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O Alquimista & The Alchemist: condições de produção no processo tradutório

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Academic year: 2021

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(1)Tradução & Comunicação Revista Brasileira de Tradutores Nº. 24, Ano 2012. O ALQUIMISTA & THE ALCHEMIST: CONDIÇÕES DE PRODUÇÃO NO PROCESSO TRADUTÓRIO O Alquimista & The Alchemist: conditions of production in the translation process. Angela Enz Teixeira Universidade Estadual de Maringá - UEM. RESUMO. angelaenz@globomail.com. Este artigo tematiza as condições de produção da versão inglesa de O Alquimista (2006), de Paulo Coelho. Tal recorte deu-se após a comparação da versão brasileira (1995) com a inglesa, ao identificaremse inúmeras diferenças textuais passíveis de agrupamento em categorias. Instala-se, então, a seguinte pergunta: como se dá o processo de relação de sentidos e de produção de discursos, considerando-se as vozes do autor, do tradutor e do suposto leitor, na versão inglesa The Alchemist? Nesse enfoque, o objetivo geral é refletir sobre a “função tradutor” e as condições de produção do processo tradutório na versão inglesa. Os objetivos específicos são: classificar e exemplificar as marcas do tradutor na versão inglesa; apontar os condicionantes socioculturais das escolhas tradutórias; discutir o processo de relação de sentidos e de discursos levando-se em conta os dois contextos, o de partida e o de chegada. Quanto à metodologia, o trabalho é bibliográfico e o método, comparativo. Embora a abordagem discursiva se justifique na materialidade linguística, a perspectiva que subsidia a análise é a pósmoderna, a qual coaduna com a perspectiva da Análise do Discurso.. Rosa Maria Olher Universidade Estadual de Maringá - UEM rmolher@gmail.com. Palavras-Chave: tradução; processo discursivo; O Alquimista; condições de produção; função tradutor.. ABSTRACT. Anhanguera Educacional Ltda. Correspondência/Contato Alameda Maria Tereza, 4266 Valinhos, São Paulo CEP 13.278-181 rc.ipade@aesapar.com Coordenação Instituto de Pesquisas Aplicadas e Desenvolvimento Educacional - IPADE Artigo Original Recebido em: 25/06/2012 Avaliado em: 03/09/2012 Publicação: 30 de setembro de 2012. This paper argues on the conditions of production of The Alchemist English version (2006) - by Paulo Coelho. By comparing the Brazilian version (1995) to the English version, numerous textual differences were identified and it was observed that they could be clustered into categories. Thus, this theoretical condition resulted in the following question: How does the process of relationship between meaning and discourse production occur, considering the author’s, the translator’s and the supposed reader’s voices in The Alchemist? The aim of this article is to reflect and discuss on the translator’s function and role, by investigating the conditions of production in the translation process of the English version. The specific objectives are: to classify and exemplify the translator’s signs; to point out the socio-cultural constraints on the translator’s choices and to discuss the relationship between meaning and discourse taking into account both cultural text contexts: the departure and the arrival contexts. Regarding the methodology, the work is bibliographical and the method is comparative. The discursive approach is justified on linguistic materiality and the perspective that underpins the analysis is the postmodern, which is consistent with the perspective of discourse analysis. Keywords: translation; discursive process; The Alchemist; conditions of production; translator’s function. 111.

(2) 112. O Alquimista & The Alchemist: condições de produção no processo tradutório. 1.. INTRODUÇÃO O tema deste trabalho, que ora se apresenta, são as condições de produção do processo tradutório na versão inglesa de O Alquimista (1988), de Paulo Coelho, livro que tornou seu autor ainda mais conhecido porque lido internacionalmente. A contracapa da versão inglesa de 2006, analisada neste trabalho, menciona que o livro foi traduzido para 63 línguas e apresenta mais de 30 milhões de cópias espalhadas pelo mundo1, embora seja uma narrativa de ficção de pouco prestígio para os estudiosos de literatura. Por ser a promessa de um empreendimento rentável para a editora, pensamos nos cuidados que a tradicional Harper Collins2 tomou ao convidar um tradutor para cumprir tal empreitada. Com o livro em mãos, no verso da folha de rosto, as informações editoriais: “English version © Paulo Coelho and Alan R. Clarke 1992.” Ou seja, a conjunção aditiva “and” permite pensar que o tradutor fez um trabalho em parceria com o autor brasileiro, o que legitimaria o resultado alcançado, já que tal inscrição pressupõe, ao menos para os leigos em estudos da tradução, que o texto traduzido para o inglês é fiel ao texto fonte. A versão inglesa traz mais de um tradutor no trabalho: antes do prólogo há um depoimento de Paulo Coelho traduzido por Margaret Jull Costa; o prólogo é traduzido por Clifford E. Landers; depois da narrativa principal traduzida por Clarke e Coelho, há uma entrevista de Laura Sheahen3 com o autor e mais um conto, cujo tradutor não é mencionado, o que nos leva a pressupor que devem ser os mesmos tradutores da narrativa. O nome do tradutor principal (Clarke) aparece discretamente no espaço editorial mencionado, como ocorre de praxe no meio editorial brasileiro, sinalizando para a não valorização do papel do tradutor e negando seu papel de coautoria na representação das obras literárias universalmente falando. O recorte temático das ações textuais do tradutor na tradução ocorreu após a comparação da versão brasileira com a inglesa, pela qual foram identificadas, entre uma versão e outra, inúmeras diferenças que puderam ser agrupadas com as seguintes denominações: 1) marcas tradutórias nas escolhas lexicais; 2) organização de parágrafo e pontuação; 3) escolhas do sujeito oracional; 4) marcas estilísticas com foco na enunciação; 5) supressão e/ou adição.. 1 Esses números já aumentaram. Conforme Cowles (2009), em artigo no The New York Times, Paulo Coelho é o autor vivo mais traduzido no mundo – 67 línguas, e O Alquimista já vendeu mais de 65 milhões de cópias, desde seu lançamento em 1988. 2 Editora renomada, cujas origens datam de 1817, conforme o site oficial da editora (HARPER, Collins. About us. Disponível em: <http://www.harpercollins.co.uk/about-harpercollins/Pages/about-us.aspx>. Acesso em: 31 jan. 2012).. Tradução & Comunicação: Revista Brasileira de Tradutores • Nº. 24, Ano 2012 • p. 111-134.

(3) Angela Enz Teixeira, Rosa Maria Olher. 113. Tais categorias são de ordem didática, com o fim de organizar esta explanação de forma a problematizar a participação do tradutor no texto de chegada bem como sua função-tradutor. A seleção dos excertos para análise deu-se com base no critério de maior diferença entre a versão de partida e a de chegada. Essas diferenças na tradução nem sempre são compreendidas por quem tem uma postura tradicional quanto à relação texto original/tradução, mas elas evidenciam a complexidade de tal processo, ainda mais quando se entende o processo tradutório como um processo discursivo entre autor, tradutor e leitor. Tendo como ponto de partida que o sujeito tradutor tem papel ativo na elaboração da tradução, como se dá o processo de relação de sentidos e de produção de discursos considerando-se as diferentes vozes envolvidas na re-escritura do outro texto em língua inglesa The Alchemist? Neste enfoque, os objetivos específicos da análise comparativa são: •. classificar e exemplificar as marcas do tradutor na versão inglesa The Alchemist;. •. apontar os possíveis condicionantes das escolhas tradutórias;. •. discutir o processo de relação de sentidos e de discursos levando em conta os dois contextos: de partida e de chegada.. Em relação à metodologia empregada para a coleta de dados, foi feita uma documentação indireta, com uso de uma versão de O Alquimista de 1995, e uma versão inglesa de 2006, The Alchemist, portanto, o trabalho é bibliográfico e o método, comparativo. A narrativa, nas duas versões, é dividida em duas partes, antecedida por um prólogo e seguida por um epílogo; a partir desse objeto, o corpus de análise para esta investigação constitui-se de excertos do prólogo e da primeira parte da obra. Embora a abordagem seja linguística, as teorias que subsidiam a análise são as teorias pós-modernas sobre tradução, bem como os aportes teóricos da Análise do Discurso (AD).. 2.. TRADUÇÃO: OLHARES TRADICIONAIS E CONTESTADORES Every act of understanding involves an act of translation of one kind or another. Theo Hermans (1996). Mittmann (2003) ensina que a tradução pode ser entendida na perspectiva tradicional e na contestadora. Historicamente, expõe Hermans (1996), o posicionamento hierárquico de trabalhos originais e traduções tem sido expresso com base em oposições estereotipadas, cujo prejuízo recai para a versão traduzida tida como circunscrita, subordinada, contida, controlada. São exemplos desses estereótipos: trabalho criativo x trabalho derivado, primário x secundário, arte x ofício, autoridade x obediência, liberdade x restrição, falar. Tradução & Comunicação: Revista Brasileira de Tradutores • Nº. 24, Ano 2012 • p. 111-134.

(4) 114. O Alquimista & The Alchemist: condições de produção no processo tradutório. em seu próprio nome x falar por alguém. Na percepção tradicional, a postura dos autores frente à tradução pode ser abordada segundo três denominações: •. tradução como transferência: representada por Eugene A. Nida (1964 apud MITTMANN, 2003), que entende a tradução como um mecanismo de transferência. Ele não é passível de verter um texto de uma língua para outra, num processo de transporte. A língua é entendida como código, cujos símbolos podem ter equivalentes entre as línguas envolvidas no processo. Por sua experiência, Nida reconhece que o tradutor deixa marcas de personalidade no seu trabalho, quando faz a interpretação da mensagem na língua de partida e as escolhas de equivalências na língua de chegada, todavia, tal intervenção deve ser reduzida ao mínimo, para não entrar em desarmonia com as intenções do autor;. •. tradução como transposição: nesta perspectiva, Erwin Theodor (1983 apud MITTMANN, 2003) reconhece a falta de equivalência entre as línguas. Num primeiro momento, o tradutor deve decodificar as informações de forma correta/apropriada/adequada (como se houvesse um único sentido latente), depois deve recodificá-la em um novo texto, conforme os recursos disponíveis na língua alvo. Logo, há interferência, mas na esfera linguística;. •. tradução como reformulação: nessa denominação, enquadra-se a teoria de Paulo Rónai, o qual propõe que, às vezes, o tradutor precisa “esquecer momentaneamente as palavras em que esta [mensagem] era vazada e reformulá-la em outra língua” (RÓNAI, 1981 apud MITTMANN, 2003, p.22). O que se questiona aqui é o entendimento de ter-se “uma única mensagem correta”, tendo em vista que os estudos textuais e a própria AD têm mostrado que a situação comunicativa e os sujeitos nela envolvidos interferem na construção dos sentidos textuais e discursivos, multiplicando, portanto, as possibilidades significativas.. Resumidamente, as três concepções se aproximam nos seguintes aspectos: - ao tradutor cabe descobrir o pensamento do autor para recodificá-lo em outra língua; - a subjetividade do tradutor é vista como inevitável e negativa; - o ponto de partida é o texto e a língua; - o tradutor não é sujeito ativo. Para refletir sobre o rigor desse posicionamento tradicional, principalmente no que tange à visão negativa da subjetividade do tradutor e à ideia da passividade desse profissional, destacamos que toda a obra The Alchemist está repleta de marcas do tradutor, inclusive com interferências corretivas, como fica explícito no recorte discursivo (doravante RD) seguinte: RD1 - Nos olhos do pai ele leu também a vontade de correr o mundo. Uma vontade que ainda vivia, apesar das dezenas de anos que ele a tentou sepultar com água, comida, e o mesmo lugar para dormir toda noite (COELHO, 1995, p.17). The boy could see in his father´s gaze a desire to be able, himself 1, to travel the world – 2 a desire that was still alive, despite Ø 3 his father´s having had to bury it 4, over dozens of drink, food to eat 5, and the same place to sleep every night of his life 6 (COELHO; CLARKE, Tradução, 2006, p.9).. Tradução & Comunicação: Revista Brasileira de Tradutores • Nº. 24, Ano 2012 • p. 111-134.

(5) Angela Enz Teixeira, Rosa Maria Olher. 115. 1 = a adição do pronome dá ênfase à individualidade do pai do personagem principal4; 2 = a pontuação em inglês, embora correta, não parece ser suficiente para dar ênfase à “vontade”, como é o ponto final na versão em português; 3 = nesse espaço, há uma supressão da expressão “das dezenas de anos”, cuja presença, na versão brasileira, marca o sofrimento longo e duradouro do pai, efeito não presente na tradução; 4 = a adição do pronome “it” para complementar o verbo “bury” mostra-se adequada e corretiva, já que, na versão do texto fonte, a sequência “sepultar com água...” produz primeiro um estranhamento – espera-se, naturalmente, um “sepultar na terra”; além disso, parece incoerente, porque o objeto de sepultar é “uma vontade”, e a construção ficaria mais clara com o pronome posposto ao verbo: “...apesar das dezenas de anos [durante os quais] ele tentou sepultá-la com água, comida...”; 5 = a sequência construída na tradução é mais coesa e enfática e consegue dar um efeito metafórico ao constructo, o que não ocorre na versão brasileira; 6 = a adição of his life mostra-se adequada, porque retoma a figura do pai que ficou afastada desse final de parágrafo, devido à nova sequência construída, como explicado no item 5. Pelo visto, o tradutor mostrou-se sujeito ativo, pois realizou interferências relevantes no processo de interpretação e de reformulação de tradução para o contexto receptor. Na outra perspectiva teórica proposta por Mittmann (2003), encontramos a linha contestadora, também conhecida como pós-moderna ou pós-estruturalista. Esta pode ser cotejada a partir da discussão sobre a fidelidade do tradutor e sobre sua visibilidade, enquanto profissional da escrita, fundamentada em Hermans (1996, p. 4), que entende a tradução como uma força cultural, “a qual se contrapõe ao senso comum de tradução como algo mecânico, derivado, secundário, de segunda mão, inferior”5. Roman Jakobson, no ensaio Aspectos linguísticos da tradução (1974)6, diferencia três modelos de tradução: a intralingual, a interlingual e a intersemiótica. A intralingual refere-se a textos reescritos/reformulados com outros signos da mesma língua do texto fonte – a reescrita de um clássico em linguagem contemporânea, por exemplo. A tradução. O personagem central chama-se Santiago. Nas palavras de Hermans (1996): “which belies the common view of it as mechanical and merely derivative, secondary, second-hand, second-best, second-rate”. Todas as traduções não referenciadas são nossas. 6 Primeiramente, publicado em inglês: On linguistic Aspects of translation (1959). 4 5. Tradução & Comunicação: Revista Brasileira de Tradutores • Nº. 24, Ano 2012 • p. 111-134.

(6) 116. O Alquimista & The Alchemist: condições de produção no processo tradutório. intersemiótica (ou transmutação) é a interpretação de signos verbais por meio de sistemas de signos não verbais – como transformar um romance em filme. Já a interlingual é a interpretação de um texto com signos verbais para significar em outra língua. E é a este último tipo que nos referiremos mais detidamente. Francis H. Aubert (1989, p. 115 apud MITTMANN, 2003, p. 24) define tradução como “expressão de chegada (LC) de uma leitura feita em língua de partida (LP) por um determinado indivíduo, sob determinadas condições de recepção e de produção”. Tal definição não pressupõe o transporte/a transferência /a reformulação de uma mensagem de uma língua para outra, mas, nas palavras de Mittmann (2003, p. 24), trata-se da “expressão de uma leitura realizada da mensagem”, pressupondo, com isso, que a mensagem pode oportunizar várias leituras, sendo uma delas objeto de materialização, por meio de uma tradução específica. Por conseguinte, o fato de haver traduções que admitem escolhas do tradutor torna possíveis várias traduções para uma mesma cultura de chegada de um único texto fonte, traduções essas motivadas pela diversidade de público existente: menos ou mais elitizado, jovem, politizado etc. (diversidade que faz parte das condições de recepção), e pelas expectativas e exigências que permeiam o trabalho do tradutor, além de toda a constituição intelectual desse sujeito – entendido na própria acepção da AD (constituindo as condições de produção). Pelo exposto, questionam-se, portanto, as posturas tradicionais sobre tradução.. 2.1. Após a tradução: texto novo? Mittmann (2003) salienta que Aubert (1989) aponta três tipos de mensagens presentes em todo ato comunicativo. A mensagem pretendida é o que o autor quis dizer; a mensagem virtual constitui o conjunto de leituras latentes a partir da expressão linguística produzida; a mensagem efetiva é a que se realiza a partir da recepção textual feita pelo destinatário. A tradução, dentro desse enfoque, seria proveniente da mensagem efetiva construída pelo tradutor enquanto leitor. Essa mensagem efetiva seria, então, transformada em uma segunda mensagem pretendida, não sendo idêntica à do autor do texto de partida por dois motivos: o primeiro é que a mensagem pretendida pelo autor nem sempre é acessível a alguém; o segundo motivo é que, durante o processo de leitura, entendendo-o como ato de interação entre autor e leitor mediado pelo texto, todo o repertório do leitor se faz presente na constituição dos sentidos, inclusive as formações imaginárias que constrói do autor, do texto original e do leitor, conduzindo, marcando sua leitura e, consequentemente, revelando-se na escrita. Logo, se a tradução vem da leitura efetiva e não da pretendida pelo autor do texto de partida, fica inviável falar em. Tradução & Comunicação: Revista Brasileira de Tradutores • Nº. 24, Ano 2012 • p. 111-134.

(7) Angela Enz Teixeira, Rosa Maria Olher. 117. fidelidade ao autor original. Mas é possível falar em fidelidade à “mensagem efetiva que o tradutor apreendeu, experiência individual e única, não reproduzível por inteiro nem mesmo pelo próprio leitor / tradutor, noutro momento e/ou sob outras condições de recepção” (AUBERT, 1989 apud MITTMANN, 2003, p. 25). Nessa perspectiva, o texto traduzido é um novo texto – já que comporta criação e adaptações de ordem variada –, além de um novo discurso, nos termos da (AD). O discurso é entendido como “um tipo de sentido – um efeito de sentido, uma posição ideológica – que se materializa na língua, embora não tenha uma relação biunívoca com recursos de expressão da língua” (POSSENTI, 2009, p.16). Para a AD, não temos no discurso a simples transmissão de informação, mas “um complexo processo de constituição” de sujeitos e produção de sentidos (ORLANDI, 2001, p.21). O discurso, devido à própria heterogeneidade da constituição do sujeito, onde, segundo Orlandi (2001), os processos discursivos se realizam, está longe de ser homogêneo; metaforicamente falando, é um mosaico de outros discursos anteriores a ele – o que é nítido nos textos críticos (por envolverem percepções de fontes variadas) e identificável nas traduções (devido às escolhas tradutórias revelarem muito do processo tradutório, mesmo nas traduções tidas como fluentes)7. Na tradução que se torna best-seller, entendemos que o novo discurso se evidencia pelo sucesso do livro proveniente de sua capacidade de “confirmar valores e desempenhar funções para as quais nem o texto estrangeiro nem a própria tradução estavam destinados” (VENUTI, 2002, p. 238). Salientase, com isso, o mérito do trabalho do tradutor para o livro ficar apreensível, “palatável”, nas variadas comunidades de chegada.. 2.2. A voz do tradutor Aubert fala de outra tentativa de fidelidade do tradutor, agora em relação ao seu leitor, ou melhor, à imagem que o tradutor faz dele, um público que, normalmente, não leu o texto de partida. Nessas condições, o tradutor é visto como “um instrumento humano, suporte para um ato de comunicação interlingual” (AUBERT, 1989, apud MITTMANN, 2003, p. 26); um negociador de sentidos entre culturas, explica Sobral (2011); um intermediador, um leitor especial, nos termos de Mittmann (2003, p. 26), “que tem uma interpretação própria em relação ao texto original e objetivos específicos em relação ao leitor da tradução”, que tenta ser fiel à imagem que faz do autor e do texto original e à imagem que. 7 Mesmo assim, para a AD, os discursos são sempre novos, pois a novidade está na própria realização histórica do discurso: considerando a situação em que é proclamado, a razão para sua realização, os sujeitos envolvidos etc. Cada discurso é único, mesmo se fosse constituído pelo mesmo texto. Embasando essa percepção, seguem as palavras de Foucault (1996, p.26): “O novo não está no que é dito, mas no acontecimento de sua volta”.. Tradução & Comunicação: Revista Brasileira de Tradutores • Nº. 24, Ano 2012 • p. 111-134.

(8) 118. O Alquimista & The Alchemist: condições de produção no processo tradutório. faz do leitor. Apenas tenta, pois o ato tradutório é composto por uma diversidade de componentes não manipuláveis, tais como: as diversidades de códigos e entre os códigos; o tempo (referente à produção do original, sua leitura e produção da tradução); as mensagens (pretendidas e efetivas); os participantes do ato tradutório (autor, tradutor e leitores), explica Aubert (1993 apud MITTMANN, 2003, p. 26). Essa tentativa de fidelidade, porém, serve como âncora (relativamente frouxa) e guia para o trabalho do tradutor, que é um agente, um elemento ativo, produtor de texto e discurso, ocupante do lugar autoral, por ter papel determinante na produção de significados, no momento da interpretação, como qualquer leitor. Embora a leitura e a escrita sejam as duas situações comunicativas nas quais age o tradutor no ato tradutório, entendemos que traduzir está ligado antes à leitura que à escrita, pois esta a sucede, é o momento da materialização daquela, a origem da tradução. Enfocando o papel do tradutor, explica Hermans (1996), é uma ilusão entender que a tradução seja uma reprodução fiel do texto original. Para manter essa falácia, exigese a invisibilidade do tradutor, e se enaltece o texto que o leitor não lembra ser uma tradução, no devaneio de estar lendo o original. Hermans (ibidem) salienta a ironia da situação, porque, de fato, o que o leitor tem nas mãos é a materialidade construída pelo tradutor, com todas as variáveis já apontadas e naturais ao processo tradutório. Entre as vozes presentes no texto traduzido, a do tradutor não pode ser apagada, pelo contrário, ela está em evidência para o leitor da cultura de chegada, e a voz do autor do texto de partida torna-se secundária. As duas vozes estão presentes e não há coincidência plena entre elas. Se à função de autor cabe controlar, limitar o significado do texto, ao tradutor cabe essa função na produção de seu texto de tradução. Porém, ao tradutor é negado tal reconhecimento, haja vista que nem nas capas aparece seu nome – afora raras exceções. Os teóricos têm feito um valoroso trabalho de desconstrução de teorias já arraigadas para discutir o papel de autoria envolvendo o tradutor, todavia, como a certificação da importância desse profissional envolve também reconhecimento financeiro, as editoras vão se abster da discussão até quando puderem. De todo modo, atribuir importância ao trabalho do tradutor é salutar, por dar longevidade à obra de origem e a seu autor, tendo em vista que, pela nova re-escritura, é a obra de partida que volta a ser discutida por outros povos talvez jamais idealizados.. Tradução & Comunicação: Revista Brasileira de Tradutores • Nº. 24, Ano 2012 • p. 111-134.

(9) Angela Enz Teixeira, Rosa Maria Olher. 3.. 119. AS AÇÕES DE UM TRADUTOR DE BEST-SELLER My point is that translated texts - like other texts, only more so - are always, inherently, plural, unstable, de-centred, hybrid. The ‘other’ voice, the translator’s voice, is always there. Theo Hermans (1996). Valendo-se de estudos de Pierre Nora, Venuti (2002) explica o best-seller como uma obra que apresenta estética popular e cujo público leitor constitui-se por diferentes comunidades com valores específicos (por exemplo, as diferentes classes sociais e etnias). Logo, é uma obra de leitura de massa que apela para essas várias comunidades, ultrapassando suas fronteiras culturais. Quando o best-seller é uma tradução, esse cruzamento de fronteiras torna-se mais intenso, e o trabalho do tradutor árduo, imbuído de grande responsabilidade, pois: “A transferência da cultura estrangeira para a cultura doméstica desprende o texto estrangeiro das tradições linguísticas e literárias que lhe conferem significado, garantindo que ele será interpretado e avaliado de modo diferente na tradução” (VENUTI, 2002, p. 238). Já que o assunto norteador das narrativas de bestsellers é de preocupação e interesse da maior parte de seu público, cabe ao tradutor tornálo “inteligível para códigos e ideologias diferentes e potencialmente conflitantes que caracterizam” esse público (VENUTI, 2002, p. 238), facilitando o atendimento desse apelo. Por isso, ao estudarmos teorias da tradução, percebemos que a tradução de best-sellers é um processo de domesticação textual notoriamente contraditório em relação às teorias tradicionais da tradução, por refutar taxativamente suas bases de sustentação. Para se traduzir um best-seller, não basta que a narrativa apresente assunto de preocupação e/ou interesse das massas da cultura alvo. O trabalho relativo à obra de partida carece de tratamento estratégico a fim de imprimir maior legibilidade à tradução e identificação do leitor com os personagens, por isso, a estética popular (com sintaxe simples e fluida, vocabulário corrente, estereótipos) e a domesticação8 de eventos/fatos culturais que nada significam para o novo público são procedimentos necessários ao tradutor desse tipo de livro, que visa ser um “bem lucrativo” da editora. O efeito do consumo desse produto pelo leitor deve ser um prazer compensatório: “uma narrativa realista a respeito de problemas atuais sugere soluções imaginárias em termos de valores culturais e políticos dominantes” (VENUTI, 2002, p.239). Ademais, o autor chama a atenção para o fato de que os clássicos não incentivam o estudante a ler como o fazem os best-sellers, que são menos brilhantes e mais empolgantes9.. 8 A domesticação corresponde a atitudes tradutórias, para adequar à comunidade estrangeira, determinados eventos/fatos que lhe sejam estranhos e se fazem presentes no texto de partida, cortes e mudança de nomes de personagens são exemplos. 9 Venuti (2002) cita o exemplo das histórias de The Little World of Don Camillo (1949), do italiano Giovannino Guareschi (1908-1968), que foram ignoradas pela elite intelectual italiana da época (após 1945), enquanto, nos Estados. Tradução & Comunicação: Revista Brasileira de Tradutores • Nº. 24, Ano 2012 • p. 111-134.

(10) 120. O Alquimista & The Alchemist: condições de produção no processo tradutório. Com isso, o que se espera do tradutor é o efeito paradoxal de sua invisibilidade, por meio de uma tradução fluente, criadora da ilusão de que o texto não é traduzido. Venuti (2002, p. 240) explicita que as estratégias de fluência: [...] buscam a sintaxe linear, o sentido unívoco, a linguagem contemporânea, a consistência lexical; evitam construções não-idiomáticas, polissemias, arcaísmos, jargões, efeitos linguísticos que chamem a atenção para as palavras enquanto palavras que assim ganham destaque ou interrompem a identificação do leitor. Na tradução fluente, a ênfase é posta na familiaridade, a ponto de tornar a linguagem praticamente invisível.. Com esse direcionamento, discutiremos os vários tipos de marcas tradutórias inerentes às condições de produção do texto de chegada e ao processo discursivo como um todo, deixados pelo tradutor da versão inglesa The Alchemist. Salientamos que os tipos coexistem num mesmo parágrafo e são muito mais numerosos que os trazidos para a análise.. 3.1. Marcas tradutórias: nas escolhas lexicais A interferência de maior vulto foi observada nas escolhas lexicais na comparação entre as obras já mencionadas e os efeitos discursivos resultantes foram variados. Uma das opções mais intrigantes diz respeito à expressão “lenda pessoal”. O livro de ficção de Paulo Coelho possui um fundo de autoajuda, cuja construção se faz em torno dessa expressão. No texto brasileiro, “Lenda Pessoal” é definida como aquilo que o indivíduo sempre desejou fazer, e acaba sendo sua missão na Terra (COELHO, 1995). Na versão inglesa, foram usados “fate” e “destiny” como vocábulos substitutivos dessa expressão. “Fate” é um substantivo com carga semântica negativa, conforme a acepção do Dicionário Longman (1995): “1.the things that will happen to someone, especially unpleasant events [...] 2. a Power that is believed to control what happens in people´s lives”. E destiny significa “the things that will happen to someone in the future, especially those that cannot be changed or controlled; FATE (1) […] 2. the power that some people believe decides what will happen to them in the future”. Já em português, segundo o Dicionário Aurélio Século XXI (1999), “destino” é a: “Sucessão de fatos que podem ou não ocorrer, e que constituem a vida do homem, considerados como resultantes de causas independentes de sua vontade; sorte, fado, fortuna. 2. Aquilo que acontecerá a alguém; futuro [...]”. Pelos significados apresentados, nota-se que as duas escolhas feitas pelo tradutor divergem se comparadas com a expressão “Lenda Pessoal”, que não é sinônimo de. Unidos, tais livros eram lidos nas escolas, resenhados na academia e o autor, incluído no cânone da literatura italiana, ao lado de Verga, Pirandello e Moravia. Tradução & Comunicação: Revista Brasileira de Tradutores • Nº. 24, Ano 2012 • p. 111-134.

(11) Angela Enz Teixeira, Rosa Maria Olher. 121. “destino”, já que “destino” envolve eventos bons ou ruins que são independentes da vontade do homem, condição motora da Lenda Pessoal, conforme o livro analisado. Fate distancia-se, ainda mais em termos de efeito de sentido, por dizer respeito, principalmente, a eventos indesejáveis ao sujeito. Se fosse traduzida, a expressão poderia ser Personal Legend, como consta em comentários de leitores, em inglês, na internet. Tendo em vista a situação comunicativa que envolve todo discurso – seja ele oral ou escrito – reconhecemos que a relação de sinonímia entre termos é, de fato, frágil, porque há nuanças significativas distintivas de termos marcadas, entre outros fatores, pela cultura dos sujeitos participantes do discurso. Assim, a seleção de um termo em meio a tantas opções marca a subjetividade, a voz do tradutor na constituição de sentidos do novo texto, o texto de chegada. Seguem alguns recortes discursivos selecionados para esta discussão: RD2 – [...] com seus cabelos negros escorridos (COELHO, 1995, p.14) / [...] with flowing Black hair (COELHO; CLARKE, Tradução, 2006, p.5). RD3 - [...] e os pequenos olhos mouros abriam-se (COELHO, 1995, p.15) / [...] an her bright, Moorish eyes went wide (COELHO; CLARKE, Tradução, 2006, p.5).. Nesses RDs 2 e 3, a percepção do leitor do texto de partida pode diferir da percepção do leitor do texto de chegada, criando uma imagem bela da mulher, substituindo a apreciação negativa gerada pelo texto em português. Tal passagem foi atualizada tendo por base os parâmetros ocidentais atuais de beleza. O que nos faz retomar Hermans (1996), quando explica que a tradução reflete certas concepções e expectativas que envolvem o processo (em nosso contexto, a beleza da mulher), levando o tradutor a fazer escolhas e a tomar posições porque os sujeitos envolvidos (editora e tradutor) possuem objetivos a alcançar – dos interesses materiais aos simbólicos (status por ter os direitos de uma tradução que se manteve best-seller). Nesse contexto, a AD se firma como parceira para os estudos da tradução, porque: “O contexto assim como as ações de indivíduos e de grupos são determinadas socialmente10”, defende Hermans (1996, p. 9). O autor completa que “Os tradutores também são agentes sociais”11 (ibidem, p. 9) e, em se tratando de best-seller, ele se põe, gostando ou não, no lugar de um agente que contribui para a manutenção do status quo. O que pode não ser prazeroso para alguns tradutores. Segue o RD4, rico em diferenças: RD4 - Nos últimos dois dias, porém, seu assunto tinha sido praticamente um só: a menina, filha do comerciante, que morava na cidade por onde ia chegar daqui a quatro dias.[...] O comerciante era dono de uma loja de tecidos, e gostava sempre de ver as ovelhas tosquiadas na sua frente, para evitar falsificações (COELHO, 1995, p.14).. 10 11. Nas palavras de Herman:s (1996, p.9): “Both the context and the actions of individuals and groups are socially determined”. Ibidem, p.9: “Translators too are social agents”. Tradução & Comunicação: Revista Brasileira de Tradutores • Nº. 24, Ano 2012 • p. 111-134.

(12) 122. O Alquimista & The Alchemist: condições de produção no processo tradutório. But for the past few days he had spoken to them1 about only one thing: the girl, the daughter of a merchant2 who lived in the village they would reach in about four days. […] The merchant was the proprietor of a dry goods shop3, and he always demanded4 that the sheep be sheared in his presence, so that he would not be cheated5 (COELHO; CLARKE, Tradução, 2006, p.4).. 1 = em inglês, o tradutor retoma o parágrafo anterior da narrativa, fazendo uma coesão por referência12, usando o pronome “them”, retomando “the sheeps”. Em português, a coesão é apenas semântica, pois, no parágrafo que antecede o analisado, é dito que o pastor Santiago costumava ler e falar com as ovelhas, porque acreditava que elas o entendiam, contudo, no parágrafo seguinte – que é o analisado – tal plateia não é retomada nem com termos específicos, apenas com a situação contextual criada pelo narrador. Por isso, entendemos que a forma de coesão usada na versão brasileira mostrase mais sutil, mais envolvente, pois liga semanticamente a situação ao cenário já criado; 2 = neste trecho, houve uma troca de artigo definido por indefinido. Em português, a coesão mostra-se inadequada, pois o mercador não havia sido mencionado antes, desse modo, o artigo indefinido “um” seria mais adequado, conforme a norma culta da língua portuguesa. Embora a repetição da falha fosse possível em inglês, ela não se manteve; 3 = a diferença vocabular na escolha lexical neste trecho chama a atenção, pois uma loja de “dry goods shop” é conhecida como uma loja de secos e molhados, ou melhor, uma mercearia, o que é bem diferente de uma loja de tecidos, conforme a versão brasileira. Ambas são possíveis no contexto da cidadezinha onde se encontrava o personagem, mas uma mercearia acaba sendo mais popular e diversificada que uma loja de tecidos, escolha tradutória que revela uma imagem particular do tradutor sobre o cenário narrativo, um tanto diferente da de Paulo Coelho; 4 = “demanded” significa “exigir” divergindo de “gostar”, o verbo usado em português. A opção do tradutor construiu um perfil mais severo e exigente do comerciante do que o perfil da versão brasileira; 5 = “not be cheated” significa “não ser enganado” e substituiu a oração subordinada “para evitar falsificações”, da versão brasileira. O resultado foi que a versão inglesa enfatizou o ato de defesa do mercador, enquanto a portuguesa apenas o subentende. Por essas interferências, além de correção na coesão, consideramos que o tradutor fez uma adequação semântica enriquecedora do texto traduzido. Outra diferença que podem ser trazidas pelas trocas lexicais são as marcas estilísticas do texto, no caso de RD5, do popular para o formal:. 12 A coesão por referência é obtida com uso de pronomes pessoais, possessivos e demonstrativos, advérbios de lugar, artigos definidos, explica Citelli (1994).. Tradução & Comunicação: Revista Brasileira de Tradutores • Nº. 24, Ano 2012 • p. 111-134.

(13) Angela Enz Teixeira, Rosa Maria Olher. 123. RD5 - A loja do homem estava cheia (COELHO, 1995, p.14) / the shop was busy (COELHO; CLARKE, Tradução, 2006, p.5).. A escolha lexical inglesa foi menos popular que a brasileira, já que “busy” significa a priori movimentada. RD6 - Mas os pipoqueiros são mais importantes que os pastores (COELHO, 1995, p.26) / But bakers are more important people than shepherds. (COELHO; CLARKE, Tradução, 2006, p.21).. A diferença no RD6 nos faz pensar no condicionante cultural e nas condições de produção que interferiram na tradução do texto. Pipoqueiros são figuras populares no Brasil e a pipoca é um petisco muito barato e apreciado por crianças e adultos. Já na Europa e no norte da África, não é assim. A história se passa no trajeto entre a Andaluzia (região meridional da Espanha) e o Egito; ocorre que o milho é um alimento originário da América (origem inca - Peru), encarecendo o produto final naquela região. "Pipoca" se traduz por palomita de maiz, na Espanha, e são pouco conhecidas e não muito apreciadas, além de o preço não ser popular como aqui no Brasil. Na parte norte da Espanha, em regiões que recebem turistas com mais frequência, é possível encontrar pipocas em cinemas ou parques. Essa situação revela uma incoerência cultural na versão brasileira, corrigida com eficiência pelo tradutor, tendo em vista que o pão é alimento muito antigo, originário da África (Mesopotâmia e, depois, Egito). Pela abordagem, vemos a forte influência do condicionante cultural sobre o processo tradutório, dadas as condições de produção inerentes ao processo discursivo que ocorre da relação entre dois contextos sócio-históricos diferentes. Essa influência nos remete à natureza multidisciplinar da tradução, que impele o tradutor a ser um pesquisador muito curioso e esforçado, para buscar opções de tradução nos momentos críticos, nas diversas áreas do conhecimento humano (científico, filosófico, religioso, popular), entrelaçando-as: “A tradução, como uma categoria intelectual e uma força socialmente atuante, não pode ser resumida ou reduzida por uma mera e única abordagem disciplinar”, finaliza Hermans13 (1996, p.14).. 3.2. Organização de parágrafos e pontuação A pontuação, na versão inglesa, marca períodos mais longos que em certas partes da versão brasileira. Desse modo, a coesão, no que tange à estrutura da narrativa, é alterada, interferindo no ritmo da leitura: o ponto final traz pausas maiores, com períodos completos e bem marcados, com uma menor incidência de orações subordinadas,. “Translation, as an intellectual category and a socially active force, is not the kind of subject that can be reduced to or captured by a single disciplinary approach”(HERMANS, 1996, p. 14).. 13. Tradução & Comunicação: Revista Brasileira de Tradutores • Nº. 24, Ano 2012 • p. 111-134.

(14) 124. O Alquimista & The Alchemist: condições de produção no processo tradutório. enquanto as vírgulas, por serem pausas menores, dão mais velocidade à leitura e podem agregar mais detalhes a partir de construções sintáticas variadas. No caso do RD8, com a adição da conjunção and e pela opção de uso do gerúndio looking up, nota-se menor ênfase no ato de olhar, pois a oração subordinada construída liga a primeira parte do período à segunda. RD8 - Ainda estava escuro quando acordou. Olhou para cima, e viu que as estrelas brilhavam através do teto semidestruído (COELHO, 1995, p.13). It was still dark when he awoke, and, looking up, he could see the stars through the half-destroyed roof (COELHO; CLARKE, Tradução, 2006, p.3).. O RD9 contextualiza-se numa conversa que Santiago havia tido há muito tempo com seu pai, e cujo assunto dizia respeito ao valor de sua pátria, a suas belezas e a sua importância. Na conversa, porém, o rapaz revelara querer conhecer as terras e as mulheres de outras partes do mundo. Para tanto, seu pai lhe dera três moedas para que começasse a jornada. Uma leitura possível desse trecho refere-se à alegria, ao prazer de Santiago em conhecer coisas novas por meio da viagem. Assim, ele lembra com pesar dos anos que passara no seminário. Examinemos a sequência sublinhada de RD9: em português, ela é um início de parágrafo; em inglês, o final do parágrafo anterior. RD9 – O rapaz lembrou-se da conversa com seu pai e sentiu-se alegre; tinha já conhecido muitos castelos e muitas mulheres (mas nenhuma igual àquela que o esperava em dois dias). Tinha um casaco, um livro que podia trocar por outro, e um rebanho de ovelhas. O mais importante, entretanto, é que todo dia realizava o grande sonho se sua vida: viajar. Quando cansasse dos campos de Andaluzia, podia vender suas ovelhas e tornar-se marinheiro. Quando cansasse do mar, teria conhecido muitas cidades, muitas mulheres, muitas oportunidades se ser feliz. “Não sei como buscam Deus no seminário”, pensou, enquanto olhava o sol que nascia (1995, p. 7-8). The boy thought back to that conversation with his father, and felt happy; he had already seen many castles and met many women (but none the equal of the one who awaited him several days hence). He owned a jacket, a book that he could trade for another, and a flock of sheep. But, most important, he was able every day to live out his dream. If he were to tire of the Andalusian fields, he could sell his sheep and go to sea. By the time he had had enough of the sea, he would already have known other cities, other women, and other chances to be happy. I couldn´t have found God in the seminary, the thought, as he looked at the sunrise (COELHO; CLARKE, Tradução, 2006, p.9-10).. Em nosso entender, a construção do parágrafo, em inglês, apresentado em RD9, oferece coesão e coerência mais adequadas à sequência semântica desenvolvida que a opção em português, porque a ideia que antecede o excerto discutido é a satisfação do rapaz por fazer coisas de que gosta todos os dias, por isso, subentende-se que Deus está em todo lugar, não somente no seminário, lugar que deixara Santiago insatisfeito, conforme outro momento do livro. A ideia que sucede tal parte traz uma reflexão do personagem sobre uma igreja na qual ele nunca entrara, embora tivesse passado por aquela região várias vezes. Com isso, podemos dizer que o fechamento da primeira ideia com a frase sublinhada é mais coerente. Quanto à mudança da construção sintática e à. Tradução & Comunicação: Revista Brasileira de Tradutores • Nº. 24, Ano 2012 • p. 111-134.

(15) Angela Enz Teixeira, Rosa Maria Olher. 125. escolha dos sujeitos, são ações que mudam perceptivelmente o discurso, como veremos no tópico seguinte. No RD11 (um pouco adiante), essa diferença na construção do parágrafo se repete, sendo a versão traduzida a mais bem elaborada, do nosso ponto de vista. Em português, o parágrafo termina com “Porque todas as pessoas têm a noção exata de como devemos viver nossa vida” (COELHO, 1995, p.21) e começa o seguinte com o final dessa ideia. Em inglês, esse problema de coesão não ocorre, porque se optou por fechar a ideia no parágrafo em que ela começou. Pelo exposto, nota-se que, embora a pontuação pareça ser uma mudança muito simples, não é, porque envolve ritmo e progressão textual, ou seja, envolve diferenças estilísticas e de coesão, elementos que interferem na inteligibilidade do texto. Quanto à pontuação e à construção dos parágrafos, entendemos que as mudanças realizadas pelo tradutor foram adequadas, dadas as diferenças estruturais do par linguístico em questão.. 3.3. Escolhas do sujeito oracional A escolha do sujeito de uma oração pode alterar sobremaneira os efeitos de sentido do discurso. No RD9 (no tópico anterior), o sujeito indeterminado em português é representado pelo sujeito simples em inglês. O uso de sujeito indeterminado em português conota uma rejeição por seminários: Deus não está em um só local, subentendendo uma crença panteísta, segundo a qual Deus é a soma de tudo quanto existe no mundo e só o mundo é real14. Na tradução, o sujeito simples “I” limita o escopo do encontro com Deus no seminário, pois só o personagem não encontrara Deus naquele lugar, subentendendo-se que outro poderia encontrar. RD10 - É porque as ovelhas ensinam mais que os livros (COELHO, 1995, p.14) / Well, usually I learn more from my sheep tham from books (COELHO & CLARKE, Tradução, 2006, p.5).. Em português, as ovelhas têm papel ativo segundo essa construção, e o tom é evidentemente pejorativo sobre o valor dos livros; enquanto na versão inglesa, o rapaz é o agente que usufrui mais aprendizado de suas ovelhas que dos livros, não por demérito do livro, mas pela sua posição pessoal frente ao objeto de aprendizado. No RD10, há uma atualização do discurso, pois a depreciação dos livros é condenável nos apregoados correntes sobre educação.. 14. Conforme o Dicionário Aurélio Século XXI (1999). Tradução & Comunicação: Revista Brasileira de Tradutores • Nº. 24, Ano 2012 • p. 111-134.

(16) 126. O Alquimista & The Alchemist: condições de produção no processo tradutório. 3.4. Marcas estilísticas com foco na enunciação Numa narrativa, além de suas ações, um personagem pode falar e pensar. Para expor sua fala e pensamento, há diversos expedientes: discurso direto, discurso direto livre, discurso indireto, discurso indireto livre e monólogo interior (TEIXEIRA, 2009). O que precisa ser ressaltado, no momento, é que a opção predominante interfere no estilo do texto, foco da Estilística da Enunciação. Comparando a versão brasileira com a inglesa de O Alquimista, observamos mudança no estilo em diversas passagens da tradução. O RD11 está no meio de um parágrafo, começa em terceira pessoa, mas a narrativa é substituída pela construção do discurso indireto livre (DIL), havendo uma mistura entre reflexão do personagem (ele parece irritado) e palavras do narrador. Sabemos que não é o pensamento livre do personagem, porque, na versão brasileira, tal manifestação é marcada com aspas (como em RD9). RD11 - Conhecia muita gente por aquelas bandas – e por isso gostava de viajar. A gente sempre acaba fazendo amigos novos, e não precisa ficar com eles dia após dia. Quando a gente vê sempre as mesmas pessoas – e isto acontecia no seminário – terminamos fazendo com que elas passem a fazer parte de nossas vidas. E como elas fazem parte de nossas vidas, passam também a querer modificar nossas vidas. Se a gente não for como elas esperam, ficam chateadas. Porque todas as pessoas têm a noção exata de como devemos viver nossa vida. E nunca têm noção de como devem viver as suas próprias vidas (COELHO, 1995, p.21). The boy knew a lot of people in the city. That was what made traveling appeal to him – he always made new friends, and he didn´t need to spend all of his time with them. When someone sees the same people every day, as had happened with him at the seminary, they wind up becoming a part of that person´s life. And then they want the person to change. If someone isn´t what others want them to be, the others become angry. Everyone seems to have a clear idea of how other people should lead their lives, but none about his or her own Ø (COELHO; CLARKE, Tradução, 2006, p.15).. Na versão em inglês, a narrativa em 3ª pessoa se mantém e o narrador se põe em evidência com sua reflexão, excluindo a manifestação ativa do personagem. Em português, o uso da expressão “a gente” e as marcas de 1ª pessoa envolvem o leitor nessa reflexão, pois o “a gente”, nesse contexto, significa “nós”, funcionando como um pronome pessoal.. O. efeito. resultante,. em. português,. é. o. de. proximidade. entre. narrador/personagem/leitor, o que não ocorre na versão inglesa, dada a imposição do narrador. Como essa diferença de enunciação entre as versões comparadas se repete até o final das narrativas, o livro The Alchemist mostra-se um pouco mais direto e com nuança psicológica menos evidente que em O Alquimista.. 3.5. Supressão Ø e/ou adição As supressões são ações tradutórias vultosas entre as versões comparadas.. Tradução & Comunicação: Revista Brasileira de Tradutores • Nº. 24, Ano 2012 • p. 111-134.

(17) Angela Enz Teixeira, Rosa Maria Olher. 127. No prólogo do livro, traduzido por Clifford E. Landers, há supressões bastante significativas. Na versão brasileira, por exemplo, Coelho menciona o autor Oscar Wilde e, na versão inglesa, todo o período em que se apresenta esse nome foi suprimido (trecho sublinhado). RD12 - O Alquimista pegou um livro que alguém na caravana havia trazido. O volume estava sem capa, mas consegui identificar seu autor: Oscar Wilde (COELHO, 1995, p.9). The alchemist picked up a book that someone in the caravan had bought (COELHO & LANDERS, Tradução, 2006, p.XIII).. Na versão brasileira, o autor irlandês é mencionado mais uma vez. Para dar coesão à versão inglesa, fez-se uma opção pela expressão the author of the book. De fato, Wilde tem um livro com uma narrativa sobre Narciso15 –, o que nos faz questionar tal supressão. Talvez se desejasse evitar o anacronismo. Seguem supressões da narrativa principal: RD13 - [...] um animal havia escapado durante a noite, e ele gastara todo o dia seguinte procurando a ovelha desgarrada (COELHO, 1995, p.13). […] and the boy had had to spend the entire next day searching for it (COELHO; CLARKE, Tradução, 2006, p.3).. Nota-se uma supressão de substantivo e adjetivo “ovelha desgarrada” pelo pronome it, reduzindo-se, com tal elisão, a possível correlação com a metáfora bíblica cristã16. RD14 - O rapaz riu. De felicidade. Então iria economizar o pouco dinheiro que tinha, por causa de um sonho que falava em tesouros escondidos! A velha devia ser mesmo uma cigana – os ciganos são burros. (COELHO, 1995, p.20) The boy laughed – out of happiness. He was going to be able to save the little money he had because of a dream about hidden treasure! (COELHO; CLARKE, Tradução, 2006, p.13).. Toda a parte sublinhada foi suprimida e, com isso, o pensamento discriminativo do personagem não foi repassado na versão inglesa; todavia, o efeito estereotipado será construído de outra forma, como veremos mais adiante. RD15 - O velho é que tinha pedido vinho, conversa, e livro (COELHO, 1995, p.24). It was the old man who had asked for a drink of his wine, and had started the conversation (COELHO; CLARKE, Tradução, 2006, p.19).. A supressão da enumeração sublinhada e a adição da sequência em itálico, no RD15, fizeram com que o ritmo expressivo da versão portuguesa fosse suplantado. A passagem perdeu a poesia, segundo nossa perspectiva. No RD16, as ausências na versão inglesa são várias: RD16 - Na areia da praça principal da pequena cidade, ele leu o nome do seu pai e de sua mãe. Leu a história de sua vida até aquele momento, as brincadeiras de infância, as noites frias do seminário. Leu o nome da filha do comerciante, que não sabia. Leu coisas que jamais contara a alguém, como o dia em que roubou a arma do seu pai para matar. 15 16. Cf. Oscar Wilde, Poemas em prosa, 1961. Mateus: 18, 12-14; Lucas: 15, 4-7. Tradução & Comunicação: Revista Brasileira de Tradutores • Nº. 24, Ano 2012 • p. 111-134.

(18) 128. O Alquimista & The Alchemist: condições de produção no processo tradutório. veados, ou sua primeira e solitária experiência sexual (COELHO, 1995, p.25). There, in the sand of the plaza of that small city, the boy read the names of his father and his mother and Ø the name of the seminary he had attended. He read the name of the merchant´s daughter, which he hadn´t even known, and he read things he had never told anyone Ø (COELHO; CLARKE, Tradução, 2006, p.19-20).. O resultado das elipses em RD16 foi um parágrafo resumido, com as ideias principais. Contudo, houve uma interferência no ritmo e no enfoque do assunto devido ao uso de dois recursos principais: supressão do verbo “ler” e adição da conjunção and. O verbo “ler” apareceu quatro vezes na versão brasileira; na inglesa, três. A diferença numérica não é muita, mas foi sensível, pois a ênfase está no ato de “ler”, em sentido metafórico, parecendo que Santiago estava lembrando fatos. Quanto à conjunção and, sua repetição enfatiza a lembrança dos elementos introduzidos, não à “leitura” que o jovem fazia. Quanto às informações suprimidas, elas são relevantes para a construção do personagem, ademais, a parte sublinhada com dois traços foi alterada e retira a sugestão de solidão e angústia que a versão brasileira traz. E como o narrador fala do seminário em outras ocasiões, essa informação é relevante para a história do personagem. Durante toda a tradução, foram feitas muitas supressões, menos ou mais significativas, evidenciando, na comparação entre O Alquimista e The Alchemist, como a omissão é significativa para a construção de discursos. Nos recortes discursivos trazidos, os efeitos gerados pelas supressões foram mais negativos que positivos: correção (RD12); eliminação de possibilidade de correlação com passagem bíblica (RD13); com perda de informação ou alteração estilística: RD14, RD15, RD16. Uma das características estilísticas da escrita de P. Coelho, bastante presente em O Alquimista, diz respeito à coesão semântica. Desse modo, devido à falta de conexão sintática, há algumas construções estruturalmente incorretas, conforme a norma culta do português. Como exemplo dessas ocorrências, temos RD17, em cuja tradução para o inglês houve adição de formas linguísticas corretivas: RD17 – Estava excitado e ao mesmo tempo inseguro: talvez a menina já tivesse esquecido (COELHO, 1995, p.15). He was excited, and at the same time uneasy: maybe the girl had already forgotten him (COELHO; CLARKE, Tradução, 2006, p.6).. No texto em português, a presença de objeto direto é obrigatória, afinal “a menina esqueceu o quê? Quem?” Na versão inglesa, o complemento do objeto corrige essa falha. Pelo contexto, o leitor pode inferir que a menina (na verdade, moça, filha do comerciante para quem o personagem venderia lã) pudesse ter-se esquecido do rapaz, todavia, também seria coerente um complemento que remetesse à longa conversa que o rapaz e ela tiveram, enquanto ele esperava ser atendido. Vale ressaltar, então, que him foi uma das possibilidades de complemento da oração no momento tradutório, e não a única. Tradução & Comunicação: Revista Brasileira de Tradutores • Nº. 24, Ano 2012 • p. 111-134.

(19) Angela Enz Teixeira, Rosa Maria Olher. 129. Outro exemplo de ruído na comunicação evidencia-se em RD18, em que a falta de coesão é corrigida, na versão inglesa, pela adição de vocábulo (boy). Na leitura da passagem do texto brasileiro, há o problema da ambiguidade, causado pela retomada ineficiente do pronome “ele”. Mesmo a ambiguidade sendo desfeita, no parágrafo seguinte, quando se menciona o interlocutor (o velho), tal construção atrapalha a fluidez da leitura. RD18 – No dia seguinte o rapaz encontrou-se com o velho ao meio-dia. Trazia seis ovelhas consigo. __ Estou surpreso – disse ele. __ Meu amigo comprou imediatamente as ovelhas. Disse que a vida inteira havia sonhado em ser pastor e aquilo era um bom sinal. __ É sempre assim – disse o velho (COELHO, 1995, p.30). The next day, the boy met the old man at noon. He brought six sheep with him. “I´m surprised”, the boy said.” May friend bought all the other sheep immediately. He said that he had always dreamed of being a shepherd, and that it was a good omen.” “That’s the way it always is”, said the old man (COELHO; CLARKE, Tradução, 2006, p.27).. Na adição ocorrida no RD19, também há interferência na coesão textual: RD19 - [...] o velho abaixou-se [...] e começou a escrever na areia da praça. Quando ele se abaixou, alguma coisa brilhou dentro do seu peito, com tanta intensidade que quase cegou o rapaz. Mas num movimento rápido demais para alguém de sua idade, tornou a cobrir o brilho com o manto. Os olhos do rapaz voltaram ao normal e ele pôde enxergar o que o velho estava escrevendo (COELHO, 1995, p.25). […] the old man leaned over […] and began to write in the sand of the plaza. Ø Something bright reflected from his chest with such intensity that the boy was momentarily blinded. With a movement that was too quick for someone his age, the man covered whatever it was with his cape. When his vision returned to normal, the boy was able to read what the old man had written in the sand (COELHO; CLARKE, Tradução, 2006, p.19).. A adição do conectivo when, no RD19, surtiu um efeito positivo no ritmo do segmento. Em português, a oração era coordenada, em relação à seguinte oração do período, e, em inglês, ficou uma subordinada adverbial, dando ênfase à oração principal que a segue. Houve ganho de velocidade, o que imprimiu fluidez à leitura, uma das características buscadas na tradução de best-sellers, conforme Venuti (2002). Já a adição ocorrida no RD20 gera outro efeito. RD20 - Enquanto o rapaz conhecesse os melhores pastos em Andaluzia, elas seriam sempre suas amigas. Mesmo que os dias fossem todos iguais, com longas horas se arrastando entre o nascer e o pôr-do-sol [...] (COELHO, 1995, p.16). As long as the boy knew how to find the best pastures in Andalusia, they would be his friends. Yes, their days were all the same, with the seemingly endless hours between sunrise and dusk […] (COELHO; CLARKE, Tradução, 2006, p.6).. A adição do advérbio Yes mudou a sintaxe e o enfoque discursivo do período do RD20. Em português, há uma sequência concessiva, com coesão evidente, embora o ponto final que antecede “mesmo” seja questionável. O enfoque é no pastor: a rotina é um mal inevitável para esse profissional. Em inglês, a concessão não ocorre. Pela leitura do livro, observa-se que as ovelhas gostam da rotina e querem apenas água e alimento. Logo, o advérbio Yes funciona como uma resposta aos desejos das ovelhas: o pastor e elas seriam Tradução & Comunicação: Revista Brasileira de Tradutores • Nº. 24, Ano 2012 • p. 111-134.

(20) 130. O Alquimista & The Alchemist: condições de produção no processo tradutório. amigos enquanto ele lhes proporcionasse a rotina adequada. A construção feita na tradução, então, mostra-se pertinente, e a atenção do leitor é redirecionada do pastor para a ovelha. RD21 - Os ciganos são espertos – suspirou o velho (COELHO, 1995, p.27) / Gypsies are experts at getting people to do that, sighed the old man (COELHO; CLARKE, Tradução, 2006, p.23).. No RD21, a seleção de ”experts” para substituir “espertos” e a adição do complemento sublinhado transformaram a percepção do leitor sobre os ciganos. Em outra ocasião, o personagem pastor disse que os “ciganos são burros” (isso foi suprimido na versão inglesa). Agora, um rei diz que “os ciganos são espertos”. Essa passagem apela para a lembrança do leitor e o faz refletir sobre a contradição nas afirmações dos personagens. No balanço, a constatação do rei sobrepuja a do pastor, que fora precipitada. Esse efeito não se constrói na versão inglesa, primeiro, por causa da supressão já comentada, depois porque “experts at getting people to do that” tem conotação negativa, porque o “to do that” remete à decepção do rapaz. Ele ficara feliz quando, ao interpretar seu sonho, a cigana dissera que não queria pagamento, mas um décimo do tesouro a ser encontrado. Ele ainda não acreditava no tesouro e ficou feliz por não ter que desembolsar dinheiro. Desse modo, embora não tivesse sido enganado, ele sentiu-se assim. A adição de termos foi um recurso tradutório bastante usado na tradução analisada e seus efeitos foram mais positivos que negativos, por promover uma leitura mais fluida, embora a questão da percepção negativa em relação aos ciganos criada na tradução seja questionável. Apesar de o estereótipo ser uma característica dos personagens de best-seller, a discriminação para com ciganos não é uma posição sustentada pelo texto brasileiro, ademais, não é bem vinda em tempos em que se implora por paz. Com todas essas marcas tradutórias apontadas, concordamos com Hermans (1996), quando diz que nos iludimos ao pensar que cabe ao tradutor simplesmente e, com precisão, reafirmar o texto de partida, nada omitindo, nada acrescentando, nada mudando, exceto, é claro, a linguagem. O autor enfatiza que, mesmo sem invocar a problemática da separação entre significante e significado, podemos perceber que uma tradução nunca vai coincidir com a sua fonte. Línguas e culturas não são simétricas, nem sistemas isomórficos. Para cada instância de consonância, também há dissonância. Com a tradução, não são apenas as línguas que mudam, mas o contexto, a intenção, a função, toda a situação comunicativa. Por isso, Sobral (2011) ensina que traduzir requer o desenvolvimento de certas capacidades de adaptação cultural dos discursos, como a explicitação, que significa. Tradução & Comunicação: Revista Brasileira de Tradutores • Nº. 24, Ano 2012 • p. 111-134.

(21) Angela Enz Teixeira, Rosa Maria Olher. 131. detalhar no texto-alvo, ao menos, parte do que for sugerido no texto-fonte, como as particularidades do campo do saber e as referências culturais mais específicas; a simplificação, no sentido de contribuir para reduzir o esforço de processamento do leitor do texto-alvo para uma leitura mais fluida e uma melhor compreensão; a normalização, respeitante ao “domesticar” em algum grau o tom do discurso do texto-fonte para tornálo compreensível no texto-alvo, mas sem desfigurá-lo. Durante a análise, notamos que foi feita uma adaptação cultural do discurso. Logo, as condições tradutórias propiciam a manipulação e, como visto, também a manipulação questionável/indevida (no sentido de ser inadequada para determinados leitores, como analisamos em: RD1, RD4, RD13, RD15, RD16, RD21). Retomando Hermans (1996), as operações de tradução são inscritas na opacidade e na desordem, não na coincidência, na transparência ou equivalência em qualquer sentido formal. Assim, pragmaticamente, reafirma-se: a intervenção do tradutor no processo tradutório não pode ser neutralizada, pois é inerente a sua tarefa.. 4.. CONSIDERAÇÕES FINAIS Retomando a pergunta feita na introdução, podemos afirmar que houve pertinência na maioria das interferências tradutórias na versão inglesa de O Alquimista, tendo em vista as diferenças entre as línguas e contextos culturais sempre presentes no evento tradutório. Conforme a investigação apresentada, observamos que as vozes dos sujeitos envolvidos na tradução estão visíveis no texto, dizem respeito a suas condições de produção e podem ser justificadas como segue: diferenças linguísticas entre as línguas envolvidas (que pode ser exemplificada pela não repetição de desvios gramaticais na versão inglesa); incoerência cultural ou anacronismo em fatos do texto de partida (culminando em adequações); diferença cultural do público leitor (promovendo domesticação do texto de chegada); opções subjetivas (interpretação do tradutor como sujeito leitor sócio historicamente constituído). Pela comparação do todo, nota-se que o tradutor responsável pelo texto em inglês procurou ater-se ao texto de partida, sem supressões ou adaptações bruscas que atrapalhariam o acompanhamento parágrafo a parágrafo, entre as duas versões sinalizando para a função tradutor limitando e organizando suas escolhas. Pelos excertos trazidos na análise, percebe-se que o tradutor preocupou-se com seu público leitor, valendo-se de várias estratégias para dar fluência a sua tradução, mantendo o registro coloquial característico do texto brasileiro, mas não repetindo alguns. Tradução & Comunicação: Revista Brasileira de Tradutores • Nº. 24, Ano 2012 • p. 111-134.

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