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Há algo realmente imperdoável?

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Academic year: 2021

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há ALGO REALMENTE IMPERDOáVEL?

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JEAN-ChRISTOPhE MERLE2·

Tradução: Lívia Rosa Franco3

Revisão Técnica e da tradução: Alexandre Trivisonno4

RESUMO

De acordo com a visão prevalecente sobre o perdão, há ofensas graves que não podem ser perdoadas. Essa visão é baseada na suposição que o per-dão é um ato super-rogatório sobre o qual somente a pessoa ofendida pode decidir. Ao contrário disso, este ensaio pretende mostrar que o perdão está submetido a condições normativas e regras da ética social. Seguir essas regras e condições de forma consistente leva à conclusão que não há nada que é re-almente imperdoável, ou seja, nada que uma pessoa não possa perdoar outra pessoa ou a si própria.

Palavras-chave: perdão; condições do perdão; atos imperdoáveis.

ABSTRACT

According to the prevailing view about forgiveness, there are serious offenses that cannot be forgiven. This view is mostly based on the assumption that forgive-ness is a supererogatory act decided by the offended person alone. On the contrary, this paper intends to show that forgiveness is submitted to normative conditions and rules of social ethics. Following these rules and conditions in a consistent way leads to the conclusion that there is nothing that is fundamentally unforgivable; that is to say, nothing that one cannot forgive either another person or oneself.

Key-words: forgiveness; conditions of forgiveness; unforgivable acts. 1 Traduzido a partir do original em Inglês Is there anything that is fundamentally unforgivable? 2 Doutor em Philosophie - University of Freiburg (1992) e “Habilitação” (correspondente à livre--docência no Brasil) pela Universidade de Tübingen. Atualmente é Professor Titular na Universidade de Tours (França) e Professor Honorário na Universidade de Saarland (Alemanha).

3 Mestre em Teoria do Direito pela PUC-Minas. Professora da Faculdade de Direito da Unipac – Itabirito-MG.

4 Professor da Faculdade de Direito da UFMG, do Programa de Pós-graduação em Direito da PUC-Minas e da UNIPAC

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1. INTRODUÇÃO

Vamos supor que um homem assassinou várias vezes, que ele torturou e matou crianças pequenas, ou que essa pessoa ordenou assassinato em massa ou mesmo genocídio. Muitas pessoas achariam que esses atos são imperdoá-veis, mas, pergunto, eles estão abordando a questão corretamente?

Para a vítima, o perdão consiste o desaparecimento justificado tanto do ressentimento quanto do desejo de vingança. Para o autor do delito, ele con-siste o desaparecimento justificado tanto do sentimento negativo contra ele mesmo, quanto do sentimento de que há um dever de expiar. Idealmente, o perdão ocorre tanto na vítima quanto no agressor de uma forma coordenada. No entanto, ele também pode ocorrer como um fenômeno unilateral. Ora, o perdão e a sua ausência não são apenas emoções subjetivas, mas também ob-jetos das intuições objetivas e dos princípios da ética social. Eu vou investigar essa última questão, ou seja, o perdão como objeto das intuições objetivas; em alguns pontos minha análise vai divergir substancialmente da consideração do perdão como um mero sentimento subjetivo. No que diz respeito à questão de saber se há algo imperdoável como uma questão de princípio, freqüente-mente se pensa que a vítima não quer perdoar. A seguir, tento mostrar que esta perspectiva constitui o componente central de uma concepção de perdão que é eticamente errada.

2. A VÍTIMA REALMENTE OCUPA A FUNÇÃO ESSENCIAL?

Na concepção tradicional de perdão – representada por autores como Vladimir Jankélévitch (1957) e Robert Spaemann (1989: 252) – o ofensor só pode pedir perdão para sua vítima.5 A vítima é considerada moralmente su-perior ao agressor, e a vítima não tem necessariamente que perdoar. Essa con-cepção diz respeito ao ato de perdoar como uma decisão voluntária e generosa feita pela vítima. Essa posição é insustentável por pelo menos cinco razões.

1. Há uma intuição moral – enfatizada, por exemplo, por Paul Ricœur (1995 e 1998: 45)6 – que à vítima não é permitido perdoar muito rápido, re-cusar-se a conceder perdão por tempo excessivo ou colocar requisitos que são

5 Cf. ainda Richards: 1988, 96, Allais: 2008 e Ci: 2006, Cap. 10. 6 Cf. ainda Hieronymi: 2001, 552.

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muito pesados para os malfeitores carregarem. Essa intuição moral é bastante prevalente na prática quotidiana.

2. Psicólogos opõem a visão tradicional (que origina na própria supe-rioridade moral da vítima) a uma visão mais simétrica do perdão. O perdão corresponde aos interesses da vítima, como demonstrou o teórico dos jogos Robert Axelrod, através de um experimento tit for tat7 que ele chama de “per-dão” e que se mostrou como a estratégia mais bem sucedida (cf. Axelrod: 1934, 36). Não só os agressores, como também as vítimas, podem ter a ne-cessidade do perdão e de sentir a carga psíquica de uma falta de perdão. Em

Sobre a Genealogia da Moral e em Vigiar e Punir, Friedrich Nietzsche e Michel

Foucault, respectivamente, destacam o papel do gozo da vingança, ou, na ter-minologia de Nietzsche, do ato de “Fazer alguém sofrer” (Leiden-lassen), como uma compensação para a vítima. De uma perspectiva psicológica, no entanto, esse benefício vale pouco comparado às conseqüências e aos riscos para a pessoa que exerce a vingança. Comparado com as vantagens que a cooperação traz, as energias gastas no exercício da vingança são energias desperdiçadas.

3. O perdão não é uma decisão que é tomada repentinamente e de uma só vez. O perdão é uma decisão que resulta de um processo. Psicólogos consideraram o perdão como um processo constituído por três etapas.8 Na primeira etapa, a vítima reúne os detalhes sobre o trauma a ser perdoado.

Ao fazê-lo, a vítima cai nas garras do medo ou da raiva, e ela se comporta de uma forma que não é comum para si, muitas vezes de forma incoerente e vingativa. Joseph Butler refere-se a esse fenômeno em Sermons, em que de ele o considera contrário ao perdão, denominando-o como “ressenti-mento” e “vingança”. Na segunda etapa do processo, uma forma de empatia entra em jogo: a vítima tenta entender o trauma sofrido, olhar para a causa, para a motivação e para seu contexto dentro do contexto maior do meio do agressor, bem como aprender e tornar-se mais sensata a partir dessa experiência. É finalmente na terceira etapa que o perdão no seu sentido estrito entra em jogo. Psicólogos caracterizam esse resultado como uma

7 Tit for tat é uma estratégia que aparece em um experimento criado por Axelrod, que consiste,

resumidamente, no seguinte: em um jogo, se você é o primeiro a agir, você coopera com o outro; se o outro coopera, você continua cooperando; se o outro não coopera você não coopera. Porém, se o outro volta a cooperar você deve cooperar novamente. Portanto, é uma estratégia que considera apenas o último movimento do outro e o fato de você cooperar após um ato cooperativo do outro, desconsiderando assim que ele não cooperou no passado é considerado perdão.

8 Cf. Coop Gordon, Baucom e Snyder: 2005, 408 s., bem como Wade, Worthington e Meyer: 2005.

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combinação das seguintes alterações: a vítima torna-se capaz de limitar suas emoções negativas e julgamentos; há uma diminuição ou desapare-cimento da inclinação para a retaliação ou para simplesmente se manter afastada do ofensor, e a vítima pode também restaurar a benevolência para com o criminoso. Em alguns casos, a benevolência com o criminoso pode ser totalmente restabelecida e pode haver lugar para reconciliação. Obviamente, tal resultado pressupõe uma interação adequada entre o mal-feitor e a sua vítima; isso significa que ele deve se abster de futuras ofensas e demonstrar arrependimento ativo. Calhoun introduz o perdão desejável (aspirational forgiveness) como “uma opção de não exigir que [o agressor] melhore” (1992:95). Contudo, é duvidoso se um perdão desejável pode ser moralmente correto. Pelo menos, é preciso observar que “o que devemos desejar para essa mudança dentro do coração parece de fato pertencer à essência do perdão” (Kolnai: 1974, 104).

4. No processo de perdão, o autor do delito é colocado no mesmo nível da vítima. Mesmo nas concepções tradicionais de perdão, a superioridade moral da vítima inocente não é o único elemento fundamental. Desde o início da era cristã, todos os seres humanos são considerados pecadores. De acordo com Kant, é um dever de virtude não só abster-se de retribuir a inimizade do outro com o ódio da mera vingança, mas também não apelar para o juízo do mundo por vingança, em parte porque um ser humano tem culpa suficiente para si próprio para ter muita necessidade de perdão (1996: 578).

Os psicólogos contemporâneos Malcolm, Warwar e Greenberg afir-mam que a empatia pelo infrator envolve a capacidade de ver a outra pessoa agindo de uma forma tipicamente humana, que pode decorrer do contexto das suas próprias necessidades e percepções. Isso inclui (mas não obriga) a possibilidade de reconhecimento de que o que o infrator fez era semelhante a algo que o outro fez ou poderia fazer nas mesmas circuns-tâncias (2005: 385).

Sabidamente, ver o ofensor desse modo não significa tê-lo desculpado ou perdoado.

5. O perdão fornece à vítima uma utilidade que não está ligada ao prazer de fazer sofrer o culpado. Por isso, é errado supor que o perdão se origina da generosidade. De acordo com Axelrod, a mais bem sucedida es-tratégia dos jogos, tit for tat, reage contra uma única jogada não cooperativa de outro jogador com uma e somente uma resposta não cooperativa. Se o outro jogador responder com um jogo cooperativo, o estrategista tit for tat

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deve reagir com um jogo cooperativo. O perdão consiste em restabelecer a cooperação após a combinação entre uma única retaliação e uma modifica-ção do comportamento do outro jogador. Portanto, ao contrário da concep-ção tradicional, esse modelo não exclui nem o ressentimento, tampouco a vingança, mas limita o papel deles. Mesmo autores como Jean Hampton e Jeffrey Murphy – que defendem o direito de “ressentimento” da vítima con-siderado como auto-defesa e como uma expressão de auto-respeito (1988: 24 s. e 49 s.) – não concebem o ressentimento em termos absolutos, mas, pelo contrário, consideram-no um meio: para eles, o ressentimento é um incentivo para o ofensor “não prejudicar” a vítima novamente (2005: 35). A Doutrina da Virtude de Kant origina-se a partir dessa mesma perspecti-va de prevenção. Kant diferencia o perdão da “suave tolerância diante dos erros”, ou seja, da “renúncia dos meios rigorosos (rigorosa) para evitar que outros repitam os erros” (1996: 578). Nesse sentido, as mães das vítimas da ditadura militar Argentina da década de 1970 (Las Madres de Plaza de

Mayo) estão totalmente corretas. Elas não estão satisfeitas com a afirmação

de arrependimento por parte dos agressores, protestando contra a anistia a eles concedida e exigindo um julgamento penal para aqueles que torturaram seus filhos. Do mesmo modo, algumas das vítimas dos crimes praticados pelo governo do antigo apartheid, na África do Sul, legitimamente criticam a impunidade que varre esses crimes e que é feita para ser “perdão”, apesar de Desmond Tutu fazer referência a ela como uma “decisão de política real (Realpolitik)” (Tutu: 2007), que serve para evitar a guerra civil e promover a estabilidade.

3. RAZÕES PARA A IMPERDOABILIDADE SUBJETIVA

O processo de coordenação através do qual um perdão eticamente cor-reto é alcançado é de natureza cognitiva, uma vez que o autor do delito e a sua vítima sabem quais passos são necessários, primeiramente por parte do agressor e, em seguida, por parte da vítima. Em contrapartida, o processo de perdão meramente subjetivo depende dos movimentos emocionais que tor-nam a emoção do perdão que pode ser conceituada ou a recusa do perdão, que ocorre inicialmente por meio de um processo que integra a história do passado da vítima e de sua relação com o agressor, bem como seus projetos, práticas culturais, etc.

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A maioria dos argumentos a favor da tese segundo a qual existem coisas que são imperdoáveis como uma questão de princípio se refere a algo subjeti-vamente imperdoável. Todos eles tornam a função da vítima absoluta.

1. Uma concepção tradicional de perdão considera-o como paga-mento de uma dívida para com a vítima. Ora, tal pagapaga-mento pode ser entendido de duas formas. Ele significa ou uma transformação radical do comportamento do malfeitor ou alguma forma de compensação dada para a vítima do mal que ela sofreu por causa do malfeitor. Até aqui argumentei a favor da primeira; agora irei tecer alguns comentários sobre a segun-da interpretação. A indenização por segun-danos perpetrados pelo ofensor, na medida em que é possível, de fato conta como uma das condições prévias para o perdão. Se o perdão, no entanto, significasse apenas indenização pelos danos sofridos pela vítima, haveria então pelo menos três resultados que são incompatíveis com qualquer concepção de perdão. Em primeiro lugar, um terceiro seria autorizado a intervir em nome dos ofensores e proporcionaria uma compensação para a perda. Em segundo lugar, se um malfeitor cheio de remorso não estivesse apto a fornecer compensação, não seria permitido que ele fosse perdoado. Em terceiro lugar, o ato seria desfeito pelo reembolso, isto é, seria como se o ato jamais tivesse aconteci-do. Ora, na realidade, o perdão nunca exclui, mas sempre inclui a memó-ria do delito (cf. Allais: 2008). Quem perdoa suprime a culpa interna do agressor, não a memória do delito. A opinião unânime é a de que o que é perdoado não é somente não esquecido, mas também imputado ao mal-feitor. Como Nietzsche salienta, o perdão exige uma diferenciação entre a ação e o agente. A ação errada é imputada ao agente, mas o agente não é reduzido a sua ação errada.

2. Em alguns casos, o processo do perdão exige mais esforços por parte da vítima do que do criminoso.9 Isso não é motivo para considerar a infração imperdoável. Vamos examinar um exemplo. Alguns estudio-sos, como Vladimir Jankélévitch (1957: 213), consideram o perdão como a exigência de que o autor do delito demonstre remorso com uma since-ridade que está além de qualquer dúvida. A partir disso, eles chegam à conclusão de que o perdão é impossível. Uma vez que uma pessoa nunca pode saber quais são realmente os verdadeiros motivos da outra pessoa (ou até mesmo os seus próprios motivos), tal perspectiva deve conduzir

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a uma desconfiança universal entre os seres humanos. Ora, tal descon-fiança universal é contrariada pela existência de relações interpessoais, que devem, na melhor das hipóteses, invocar interpretações plausíveis de padrões comportamentais e sinais emocionais.

3. Alguns estudiosos, como o sociólogo Georg Simmel, identificam o perdão com a reconciliação. R. S. Downie considera que “uma lesão implica a ruptura da relação de admiração (ágape) e o perdão em sua restauração” (1965: 133).

Contudo, a reconciliação é impossível sem perdão, embora este possa ocorrer sem a reconciliação. Por exemplo, psicólogos observaram que um importante aspecto da conceituação do perdão é o de que ele não prevê que os parceiros devam se reconciliar para que ele possa ocorrer. Os parceiros podem decidir encerrar o relacionamento e ainda cumprir as condições de perdão (Copp, Gordon, Baucom e Snyder: 2005, 407).

Em casos como o de abuso sexual, especialmente nas circunstâncias em que envolvem o incesto, a terapia bem sucedida e o perdão são subordinados ao corte de todas as relações do agressor com a vítima; portanto, o perdão deve ser realizado sem reconciliação.10

4. De acordo com Georg Simmel, ressentimento e desejo de vingança são gradualmente suplantados aos olhos da vítima pelos traços positivos do culpado, que a vítima, eventualmente, descobre ou redescobre (1955, p. 122). Simmel descreve o caso de irreconciabilidade (irreconciability), como aque-le em que o “conteúdo específico” do conflito torna-se o “grande centro da personalidade” ou a “precipitação psicológica do conflito” torna-se “isolada” no contexto psicológico global da vítima (1995: 122). O perdão ainda tem lugar no segundo caso, embora a relação deixe de existir ou seja reduzida em valor. Embora Simmel identifique o perdão com a reconciliação e considere o perdão irracional – o que, a meu ver, são afirmações incorretas – esse caso implica claramente poder o perdão ocorrer sem qualquer reconciliação.

5. Freqüentemente confunde-se a falta de perdão em casos individuais com imperdoabilidade como uma questão de princípio. Porém, mesmo no caso de um processo de perdão falho, não se pode excluir a possibilidade de que o processo possa ser retomado num momento posterior e que, então, possa ser bem sucedido pelo menos enquanto ele não tenha levado a novas ofensas. Como Martin Luther King disse, o perdão pode levar tempo.

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Ao contrário do que pensa Hannah Arendt, até mesmo a morte da ví-tima não impossibilita o perdão (1960: 233). É conhecido que Hans Jonas e Vladimir Jankélévitch sustentam que os genocídios da Segunda Guerra Mundial são imperdoáveis. No mesmo sentido, o prêmio Nobel Elie Wiesel escreveu A Prayer of Unforgiveness (Uma Oração da Imperdoabilidade). Os textos deles e a carência de qualquer expressão de ressentimento mostram claramente que esses autores não estão tomando uma posição que é contra o perdão, mas, em vez disso, eles estão apelando para a memória dessas atroci-dades, para que eles nunca ocorram novamente.

Note-se que se a tese da imperdoabilidade após a morte da vítima fosse aplicada inteiramente, ter-se-ia como resultado exatamente o oposto do que normalmente se busca com ela. Em vez de separar um tipo de crime par-ticularmente grave de todos os outros, essa tese serve para tornar todas as violações, por menores que sejam, imperdoáveis após a morte da vítima. Ela confunde portanto o final contingente de um processo de perdão com a im-possibilidade de perdão baseado em princípios. Em outras palavras, essa tese confunde privatio com contradictio. Na realidade, um malfeitor pode cumprir os requisitos para o perdão, demonstrando remorso após a morte da vítima e alterar o seu comportamento para fazer um esforço sincero para não causar mais danos a qualquer outra pessoa. Além disso, vice-versa: a vítima pode perdoar um agressor falecido que já tinha iniciado o processo de perdão antes de sua morte.

Por último, mas não menos importante, pode-se refutar a tese da exis-tência de ações em princípio imperdoáveis através de uma reductio ad

ab-surdum. Vamos supor que houve uma violação tão grave e abominável que

alguém poderia muito bem considerá-la como “imperdoável”. Então, por que os agressores, que supostamente seriam eternamente imperdoáveis, não só seriam punidos, como também se esperaria que exibissem um determinado comportamento moral? A história tem mostrado que se pode esperar diversos atos em relação ao criminoso: que ele seja exposto com o pelouro11 e que então as pessoas obtenham sua vingança; que o agressor sinta vergonha e se esconda na margem da sociedade ou viva no exílio; que ele continue se castigando para

11 Nota dos tradutores: no original aprece o termo pillory, cuja tradução literal em português seria pelourinho, mas que preferimos traduzir por pelouro (embora esta última possa significar também uma divisão administrativa), porque aqui o autor tem em mente a peça de metal ou ma-deira que era colocada no pescoço dos criminosos, na china antiga, que possibilitava que o povo pudesse agredi-lo, e com isso vingar-se do criminoso.

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o resto de sua vida. Em todos esses casos, exige-se exatamente aquilo que é necessário para o perdão e o que necessariamente pertence ao processo do perdão: confissão de culpa, remorso e novas máximas que regem a atuação do infrator. Embora algumas pessoas possam sentir-se aliviadas se um ser huma-no que suporta uma culpa particular se suicida, a maioria das pessoas acharia muito melhor ouvir que pelo menos a pessoa mostrou remorso nos últimos momentos da sua vida. Isso prova que as pessoas envolvidas consideram o processo do perdão algo inacabado e não evidência de imperdoabilidade ab-soluta. Isso contradiz a concepção de perdão de Jacques Derrida: ele considera que o perdão é tão impossível – pois o remorso não tem valor moral – quanto necessário – pois isso é indispensável à preservação das relações interpessoais (2001). Na realidade, o perdão é possível por ser indispensável.

4. O INTERESSE EM AFIRMAR A IMPERDOABILIDADE

Se uma reconstrução da ética do perdão não pode incluir qualquer im-perdoabilidade absoluta, por qual razão é a crença em tal imim-perdoabilidade tão generalizada? Que interesse ou que interpretação equivocada de um inte-resse pode conduzir a essa crença?

O interesse da vítima nesta crença é óbvio. A crença na imperdoabilidade leva a rejeitar a hipótese de que a vítima e o agressor estão fundamentalmente situados no mesmo nível moral, porque os dois são pecadores em potencial. Através da imperdoabilidade, a vítima obtém uma superioridade eterna sobre o ofensor.

A opinião pública normalmente considera alguns delitos particularmen-te graves como imperdoáveis; por exemplo, a tortura em série e o assassinato de crianças ou o genocídio. Essa visão pode ser interpretada de duas manei-ras. Pode acompanhar uma concepção preventiva, ameaçando potenciais in-fratores com um ostracismo eterno, mas pode também externar a maldade da ação, expressando a opinião de que tais crimes particularmente graves não poderiam realmente derivar da própria sociedade. Dessa forma, o crime e os maus subjacentes são deslocados para um “santuário” - utilizando o significa-do sociológico desta palavra de Durkheim. Nessa perspectiva, esses infratores particularmente graves não podem ser do mesmo tipo que os infratores que, de fato, demonstram remorso e melhoram o seu comportamento, e nunca poderiam ter sido pessoas normais. Em vista dessa situação, a pessoa comum

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poderia se sentir imunizada contra o cometimento de tais delitos graves. Essa falácia poderá distrair a atenção moral do agente.

Não só a vítima e as pessoas comuns, mas também o próprio delinqüen-te, podem se beneficiar da desigualdade fundamental do status moral baseado na tese da imperdoabilidade. Alguns infratores ainda acreditam que, depois da morte de sua vítima, mesmo se viverem um modo de vida não reprovável, e às vezes mesmo se a vítima o tiver perdoado expressamente, eles não podem perdoar a si próprios. Eu vejo três explicações possíveis para este fenômeno. Cada uma delas é devida a uma má interpretação do conceito de perdão.

A primeira explicação é que os agressores não só lamentam a ofensa, mas também se sentem envergonhados por causa dela.12 Essa vergonha pressupõe uma separação do ser humano em duas partes: a parte da infração e a parte do julgamento. Nesse caso, a causa da vergonha não é a forma específica de culpa que o culpado está tentando corrigir (apresentando remorso, reformando a si próprio, etc.), mas, ao contrário, é a própria possibilidade de o agressor fazer algo que exigiria perdão (cf. Dillon: 1992, 128). Essas duas partes da mesma pessoa são fundamentais na relação de desigualdade moral: a parte do julga-mento nunca poderia ser pecadora. Segundo a análise de Bernard Williams, a vergonha não conduz ao cumprimento do nosso dever, ou seja, a uma confis-são da nossa culpa, ao remorso e à reforma, mas, em vez disso, ela leva à sua negação, à dissimulação, à mentira e às violações futuras. 13

A segunda explicação para a impossibilidade de se perdoar repousa sobre o status super-rogatório14 do perdão na concepção tradicional a qual me referi na introdução. Nessa perspectiva, o ofensor pode apenas pedir o perdão à sua vítima, uma vez que ele é fundamentalmente incapaz de perdoar a si próprio, e o cumprimento da condição prévia para o perdão (confissão de culpa, arrependimento, reforma, etc.) representa uma condição sine qua non, mas de forma alguma uma condição suficiente para o perdão.

A concepção do perdão como algo super-rogatório não só funda-menta a imperdoabilidade por parte da vítima, mas também é subjacente à

12 Na verdade, o sentimento de culpa é freqüentemente combinado com vergonha. Dillon (2001: 83), por exemplo, considera que aquilo que deve ser perdoado por si mesmo como “um fardo de culpa e vergonha”.

13 Cf. Williams: 1994, Gibbard:1990, 138 s. e Deigh:1983.

14 Nota dos tradutores: no original, aparece o termo supererogatory, e que significa, como expli-ca o próprio autor no parágrafo seguinte, o mérito demonstrado quando alguém faz mais do que seu dever.

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imperdoabilidade por parte do autor do delito. Na perspectiva da super-ro-gação, a confissão de culpa, o arrependimento e a reforma das máximas que regem as ações de alguém podem ser sempre melhoradas. A super-rogação, isto é, demonstrar mérito fazendo mais do que um dever estrito, consiste em três componentes (cf. Wessels: 2002). O primeiro componente é que alguém pode fazer mais do que o seu dever moral, e que ganha mérito realizando esse excedente. O segundo componente é que o esforço exercido para esse excedente seja contado como um mérito, seja qual for o resultado possível. O terceiro componente funciona da seguinte forma: se alguém faz mais do que o seu dever, mas não faz tanto quanto poderia ter feito se tivesse feito um esforço maior, então, ele teria menos valor moral do que a pessoa que apenas cumpriu seu dever, porque ele parece ser menos coerente. Assim, há a possibilidade de um aumento potencialmente ilimitado sobre o cami-nho para merecer o perdão. Há, no entanto, um alvo não identificado para esse esforço acrescido, o qual trai a sua vacuidade. Essa concepção resulta na ilusão, desmascarada por Rüdiger Bittner (1992), que o sofrimento, por exemplo o sofrimento causado por lamentação assim como o sofrimento causado pela dor de imperdoabilidade, tem um valor moral. Esse sentimen-to é moralmente questionável, porque ele pode nos desviar do cumprimensentimen-to das nossas funções na vida quotidiana.

Enquanto a primeira e a segunda explicação tornam a negação do auto-perdão tão imoral quanto a negação do perdão como uma questão de princípio, a terceira explicação é eticamente correta, mas apóia a per-doabilidade em vez da imperper-doabilidade. De acordo com essa explicação, a tese da imperdoabilidade pretende expressar a natureza pecaminosa do ser humano. Assim, mesmo se fossemos perdoados por qualquer culpa que suportamos, a memória de toda culpa ainda permaneceria em nós e com ela poderia restar na memória um mal radical que nunca poderá ser erradicado e que pode, a qualquer momento, nos induzir a ofender outros seres humanos. Nesse caso, é a nossa própria natureza humana que nunca pode nos perdoar. Mas, nesse caso, com quem pode o processo de coordenação que leva ao perdão ter sucesso ou fracasso? Quer tenha sucesso ou fracasso, ele não pode estar com os seres humanos, uma vez que partilham conosco conditio humana, nem com outros seres vivos. Faz pouco sentido se referir à imperdoabilidade perante Deus, porque não há qualquer indicação de tal imperdoabilidade eterna dos seres humanos por Deus na teologia (pelo menos na teologia cristã): a oração “O Pai nosso”

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(Pater noster) formula o pedido de que Deus nos perdoe, da mesma forma que nós perdoamos os outros. Imperdoabilidade divina seria a passagem dos seres humanos para a categoria ocupada por Satanás, cujas ações só poderiam ser más e que, portanto, mereceria a imperdoabilidade eterna. No entanto, os seres humanos são sempre capazes de mudar, de uma pers-pectiva religiosa ou temporal.

Portanto, uma suposta recusa da auto-perdoabilidade só pode significar um aviso que é dirigido aos seres humanos, a fim de lembrar-lhes que não es-queçam os seus malefícios e para dificultar tendências negativas que continu-am tentando tomar o controle. Por isso mesmo, nós devemos ser perdoados.

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Recebido em: 21/10/2014 Aprovado em: 28/10/2014

Referências

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