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Gentes das Ilhas: migração açoriana para o Rio Grande de São Pedro

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Gentes das Ilhas: migração açoriana para o Rio Grande de São Pedro

Ana Silvia Volpi ScottSilmei de Sant´Ana Petiz

Palavras-chave: migração; população açoriana.

Trabalho apresentado no XVIII Encontro Nacional de Estudos Populacionais, ABEP, realizado em Águas de Lindóia/ SP – Brasil, de 19 a 23 de novembro de 2012.

Unisinos (RS).

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Gentes das Ilhas: migração açoriana para o Rio Grande de São Pedro1

Esta comunicação está vinculada a uma discussão mais ampla relativa aos diferentes regimes demográficos que teriam caracterizado o passado brasileiro. Aventa-se a possibilidade da existência de um regime demográfico restrito aos colonos açorianos, caracterizado por formas de colonização peculiares baseadas em uma economia de regime familiar, reconstruídas na colônia, a partir da migração dos arquipélagos atlânticos nos meados do século XVIII. Testar esta hipótese compõe a tarefa primordial dessa investigação que está dando seus passos iniciais. Contudo, para esta apresentação discorreremos sobre um caso específico que lança questionamentos sobre as estratégias empreendidas pelas gentes das

ilhas2

De acordo com estudos recentes que discutem a vida quotidiana dos açorianos pelas freguesias do Rio Grande de São Pedro a partir dos meados do século XVIII e experiência migratória teria sido marcada por muitas dificuldades por conta da conjuntura da época (demarcação dos territórios subordinados às coroas ibéricas, p. ex.) assim como, por problemas ligados ao cumprimento das determinações régias de demarcação e distribuição das terras, instrumentos e demais quesitos prometidos para a fixação dos açorianos no novo território. Tal situação teria provocado uma grande instabilidade, gerando a necessidade de improvisação de novas formas de viver a fim de suportar as dificuldades (Graebin, 2006:203).

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Iniciado pela vila do Rio Grande, os açorianos foram ocupando outros espaços (obedecendo a uma estratégia da Coroa portuguesa) alcançando as freguesias de Viamão, Porto Alegre e Rio Pardo. O fato de que a demarcação de terras só teria sido iniciada a partir de 1764 acarretou a instabilidade referida, e uma vida em trânsito, sem poder demorar muito em cada lugar, sem poder criar raízes, vivendo provisoriamente de um arranchamento para outro, esperando a concretização das promessas reais (Graebin, 2006:206-207).

Outra característica assinalada pela mesma autora aponta para o fato de que os “açorianos ficaram reduzidos à maior pobreza”, tendo em vista as contribuições que tiveram que fazer para as tropas da expedição de Gomes Freire de Andrada, que comandava a área submetida a inúmeros conflitos, seja com castelhanos, seja com as populações indígenas. Diante dessas condições precárias os colonos açorianos procuraram através do trabalho (em atividades variadas) encontrar os meios que garantissem a sobrevivência do grupo.

Muitos desses açorianos dedicaram-se à produção agrícola, plantando trigo, abóbora, feijão, couve cebola, mandioca, milho, frutas variadas. Em algumas propriedades havia moenda e moinho, este último para a produção de farinha de trigo, assim como atafona para produzir a farinha de mandioca. Criavam animais domésticos e, dependendo da região, poderiam dedicar-se à pesca. Alguns deles também se dedicaram ao tropeirismo. Em relação aos escravos, Graebin afirma que “a posse [...] era um fato entre parte dos açorianos” (2006:217).

De todo modo, a imagem que fica é aquela que está em acordo com o princípio que norteia a hipótese de um regime demográfico peculiar, caracterizado por formas de colonização peculiares baseadas em uma economia de regime familiar, reconstruídas na

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Esta comunicação é parte do projeto Gente das Ilhas: trajetórias transatlânticas dos Açores ao Rio Grande de

São Pedro no século XVIII, que conta com o auxílio da FAPERGS e do CNPq. Os autores agradecem a

essas instituições pelo apoio financeiro concedido.

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Chamamos a atenção para o fato de que Hameister (2006:) faz uma análise crítica em relação a essa expressão. Não cabe no momento entrar no mérito dela, mas é, sem dúvida, uma questão que merece ser

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colônia, a partir da migração dos arquipélagos atlânticos nos meados do século XVIII. Mas, até que ponto, essa afirmação se sustenta? Essa questão assume um lugar importante nessa pesquisa, especialmente ao lançar mão dos trabalhos de Martha Hameister que também se ocupa com o estudo dessa população de origem açoriana (no sentido geográfico do termo – aqueles que são naturais do arquipélago). A autora procura matizar esse quadro homogêneo de “pobreza generalizada” que teria sido a “marca” desse contingente migratório, focando sua atenção na percepção da diferenciação social nas famílias que saíram dos Açores e chegaram ao Continente do Rio Grande de São Pedro.

Além disso, Hameister aborda também a questão da motivação que teria estimulado a vinda dos ilhéus para o território português na América, revisitando o tema do “excesso de população” ou superpopulação, a partir de um enfoque diferente. Quando se argumentava que o arquipélago padecia desse problema, não quer dizer, necessariamente, que possuísse uma população numericamente exagerada em termos absolutos, mas sim que o exagero, ou desequilíbrio, estaria na relação desse número de habitantes com os recursos disponíveis, ou a disponibilidade das terras para a população lá radicada.

A partir desse ponto, Hameister acrescenta uma variável que joga outras luzes sobre essa discussão, ao refletir sobre o impacto que os regimes sucessórios não igualitários teriam sobre aquelas populações. Assim, considerando que o sistema de heranças e propriedades vigentes em Portugal excluía sistematicamente parcelas da população do acesso à terra, obrigando-os a abandonar a exploração agrícola (Apud Pedreira 1995, in Hameister 2006:207) pode-se entender que o excesso populacional vinculava-se aos desdobramentos de um regime de heranças que dava acesso restrito aos recursos disponíveis.

O deslocamento dessa população “excedente” resolvia a situação dos menos aquinhoados, aliviando a situação nas ilhas, ao mesmo tempo em que propiciava o acréscimo do número de povoadores para os territórios americanos. Por outro lado, também representava uma “válvula de escape” para os filhos segundos das famílias melhor posicionadas na hierarquia social, mas que eram preteridos no sistema sucessório em vigor, que privilegiava alguns filhos em detrimento de outros.

Nesse sentido há que se aprofundar a análise das diferenciações sociais existentes entre a população açoriana que migrou para os confins meridionais sob domínio luso, nos meados do século XVIII.

Seguindo essa linha de raciocínio é que apresentamos algumas reflexões sobre o grupo de colonos açorianos que se instalaram nas vastas plagas do Rio Grande de São Pedro nos anos setecentos.

Portanto, um dos estímulos para aprofundar a análise da população de origem açoriana que se radicou no Rio Grande de São Pedro, a partir dos meados do século XVIII surgiu de pesquisa anterior que se preocupava com o estudo das famílias escravas na freguesia, e mais tarde, vila de Rio Pardo3

A partir do cruzamento nominativo de variado conjunto de fontes recolhemos os vestígios deixados pela família Simões Pires e, por meio dos fragmentos recuperados, teceremos considerações sobre a inserção dos açorianos na região fronteiriça de Rio Pardo a partir dos meados do século XVIII, que nos dá elementos para problematizar a homogeneidade da pobreza da população em questão.

. Em meio às escravarias estudadas, emergiu o caso de uma família de origem açoriana que se radicou na freguesia de N.S. do Rosário de Rio Pardo, nos meados do século XVIII e que acabou revelando estratégias de inserção e enriquecimento de alguns indivíduos naturais dos Açores.

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Petiz, S. S. (2009). Caminhos cruzados: famílias e estratégias escravas na fronteira oeste do Rio Grande de São Pedro (1750-1835). São Leopoldo: Unisinos (Tese de Doutorado).

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Nosso personagem principal é Mateus Simões Pires, comerciante, rico proprietário de terras, gado e escravos, que viveu em Rio Pardo, entre 1755 e 1819. Mateus nasceu na freguesia de São Sebastião, Ilha Terceira, arquipélago dos Açores, em 1724.

Mateus casou-se em Rio Grande (por procuração) com Catarina Ignácia da Purificação, também açoriana, natural da freguesia de São Miguel, também da Ilha Terceira. Catarina faleceu em Rio Pardo, em 1817. Mateus faleceu na mesma localidade, com 95 anos, de tifo, em 1819. O casal deixou dois filhos: Vicência Joaquina e Antônio Simões Pires.

No tempo em que essa família se instalou em Rio Pardo, essa localidade correspondia a um vasto território (toda Fronteira Oeste do Rio Grande), então disputado pelas coroas ibéricas. Para colonizá-lo e facilitar o domínio português, foram distribuídas sesmarias. Tais propriedades foram doadas ao longo do século XVIII e nas primeiras décadas do século XIX como estratégia militar para efetivar a conquista. Favorecido por essas circunstâncias, em 1792, Mateus recebeu a doação de uma sesmaria, pelas razões apontadas em trecho de documento que se reproduz abaixo:

[...] atendendo a representar-me Mateus Simões Pires, morador do Quartel de

Rio Pardo, que vive de seu negócio de fazendas secas o qual tinha porção avultada de animais vacuns e cavalares por ter recebido em pagamento das mesmas, e por não ter onde os prender e criar e do outro lado do rio Tabaquã se acharem um rincão devoluto, que confrontava pela borda do Sudeste com o Tabaquã Chico e pelo poente, para cuja parte faz frente com as caídas que deságuam nos ditos arroios. O suplicante é casado, e com família, tinha vinte escravos, foi prisioneiro dos espanhóis na ilha de Santa Catarina, donde perdeu vinte e cinco mil Cruzados e, esteve naqueles domínios bastantes anos, e hoje esta pagando o que naquele tempo perdeu, por ser a maior parte alheio, e para melhor poder acodir ao seu crédito e honra: me pedia lhe mandasse passar uma sesmaria [...] (Livro F 1247 f. 69v-70. Arquivo Histórico do Rio Grande do

Sul, grifos nossos).

No ano de 1818 foi aberto o inventário post-mortem4

Partindo desse registro e do cruzamento com o restante da documentação recuperamos algumas características mais salientes dessa família.

de Catarina Ignácia da Purificação, sua esposa. Nos autos do processo encontra-se o orçamento demonstrativo dos bens da herança do casal inventariado, através do qual somos informados que o monte-mor superava os quarenta contos de réis (42:366$402) e que, quase a metade (48,7%) dessa cifra correspondia ao valor da escravaria possuída pelo casal, composta por 62 cativos.

A partir do inventário, retrocedeu-se até 1755, ano dos primeiros registros sobre a presença do patriarca Mateus Simões Pires na região. Através do cruzamento nominativo, mapeou-se mais de meio século visando a capturar vivências que melhor explicassem as estratégias dessa família na região em foco. Muitas dessas informações foram encontradas nos registros eclesiásticos de óbitos e assentos de casamentos. Por conta disso, foi possível rastrear informações sobre os descendentes de Mateus. O cruzamento de todos esses indícios tornou possível reconstruir uma complexa rede de interação parental, que de outra forma permaneceria oculta, e que revela a trajetória desse açoriano para galgar um lugar privilegiado na hierarquia social da localidade de Rio Pardo.

Conforme o inventário post-mortem, o casal possuía, além de um sítio, duas estâncias: a Capivari e a São João. Nessas grandes extensões de terra, o casal dedicava-se à criação de animais. Possuía 5.698 cabeças de gado, sendo 4.560 reses e bois mansos, 820 equinos entre cavalos, éguas, potros e redomões, 218 mulas e 100 ovelhas.

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Inventário Post-mortem Civil e Crime, Vara de Rio Pardo processo n. 22, maço 1, 1818. Arquivo Público do Rio Grande do Sul, APERS.

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Em estudo sobre os comerciantes de Rio Pardo, Souza (1998: 44) verificou que havia dificuldades para efetuar pagamento de compras e saldar compromissos financeiros devido à escassez de moedas e, por essa razão, utilizava-se o “o gado e seus derivados para saldar dívidas, sendo esses largamente aceitos no comércio local”. É provável supor que Mateus e sua mulher também contassem com esses animais, para os mesmos fins já que as fontes consultadas nos informam que o casal havia necessitado de terras “por ter porção avultada de

animais vacuns e cavalares que havia recebido em pagamento de suas fazendas secas”,

conforme fonte citada anteriormente.

O comércio e a criação não foram, contudo, as únicas atividades de Mateus Simões Pires. Ele também se dedicava ao cultivo de trigo e seus negócios vinculavam-se ao comércio de farinha. No sítio do casal há menção à plantação dessa cultura e a indicação da existência de atafona, com roda e prensa para a moenda. Na mesma propriedade consta, ainda, a existência de casa de pouso e “vivenda de comércio”. Tudo isso nos leva a crer que o comércio realizado no seu sítio, que estava localizado nas cercanias do povoado, provavelmente atendesse aos viajantes, à vizinhança e às próprias necessidades de seus moradores. Não se descarta, ainda, que parte dessa produção de trigo fosse acrescida pelo excedente de outros agricultores, que não possuíam recursos próprios e que a farinha também fosse transformada em “moeda de troca”, que favorecia seus negócios com o Rio de Janeiro, uma vez que o trigo juntamente com o couro constituíam os principais gêneros que dessa vila partiam para o comércio com essa cidade.

Mateus, talvez com a intenção de ampliar suas atividades comerciais associou-se a João Pereira Fortes. Era comum naquela época o estabelecimento de sociedades que facilitassem a obtenção de capital para investir (Souza 1998: 120). Assim Mateus Simões Pires estabeleceu uma sociedade com João Pereira Fortes, em 30 de novembro de 1773.

João Pereira Fortes era natural da Freguesia de N. S. do Rosário, Ilha de São Jorge, tendo nascido no ano de 1731. Faleceu em Rio Pardo no ano de 1820. Casou-se em Rio Pardo, no ano de 1756, com Eugenia Rosa, açoriana também, mas natural da Ilha Terceira, tendo nascido na freguesia da Praia, daquela ilha.

Na ocasião em que se dispuseram a firmar a sociedade (1773), ambos compareceram ao cartório do Tabelião Domingos Martins Pereira, em Porto Alegre, para o registro de exploração agropecuária e comercial, declarando que, amigavelmente, tinham povoado uma estância denominada “Guardinha”, na qual possuíam vários animais vacuns, cavalares e crias de bestas muares, com casas e currais; que da mesma forma possuíam do outro lado do Rio Guaíba outra estância chamada “Nossa Senhora do Rosário”, na qual também “possuíam

animais vacuns e cavalares e crias de mulas e que entre ambos possuíam mais seis escravos, a saber: Manoel, Vicente, Mateus, Antônio, José e Raimundo. E que da mesma forma possuíam uns campos em que cada um tinha sua casa e roças, em cujo campo tinham entre ambos uma atafona [...] e que em todos os bens expressados, disseram que de hoje em diante ficavam sócios em tudo que se achassem dentro das ditas estâncias [...] tanto em ganhos como em perdas”5

O contrato que regulamenta essa sociedade nos revela dados importantes para a compreensão das relações e obrigações de cada sócio. Previa que “dos desfrutes de suas

fazendas fariam tropas de mulas que ele sócio Mateus Simões Pires, presentemente, iria dispor a São Paulo”. Outra consideração que deve ser feita refere-se à ligação que Mateus

mantinha no porto carioca. Conforme o contrato, “seriam sócios em todo e qualquer negócio

que da cidade do Rio de Janeiro se fizesse conveniente, tanto em fazendas secas e molhados, como de escravos que se remetesse para a dita cidade” (Rio Pardo).

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Como se vê, Mateus Simões Pires dedicava-se à criação de mulas “que remetia para São Paulo”; trazia “fazenda seca, molhados e escravos”, do Rio de Janeiro para revender na região. Possuía casa de pouso e sítio onde plantava, colhia e fabricava farinha de trigo. Com base nessas diversas atividades, pôde prosperar e muito. Por meio do exame da sociedade que firmou pode-se acompanhar um pouco da sua trajetória pessoal conhecendo que seu empreendimento foi, enfim, exitoso. Ao final de sua vida ele havia aumentado consideravelmente o seu patrimônio pessoal, adquirido campos, gado, e teve multiplicado o plantel de escravos, que passou de 20 indivíduos em 1790 para 62, em 1818.

Efetivamente, quando em 1790 Mateus Simões Pires requereu sesmaria de campos, situados em Bagé, ao Sul do rio Camaquã, o Dr. José de Saldanha deu seu perfil financeiro nestes termos: “o suplicante, bem estabelecido neste quartel, tem uma estância nos galhos do

Capivari que comprou, outra no fundo do Rincão de São Sepé [...], também por ajustes, uma boa chácara perto desta freguesia e grandes casas neste povo [...]”. A estância do Capivari,

com três léguas, estava em sua posse desde 1768, como se depreende do texto de sua carta de sesmaria. Trata-se da estância denominada “Nossa Senhora do Rosário” que, como visto, fazia parte da lista dos bens arrolados na ocasião que firmou sociedade com João Pereira Fortes. O Rincão de São Sepé foi comprado a Manoel de Souza Nunes e demarcado judicialmente, em 17996

Os novos campos que Mateus requereu por título de sesmaria, em 1790, referida anteriormente foram vendidos a Domingos Rodrigues Nunes. Quando sua esposa, Dona Catarina Ignácia da Purificação, ditou seu testamento, aprovado em 13 de maio de 1818, fez constar a declaração de que os bens do casal se compunham de “[...] uma morada de casas

nesta vila, uma chácara, além do Rio Pardo, duas sesmarias de campo em São João e uma sesmaria no Capivari”. A chácara era o remanescente de sua primitiva “data” recebida como

casal de número, povoador de Rio Pardo. Os dois campos no Rincão de São João (ou São

Sepé) eram as sesmarias de “Aroeira” e a do “Rincão das Timbaúvas”, este último medindo três léguas, foi em 1816, transferido com sobras à Inocência Umbelina de Jesus, filha de Antônio Gonçalves Borges, cunhado de Mateus Simões Pires. A sesmaria do Capivari, portanto, identifica-se com a estância “Nossa Senhora do Rosário”, em Encruzilhada, que integrou dos bens da sociedade com João Pereira Fortes

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Esgotada a vigência da sociedade formada em 1773, trataram de dissolvê-la. Mas o documento hábil só mais tarde foi preparado, indicando-se os motivos da demora de sua elaboração. Vejamos seus termos:

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Dizemos, eu Mateus Simões Pires e João Pereira Fortes que sendo verdade que tratamos entre nós uma sociedade por uma escritura pública em 30 de Novembro de 1773, na qual se declarava todas as condições que nela contem e porque se acham as nossas contas justas de parte a parte e não há cousa que duvida faça, por cuja razão determinamos apartar por finda a dita sociedade e dar por invalida a escritura que se passou, e por não haver tabelião nesta presente ocasião em esta povoação do Rio Pardo, se não passou o destrato dela, por cujo motivo passamos um ao outro este papel de quitação em que declaramos que nos demos por satisfeitos completamente de todas as nossas contas, as quais de hoje para todo o sempre, damos por findas, protestando não mover contendas, ou dúvidas aos nossos descendentes no tempo futuro; e para clareza de tudo, passamos este salvo conduto uma a outro, para servir de defesa a qualquer dúvida, que se oferecer; e pedimos às Justiças de Sua Real Majestade, mandem dar inteira validade ao dito papel, e se faltar alguma cláusula, que em direito se faz necessário, a damos por expressas e distintamente declarados; e por nossas esposas não saberem ler, nem escrever, assinaram por elas Caetano Coelho Leal a rogo de Eugênia Roza, e por

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Livro IV do Segundo Notário de Porto Alegre, APERS.

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Catarina Ignácia da Purificação, assinou a seu rogo, Antônio Simões Pires (Distrato de uma Sociedade Rural- In Suplemento Rural – Correio do Povo, 23 de Fevereiro de 1979).

Do tempo em que vigorou a sociedade, João Pereira Fortes também aumentou seus haveres. Além da “Guardinha”, com que ingressou sua participação na sociedade, continuou a comprar campos: em 1780, adquiriu a sesmaria do “Capão Grande” em Cachoeira por compra ao tenente José da Silva Baldaia e também a da “Boa Vista” comprada a Santos Martins em 1783; teve ainda outra denominada “Piquiri que foi vendida por Antônio Gonçalves Borges”, já citado e que era cunhado de Mateus Simões Pires. Além disso, Antônio era casado com D. Joana Roza Pereira Fortes, filha de João Pereira Fortes, nascida em Rio Pardo.

Como podemos perceber, além dos interesses comerciais, esses homens tinham outras conexões que estreitavam suas relações: eram açorianos e possuíam vínculos familiares, incrementados através de alianças matrimoniais.

Por meio dos casamentos, esses açorianos buscaram para si e para suas famílias melhor inserção na sociedade sul-rio-grandense. Essa parece ser uma estratégia recorrentemente utilizada pelos comerciantes que se estabeleceram em Rio Pardo: a maioria deles era, oriundos de Portugal e ilhas - raramente eram nascidos na própria região. Depois da vinda para Rio Pardo muitos desses forasteiros casavam com mulheres naturais da localidade, constituindo-se, assim, o casamento com moças nascidas na terra, em uma estratégia importante para sua inclusão na localidade. Observe-se ainda que essas moças poderiam ser, elas mesmas, também descendentes de famílias de origem açoriana, o que reatualizava ligações das gentes que haviam feito a travessia para o Rio Grande de São Pedro.

Um exemplo dessa situação foi encontrado na família de Mateus Simões Pires e Catarina Ignácia da Purificação. Sua filha Vicência Joaquina (nascida na freguesia do Desterro - Ilha de Santa Catarina) casou-se em Rio Pardo com João de Souza Pimentel, natural da ilha de São Miguel, filho de Francisco de Souza e Vicência Josefa, naturais da mesma ilha. Faleceu com testamento em 1835, não deixou descendência.

O segundo filho de Mateus e Catarina, Antônio, teve uma trajetória diferente. Nasceu em Rio Pardo, em 12 de outubro de 1766 e foi destinado pelo pai a ser comerciante. Para viabilizar esse percurso Antônio foi levado para o Rio de Janeiro, com o fim de receber melhor instrução. Após uma prática de 11 anos voltou do Rio de Janeiro, tendo continuado a atividade de Mateus. Já adulto, ingressou na vida militar e casou-se em 17 de janeiro de 1789 com Maria do Carmo Violante de Queiroz e Vasconcelos, filha do tenente de dragões Alexandre Luiz de Queiroz e Vasconcelos. Pode então ascender em seus objetivos pessoais chegando ao posto de Sargento-mor além de ter feito carreira política como vereador e Juiz de Paz de Rio Pardo. Antônio faleceu com 90 anos de idade na mesma cidade em que nasceu no dia 4 de março de 1856. Teve 14 filhos e deixou, portanto, vasta descendência. Antônio Simões Pires herdou os negócios do pai e manteve as estâncias de criação instaladas na costa do Quarahy, Sarandy, Camaquã e Dom Pedrito. Nessas propriedades, onde se criavam em larga escala gados bovinos e cavalares, não raro eram visitadas por compradores de cavalos para a remonta das tropas de El Rei.

Como se pode perceber, a trajetória dos Simões Pires, recuperada através do cruzamento nominativo de fontes variadas demonstra que as relações estabelecidas passavam na maioria das vezes pela origem comum, das ilhas açorianas, que se reconstruíram e se redimensionavam nas terras do Rio Grande de São Pedro, oportunizando o entrelaçamento desses indivíduos através de alianças matrimoniais e de interesses em negócios variados que, inclusive, colocavam essas famílias nos circuitos mercantis ligados a São Paulo e ao Rio de Janeiro, já no século XVIII. Um conjunto de estratégias variadas foi colocada em prática visando a inserção desses forasteiros que assim tiveram condições de alcançar prestígio social na região que vieram a se estabelecer.

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O estudo da trajetória da família Simões Pires, de Rio Pardo, abre perspectivas interessantes para a ampliação da análise. Nosso projeto, em estágio inicial, conta com os dados relativos aos casamentos e batizados da freguesia da Madre de Deus de Porto Alegre. Uma análise preliminar aponta, como seria de esperar, a presença significativa de açorianos e seus descendentes na Madre de Deus. Analisando-se a referência às naturalidades de noivos(as) que se casaram na Madre de Deus (2.869 casamentos entre 1772-1835) e de pais e avós (paternos e maternos) arrolados nos assentos de batizados (9.047 batizados entre 1772-1825), que perfazem um total de 11.916 assentos coletados, temos 3.894 nos quais as ilhas e freguesias açorianas são citadas ou os Açores são mencionados de maneira genérica.

Isso significa que quase um terço dos indivíduos que casam ou nascem na Madre de Deus tem ascendência açoriana, e que as ilhas que mais contribuíram foram, respectivamente, São Jorge, Faial, Terceira e Pico. Esses dados preliminares apontam para a necessidade de aprofundar as análises e determinar, se possível, as condições sociais e econômicas desses indivíduos e famílias nas terras de origem e analisar suas estratégias de migração e de inserção no Rio Grande de São Pedro, atendendo ao fato de que, longe de ser homogêneo, este grupo de indivíduos e famílias originários do arquipélago teve diferentes motivações e trajetórias variadas desde a origem até a chegada e inserção no Continente de São Pedro. É este um dos objetivos que animam essa investigação, que também pretende avançar para a análise quantitativa do grupo de imigrantes. Propomos, então, a partir de análise agregadas sobre o contingente açoriano, recuperar, através do cruzamento nominativo, as informações relativas aos açorianos que se radicaram em algumas freguesias sul-riograndenses e tentar encontrar dados sobre esses indivíduos nas suas regiões de origem, através da exploração das bases de dados disponibilizadas para um conjunto de freguesias açorianas, trabalhadas pelo Grupo de História das Populações da Universidade do Minho, que compõe a equipe desse projeto8.

Referências:

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Graebin, C. M. G. (2006). Vida cotidiana dos açorianos pelas freguesias e caminho. Boeira, N & Golin, T. (Coord.)

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Souza, Sabrina Silva (1998). Comerciantes em Rio Pardo: Atuações comerciais e relações sociais (1800-1835). Dissertação de Mestrado. Porto Alegre: PUC-RS.

Referências

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