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Memória não se remove : a luta dos moradores da Vila Autódromo para continuar (re)existindo

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“Memória não se remove”: a luta dos moradores da Vila Autódromo para continuar (re)existindo

Alexandre Magalhães Diana Bogado

Resumo

Este artigo busca, fundamentalmente, descrever uma experiência de resistência que ganhou corpo recentemente na cidade do Rio de Janeiro: o Museu das Remoções. Esta forma de mobilização emerge no contexto de aprofundamento da política de remoções da atual conjuntura (2009-2016), especialmente a da Vila Autódromo, favela situada na Zona Oeste da cidade1.

Palavras-chave: favelas – remoção – resistência - museu Abstract:

This article seeks to fundamentally describe an experience of resistance which gained recently in the city of Rio de Janeiro: the Museum of Eviction. This form of mobilization emerges to deepen the context of removals policy of the current situation (2009-2016), especially the Vila Autodromo slum located in the city's West Zone. Keywords: favelas - removal - resistance - Museum

Introdução

A cidade do Rio de Janeiro vem passando por mudanças consideráveis nos últimos anos. Tais “transformações”, assim como classificado pelo discurso oficial, vêm implicando alterações significativas nos usos e fluxos dos espaços e lugares da cidade. Há muitas décadas não se observavam intervenções de tal magnitude. Seria possível afirmar que, na dimensão em que ocorrem, apenas é comparável às reformas urbanas empreendidas pelo prefeito Pereira Passos no inicio do século XX. Não à toa, o atual

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Este artigo foi publicado no livro “O fim da Narrativa Progressista na América do Sul”, Editora Associada, 2016.

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prefeito, Eduardo Paes, costuma reivindicar esta herança para caracterizar seu governo2. Neste compasso, a conjuntura específica atual permitiria a configuração das condições de possibilidade para retomada de uma ação estatal que se considerava, até então, superada politicamente: a remoção de favelas3.

Esta conjuntura favorável às remoções contaria com a contribuição do programa federal de habitação “Minha Casa Minha Vida”4

. Este seria largamente utilizado pela prefeitura do Rio de Janeiro para levar a cabo as propostas de “desadensamento” e “reassentamento”, articulando-se de maneira decisiva às intervenções em curso no município em relação às favelas no que se refere à possibilidade de reincorporação da via da erradicação como forma de o Estado atuar nestes territórios. Neste compasso, a administração municipal aumentaria o escopo e alteraria consideravelmente a natureza das intervenções de seu programa de urbanização, agora com o programa Morar Carioca, que elencaria um conjunto de 123 favelas (aproximadamente 13 mil famílias) que deveriam ser completamente removidas até o final de 2012, objetivo que havia sido definido no final de 2009, embora este número viesse a se alterar com o levantamento feito após as “chuvas de abril”, que apontaria um número perto de 18 mil famílias a serem realocadas.

Em outro nível, seria possível situar as remoções de favelas no contexto da proliferação de dispositivos de exceção que alteraram consideravelmente os parâmetros a partir dos quais se estabeleciam as relações entre o Estado e suas margens no Brasil. Nesse sentido, houve um alargamento, nos últimos anos, de mecanismos de controle e

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Cf. O Globo, 09/07/2012: “Em campanha, Paes tenta vincular sua imagem às transformações feitas por Pereira Passos”

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Segundo a própria prefeitura, entre 2009 e o inicio de 2014, 20,3 mil famílias foram removidas. Dessas, 9,3 mil estão em imóveis do Minha Casa, Minha Vida, 5 mil recebem aluguel social e 6 mil foram indenizadas. Cf. “Mais de 20 mil famílias foram removidas nos últimos quatro anos no Rio”, Agência Brasil, 16 maio 2014. Sobre a retomada da política de remoções, ver Magalhães (2013).

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Programa lançado em 2009, inicialmente como resposta do governo federal aos efeitos locais da crise econômica federal, cujo objetivo era construir 1 milhão de novas moradias, embora esta meta nunca tenha sido alcançada. Para mais informações sobre o impacto desta política, especialmente nos processos de segregação sócio-espacial nas cidades brasileiras, ver: Cardoso, Adauto Lúcio et alli (2010). Além disso, em entrevista concedida aos pesquisadores Adauto Lucio Cardoso, Irene de Queiroz e Mello e Samuel Thomas Jaenisch, do Observatório das Metrópoles, a gerente de trabalho social do referido programa na Secretaria Municipal de Habitação (SMH) afirmou que entre 2009 e 2012 foram inaugurados 49 conjuntos habitacionais, sendo que 36 deles foram utilizados para reassentamentos. Corrobora a definição dos autores: “esses dados indicam que a Prefeitura do Rio de Janeiro tem usado massivamente o PMCMV para o deslocamento de famílias removidas de forma involuntária de seus locais originais de moradia”.

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administração das populações em detrimento da política e seus protocolos de negociação, discussão e participação. No caso do Rio de Janeiro (mas é possível afirmar, sem incorrer em erro, no Brasil como um todo), simultaneamente às remoções, atualizam-se outros tantos mecanismos de controle populacional, como é o caso das Unidades de Polícia Pacificadora5 e a internação compulsória de usuários de drogas em situação de rua.

Além disso, assim como se verificam em outras regiões do país, os grandes empreendimentos econômicos, tratados como fundamentais ao atual modelo de desenvolvimento (ao menos até o momento de sua débâcle recente), ocorrem ao passo de profundas violações de direitos humanos, implicando em deslocamentos populacionais sem igual na história recente do país. Basta ver os casos das hidrelétricas e seus impactos sobre as populações ribeirinhas e as indígenas. Observe-se também os empreendimentos ligados à industria química, petroquímica e de minério (entre outras) que, além de provocarem consideráveis impactos (todos negativos) no meio-ambiente, têm levado à expulsão de populações locais e/ou originárias.

As formas de intervenção urbana da atualidade, que têm o turismo e o consumo como focos principais, direcionadas a atender os interesses do mercado internacional, não alteram somente o aspecto físico dos lugares, mas também o social e o simbólico. Concentram-se, principalmente, na execução de projetos pontuais de revitalização de áreas consideradas “degradadas”, pensadas para funcionar como alavanca de transformação de demais áreas da cidade. Os novos espaços criados por meio de Grandes Projetos Urbanos (GPUs), ou megaprojetos são imaginados para induzir um padrão determinado de comportamento social.

Viabilizados por coalizões entre o mercado e a administração pública, no bojo da globalização da economia, Baltmore, Boston, Nova York, Barcelona, Buenos Aires, Londres, Rio de Janeiro, entre outros, são exemplos deste modelo que se multiplica pelo mundo e constroem espaços fragmentados na cidade neoliberal. Tais espaços desconectados dos modos de produção do entorno, destituídos de caráter “público”,

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Ação do governo do estado do Rio de Janeiro implementada a partir de 2008. Consiste basicamente na ocupação policial de determinadas favelas cuja principal justificativa seria acabar com o controle exercido pelos grupos de traficantes. Entretanto, tem implicando em um controle policialesco das condutas e da vida política e cultural local, renovando, desta forma, o quadro das violências historicamente constatadas da polícia nestas localidades. Um exemplo desta situação pode ser observado no seguinte sítio da internet: http://www.youtube.com/watch?v=6QJcXjOVtas&list=UU7G7saR0vFSMh-SdEyF3Utg (Jovem é eletrocutado por PMs e população se levanta contra a UPP)

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desencadeadores de processos remocionistas e gentrificadores, com viés inconstitucional, acarretam inúmeras violações antes, durante e após sua execução, principalmente no tocante aos direitos de moradia, conforme descrito no informe da Relatoria Especial da ONU6 sobre o Rio de Janeiro.

Importante ressaltar que no contexto global de adequação das cidades às necessidades de reprodução do capital – na atualidade o imobiliário7 - os megaeventos apresentam-se como uma ação governamental catalizadora para viabilizar acordos comerciais em tempo recorde e de modo discricionário8 e estabelecem-se por uma espécie de “estado de exceção contínuo” (Agamben, 2005). Não à toa, à escusa da Copa do Mundo e das Olimpíadas 2016, efetivaram-se as duas Parcerias Público Privadas, PPP´s, mais importantes do cenário urbano nacional, Porto Maravilha e Parque Olímpico.

Destacam-se nestas duas negociações; além das alterações na legislação urbana no que se refere às áreas abarcadas pelas mesmas, e além dos procedimentos suspeitos dos processos licitatórios, tanto no que se refere aos concorrentes, quanto às respectivas contrapartidas estatais e privadas9; os prazos recordes dos negócios, a inexistência de estudos de impactos (ambientais, de vizinhança...) exigidos pelo Plano Diretor e a participação de instituições internacionais tanto na concepção, quanto na implementação dos projetos. Consolidando, desta forma, um cenário específico e novo das administrações locais, com nova estrutura, composta por novos atores hegemônicos em

6 O informe elaborado pela Relatora Especial em exercício na ocasião Raquel Rolnik trata do direito à moradia adequada, mas inclui questões sobre os efeitos positivos e negativos das transformações urbanas, marco de direitos humanos aplicáveis aos megaeventos, procedimentos e regulamentações dos megaeventos, licitação de obras, e recomendações para os Estados e os organismos responsáveis pelos eventos o COI e a FIFA.

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As principais reformas (e obras) urbanas realizadas na cidade do Rio de Janeiro, ao longo da história, relacionaram-se com os interesses capitalistas, durante o século XIX ligadas ao capital industrial, e do século XX em diante ao mercado imobiliário, sempre viabilizados pelo apoio estatal. Ou seja, as alianças estabelecidas entre setores públicos e o mercado são decisivas para a realização das principais obras urbanas realizadas na cidade, fato que explica a conjuntura desigual espacializada no território da cidade, mas que pela proposta dada não cabe aprofundamento neste artigo.

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A intervenção no território da forma como é feita, no contexto de realização dos megaeventos esportivos, caracteriza-se pelo autoritarismo e pela reprodução da exclusão, onde a tomada de decisões ocorre sem consulta popular e a decisão por projetos acontece sem informações adequadas e completas à população.

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Demonstrando o grande benefício do setor privado nos acordos, ultrapassando, inclusive, as esferas da ética pública, conforme o caso do Parque Olímpico. Para maior aprofundamento ver MEDEIROS (2016).

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articulação com atores antigos incumbidos de operacionalizar as gestões municipais, agora mundializadas.

Portanto, os megaeventos possibilitam a entrada de atores mundiais em esferas locais e viabilizam interesses dominantes do mercado internacional na condução das gestões das cidades. A versão espetacular dos megaeventos, no século XXI, marca a convergência entre a produção do espetáculo e a produção da cidade (OLIVEIRA, 2016). No Rio de Janeiro, e em todo o mundo, a realização dos megaeventos foram responsáveis por desencadear processos excludentes, ressaltando as remoções de favelas e de outras áreas populares. No caso da Vila Autódromo, a partir da realização dos Jogos Pan-Americanos de 2007, as pressões tornaram-se consideravelmente maiores, mas foi às vésperas da Copa do Mundo 2014 que as remoções efetivaram-se de forma intensa, e, posteriormente, de maneira decisiva, na preparação das Olimpíadas 2016.

No caso das remoções realizadas no Rio de Janeiro, impera toda sorte de dispositivos de exceção. Entre os inúmeros mecanismos mobilizados pelos agentes públicos para lidar com as pessoas nestas situações de erradicação, destacam-se as práticas de pressões diárias, tais como aquelas feitas por estes agentes quando dizem aos moradores: “ou você aceita a ´proposta` ou vai ficar sem nada”, “se não aceitar, vai para a rua”, “não adianta chamar ninguém para ajudar, a gente virá derrubar de qualquer maneira”; há um imenso esforço de fazer com que os próprios moradores entrem em conflito entre si, através da manipulação da informação sobre a situação local, limitando, em alguns casos, sua articulação contra o despejo; a emissão de autos de interdição (alegando risco) sem especificação e exigindo saída imediata, sem alternativa; a falta de identificação, por parte dos moradores, dos agentes com os quais são obrigados a lidar nestas situações; espalhar, a partir de contatos individualizados, que a prefeitura conseguiu liminares e que a qualquer momento pode ocorrer a remoção, o que leva a um estado de constante ansiedade; para evitar resistências, agentes do Estado afirmam que irão resolver a situação particular de cada um, solução esta que nunca chega, postergando o resolução ao máximo, levando ao extremo a agonia dos moradores; falta de acesso aos projetos a partir dos quais as remoções são justificadas; demolições sem compensação financeira; a destruição de casas geminadas como forma de pressão (haja vista que o morador ao lado fica apreensivo quanto ao que pode lhe acontecer com a desestabilização da casa vizinha); cortar ou limitar o acesso à serviços públicos, como água e eletricidade (compreendidas pelos moradores como uma forma de pressão); desqualificação moral de quem critica a situação.

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Os exemplos destas práticas seriam muitos. Elas se renovam e se atualizam a partir de cada nova situação de despejo. Podemos compreendê-las como se caracterizando por uma dinâmica que as localizam entre o formal e o informal, entre a lei e a sua exceção. Neste sentido, não poderiam ser compreendidas apenas como desrespeitando as leis vigentes, mas como que as contornando a cada situação específica.

Sendo assim, estas práticas estariam a serviço da consolidação do controle estatal sobre estas populações e, no caso do Rio de Janeiro, alterando não somente a circulação e localização destas no espaço da cidade, mas também incrementando a acumulação de capital imobiliário. Se estas situações, por um lado, podem nos esclarecer os pontos de incidência dos mecanismos de poder, sua construção e reconstrução cotidiana, por outro, também nos apresentam a possibilidade de verificar como se elaboram diversificadas estratégias de resistência à sua efetivação.

A construção do Museu das Remoções

A Vila Autódromo, de 1993 a 2016, resistiu às inúmeras pressões por parte da administração pública que, durante este período, e a partir da mobilização de diferentes justificativas, buscou remover a totalidade de seus habitantes. A realização das olimpíadas intensificou, e literalmente efetivou, o estrangulamento da comunidade, que à medida que tinha suas casas subtraídas era cercada pelos tapumes do Parque Olímpico, tendo seu diâmetro reduzido gradativamente com o avanço das obras e com as demolições das casas. Entretanto, as formas de resistência dos movimentos sociais foram diversificadas10, na tentativa de denunciar para a população da cidade, do país e do mundo as violências e violações do direito à moradia, do direito à informação e dos direitos comunitários acometidas contra aquela comunidade.

Após as variadas formas de destruição intentadas da localidade e da tentativa de reconstrução arbitrária de uma nova espacialidade pelo aparato estatal, os moradores se organizaram e, em mais uma experiência de resistência, buscaram trazer para seu local

10 Sobre a diversidade das estratégias de resistência dos novos movimentos sociais, ver BOGADO (2011).

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de moradia as marcas dos variados tempos vividos pelos moradores da Vila, que formaram sua história coletiva e a subjetividade de cada um.

Neste momento já eram comuns a realização de diversas formas de resistência e luta contra a remoção: o festival “Ocupa”, as campanhas difundidas na internet, como #Urbanizajá e a AssociaçãoSouEu, além da articulação dos moradores com universidades, como UFF, UFRJ e Anhanguera, através da elaboração de projetos e intervenções arquitetônicas e urbanísticas participativas. Uma das intervenções urbanísticas executadas foi a requalificação do parquinho, realizada através da disciplina de Projeto de Extensão a Comunidade do curso de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Anhanguera11.

Entretanto, as remoções das casas prosseguiam12, incluindo a remoção do parquinho requalificado, da Associação de Moradores da Vila Autódromo e da casa de uma das principais lideranças locais. Surge, então, a partir da destruição da espacialidade e das referências socioculturais locais, a ideia de construção de um museu participativo que fosse capaz de reunir fragmentos desta memória e de construir uma narrativa diferente da retórica oficial de urbanização que apresentava-se arbitrariamente; de um museu que fosse capaz de refazer laços e reconectar histórias comuns das vidas removidas e atravessadas pelos insensíveis projetistas urbanos.

O Museu das Remoções surge a partir de um anseio de comunicar a realidade da vida comum existente antes do processo de apagamento produzido pela remoção, da necessidade coletiva de apoiadores e moradores de registrar as práticas sociais da Vila Autódromo e reconstruir a relação entre o espaço e a memória da comunidade.

Sua ideia se originou em uma das muitas mobilizações contra as remoções realizadas na comunidade em 2016. Havia um sentimento compartilhado coletivamente de que seria necessário que todos estes acontecimentos não se perdessem na poeira dos escombros e do tempo, tal como gostariam os gestores da cidade.

11A requalificação do parquinho da Vila Autódromo foi produto da disciplina de Projeto de extensão a comunidade do curso de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Anhanguera, orientada pela arquiteta e urbanista Diana Bogado, professora da disciplina em questão e co-autora deste artigo. Após a requalificação, o parquinho tornou-se símbolo de resistência sediando importantes eventos e incentivando a requalificação de outros espaços na comunidade, como as ocorridas no espaço “Ocupa” que também tiveram a participação dos alunos de arquitetura e urbanismo da Universidade Anhanguera. O parquinho requalificado foi local de realização de vários eventos como a apresentação do Plano Popular elaborado pela UFF, UFRJ e comunidade, o lançamento do livro da arquiteta e urbanista Raquel Rolnik, o debate com o geógrafo David Harvey, entre outros.

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Os moradores ou foram transferidos para o conjunto habitacional Parque Carioca, construído através do Programa Minha Casa Minha Vida, ou receberam indenizações.

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Seu objetivo, portanto, é registrar a história de violências, mas também de lutas, que se deram neste território nos últimos anos. Tal experiência surge da necessidade de enfrentar o duplo processo de apagamento buscado pelas práticas estatais: tanto do espaço físico quanto das redes de relações (afetivas, morais, políticas e econômicas) que formaram historicamente a comunidade. Por fim, é possível afirmar que este museu é mais um ato de resistência dos moradores da Vila, e também de outras favelas, contra um modelo de gestão da cidade que reproduz e amplia os processos históricos de segregação socioespacial.

A amplitude da destruição provocada pela política de remoções não se limita ao espaço da cidade destruída ou ao rompimento dos laços comunitários existentes no lugar. A aniquilação do lugar, o desaparecimento de suas estruturas espaciais e a dispersão populacional da comunidade removida carrega consigo a desapropriação territorial, a desintegração social e o apagamento da história local, uma vez que a construção do lugar é dada pelas relações das pessoas entre si e delas com o espaço ao longo da história. Desta forma, o Museu das Remoções se apresenta como um esforço coletivo de preservação da memória coletiva em contraposição à dinâmica de esquecimento empreendida pelas práticas das remoções.

O ato de trazer à tona a prática social da favela removida, contida nos relatos e objetos expostos no museu, reconstrói também a relação entre o espaço e a memória do lugar que se desintegrou gradativamente com o avanço das demolições das casas, levadas a cabo pela condução da política urbana fundamentada no “processo global de

des-civilização”13 (GARNIER, 2014). O Museu das Remoções, em suas funções de preservação, comunicação e pesquisa/investigação pretende transmitir a prática social anterior às remoções e contrapor-se à dinâmica de esquecimento e apagamento praticada pelas remoções.

A dinâmica de resgate de memória articulou-se à prática pedagógica através das atividades acadêmicas que já ocorriam na Vila Autódromo. A construção coletiva do museu ocorreu de forma participativa, com moradores, apoiadores e alunos da disciplina Projeto de Extensão à Comunidade da graduação de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Anhanguera14.

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Expressão de Garnier (2014). GARNIER, J.P. Marsella 2013: el urbanismo como arma de

destrucción masiva. GeocritiQ. 10 de enero de 2014, nº 24. 14

A mesma disciplina que havia realizado a requalificação do parquinho no semestre anterior. Assim como na experiência do parquinho, as escolhas que determinaram a construção do Museu

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As atividades de construção do Museu das Remoções ocorreram em três etapas:

1) Na primeira, idealizou-se o desenho da proposta do Museu, com reuniões entre apoiadores e moradores para concepção da idéia do Museu das Remoções.

2) Na segunda etapa, desenvolveram-se dinâmicas de diálogo e oficinas de resgate de memória, realizadas por alunos de arquitetura, ex-moradores e vizinhos, conduzidas por apoiadores. As dinâmicas pretendiam trazer a tona o cotidiano e a história da comunidade que existia antes do processo de remoção.

Também foi realizada oficina de conhecimento do lugar, com devir pela localidade – abrangendo a área atual e parte da área removida e incorporada ao Parque Olímpico – na qual se realizou o recolhimento de restos de equipamentos urbanos e edificações demolidos, cujo objetivo é que se transformem objetos a serem incorporados ao acervo do museu; participaram desta oficina apoiadores, alunos, ex-moradores e ex-moradores de outras comunidades, a oficina foi conduzida pelos ex-moradores da Vila Autódromo.

Desta segunda etapa obtiveram-se registros orais, fotográficos, audiovisuais, gráficos, além da elaboração de um mapa da comunidade pelos alunos a partir dos relatos dos moradores, de suas vivências e memória, e arrecadação de material para construção e acervo do Museu das Remoções.

3) A terceira etapa consistiu em intervenção participativa no espaço da Vila Autódromo com a construção do Museu das Remoções a céu aberto, marcando o espaço dos lotes que tiveram suas edificações demolidas com estruturas artísticas criadas a partir de reaproveitamento dos escombros e de elementos gráficos representativos de lugares e personagens resgatados da memória comunitária.

O Museu foi aberto oficialmente no dia 18 de maio de 2016, Dia Internacional dos Museus, com a presença de moradores, apoiadores e da imprensa independente. Na ocasião, o público conheceu em detalhes as sete esculturas, “Vila de Todos os Santos”,

das Remoções foram consensuadas desde o tema do projeto. Entendemos que a participação é uma ferramenta de empoderamento que deve ser praticada conscientemente, tanto pelos sujeitos comunitários quanto pelos futuros planejadores, os quais devem apropriar-se do direito de participar da vida dos lugares, como parte do processo de concepção projetual, que deve ser estabelecido no bojo da reprodução socioespacial.

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“Penha de muitas faces”, “Suporte dos males”, “A luz que não se apaga”, “Doce infância”, “Espaço Ocupa e Casa da Dona Conceição”, “A Associação sou eu”. realizadas pelos alunos.

O Museu das Remoções tem sido um instrumento fundamental dos moradores em diferentes espaços para fazer ecoar sua história de resistência, mas também de violência. Além dos programas e eventos realizados na própria favela, o museu vem realizando atividades em diversas partes do Brasil e no exterior, como rodas de leitura, intervenções artísticas, relatos da sua experiência, intervenções no espaço público, ações em outras comunidades e ações conjuntas com movimentos sociais na luta pelo direito à cidade, como foi o caso da Jornada de Lutas organizadas pelo Comitê Popular Copa e Olimpíada em agosto de 2016 no Rio de Janeiro.

O museu se apresenta como um agenciamento fundamental no enfrentamento de uma prática institucional caracterizada pelo duplo apagamento situado no início deste texto. Busca, sobretudo, ser um espaço (no amplo sentido do termo) onde, a partir do qual, seja possível denunciar a política de remoção recente, além de um local em que se possa reconstituir os laços dilacerados e a história local, através de atividades afetivas, como contação de história, festas, gincanas e intervenções que trazem a tona e comunicam a historia da Vila Autódromo.

A perda das casas, da espacialidade do bairro, de amigos destroem laços e referências destes indivíduos sociais. A construção do Museu das Remoções possibilita o reencontro de elementos e a reconstituição de histórias que foram deixadas em um passado expropriado pela destruição do lugar.

O museu não pretende apagar e nem esquecer a violência sofrida pelos moradores, muito menos estetizar o processo de dilaceramento ocorrido na Vila Autódromo. Ao contrário, a referida ferramenta de denúncia pretende-se processo de combate à reprodução da violência estatal no que diz respeito à violação do direito à moradia e da narrativa do espetáculo erigida a despeito da dor para as cidades vitrines.

Espera afirmar-se como vida ativa, com exposições de histórias de vidas que incitam questionamentos às práticas do Estado, apresentar-se como acolhimento aos indivíduos removidos pela Copa do Mundo 2014, pelas Olimpíadas 2016 e pela ação dos grandes empreendimentos e eventos em todo o mundo, como uma comunidade que vive, resiste, existe, re-existe e permanece Vila Autódromo.

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Bibliografia

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BOGADO. Diana. Movimento Okupa: Resistência e autonomia na ocupação de imóveis nas áreas urbanas centrais. Dissertação de mestrado defendida na Universidade Federal Fluminense. Niterói, 2011

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