Aborto, Fecundidade e Criminalidade:
uma visão de demografia econômica
Ari Francisco de Araujo Junior Professor e Pesquisador Ibmec Minas arifaj@ibmecmg.br
Resumo
O objetivo desta nota é utilizar uma noção demográfica baseada em Preston (1982) para descrever a relação entre aborto (queda na fecundidade) e redução das taxas de crime sugerida recentemente na literatura empírica de economia da criminalidade. Além disso, a transição demográfica e o caso brasileiro são analisados.
Palavras-chave: Aborto, fecundidade, economia do crime, demografia econômica.
Abstract
The objective of this note is to use a demographic concept based on Preston (1982) to describe the relationship between abortion (decrease in fertility rates) and reducing crime rates recently suggested in the empirical economics of crime. Moreover, the demographic transition and the Brazilian case are analyzed.
1. Introdução: Determinantes das Taxas de Crime
Modelos microeconômicos, em geral, partem da hipótese de que os criminosos potenciais atribuem um valor monetário ao crime e comparam racionalmente este valor ao custo monetário envolvido na sua realização. Este custo inclui o custo de planejamento e execução, outros custos de oportunidade, o custo esperado de serem detidos e condenados e um custo moral atribuído ao ato de desrespeitar a lei (Becker, 1968).
Do ponto de vista empírico, os fatores ou incentivos que captam os benefícios e custos e que exercem influência nas taxas de crime são amplamente conhecidos. Tais incentivos estão relacionados, fundamentalmente, ao ambiente econômico, a aspectos sociais e de background familiar, a fatores demográficos e ao aparato de segurança1. Alguns trabalhos de natureza econométrica foram realizados para o Brasil e, de modo geral, corroboram o esquema teórico acima2.
Além disso, Levitt & Donohue (2001), ao analisar a queda dos índices de violência nos EUA durante a década de 90, encontraram evidências de que uma decisão judicial que deu o direito ao aborto às mulheres nos anos 70 era a causa de parcela substancial da queda da criminalidade nesse período. Duas décadas depois, à época em que as crianças, fruto de gravidez não desejada nos anos 70, estariam alcançando a idade em que o comportamento criminoso é mais provável, a violência caiu (os criminosos potenciais não nasceram). Essa interpretação é corroborada pelo fato de que os estados americanos
1 Para uma análise dos determinantes das taxas de crime ver, por exemplo, Fajnzylber & Araujo Junior (2001). 2 Ver, por exemplo, dos Santos (2009).
que legalizaram o aborto inicialmente foram os primeiros a observar essa queda na violência3. A interpretação desse argumento talvez possa ser entendida a partir da discussão apresentada em Preston (1982).
2. Aspectos Teóricos
Preston (1982) desenvolve relações entre medidas de ciclo de vida e de população com referência a modelos de steady-state. A partir daí, realiza comparações entre tais modelos supondo alterações nas condições de fecundidade e mortalidade de modo a demonstrar os impactos das condições demográficas sobre populações e ciclo de vida.
Na apresentação do modelo utilizado, o autor adota a hipótese de população estável (e estacionária), conceito este relacionado a taxas de mortalidade e nascimento por idade constante para várias gerações (taxa de crescimento da população igual a zero). Além disso, define:
G = prevalência de determinado atributo (distribuição diferenciada por idade). g(a) = proporção de pessoas com idade a apresentando atributo G.
3 A literatura recente de economia da criminalidade apresenta críticas aos resultados de Levitt & Donohue (2001).
c(a) = proporção de pessoas com idade a é igual a:
0 da a p e a p e a c ra rar = taxa de crescimento da população.
p(a) = probabilidade de sobrevivência do nascimento até a idade a.
GP = prevalência do atributo na população em determinado instante do tempo, tal que
0 0 0 da a p e da a g a p e da a g a c G ra ra PÉ possível verificar que condições demográficas podem criar divergência sistemática entre indivíduos e populações. Por exemplo, uma mudança na fecundidade mantendo mortalidade constante (aumento na fecundidade que afete positivamente r) não afetará o ciclo de vida mas afetará as condições da população.
Derivando GP com relação à r, temos:
P G
P P A A G dr dG ou
P G
P P A A dr G dG em que:AP = idade média da população estacionária.
AG = idade das pessoas com atributo G na população estacionária.
O efeito de uma mudança na fecundidade (e, conseqüentemente, da taxa de crescimento da população) sobre a prevalência de G na população depende dos desvios entre a idade média da população e a idade média das pessoas com o atributo G. Se AG < AP, a prevalência de G na população cairá com a redução da fecundidade, caso contrário
a prevalência aumentará. As alterações das taxas de criminalidade (medidas pela taxa de homicídios para cada 100 mil habitantes, por exemplo) tende a cair dado a redução da taxa de fecundidade aliada ao fato que AG < AP, neste caso [supondo que as hipóteses
usadas por Preston (1982) estejam válidas].
Na verdade, esse efeito tem relação com o que os demógrafos chamam de descontinuidade demográfica: no caso dos EUA, na década de 70, uma redução do tamanho das novas coortes devido à redução da taxa de fecundidade. Argumenta-se que
coortes maiores estariam associadas a depressões salariais, aumento da demanda por educação, elevação do desemprego, redução do emprego e a ampliação da criminalidade.
3. Criminalidade: O Caso Brasileiro
Carvalho e Wong (1995) afirmam que temos, atualmente no Brasil, uma situação demográfica favorável, o que estaria criando uma “janela de oportunidade”, devido à queda no tamanho das coortes (redução da taxa de fecundidade). Fazendo uma analogia com os resultados encontrados por Levitt & Donohue (2001), os argumentos sugeridos por Preston (1982) e esta “janela de oportunidade”, é possível que, pelo menos em parte, as taxas de criminalidade sofram, no futuro próximo, uma queda substancial no caso brasileiro.
Hartung & Pessoa (2007) argumentam que é possível fazer uma relação direta entre os resultados de Levitt & Donohue (2001) e os resultados do caso brasileiro. Hartung & Pessoa (2007) mostram que a porcentagem de crianças criadas sem o pai, a porcentagem de filhos de mães adolescentes e taxa total de fecundidade em 1980, afetam positivamente a criminalidade do ano 2000 no estado de São Paulo. Essas variáveis estariam positivamente correlacionadas com a probabilidade de aborto, pois, mulheres que têm filhos em condições mais adversas têm uma chance maior de fazer um aborto. A legalização do aborto reduziria a criminalidade, justamente porque diminui a fecundidade das mães com essas características, que teriam filhos com maior probabilidade de cometer crimes. Desta forma, os autores salientam que seus resultados podem ser tomados como uma evidência adicional, que a legalização do aborto reduziria a criminalidade.
Para dar algum suporte empírico adicional a essa projeção, vale citar Araujo Junior (2002) que, realizando um exercício de decomposição de efeitos idade, período e coorte das taxas de homicídios (1981-1996), mostra que o efeito coorte representa cerca de 23% da variabilidade das taxas de homicídios do estado de Minas Gerais4, por exemplo5.
Gráfico 1: Taxas Brutas de Homicídios (100 mil habitantes) de Minas Gerais
1981 a 1996
Fonte: Araujo Junior (2002).
Gráfico 2: Efeitos Idade-Período-Coorte das Taxas de Homicídios de Minas Gerais
1981 a 1996
4 Como mostra Deaton (1997), muitas variáveis econômicas associadas com o bem-estar, tais como rendimentos,
consumo e poupança, têm perfis de ciclo de vida característicos. Os salários, por exemplo, aumentam normalmente até certa idade emostram-se declinantes em anos subseqüentes. Entretanto, as variáveis em questão também estão sujeitas à variação secular (efeito coorte), assim como aos efeitos de choques temporários (efeito período). Uma alternativa para isolar o perfil de ciclo de vida típico de uma variável é aplicar uma metodologia de decomposição em efeitos idade, coorte e período, tal como proposta por Deaton (1997).
Fonte: Araujo Junior (2002).
Nota: primeiro gráfico – efeito coorte; segundo – efeito idade; terceiro – efeito período.
O resultado geral encontrado em Araujo Junior (2002) sugere que nos Estados nos quais a tendência da taxa bruta é crescente, o efeito coorte é ascendente, ou seja, as coortes mais jovens apresentam taxas específicas de homicídios bem maiores que as coortes mais velhas. A situação inversa também é, em geral, verdadeira, pois quando os Estados apresentam tendência declinante das taxas de homicídios, o efeito coorte é descendente (Gráficos 1 e 2 para o caso de Minas Gerais).
Para angariar evidências adicionais a estes resultados seria útil identificar a importância do tamanho da coorte nas variações das taxas de homicídios, ou seja, testar a hipótese de Easterlin (1978) para o caso brasileiro. Easterlin propõe que as flutuações no tamanho da coorte podem ter um impacto profundo sobre o volume de crimes em uma sociedade, já que os membros de coortes maiores têm oportunidades de vida restritas. Claro, seria necessário testar também se o efeito do tamanho da coorte é diferenciado entre os Estados, visto que Bercovich & Madeira (1990) afirmam que as descontinuidades demográficas não são uniformes geográfica nem socialmente.
Esta nota procurou utilizar uma noção demográfica baseada em Preston (1982) para descrever a relação entre aborto (queda na fecundidade) e redução das taxas de crime sugerida recentemente na literatura empírica de economia da criminalidade. Além disso, a transição demográfica e o caso brasileiro foram analisados.
Hartung & Pessoa (2007) mostram que a taxa total de fecundidade em 1980 afetam positivamente a criminalidade do ano 2000. A redução da fecundidade via transição demográfica reforçada por legislação de legalização do aborto levaria a redução da criminalidade. Evidência empírica adicional sobre redução da fecundidade e do tamanho das coortes sobre as taxas de crimes é apresentada.
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