submetido à sua função específica de agressão, o animal não é mais que um assassino especializado”.44

O Lautréamont portanto não é verdadeiramente a analítica fantástica da animalidade: ele representa na obra de Bachelard a Poética do Tempo, é a transcrição onírica da Dialética da Duração. A agressão carnívora é a metáfora da temporalidade bachelardiana descontínua do instante.45

.

40 Ibidem, p.141.

41 BULCÃO. M. op. cit., p.190. 42 QUILET, P. op. cit., p.95.

43 BACHELARD, G. A intuição do instante. Tradução Antonio de P. Danesi. 2.ed. Campinas: Verus,

2010, p.37.

44 BACHELARD, G. Lautréamont. Tradução Fábio Ferreira de Almeida. Goiânia: Ricochete, 2013,

p.137.

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Cadernos do PET Filosofia, Vol.7, n.13, Jan-Jun, 2016, p.11-23 ISSN 2178-5880 Lautréamont é uma espécie de metáfora que revela a síntese dos conceitos de vida e tempo nas duas obras bachelardianas da década de 30 sobre o tempo. “Com Lautréamont estamos no descontínuo dos atos, na explosiva alegria dos instantes de decisão”.46 O que espera

Bachelard de Lautréamont? O próprio filósofo escreve:

Em seguida, é preciso partir deste repouso da imaginação para reencontrar razões de pensamento seguramente desanimalizados, liberto de todo treino, ao abrigo do hipnotismo das imagens, nitidamente desligado das categorias do entendimento que são concreções de prudência espiritual, “estados fósseis do recalque intelectual”. Teremos, assim, devolvido a imaginação à sua função de experimentação, de risco, de imprudência, de criação.47

Concluímos alegando que o primado do instante sustenta não só a poesia de Lautréamont, mas também, a metafísica temporal de Bachelard. Além do que, conecta os temas da poesia e do tempo. Acreditamos que por meio da temática da descontinuidade temporal poderemos compreender melhor a unidade de todo o seu pensamento, seja ele epistemológico ou poético, já que ambas as vertentes de sua filosofia trocam valores com suas obras metafísico-temporais da década de 30. A descontinuidade científica enquanto crítica histórica de sua prática gera a atualização constante de seus métodos em um tempo que não pode ser supervalorizado ad infinitum, porque Bachelard acredita que não existe uma duração contínua do saber científico. A descontinuidade da poesia advém do instante da criação solitária do poeta que sempre se renova, assim, não existe arte que não possa reformar e recriar o ser do homem frente ao mundo a não ser essa que se apoie no instante de novidade da criação poética. Sendo assim, a metafísica temporal de Bachelard pode nos revelar um dos pontos precisos de conexão que se estabelece entre as duas vertentes de seu pensamento. Outra possível conciliação entre diurno e noturno poderia ser incitada por meio dos estudos sobre as imagens, como apresentamos sinteticamente aqui, que por vezes são negativas quando participam da construção do conhecimento objetivo, sendo suscetíveis de serem psicanalisadas, e quando, por vezes, são tidas como positivas, na medida em que constituem o reino autóctone da imaginação criadora subjetiva. Mas um alerta seja feito: as imagens participam em igual importância na edificação das duas fases do pensamento bachelardiano, compreender as imagens em sua atividade de pensamento diurna e noturna pode funcionar como uma bússola norteadora frente aos meandros e sinuosidades da filosofia dialética de Gaston Bachelard.

46 BACHELARD, G. Lautréamont. Tradução Fábio Ferreira de Almeida. Goiânia: Ricochete, 2013,

p.20.

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Referências

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______. A formação do espírito científico. Tradução Estela dos Santos Abreu. 5.ed. Rio de Janeiro: Contraponto. 1996.

______. A intuição do instante. Tradução Antonio de P. Danesi. 2.ed. Campinas: Verus, 2010. ______. A poética do devaneio. Tradução Antônio de P. Danesi. 3.ed. São Paulo: Martins Fontes, 2009.

______. A poética do espaço. São Paulo: Martins Fontes, 1993.

______. A psicanálise do fogo. Tradução Paulo Neves. São Paulo: Martins Fontes, 1994b. ______. Lautréamont. Tradução Fábio Ferreira de Almeida. Goiânia: Ricochete, 2013. ______. O ar e os sonhos. Tradução Antônio de P. Danesi. São Paulo: Martins Fontes, 1990. ______. O racionalismo aplicado. Tradução Nathaniel C. Caixeiro. Rio de Jeneiro: Zahar, 1977.

______. O novo espírito científico. Lisboa: Edições 70, 1996.

BARBOSA, E; BULCÃO, M. Bachelard: pedagogia da razão, pedagogia da imaginação. 2.ed. Petrópolis: Vozes, 2004.

BULCÃO. M. O racionalismo da ciência contemporânea: introdução ao pensamento de Gaston

Bachelard. Aparecida: Ideias & Letras, 2009.

CANGUILHEM, G. Estudos das ciências na obra epistemológica de Gaston Bachelard. In: ______. Estudos de história e filosofia das ciências. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2012, p. 181-196.

______. Gaston Bachelard e os filósofos. In: ______. Estudos de história e filosofia das ciências. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2012, p. 196-206.

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Texto recebido em: 06/10/2015 Aceito para publicação em: 12/05/2016

Referências

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