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o Passado Modos de Usar Enzo Traverso

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Academic year: 2021

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,

o

PASSADO,

MODOS DE USAR

HISTÓRIA, MEMÓRIA E POLÍTICA

ENZO TRAVERSO

(2)

o

passado, modos de usar. História, memória e política.

'1'111 1(' \ dil( :1, \1 J.C passé, modcs J'cmploi: histoirc, mi'mmrc, po1itiyUl'

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1. J I 1)1' \() JiC\'crciro dc 2012

Introdução - A emergência da memória 9

I - História e memória: uma dupla antinómica? 21

Rememorafão 21

Jeparaf'ÕeJ 29

Empatia 38

11 - O tempo e a força

Tempo histórico e tempo da memória ((Memórias fortes) e «memórias fracaJ)

111 - O historiador entre juiz e escritor Memóna e eJI.Tita da hútória

~ érdade e jUJtifu

IV - Usos políticos do passado A memória da Jhoah como ((religião ávih)

O edipxe da memória do (,'l)munúmo

V - Os dilemas dos historiadores alemães

O deJapareámellto dofasciJ'mo

Li Shoah, a RDA e o ant[fascúmo VI - Revisão e revisionismo MetamotjiueJ de um mnceito A palavra e a roisa

Nota bibliográfica e agradecimentos Notas

55

55 71 89 89 100

109

109 120

129

129 138

149

149 155

165

169

(3)

A

memória de &/and Lew (19~~-2005)

,(A história é sempre contemporânea,

ou seja, polítiCa)} Antonio Gramsci

(4)

Introdução

A emergência da memória

São raras as palavras tão banalizadas como «memó-ria), A. sua difusào é ainda mais impressionante dada a sua entrada tão tardia no domínio das ciências sociais. Durante os anos 1960 e 1970 ela estava praticamente ausente dos debates intelectuais. Não figura na edição de 1968 da lntertlational Encydopedia

oi

lhe Soda! SúenreJ, publicada em Nova Iorque sob a direcção de David L. Sills, nem na obra colectiva intitulada Faire de I'lIÍ.rtoire,

publicada em 1974 sob a direcção de Jacques le GofE e Pierte Nora, nem mesmo em Krywords, de Raymond Williams, um dos pioneiros da história culturaP. Alguns anos mais tarde teria já penetrado profundamente no debate historiográfico.

(5)

,

.-\ «memória» é recorrentemente utilizada como si-nónimo de história e tcm uma particular tendência para absorvê-la, tornando-se ela própria numa espécie de \categoria meta-histórica. Captura o passado numa rede de malha mais larga do que a disciplina tradicionalmen-te denominada história, aí depositando uma dose bem maior de subjectividade, de «vivido», Em suma, a me-mória aparece como um história menos árida e mais «humana»2. ~-\ memória invade hoje em dia o espaço público das sociedades ocidentais. a passado acompa-nha o presente e instala-se no seu imaginário colectivo como uma ((memória» extremamente amplificada pelos meios de comtmicação e frequentemente regida pelos poderes públicos, ~.\ memória transforl!la..::.s.c em «ob~es­ sã?_.<;<?-,::~~~nl:?~~~V:~}) .e. a v:alorização, por vezes mesmo a

sacraliza~ão, dos «lugares de memória» engendra uma verdadeira «topolatriro,.',. Esta memória superabllildan-te e saturada sinaliza o espaço-t, Tudo doravansuperabllildan-te con-tribui para «fazer» memória. a passado transforma-se em memória colectiva depois de ter sido seleccionado e reinterpretado segundo as sensibilidades culturais, as interrogações éticas e as conveniências políticas do presente. Assim toma forma o «turismo da mem~.~~l»!.

com a transformação de locais históricos em museus e em lugares de visitas organizadas, dotadas de estruturas de acolhimento adequadas (hotéis, restaurantes, lojas de

r

recordaçõcs, etc), e promovido junto do público atra-vés de estratégias publicitárias dirigidas.

Os centros de investigação e as sociedades de his-tória local são incorporados nos dispositivos deste turismo da memória em que por vezes encontram os seus meios de subsistência. Por um lado, este proces-so decorre indubitavehnente de uma rqjicarãfL.dsL-RJJ,f.f11-~~, ou seja, da sua transformação em objecto de con-sumo, estetizado, naturalizado e rentabilizado, pronto para ser utilizado pela _indústria do turismo. e do es-pectáculo, especialmente pelo :§;~a,

.o

historiador é frequentemente chamado a participar nesse processo, na qualidade de «profissional» e de «especialista» que, nos termos de alivier Dumouhn, faz da sua arte um «produto comerciab) da mesma forma que o são os bens de conswno que invadem as nossas sociedades. A Public IIútory americana, com os seus

historiado-res a trabalhar para instituições ou mesmo emphistoriado-resas privadas sujeitas à lógica dO

J~'c~~~':

há muito que nos indica o caminhos. Por outro lado, este fenómeno parece-se igualmente, em vários aspectos, ao que Eric Hobsbawm

chamo~~'<~~ inven~ã~'~ d~ tradi~ç-ã~~~

um

'---.~-, -'~-'-~' "."

passado real ou mítico em torno do qual se constro-em práticas ritualizadas que visam reforçar a coesão de um grupo ou de uma comunidade, legitimar algumas instituições e inculcar valores na sociedade. Por outras

(6)

palavras, a memória tende a tornar-se o vector de uma «religião civil» do mundo ocidental, com o seu sistema

de

~;f~;~~, ~~~~ças,

símbolos e

!!nugia

S7.

_ _ _ _ •• __ • • _ _ _ " •• ' - - _ 0 . ' . _ ••• , _ o •• _ ~"--'

De onde vem esta obsessão memorial? A sua prove-niência é múltipla, mas deve-se sobretudo a uma crise de IrmumúJào no seio das sociedades contemporâneas.

Poderia evocar-se a esse propósito a distinção sugeri-da por \Valter Benjamin entre a «experiência transmi-tida» (l-!.ifahruniJ e a «experiência(~yid~»_ (Erlebnú). A

primeira perpetua-se quase naturalmente de uma ge-ração para a outra, forjando as identidades dos gru-pos e das sociedades num tempo longo; a segunda é a vivência individual, frágil, volátil e efémera. No seu

Parsagen-Ü:/erk, Benjamin considera a «experiência

vivi-da» como um traço marcante de modernidade, com o ritmo e as metamorfoses da vida urbana, os choques eléctricos de urna sociedade de massas e o caos calei-doscópico do universo mercantil. .-\ Etjàhrung é típica

das sociedades tradicionais e a Erlebnú é própria das

so-ciedades modernas, por vezes como marca antropológi-ca do liberalismo, do individualismo possessivo, outras vezes como produto das catástrofes do século

Àrx,

com o seu cortejo de traumas que afectaram gerações intei· ras sem que fosse possível inscreverem-se como urna herança no curso natural da vida. A modernidade, se-gundo Benjamin, caracteriza-se precisamente pelo

de-climo da experiência transmitida, um declínio marcado

- - - : - : - - -

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--"

simbolicamente ~lo início da Primeira Guerra l\Iun-diaL Durante esse ,momento de grande trauma europeu, muitos milhões de pessoas, sobretudo jovens campo-neses que tinham aprendido com os seus antepassados a viver segundo os ritmos da natureza, no interior dos códigos do mundo rural, foram brutahnente arranca-dos ao seu universo social e mentaiS, Foram

subitamen-

-'-te submersos «numa paisagem em que quase nada era reconhecível além das nuvens e, no meio, num campo de forças atravessado de tensões e explosões destruti-vas, o minúsculo e frágil corpo humaoQ))Q, Os milhares de soldados que voltaram da frente de guerra, mudos e amnésicos, comocionados pelos Shell Shotk/

provoca-dos pela artilharia pesada que bombardeava, sem cessar, as trincheiras inimigas, corporizaram esse corte entre duas épocas; a da tradição forjada pela experiência her-dada e a dos cataclismos que se furtam aos mecanismos naturais de transmissão da memória, As desventuras do

Jmemorato di Co!!egno - um ex-combatente amnésico de

dupla identidade, ao mesmo tempo filósofo de Verona e operário tipográfico de Turim - que apaixonaram os italianos no período entre as duas guerras, e inspira-ram obras de Luigi Pirandello, José Carlos l\Iariátegui

-" Noml: dado na Prirnl:ira GUl:rra Mundial ao ljUl: hojl: SI.:

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e Leonardo Sciascia, inscrevem-se nessa mutação pro-funda da paisagem memorial europeia 10. Mas, no fun-do, a Grande Guerra não fazia mais do que completar, de uma forma convulsiva, um processo cujas origens foram magistralmente estudadas por Edward Palmer Thompson num ensaio sobre o advento do, ,te_~p(~)" ~e­

cânico, produtivo e disciplinar da sociedade industriaP I.

Outros traumas marcaram a «experiência vivida}) do século X.X, sob a forma de guerras, genocídios, depu-rações étnicas ou repressões politicas e militares. A re-cordação que deles resultou não foi efémera nem frágil. Para várias gerações incapazes de ter uma percepção da realidade que não fosse a de um universo fracturado foi

>

mesmo uma recordação fundadora que, porém, não se constituiu como uma experiência do quotidiano trans-missível a uma nova geração12

. Uma primeira resposta

à nossa questão inicial poderia, assim, formular-se da segtúnte forma: a obsessão memorial dos nossos dias é um produto do declinio da experiência transmitida num mundo que perdeu as suas referências, desfigurado pela violência e atomizado por um sistema social que apaga as tradições e fragmenta as existências.

É necessário que nos interroguemos sobre as formas dessa obsessão. A memória - a saber, as representações colectivas do passado tal como se forjam no presente - estrutura as identidades sociais, inscrevendo-as numa

continuidade histórica e dotando-as de um sentido, ou seja, çie um conteúdo e de uma direcção. A sociedades humanas possuíram, sempre e em todo o lado, uma me-mória colectiva mantida através de ritos, cerimónias e mesmo po/itú't/J'. /\s estruturas elementares da memó~~_ <;9.I.~<:!~~_~!:~_~dem na comemoração dos mortos. Tradi-cionalmente, no mundo ocidental, os ritos e os monu-mentos funerários celebravam a transcendência cristã - a morte como passagem para o Além - c, ao mesmo tempo, reafirmavam as hierarquias sociais «aqui em bai-xo». N a modernidade, as práticas comemorativas meta-morfoseiam-se. Por um lado, com o fim das sociedades do Antigo Regime, democratizam-se ao investirem a sociedade no seu conjunto; por outro, secularizam-se e tornam-se funcionais, veiculando novas mensagens dirigidas os vivos. A partir do século XIX, os monu-mentos comemorativos consagram os valores laicos (a Pátria), defendem princípios éticos (o Bem) e politicos (a Liberdade) ou celebram acontecimentos fundadores (guerras, revoluções). Começam a tornar-se símbolos de um sentimento nacional vivido como uma «religião civih>. Segundo Reinhart Koselleck, «O declínio da in-terpretação cristã da morte deixou o campo livre para interpretações puramente políticas e sociais}}':>. Iniciado com a Revolução Francesa, berço das primeiras guerras democráticas do mundo moderno, o fenómeno

(8)

apro-fundou-se depois da Grande Guerra, quando os mo-numentos aos soldados caídos em combate começaram a organizar o espaço público em todas as povoações.

Hoje, o trabalho de luto mudou de objecto e de formas. Nesta viragem de século, Auschwitz tornou--se a base da memória colectiva do mundo ocidenta1. A política da memória - comemorações oficiais, museus, filmes, etc. - tende a fa7:er da Shoah a

metá~?!~_~~,:.j

culo x.~ como idade de guerras, de totalitarismos, de " genocidios e de crimes contra a humanidade. N o centro deste sistema de representações instala-se uma figura nova, a

y;~;;;~~71ã,\o

sobrevivente dos campos nazis.

,-_._- _ ... -- _. ' ' ' " ~ --..

1\ recordação de que é portador e a atenção que lhe é reservada (após décadas de indiferença) abalaram o historiador, ao criarem desordem na sua oficina c ao perturbarem o seu modo de trabalho. Por um lado, o historiador teve de se render à evidência das limitações dos seus procedimentos tradicionais e das suas fon-tes, bem como ao contributo indispensável das teste-munhas para a reconstrução de experiências como o universo concentracionário e a máquina exterminadora do nazismo. A testemunha pode oferecer-lhe elemen-tos de conhecimento factual inacessíveis através de outras fontes, mas sobretudo pode ajudá-lo a restituir a qualidade de uma experiência histórica cuja textura se

modifica depois de enriquecida pelas vivências dos seus

actores. Por outro lado, o aparecimento da testemunha c, em consequência, a entrada da memória na oficina do historiador vieram pôr em causa alguns práticas ha-bituais, como por exemplo as de uma história estrutural concebida enquanto um processo de acumulação) no tempo longo, de vários estratos (território, demografia, trocas, instituições, mentalidades) que permitem apre-ender as coordenadas globais de uma época, mas que deixam muito pouco espaço à .~':!,!Ü~!!~~da~e dos ho-mens e das mulheres que fé;em a História1.\.

Entrámos, para usar as palavras de Annette Wieviorka, na ~<~ra da, testemunha», que, colocada sobre wn pedestal, encarna um passado cuja recordação é pres-crita como wn dt:ver cívicol~JA testemunha identifica-se cada vez mais com a vítima, outra marca desta era. Igno-rados durante décadas, os sobreviventes dos campos de extermínio nazis tornaram-se hoje,5_0~tra

ª

sua vontade,

ícones~~os., São cristalizados nwna posição que não escolheram e que nem sempre corresponde à sua ne-cessidade de transmitir a experiência vivida. Outras tes~

temunhas, antes apontadas como heróis exemplares, tal como a resistência que pegou em armas para combater o fascismo, perderam a sua aura ou caíram mesmo no esquc,çims:;nto •. engolidas pelo «fim do comunismo» que, eclipsado da história com os seus mitos, na sua queda arrastou as utopias e as esperanças que havia encarnado.

(9)

A memória destas testemunhas já só a poucos interessa, numa época de humanitarismo onde já não há venádos

mas

apcna(;7i~~sta

dissiroetria da recordação - a

sa-cralização das vítimas antes ignoradas e o esquecimento de heróis anteriormente idealizados - indica a ancora-gem profunda da memória colcctiva no presente, com as suas mutações e regressões paradoxais.

A memória conjuga-se sempre no presente, que de-termina as suas modalidades: a sucessào de aconteci-mentos de que se devem guardar recordações

Cc

de tes-temunhas a escutar), a sua interpretação, as suas «lições)), etc. Ela transforma-se em questão política e toma a for-ma de ufor-ma injunção ética -9.<idc.ycr.da mcrnó!ia~-=-que frequeftemente se transforma em fonte de abusos]('. Os exemplos não faltam. Todas as guerras destes últimos anos, da primeira à segunda guerra do Golfo, passan-do pela guerra passan-do Kosovo e pela passan-do ~\feganistão, foram

também guerras da

_rne~-~~_i~

pois foram justificadas pela evocação ritual do dever de memórial7

• Saddam Hussein,

Arafat, i\.filosevic e George W Bush foram comparados

co~_,~_~e.~ nas palavras de ordem das manifestações, nos cartazes, nos meios de comunicação e no discurso de alguns líderes políticos. O islamismo político é muitas vezes identificado com o fanatismo nazi. O historiador israelita Tom Segev indica que Menahem Bcgin tinha vivido a invasão israelita do Lbano, em 1982, como um

acto reparador, um sucedâneo fantasmático de um exér-cito judaico que teria expulso os nazis de Varsóvia em 194yH. i\Iais recentemente, em 2002, o Consistório cen-tral dos israelitas de 1 "rança declarou que o país estava à beira de uma onda de antissemitismo comparável à que se abateu na Alemanha nazi durante a Noite de Cristal em Novembro de 19381

'J. Para o escritor português José Saramago, em contraposição, a ocupação israelita dos territórios palestinos seria comparável ao Holocaus-t020• Durante a guerra na ex-]ugoslávia, os nacionalistas sérvios viam as depurações étnicas contra os albaneses do Kosovo como uma vingança contra a antiga opres-são otomana, enquanto em França os profissionais do anticomunismo viam as bombas sobre Belgrado como tuua defesa da liberdade contra o totalitarismo. ~\ lis-ta poderia cont.inuar, .\ dimensão política da memória colectiva - e os abusos que a acompanham - não pode deixar de afectar a maneira de escrever a história,

Este livro propõe-se explorar as relações entre a história e a memória e analisar alguns aspectos do uso público do passado. A matéria que se oferece a essa reflexão é inesgotável. Baseei-me em alguns temas co-nhecidos e sobre os quais tenho trabalhado nos últimos anos. Outros de igual importância ficaram excluídos ou são pouco evocados neste ensaio, que pretende

(10)

I

História e memória:

uma dupla antinómica?

Rememorarão

História e memória nascem de uma mesma preocu-pação c partilham o mesmo objecto: a elaboração do ____ pass_ad? No entanto, existe uma «hierarquia)) entre as duas. De acordo com Paul Ricoeur, a memória possui um estatuto matriáa/1

A história é um relato, uma

es-crita do passado segundo as modalidades e as regras de um oficio - de uma arte ou, com muitas aspas, de uma «ciência» - que tenta responder a questões suscitadas pela memória. A história nasce, portanto, da memória, libertando-se desta ao colocar o ,passado à distância, ao considerá-lo, segundo a expressão de Oakeshott, como

(11)

«um passado em SD)~. A história acaba, enfim, por fa-zer da memória um dos seus domínios de investigação, como prova a história contemporânea. Também cha-mada de «história do tempo presente», a história do sé-culo XX analisa o testemunho dos actores do passado e integra o relato oral nas suas fontes, a par dos arquivos e de outros doclUTIentos materiais ou escritos. Em suma, a história nasce da memó~a, de que é uma das dimen-sões, e posteriormente, adaptando uma postura auto--reflexiva, transforma a memória num dos seus ol!}"ect?J.

Proust continua a ser uma referência obrigatória para toda e qualquer meditação sobre a memória. Nos seus comentários sobre a obra Em BUJm do Tempo Per-dido, Walter Benjamin sublinha que Proust «não

descveu uma vida tal como ela foi, mas uma vida como a re-memora alguém que a vivew). E continua comparando a {{memória involuntária» de Proust - que traduz como «trabalho de rememo ração espontânea» (1-!.inl!,edenken),

onde a recordação é a embalagem e o esquecimento é o conteúdo - com um «trabalho de Penélope» onde é «o dia que desfaz o que a noite tinha fcito». Cada manhã, ao acordar, «não temos em mãos mais do que algumas franjas, em geral frágeis e lassas, da tapeçaria do vivido

.

. ;

que o esque~lffiento em nos tecew) .

Tirando a sua força da experiência vivida, a memó-ria é eminentemente sul?jectiva. Fica ancorada aos

fac-tos a que assistimos, dos quais fomos testemunhas, ou mesmo actores, e às impressões que deixaram no nosso espírito. A memória é qualitativa, singular, pouco preo-cupada com comparações, com a contextualização, ou com generaliza~ões. Quem a transporta não necessita de apresentar provas. O relato do passado prestado por tuna testemunha - sempre que não seja um mentiroso consciente - será sempre a sua verdade, ou seja, a ima-gem do passado em si

d~post~.

Pelo seu carácter sub-jectivo, a memória nunca é cristalizada; mais se parece com um estaleiro aberto, em contínua operação. Nào é apenas, segundo a metáfora de Benjamin, «a tela de Penélope» que se modifica todos os dias devido ao es-quecimento que «ameaça» em permanência, para reapa-recer mais tarde, por vezes muito mais tarde, tecida de lUTIa forma diferente. Não é só o tempo a erodir e a en-fraquecer a recordação. A memória é uma construção, sempre filtrada por conhecimentos adquiridos poste-riormente, pela reflexão que se segue ao acontecimento, por experiências que se sobrepõem à primeira e modifi-cam a recordação. O exemplo clássico é, uma vez mais, o dos sobreviventes dos campos nazis. Muitas vezes, o relato da permanência em Auschwitz por um ex-depor-tado judeu e comunista modifica-se consoante a sua re-lação com o Partido Comunista. Durante os anos 1950, antes da ruptura com o Partido, coloca a sua identidade

(12)

política em primeiro plano ao apresentar~se como um deportado antifascista. Depois, durante os anos 1980, conswnada a ruptura, considera-se em primeiro lugar um deportado judeu, perseguido como judeu e teste-mWlha do aniquilamento dos judeus na Europa. Bem entendido, seria absurdo distinguir entre dois testemu-nhos prestados pela mesma pessoa em dois momentos diferentes da sua vida, elegendo um como falso e outro como verdadeiro. Os dois são autênticos, mas cada um deles ilumina uma parte da verdade filtrada pela sensi-bilidade, pela cultura e também, poderia acrescentar-se, peIas representações identitárias, ou mesmo ideoló-gicas, do presente. Resumindo, a memória, individual ou colectiva, é uma visão do passado que é sempre fil-trada pelo presente. Nesse sentido, Benjamin definiu o procedimento de Proust como uma «presentificação»

(Vet:.~egenwdrligulJi/. Seria ilusório pensar-se no «antes» (das GeweJ"ene) como uma espécie de «ponto h.X(M de que nos poderíamos aproximar através de wna reconstrução mental a pOJ/enon. O «acontecido» é em larga medida

configurado pelo presente, visto ser a memória a «esta-beleceD) os factos: trata-se, segundo Benjamin, de uma «revolução coperniciana na visão da histórill»5. Benjamin reafirma es t:r conceito nas «reflexões teóricas» do seu

PaJJagen-Werk, quando considera «o passado em colisão

com o presente», acrescentando que «é o presente que

polariza o acontecimento (das Gwhehen) em história

anterior e história posterioo). A história, continua Ben-jamin, «não é apenas uma ciência», já que é «ao mes-mo tempo uma forma de rememes-moração (c.illgedenken»)ú.

?-.1ais recentemente, numa linha semelhante, François Hartog forjou a noção de «presentismo» a fIm de des-crever uma situação em que «o presente se tornou o horizonte», um presente que, «sem futuro e sem pas-sado», permanentemente engendra os dois segundo as suas necessidades 7.

1 \ história, que no fWldo, lembrava Ricoeur, não é

mais do que wna parte da memória, escreve-se sem-pre no sem-presente. Para existir como campo do saher, no entanto, a história deve emancipar-se da memória, não rejeitando-a mas colocando-a à distância. Um curto-cir-cuito entre história e memória poderia ter consequên-cias prejudiciais para o tt""J.balho do historiador.

Uma boa ilustração deste fenómeno é oferecida pelo debate dos últimos anos em torno da «singula-ridade) do genocídio judeuil

• A irrupção desta

contro-vérsia no domínio do historiador relaciona-se, inevi-tavelmente, com o percurso da memória judaica, com a sua emergência no seio do espaço público e a sua interferência nos métodos tradicionais de pesquisa que foram subitamente confrontados com autobiografias e com arquivos audiovisuais que apresentam os

(13)

teste-munhas dos sobreviventes dos campos de concentra-ção. Se uma tal «contaminação» da historiografia pela memória se revelou extremamente frutuosa, nào deve no entanto ocultar uma observação metodológica tão banal como essencial: a memória JÚIJ"ulariza a histó-ria, na medida em que é profundamente subjectiva, selectiva, muitas vezes desrespeitadora da cronologia, indiferente às reconstruções de conjunto e às raciona-lizações glo bais . .A sua percepção do passado não pode ser senào irrcdutivelmente singular. Onde o historia-dor não vê mais do que uma etapa de um processo, do que um aspecto de um quadro complexo em mo-vimento, a testemunha pode captar um acontecimento crucial, o ponto de viragem numa vida. O historiador pode decifrar, analisar e explicar as fotografias conser-vadas do campo de Auschwitz. Ele sabe que aqueles que descem do comboio são judeus, ele sabe que o SS

que os observa fará uma selecçào e que a grande maio-ria das figuras daguela fotografia não terá mais dos que algumas horas de vida à sua frente. A uma teste-munha, essa fotografia dirá muito mais. Lembrar-se-á das sensações, das emoções, dos ruidos, das vozes, dos cheiros, do medo e da desorientação da chegada ao campo, da fadi&.a de wna longa viagem efectuada em condições horrf~·eis, sem dúvida da visão do fumo dos crematórios. Dito de outra forma, lembrar-se-á de um

conjunto de imagens e de recordações todas elas sin-gulares e completamente inacessíveis ao historiador, senào com base num relato a pOJteriori, fonte de uma

empatia incomparável àquela que a testemunha pôde reviver. A fotografia de um Hiijt/iI{p'· significa aos olhos do historiador uma vítima anónima; para um paren-te, um amigo ou um camarada de detenção, evoca um mundo absolutamente único; para o observador exte-rior, não representa - como diria Siegfried Kracauer - mais do que uma realidade «não redimida)) (1I1!er/rir/f·

O conjunto daquelas recordações forma uma parte da memória judaica, uma memória que o historiador nào pode ignorar e que deve respeitar, que deve explorar e compreender, mas à qual não se deve submeter. O historiador nào tem o direito de transformar a sin-gularidade dessa memória num prisma normativo da escrita da história. A sua tarefa consiste muito mais na inscrição dessa singularidade da experiência vivida num contexto histórico global, tentando esclarecer as causas, as condições, as estruturas, a dinâmica de con-junto. Isto significa aprender com a memória depois de a passar pelo crivo de uma verificação objectiva, empírica, documental e factual, assinalando, se ne-cessário for, as suas contradições e armadilhas. Este

* Prisioneiro. N.T

(14)

procedimento pode ajudar a recordação a tornar-se mais nítida, a clarificar os seus contornos, a tornar-se mais exigente, e também a trazer luz sobre aquilo que na lembrança não é redutível a elementos factuais](). Se pode haver uma singularidade abJolJlta da

memó-ria, a da história será sempre relativa" . Para um judeu polaco, Auschwitz significa qualquer coisa de terrivel-mente único: o desaparecimento do universo humano, social e cultural onde nasceu. Um historiador que não consiga compreender isso jamais conseguirá escrever um bom livro sobre a Shoah, mas o resultado da sua pesquisa também não seria melhor se concluísse - tal como o fez, por exemplo, o historiador norte-america-no Steven Katz - que o genorte-america-nocídio judaico foi o único da história'~. Segundo Eric Hobsbawm, o historiador não se deve subtrair a um dever de universalismo: «Uma história que diga respeito apenas aos judeus (ou aos negros americanos, aos gregos, às mulheres, aos proletários, aos homossexuais, etc.) não será uma boa história, mesmo que possa reconfortar quem a prati-ca.»!.}. É normalmente muito difícil, para os historia-dores que trabalham sobre fontes orais, encontrar o equilíhtto justo entre empatia c distanciação e entre o reconhecimento das singularidades e a perspectiva geral.

5

eparafões

É apenas a partir do início do século XX, quando os paradigmas do historicismo clássico entraram em crise, questionados simultaneamente pela filosofia (Bergson), pela psicanálise (Freud) e pela sociologia (T Ialbwachs), que história e memória passaram a for-mar um par ant1nómico. Até então a memória era con-siderada o substrato subjectivo da história. Para I regel, a história (GcJ(hú;hte) possuía duas dimensões

comple-mentares, uma objectiva e outra subjectiva: de um lado, os acontecimentos (reJ geJtae); do outro, a sua narração (hiJtoria remm geJtarum); isto é, os «factos» e o seu

({re-lato históricQ)'~. A memória acompanha o desenrolar da história como uma espécie de sua protectora, já que constitui o seu «fundamento interion), c as duas encon-tram a sua rea/i:;pf-ão no Estado, cuja história mnla (<<a prosa da História»)L') rcllccte, como um espelho, a ra-cionalidade intrínseca. Hegel apresenta esse domínio estatizado do passado sob a forma alegórica do conflito entre Cronos, o deus do tempo, c Zeus, o deus políti-co. Cronos mata os seus próprios filhos. Engole tudo à sua passagem, não deixando rasto. Mas Zeus conse-gue dominar Cronos, porque criou o Estado, capaz de transformar em história tudo aquilo que Mnemósina, a deusa da memória, pôde colectar após a passagem de-vastadora do tempo. Na Fenomenologia do Espírito, a

(15)

me-mária define a historicidade do Espírito (Ceist), que se

manifesta simultaneamente como «recordaçãm) (Erin-nerunJ'J e movimento de «interiorização» (Er-Innerunj) ,

enquanto que o Estado constitui a sua expressão exte-rioru,. Para Hegel, apenas os povos estatizados, dota-dos de uma história escrita, possuem uma memória. Os outros - «os povos sem história» (gexchúhtlose V01ker), ou

seja, o mundo não europeu desprovido de um passado estatal e do seu relato codificado pela escrita - não po-dem superar o estádio de uma memória primitiva, feita de «imagens» mas incapaz de se condensar em consci-ência histórica17

• Daqui resulta uma visão dupla da his-tória, como prerrogativa ocidental e como dispositivo de dominação. Nào só é pertença exclusiva da Europa, como só pode existir enquanto relato apologético do poder1

/l, aquilo que Benjamin denunciou como empatia

historicista com os vencedores1 !).

No entanto, no seguimento da crise do historicis-mo, da crítica ao paradigma eurocentrista no período da descolonização e, depois, com a emergência das clas-ses subalternas como sujeitos políticos, a história e a

me~ria dissociaram-se. A história democratizou-se, rompendo as fronteiras do Ocidente e o monopólio das elites dominantes; a memória, por sua vez, emancipou--se da dependência exclusiva da escrita. A relação entre história e memória reconfigurou-se como uma tensão

dinâmica. ~\ transição não foi nem linear nem rápida e, de runa certa forma, ainda nào foi concluída. Nos últimos trinta anos, os historiadores alargaram as suas fontes, mas continuam a privilegiar os arquivos, que nào deixaram de ser o depósito dos vestigios de um pas-sado conservado pelo Estado. Só recentemente é que os «subalternos» foram reconhecidos como sujeitos da história e se tornaram objecto de estudo. E foi ainda mais recentemente que se começou a tentar escutar a sua voz. Em 1963, François Furet ainda pensava que podia integrar as classes subalternas na história apenas num plano quantitativo, tomando-as em consideração unicamente sob o signo «do número e do anonimato», como elementos «perdidos no estudo demográfico ou sociológico», ou seja, como entidades condenadas a permanecer «silenciosas)f~(). No fundo, para aguele

ad-mirador de Tocqueville, as classes trabalhadoras perma-neciam ainda como «povos sem história».

no decurso dos

;\ mutação anos 1960. operou-se precisamente

~\ primeira grande obra de história social das classes subalternas, The Makilzg qf the Englúh Lf70rkineg ClaJJ, de Edward Palmer Thompson, data de 1963; a Hútoire de la folie à I'âge daJJique, de Foucault, data de 1964; e o

pon-to de partida da micro-história, 11 formaggio e i vermi, de

Carlo Ginzburg, que reconstrói o universo de um mo-leiro de Prioul no século XVI, data de 1976::1

(16)

modo, para a historiografia, as mulheres só passaram a ter uma história há trinta anos22

• Até então, as mulheres estavam excltúdas da mesma forma que o estavam os «povos sem história}} de Hegel. Os Suba/tern StudieJ, por

seu lado, nasceram na Índia no início dos anos 1980. O seu objectivo é rescrever a história já não como «a obra da Inglaterra na Índia}), nem como a das elites indianas formadas durante a dominação colorrial, mas como história dos «subalternos», o povo cuja «pequena voz» (sma/f voice) procura escutar-se e que «a prosa da

contra-insurreição» depositada nos arquivos de Estado não nos pode restituir, pois a sua função consiste exac-tamente em submergi-Ial-'. É neste contexto de alarga-mento das fontes do historiador e de questionaalarga-mento das hierarquias tradicionais que se inscreve a emergên-cia da memória como uma nova oficina de escrita do passado.

O primeiro a codificar a dicotomia entre as flutu-ações emocionais da recordação e as construções ge-ométricas do rdato histórico foi ;\faurice I-Ialbwachs, na sua ohra já clássica sohre a memória colectiva. Aí denunciou o carácter contraditório da expressão «me-mória histórica» por unir dois elementos que, a seu ver, se opõem. Para Halbwachs, a história começa onde ter-mina a tradição ~(se decompõe a memória social»l~,

estando as duas separadas por uma clivagem insanável.

A história supõe wn olhar exterior sobre os aconteci-mentos do passado, enquanto a memória implica uma relação de interioridade com os factos relatados. A memória perpetua o passado no presente, enquanto a história fixa o passado numa ordem temporal fechada, acabada, organizada seguindo procedimentos racionais

i

nos antípodas da sensibilidade subjectiva do vivido. i\ I

I

I memória atravessa as épocas, enquanto a para. No fundo, Halbwachs opõe a multlplicH.lade das ~is.t~ria as se- . memórias - ligadas aos indivíduos e aos grupos que delas são portadores e sempre elaboradas em quadros SOCIaIS definidos25 - ao carácter unitário da história, que se declina em histórias nacionais ou em história universal, mas que exclui a coexistência de vários re-gimes temporais nwn mesmo rclato::'i,. Em resumo, Halbwachs opõe uma história positivista - o estudo científico do passado, sem interferências com ü

presen-te - a uma memória subjectiva baseada nas vivências dos indivíduos e dos grupos. Radicalizando a pers-pectiva, compara a clivagem que separa a história da memória à que opõe o tempo matemático ao «tempo vivido» de Bergson17

• A história, refere o autor, igno-ra as percepções subjectivas do passado ao privilegiar cortes convencionais, impessoais, racionais e objectivos (Halbwachs refere o exemplo da Cbronologie univerJelfe, de

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Essa dicotomia foi retomada, mais recentemente, por Yosef IIaym Yerushalmi que, na sua qualidade de historiador, se apresenta como um recém-chegado ao

mundo judaico. Numa comunidade unida pela religião, a imagem do passado foi forjada no decorrer dos sé-culos graças a uma memória ritualizada que fixava as modalidades e os ritmos de uma temporalidade judaica separada do mundo exterior. Por consequência, a his-toriografia judaica nasce de uma ruptura com a memó-ria judaica, a única que anteriormente tinha assegurado uma continuidade, em termos de identidade e de auto--representação, no seio do mundo judaico. Essa ruptura foi marcada pela Emancipação judaica, movimento que engendrou um processo de assimilação cultural com o meio envolvente e, no interior da comunidade, o des-moronamento da antiga organização social centrada na sinagoga. Inscrevendo-se num mundo secularizado e adaptando as divisões temporais da história profana, a história judaica - cujo início foi marcado pela escola da

l17úienid}~/i dej' .1udet1tumi, nascida em Berlim no início

do século XIX - não poderia senào operar uma ruptu-ra, pelas suas modalidades, fontes e objectivos, com a memória judaica~').

A antinomia entre história e memória foi reafir-mada por Pierre Nora, a quem se deve a renovação, a partir dos anos 1980, do debate historiográfico sobre

a memóna. Recuperou para si a tese de Ilalbwachs, mas apresentando uma visão bem mais problemática das vicissitudes da escrita da história. i\lemória e histó-ria, explica Nora, estão longe de ser sinónimos, já que «tudo as opõe). A memória é «a vid.,\», o que a expõe «à dialéctica da recordação e da amnésia, inconsciente das suas deformações sucessivas, vulnerável a todas as uti-lizações e manipulações, susceptível de longas latências e de súbitas revitahzações». Ora, esse «vínculo vivido no presente eterno» não pode ser assimilado à história, representação do passado que, mesmo se problemática e sempre incompleta, se quer objectiva e retrospectiva, fundada na distância. A memória é «afectiva e mágica», com tendência para sacrahzar as recordações, enquanto a história é uma visão secular do passado, sobre o qual constrói «um discurso critiCO»). A memória tem uma vo-cação singular, ligada à subjectividade dos indivíduos e dos grupos, a história tem uma vocação universal. «.Ao.

memória é um absoluto e a história apenas conhece o relativo».311 A partir dessa constatação, Nora não pode conceber senão uma relação entre história e memória, a de uma análise e reconstrução da memória segundo os métodos das ciências sociais de que a história faz parte. Nessa perspectiva, Nora abriu um novo campo historiográfico extremamente ambicioso: reconstruir a história nacional em torno dos «lugares da memória»,

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do território às paisagens, dos símbolos aos monumen-tos, das comemorações aos arquivos, dos emblemas aos mitos, da gastronomia às instituições, de Joana d'Arc à Torre Eiffel.

Todavia, longe de serem o quinhão exclusivo da memória, os riscos de sacralização, mitificação e am-nésia espreitam permanentemente a escrita da própria história e uma grande parte da historiografia moderna e contemporânea caiu nessa armadilha, O projecto de Nora não escapa a essa regra, ao reservar um espaço bem modesto para o passado da França colonial en-tre a multitplicidade de «lugares de memória>" Segundo Perry Anderson, o mais severo dos seus críticos, o pro-jecto editorial de Nora reduz as guerras coloniais fran-cesas, da conquista da Argélia à derrota na Indochina, «a uma exposição de bugigangas exóticas que poderiam ter estado presentes na exposição universal de 1931. O que valem os lugares de memón'a que se esquecem de

in-cluir Diên Biên Phú?,)"'l

i\. história, da mesma forma que a memóna, não

tem apenas as suas falhas; pode também desenvolver--se e encontrar a sua razão de ser no desaparecimento de outras histórias e na negação de outras memórias, Como referiu Edward Saíd, a arqueologia israelita, que procura trazer à superfície os traços milenares do pas-sado judaico da Palestina (vista por alguns como uma

«arqueologia - religião nacionab), escavou a terra com o mesmo afinco com que os bulldozeri destruíram os

traços materiais do passado árabo-palestino~2,

Por outro lado, deve ter-se em conta a influência da história sobre a própria memória, já que não existe me-mória literal, original e não contaminada: as recorda-ções são constantemente elaboradas por uma memória inscrita no espaço público, submetidas aos modos de pensar colectivos, mas também influenciadas pelos pa-radigmas especializados da representação do passado, Esta situação deu lugar a lul)ridos - certas autobio-grafias cntram nessa categoria - que permitem à me-mória revisitar a história, destacando os pontos cegos e as generalizações apressadas, e à história corrigir as armadilhas da memória, obrigando-a a transformar-se em análise auto-reflexiva e em discurso crítico, Uma obra como Oi que mmmbem e OJ que Je Ja/vam, de

Pri-mo Levi3

\ articula história e memória num relato de novo tipo, inclassificável, fundado sobre um vai e vem permanente entre os dois, Pierre Vidal-Naquet, na sua auto-biografia, relata as suas recordações com o rigor de um historiador que verificou as suas fontes e sub-mete a sua memória ao teste de apresentação de provas, dando-lhe, no entanto, a forma de um balanço retros-pectivo e muitas vezes crítico, Não se trata apenas do

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conta a correspondência dos seus pais, o diário do seu pai e o diário que a sua irmã começou a escrever depois da detenção e deportação dos seus pais, mas também e sobretudo porque se apoia no seu conhecimento de todo um período histórico. «É nesse sentido - escreve - que se trata tanto de um livro de história como de mc-mória, um livro de história de que sou, a uma Só vez, o autor e o objccto.)r'~ Pcrtencendo ao mesmo tempo ao registo da memória e ao da história, estes dois exemplos não entram na dicotomia estabelecida por Halbwachs, Yerushalmi e Nora.

Empatia

A mesma oposição entre história e memória está for-temente presente na historiografia do nacional-socia-lismo, como

°

demonstrou claramente, em meados dos anos 1980, a correspondência entre dois grandes historiadores, Martin Broszat c Saul FriedEinderJ·'i. Pro-curando sustentar a sua defesa de uma historicização do nazismo capaz de romper a tendência para «insu-larizan> o período de 1933-1945 por ra7:ões morais, Bros7,at reivindica um método cientifico capaz de se emancipar da «recordação mítica» das vítimas.v,. A me-mória dos sobreviventes do genocídio dos judeus sus-cita evidentemente o seu respeito, mas deveria ficar

ex-cluída das fontes do historiador e não interferir com o seu trabalho. Face ao positivismo radical de tal posição, perguntamo-nos se ela não encobre a parte de memó-ria vivida e afectiva presente na historiografia alemã do pós-guerra, nomeadamente a historiografia do nazismo elaborada pela «geração da Hillet:j/(gend\> li. Para lá dos

julgamentos que sobre esses resultados - muitas vezes notáveis - possam ser feitos, wna constatação impõe--se: wna característica partilhada pela maior parte dos seus representantes reside precisamente na exclusão das vítimas do nazismo do seu campo de investigação, para não dizer do seu horizonte epistemológico. Essa carac-terística perpetuou-se, aliás, no trabalho de uma nova geração, muitas vezes centrada na análise da máquina de morte do nazismo, mas que raramente se interessa pelo testemunho das vítimas, Nessa historiografia, as vítimas ficam num plano secundário, anónimas e silenciosas·1H

Esse problema poderia ser também abordado a par-tir de uma outra perspectiva. O recalcamento dos anos negros na Alemanha do pós-guerra - recalcamento da

S'thuk!lrC{g/* e dos crimes nazis - não terá tido, entre os seus efeitos, o de transformar numa espécie de tabu os bombardeamentos que destruíram as cidades alemãs,

*

Juventude hitleriana. N.T

(20)

tema que tem sido ignorado até a uma época recente, tanto pela literatura como pelo cinema e pela historio-grafia? Essa é a hipótese sugerida por W. G. Sebald, para quem a ausência de qualquer debate público e de obras literárias sobre esse trauma colectivo se deve ao facto de «um povo que havia assassinado e explorado até à morte milhões de homens ter ficado impossibilitado de exigir às potências vitoriosas que prestassem contas so-bre a lógica de uma política militar que tinha ditado a erradicação de cidades alemãs»"w.

Opor radicalmente história e memóna é, pOIS, uma operaçào perigosa e discutível. Os trabalhos de Halbwachs, Yerushalmi e Nora contribuíram para mos-trar as diferenças profundas que existem entre história e memória, mas seria errado deduzir daí a sua incom-patibilidade ou considerá-las como irredutíveis. O que a sua interacção cria é um campo de tensões no interior do qual se escreve a história. Sem dúvida que Amos Fukenstein tem razào quando indica, no ponto de en-contro entre história e memória, a emergência de um terceira instância, a que chamou IXJIlJt:iêmia húlónaio.

A correspondência com Broszat foi, aliás, o ponto de partida de Saul Friedlander para uma reflexão fecun-da sobre as condições de escrita fecun-da história. Se o histo-riador não trabalha fechado na clássica torre de marfim, ao abrigo dos rumores do mundo, também não vive

dentro de uma câmara frigoríf1ca, imune às paixões do mundo. Ele está submetido às condicionantes de um contexto social, cultural e nacional. Não escapa às influ-ências das suas recordações pessoais, nem às de um sa-ber herdado, de que pode tentar lisa-bertar-se, não através da sua negação, mas de um esforço de distanciamento crítico. Nessa perspectiva, a sua tarefa não consiste em tentar pôr de lado a memória - pessoal, individual e colectiva - mas em colocá-la à distância e em inscrevê--la num conjunto histórico mais vasto. Há então no tra-balho do historiador uma dimensào de frall!ferenáa que

orienta a escolha, a abordagem e o tratamento do seu objecto de pesquisa, e da qual ele deve estar consciente. Friedlander define assim a escrita da história, recorren-do ao léxico da psicanálise, como um acto de «perla-boraçãQ) (working Ihrough) . .-\ distância cronológica que

separa o historiador do objecto da sua investigação cria uma espécie de ecrã protector, mas a emoção que, muitas vezes de forma imprevista e súbita, ressurge no decurso do seu trabalho inevitavelmente quebra este diafragma temporal41

. Esta empatia ligada à vivência in-dividual do historiador não tem necessariamente efeitos negativos. Pode também revelar-se frutuosa, se o histo-riador dela estiver consciente e a souber «dominaD)~2.

A obra de FriedIander constitui um bom exemplo de uma tal capacidade de domínio. Em Nazi Germal!Y

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and lhe Jewj', inscreveu uma constelação de «destinos

in-dividuais» num relato histórico global da Alemanha no período anterior à Segunda Guerra :Mundial. Foi assim capaz de ultrapassar a chvagem tradicional dos estudos do nazismo: de wn lado as pesquisas, feitas essencial-mente nos arquivos, que focalizam a atenção sobre a ideologia e as estruturas do regime; do outro lado, uma reconstrução do passado exclusivamente fundada sobre a memória das vítimas, por vezes baseada numa vasta literatura testemunhal, outras preservada nos arquivos visuais e sonoros. FriedEinder tentou integrar essas duas perspectivas para chegar a uma reconstrução global do processo histórico, introduzindo a voz das vítimas numa narrativa que de outro modo se reduziria à análise das decisões políticas e dos decretos administrativos-tl.

Apesar da sua postura positivista, os historiadores alemàes da geração da Hitletjux,cl1d, ou seja, aqueles que nasceram entre 1925 e o início dos anos 1930 (Martin Broszat, Hans Mommsen, Andreas Hillgruber, Ernst Noite, Hans-Ulrich \Xlehler, etc.), tendem, também eles, a estabelecer uma empatia com os actores de um passado que implica recordações pessoais. As investi-gações sobre a história da vida quotidiana sob o na-zismo (AI!ta..~igesthü#e) desenham, na maior parte das vezes, um quadro social de que as vítimas simplesmente desaparecem+!. Outros não escaparam à armadilha do

relato apologético. Para Andreas Hillgruber, jovem sol-dado da \Xlehrmachf em 1945, ao descrever o último ano da Segunda Guerra Mundial, o historiador «deve identificar-se com o destino da população alemã de leste e com os esforços desesperados e custosos do

Oi/hee," ( ... ) que visavam defender essa população contra a vingança do exército vermelho, as violações colectivas, os assassinatos arbitrários e as inúmeras de-portações, e manter abertas rotas terrestres e marítimas que permitissem aos alemães dos territórios orientais fugir em direcção ao Oeste ... »I~. Ora, como lhe re-cordou Jürgen Habermas, a resistência encarniçada da Wehrmacht nesse último ano de guerra foi também o que permitiu a continuação das deportações para os campos de concentração nazis, onde as câmaras de gás continuavam a funcionar.

Tradicionalmente, a historiografia não se apresen-tou sob a forma de um relato polifónico pela simples razão de que as classes subalternas não eram tomadas em consideração, o que resultou na redução da narra-ção do passado aos relatos dos vencedores. Foi esse historicismo que Benjamin denunciou nas suas TCJeJ

*

Conjunto da:; força:; armada:; da ,\\cmanha durantc o Tcrcciro Rcich.

(22)

Jobre o conceito de hiJtóna, descrevendo o seu método como uma forma de empatia unilateral com os

ven-cedores~(,. Na verdade, essa «empatia» - a Einjiihlung

do historicismo clássico - não é sempre sinónimo de apologia. Alguns recusam-na, como Ian Kershaw, na sua biografia de Hitler, por ele apresentada como um trabalho de um historiador «estruturalist3),~7. A sua escolha é motivada tanto pela inconsistência da vida privada do führer, que reduziria toda a empatia a uma adesão aos seus desígnios políticos, como pelo seu de-sejo de distinhJUir a sua biografia da, mais antiga, de Joachim Fest. Fascinado pela (rgrandiosidade demoní-aca)) de Hitler, Fest não conseguiu deixar de lhe reser-var, mesmo sem intenção, «um bom lugar no panteão dos heróis alemães»~s. Outros adaptaram uma atitude de empatia critica - muito mais um motivo de abalo do que de identificação (mais do que empatia, devería-mos falar de aproximação ({heteropática,,)~<) - que ajuda a «compreendem o comportamento dos actores sem procurar justificá-los.

p,

o esforço empreendido por Hanna Arendt ao penetrar no universo mental do

.r.r

_Adolf Eichmann, esforço que não foi compreendido e que não lhe foi perdoado aquando da publicação do seu ensaio sobre a «banalização do mah,~(l. É também o sentido do trabalho micro-histórico de Christopher Bowning, que tentou compreender por que meio e por

que etapas certos «homens comuns", como os mem-bros do 101.0

batalhão de reserva da policia alemã na Polónia em 1941, se puderam transformar numa equi-pa dc massacre prof1ssionaPl.

Os percalços que resultam de uma empatia de sentido único, desprovida de distância critica em relação ao seu objecto, são mais frequentes quando a polifonia dos ac-tores se torna inaudível, escutando-se apenas uma voz, não havendo lugar a uma interacção entre memórias an-tagonistas no espaço público. Se na Argélia a indepen-dência deu rapidamente lugar a uma história oficial da guerra de libertação, em França o esquecimento não se podia eternizar. Deveria, mais tarde ou mais cedo, dar lugar a uma escrita da história alimentada pela multiplici-dade de memórias. A memória da França colonial, a dos

pied-noir/, a dos harki/"', a dos emigrantes argelinos e dos seus filhos, e ainda a do movimento nacional argelino, mantida também pelos seus representantes entretanto exilados, enleiam-se numa memória da guerra da Ar-gélia que impede uma escrita da história fundada sobre uma empatia unilateral, exclusiva. A escrita dessa histó-ria só se pode fazer sob o olhar vigilante e critico de vá-rias memória paralelas, que se exprimem no espaço

pú-t Cidadãos franceses LJue viviam na ,\rgdia. N'!'. H Milicianos nativos ao serviço do exército francês. N:L

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blico. Esta interacção de memórias obrigou mesmo os próprios torcionários a sairem do seu silêncio, a formu-larem a sua versão do passados2• Concluindo, história e memória interagem aqui, para retomar uma expressão muito pertinente de David N. J\lyers, como «categorias flutuantes no seio de um campo dinâmico»~-'.

Do outro lado dos Alpes, a paisagem memorial e his-toriográfica é bem diferente. Pouco antes da sua morte, George L. Mosse, um dos mais fecundos historiadores do fascismo do pós-guerra, fez o elogio do seu cole-ga italiano Renzo De Felice, bem conhecido pela sua monumental biografia de Mussolini. O principal méri-to de De Felice, segundo ~fosse, residia precisamente na sua empatia com o fundador do fascismo, no facto de ter «tentado proceder desde o interior, imaginando como o próprio .i\fussolini concebia os seus actos»''>-I. Na sua autobiografia, Mosse conta, em jeito de anedo-ta, wn episódio da sua adolescência em que se cruzou com o ditador italiano. Em 1936, T\Iosse estava em Flo-rença com a sua mãe. O Eixo, entre a Itália fascista e a Alemanha nazi, tinha acabado de ser estabelecido, o que provocou agitação entre os judeus alemães que se tinham refugiado na península, temendo ser entregues às autoridades nazis (ameaça que se concretizará pela expulsão em massa em 1938, com a promulgação das leis raciais). A mãe do jovem Mosse decidiu então

escre-ver a J\Iussolini para lhe pedir a sua protecção, depois de lhe relembrar o auxílio financeiro que o seu marido, um importante editor alemào durante a República de Weimar, lhe havia oferecido antes da sua chegada ao po-der. A curta chamada telefónica que o Dm;e fez à sua mãe para a tranquilizar mostra, segundo George L. i\.-fosse, o «carácter de ;\fussolini, ou pelo menos o seu sentido de gratidãQ)-'i~. Ao contrário de }.fosse, De Felice não tinha anedotas pessoais para contar sobre o ditador ita-liano, mas tentou compreender a sua personalidade ao longo dos diferentes volumes da sua biografia, enorme traballio escrito com uma Eit~fiihllJllg sempre crescente ao longo dos anos. Pouco antes da sua morte, De Felice publicou uma obra muito controversa, RoJ"J"o e J\.Tero, na

qual interpreta a última etapa do itinerário de ~lussolini,

ou seja, o seu papel na guerra civil italiana de 1943-1945. Segundo De l'elice, «j\.Iussolini, agrade-nos ou não, acei-ta o projecto de Hitler por motivação patriótica: foi um autêntico "sacrifício" no altar da defesa da pátria»~('. Os historiadores franceses estão familiarizados com esta tese, já defendida por Robert Aron, que apresentou o regime de Vichy como um ~~escudo» proteetor contra os tormentos de uma ocupação total do país~7 (evitando desta forma um destino semelhante ao da Polônia).

Os historiadores do colonialismo fascista trouxeram à luz documentos que tinham sido ignorados pelas

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pes-quisas arquivísticas, bastante extensas, de De Felice. O ditador italiano demonstra aí um aspecto diferente do seu carácter e esses documentos emprestam um outro significado tanto ao seu sentido de gratidão como ao seu espírito de sacrificio. A 8 de Julho de 1936, Mussoli-ni telegrafou a Rodolfo GraziaMussoli-ni, um dos principais res-ponsáveis militares durante a guerra da Etiópia, uma di-rectiva autorizando-o «mais uma vez ( ... ) a levar a cabo de forma sistemática a política de tcrror e de extermínio contra os rebeldes e populações suas cúmpliCCs>}S8. Com uma notável devoção patriótica, Graziani não hesitou em utilizar as armas químicas para pôr fim à resistência criope. E foi com gratidão que Mussolini reconheceu os seus méritos, ao nomeá-lo ministro da Defesa da Repú-blica de Saló no Outono de 1943.

Foi através da pesquisa de runa enorme quantidade de documentos destc género que alguns investigadores italianos puderam reconstituir a história do genocídio fascista na Etiópia em 1935-1936. ivIas o rcconheci-mento desse gcnocídio permanece uma aquisição (no fim de contas, muito recente) exclusivamente historio-gráfica. Nunca penetrou verdadeiramente na memória colectiva dos italianos, para quem, no seu con;lUlto, a recordação da guerra da Etiópia permanece como uma aventura ingénua e inocente, bem resluuida pela letra de uma célebre canção da época, que todos conhecem,

F"a:ella nera, um concentrado de estereótipos do imagi-nário colonial. Um conjunto de circunstâncias históricas (as crises, guerras e ditaduras conhecidas pela Etiópia até ao presente, tal como a reduzida imigração etiope em Itália, que nunca foi wn lugar de formação de uma elite intelectual e política africana) impediu que a voz das vítimas desse genocídio encontrassem um lugar no relato italiano dessa guerra. Apesar dos seus esforços, a historiografia não poderá tapar os buracos de uma memória mutilada. No melhor dos casos, esta tornar--se-á, como na Alemanha, uma história na qual haverá «crimes sem vítimas}) ou vítimas completamente anó-nimas sem identidade e sem rosto. Nós não conhece-mos a·versão da guerra contada pelos companheiros de I-Iailou Tchebbedé, um dos chefes de resistência etíope; dele conhecemos apenas as fotos da sua cabeça exibida como um troféu pelos soldados italianos;'). Esperemos que os estudos pós-coloniais venham brevemente que-brar esta dialéctica asfixiada entre história e memória.

Na sua última obra, Hülo~y. Tbe L.aJt ThingJ" Bq(ore lhe

I AS!, Siegfried Kracauer utiliza duas metáforas para

de-finir o historiador. A primeira, a do judeu errante, visa a historiografia positivista. Como «Punes, cl memorios(»), o herói do célebre conto de Borges, Ahasvérus, que atra-vessa os continentes e as épocas, nada pode esquecer e está condenado a deslocar-se incessantemente,

(25)

carrega-do com o seu farcarrega-do de recordações, memória viva carrega-do passado de que é o infeliz guardião. Alvo de compaixão, ele não encarna qualquer sabedoria, nenhuma memória virtuosa ou educativa, apenas wn tempo cronológico, homogéneo e vazid'jo. A seglUlda metáfora, a do exilado

- poderíamos também dizer a do estrangeiro, seglUldo a

definição de Georg Simmel -, faz do historiador uma figura de e_',:traterntonalidade. À semelhança do exilado,

dividido entre dois países, a sua pátria e a sua terra de adopção, o historiador encontra-se clivado entre o pas-sado que explora e o presente em que vive. É assim obrigado a adquirir wn estatuto «extraterritoriab~, em equihbrio entre o passado e o presente(,]. Como o exila-do, que é sempre um outsider no país de acolhimento, o

historiador procede a uma intrusão no passado. No en-tanto, da mesma forma que o exilado se pode familiari-zar com o país de acolhimento, e sobre ele fazer incidir um olhar crítico, simultaneamente interior e exterior, feito de adesào e distanciação, o historiador - não é a norma, é uma virtualidade - pode conhecer em pro-fundidade uma época já passada e, graças ao seu olhar retrospectivo, reconstituir os seus traços com uma mui-to maior dareza do que os contemporâneos. A sua arte consiste em reduzir ao máximo as desvantagens que a distância provoca e tirar o maior proveito das vantagens epistemológicas que dela provêm.

Enquanto «passado!) (Gren:::gánger) extraterritorial,

o historiador é devedor da memória, embora, por seu lado, actuc sobre esta, já que contribui para a formar e para a orientar. Precisamente porque, em vez de viver encerrado numa torre, participa na vida da sociedade civil, o historiador contribui para a formaçào de uma consciência histórica e, portanto, de wna memória

mledi-va (plural e inevitavelmente conflituosa, atravessando o conjunto do corpo social). Dito de outra forma, o seu trabalho contribui para aquilo que Habermas chamou «uso público da história>~62. Trata-se de uma constatação que não precisa de ser sublinhada: os debates alemães, italianos e espanhóis em torno do passado fascista, os debates franceses em torno do passado vichista e colo-nial, os debates argentinos e chilenos em torno do lega-do das ditaduras militares, os debates europeus e ameri-canos em torno da escravatura - a lista seria inesgotável _, ultrapassam largamente as fronteiras da investigação histórica. Invadem a esfera pública e interpelam o nos-so presente.

o

livro de Ludmila da Silva Catela, f\.To babrá flores en la tumba dei paiado, sobre a memória das vítimas da

dita-dura militar argentina, é um bom exemplo de investiga-ção histórica que faz da memória o seu objecto, ao mes-mo tempo que se inscreve num contexto sensível, ine-vitavelmente participando numa utilização pública da

(26)

história(,". Trata-se, desde logo, de hútória ora!, porque a

autora fez um inquérito entre os familiares (pais, filhos, irmãos e irmãs) dos desaparecidos de La PIata, cidade onde a repressão militar foi particularmente virulenta e extensiva. É o relato do seu medo, da sua esperança, da sua espera, da sua ira, da sua coragem, da sua ne-cessidade de agir, do seu alívio depois de cada pequena acção pública. Trata-se, em seguida, de história polítúu:

como se começaram a organizar, como encontraram a força para agir publicamente, como inventaram formas de luta (denúncia, contra-informação) e símbolos (o

paiiue!o", etc.). De que forma estas acções responderam

a um imperativo moral, a uma necessidade pessoal, e Como deram lugar a um movimento político Com um forte impacto no conjunto da sociedade civil. Como as mães, e por vezes as avós, que eram domésticas, se tornaram as dirigentes de um movimento da socieda-de civil contra a ditadura militar. Trata-se ainda, a par da história oral e da história política, de antropologia e púcologia: um estudo sobre o sofrimento e sobre a

im-possibilidade do luto ligados ao desaparecimento. Os familiares sabem que os desaparecidos morreram mas não os podem considerar como tal porque os seus cor-pos nunca foram encontrados. Daí a especificidade, e

* Ll.:oço quI.: as mulhl.:rcs usam na cabl.:ça. N:L

até a criatividade, de uma rememoração que acompa-nha esse luto simultaneamente inesgotável e impossível (os desfiles das Madrel, o aparecimento dos panuelos, as

fotografias dos desaparecidos na imprensa, o «assédio» às autoridades, a abertura dos arquivos, os processos, a procura dos corpos das vítimas, os eüTadles, ou seja,

as denúncias públicas em frente às casas dos torcioná-rios, etc.). Uma rememoração profundamente ancorada no presente, como o provam as madrej" e os hijoj" que

apoiam os piquetes dos desempregados, porque a luta dos piqueteroi pela «dignidade humana» é a mesma que

a dos seus filhos e dos seus pais mortos pela ditadura, Assim é este livro de história, fundado numa empatia crítica que volta a dar um rosto e uma voz a quem a ditadura militar tinha querido apagar sem deixar rasto, explorando a sua memória, através da suas famílias, na Argentina de hoje,

(27)

II

o

tempo e a força

Tempo hÍJlórico e tempo da memória

A história e a memória têm as suas próprias temporah-dadcs, que se cruzam, se chocam e se entretecem cons-tantemente, sem que, no entanto, cheguem a coincidir inteiramente entre si. A memória é portadora de uma temporalidade que tende a pôr em causa o continuum da

história. Walter Benjamin ilustra-o nas suas Teses sobre

o cOflaito de históda. Na tese XV é evocado um

episó-dio curioso da revolução de Julho de 1830: ao cair da noite, depois dos combates, em vários locais de Paris e ao mesmo tempo, as pessoas disparavam sobre os reló-gios como se quisessem parar o dia 1

• A temporalidade da revolução - a Revolução Francesa tinha introduzido

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um novo calendário - não é a dos relógios, mecânica e vazia, mas antes, esclarecia Benjamin, a da «lembran-ça», a da revolução como acto redentor da memória dos vencidos. Nos seus comentários sobre as teses de Benjamin, l'vrichael Lówy mostra uma outra imagem es-pantosamente homóloga à dos insurrectos de 1830. É uma fotografia datada de Abril de 2000, onde figuram indígenas a disparar sobre o relógio das comemorações oficiais do quinto centenário da descoberta do BrasiF.

~"\ memória dos oprimidos não se priva de protestar contra o tempo linear da história. Ela exige, segllildo Benjamin, «um presente que não é de forma alguma a passagem do tempo, mas antes a sua paragem e blo-queÍQ)-'.

Para ter lugar, a prática historiográfica exige um dis-tanciamento, uma separação ou mesmo uma ruptura

com o passado, pelo menos na consciência dos con-temporâneos. Isto constitui uma premissa essencial para proceder a uma his/oáâzação, ou seja, uma

perspec-tivação histórica do passado. Essa distância instala-se muito mais através de fracturas simbólicas (por exem-plo na Europa, 1914, 1917, 1933, 1945, 1968, 1989, etc.) do que em virtude de um simples distanciamento temporal. A essa distância engendrada por uma ruptu-ra corresponde normalmente a acumulação de certas premissas materiais da investigação; desde logo, a

cons-f

tituição e abertura de arquivos privados e públicos. Mas esta condição é secundária e derivada. A Era dos Extre-mos de Eric Hobsbawm ou a obra colectiva O Sérulo dos Comunismos não poderiam ter visto a luz do dia antes da

queda do Muro de Berlim e do desmoronamento da

URSS~. Um trabalho pioneiro como Le Breviaire de la IJaine de Uon Pohakov (1951) pressuplUlha nào apenas

o fim da guerra e a queda do nazismo, como também a possibilidade de consultar os arquivos que tinham per-mitido instruir os processos de Nuremberga'. Enfim, para escrever um livro de história que nào seja somen-te um trabalho de erudição é também necessária uma procura social, pública, o que remete para a intersecção da investigação histórica com os percursos da memória colectiva. É por isso que La Des/n/dio" deJjlJ~fs d'l;;urope

de Raul Hilberg teve um impacto muito reduzido no momento da sua primeira edição em 1960, tornando-se uma obra de referência apenas a partir dos anos 1980().

A memória, por seu lado, tende a atravessar várias etapas que poderíamos, retomando o modelo proposto por Henry Rousso em Le S)ndrome de Vidry, descrever da seguinte forma: pritneiro, um acontecimento mar-cante, uma viragem, muitas vezes um trauma; depois, uma fase de recalcamento, mais tarde ou mais cedo seguida de uma inevitável anamnese (o «regresso do recalcadQ)) que pode, por vezes, converter-se em

Referências

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