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Rabelais - Gargântua (Ed. Europa-América, Portugal).pdf

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Obras publicadas nesta colecção:

I -Fábulas, La Fontaine

2 -A Canção de Rolando

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RABELAIS

GARGÂNTUA

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Título original: Gargantua

Tradução de Maria Gabriela de Bragança Capa: estúdios P. E. A.

Direitos reservados por Publicações Europa-América

Nenhwna parte desta publicação pode ser reprodu zida ou transmitida na presente forma por qualquer processo, electrónico, mec�nicooufotográfico, in­ cluindo fotocópia, xerocópia ou gravação, sem au­ torização prévia e escrita do editor. Exceptua-se naturalmente a transcrição de pequenos textos ou passagens para apresentação ou crítica do livro. Esta excepção não deve de modo nenhum ser inter­ pretada como sendo extensiva à transcrição de tex­ tos em recolhas antológicas ou similares donde re­ sulte prejuízo para o interesse pela obra. Os trans­ gressores são passiveis de procedimento judicial

Editor: Francisco Lyon de Castro

PUBLICAÇÕES EUROPA-AMÉRICA, LDA. Apartado 8

2726 MEM MARTINS CODEX PORTUGAL

Edição n.� 15/003/4444 Execução técnica: Gráfica Europam, Lda., Mira-Sintra- Mem Martins

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ÍNDICE

Pág

Prefácio de Victor Hugo . . .. . .. . .. . .. . .. . .. ... . .. . .. . .. . .. . .. . .. 9 Introdução . . . 13 A vida muito horrífica do grande Gargântua . . . 25

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PREFÁCIO

Rabelais é a Gália; e quem diz a Gália diz também a Gré­ cia, pois o sal ático e a graça gaulesa têm no fundo o mesmo sa­ bor, e se alguma coisa, à parte os edifícios, se assemelhava ao Pireu, é La Rapée. Aristófanes encontra alguém maior do que ele; Aristófanes é mau, Rabelais é bom. Rabelais defenderia Sócrates. Na ordem dos grandes génios, Rabelais segue crono­ logicamente Dante; depois da fisionomia severa, a face trocis­ ta. Rabelais é a máscara formidável da comédia antiga separa­ da do proscénio grego, de bronze feito carne, doravante um ros­ to humano e vivo, continuando enorme e vindo rir de nós entre nós e connosco. Dante e Rabelais vêm da escola dos frades franciscanos, como mais tarde Voltaire dos jesuítas; Dante é o luto, Rabelais a paródia, Voltaire a ironia; tudo isso sai da igre­ ja contra a igreja. Todo. o génio tem a sua invenção ou a sua descoberta; Rabelais teve este achado: o ventre. A serpente está no homem, é o intestino. Ela tenta, trai e castiga. O homem, uno como espírito e complexo como homem, tem para a sua mis­ são terrestre três centros: o cérebro, o coração e o ventre; cada um desses três centros é angusto por uma grande função que lhe é própria; o cérebro tem o pensamento, o coração tem o amor, o ventre tem a paternidade e a maternidade. O ventre po­ de ser trágico. Feri ve1ttrem, diz Agripina. Catarina Sforza, ameaçada com a morte dos seus filhos feitos reféns, desnudou­ -se até ao umbigo nas ameias da cidadela de Rimini, e disse ao inimigo: Aqui tenho com que fazer outros. Numa das con­ vulsões épicas de Paris, uma mulher do povo, de pé sobre uma barricada, levantou as saias, mostrou ao exército o ventre nu e gritou: Matai as vossas mães. Os soldados crivaram de balas este ventre. O ventre tem o seu heroísmo, e todavia é dele que de­ correm, na vida a corrupção, e na arte a comédia. '0 peito, onde

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R,1BELAIS

se situa o coração, tem como extremidade a cabeça; o ventre tem o falo. Sendo o centro da matéria, o ventre é a nossa satisfa­ ção e o nosso perigo ; contém o apetite, a saciedade e a podridão. As dedicações e as ternuras que através dele se apossam de nós estão sujeitas a morrer; substitui-as o egoísmo. Facilmente as entranhas se convertem em tripas. É triste que o hino possa avi­ nhar-se e que a estrofe se deforme em cantoria. Isso resulta do animal que há no homem. O ventre é essencialmente esse ani­ mal. A degradação parece ser a sua lei. A escala da poesia sen­ sual tem, ao nível mais alto, o Cântico dos Cânticos e, ao nível mais baixo, a graçola. O ventre-deus é Sileno; o ventre-impe­ rador é Vitélio ; o ventre-animal é o porco. Um dos horríveis Ptolomeus chamava-se o Ventre, Physcon. O ventre é para a humanidade um peso temível ; rompe a cada instante o equilí­ brio entre a alma e o corpo. Ench e a história. É respon sável por quase todos os crimes. É o odre dos vícios. É ele que pela volúp­ tia faz o sultão, e pela embriaguez faz o czar. É ele que mostra a Tarquínio o leito de Lucrécia; é ele que acaba por fazer delibe­ rar sobre o molho de um rodovalho o senado que esperou Breno e deslumbrou Jugurta. É ele que acon selh a ao libertino arrui­ nado que era César a passagem do Rubicão. Passar o Rubicão, como isso permite pagar as dívidas, ter belas mulheres, comer bons jantares! E os soldados romanos entram em Roma com e s­ te brado : Urbani, claudite uxores; moechum calvum adduci­ mus. O apetite deprava a inteligência. A volúpia substitui a vontade. No princípio, como sempre, há pouca nobreza. É a or­ gia. Há uma diferença entre ficar toldado e bêbado. Depois a or­ gia degenera em comezaina. Onde estava Salomão surge Ram­ ponneau. O homem é uma barrica. Um dilúvio interior de ideias tenebrosas submerge o pensamento ; a con sciência afoga­ da já não con segue fazer sinal à alma embriagada. E stá con su­ mado o embrutecimento. Já n em é cínico, é vazio e estúpido. Diógenes desaparece; só fica o tonel. Começa-se com Alcibía­ des e acaba-se com Trimalcião. O quadro está completo. Não há mais nada, n em dignidade, nem pudor, nem h onra, nem virtude, n em espírito; o gozo animal nu e cru, a impureza nua e crua. O pensamento dissolve-se na saciedade; o con sumo car­ nal absorve tudo ; nada subsiste da grande criatura soberana habituada pela alma; seja-nos permitida a expressão: o ventre come o homem. Estado final de todas as sociedades onde o ideal se eclipsa. E isso passa por prosperidade e ch ama-se

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en-GARGÍINTUA

grandecer. Às vezes até os filósofos concorrem estouvadamen­ te para esse abaixamento, pondo nas doutrinas o materialismo que está nas consciências. Esta redução do homem ao animal é uma grande miséria. O seu primeiro fruto é a torpeza que se tor­ na visível por todos os lados e até nos cumes da sociedade: no juiz venal) no padre simoníaco, no soldado condottiere. Leis, costumes e crenças são estrumeira. Totus homo fit excremen­ tum. No século XVI, todas as instituições do passado estão redu­

zidas a isso; Rabelais toma conta dessa situação, constata-a e levanta o auto desse ventre que é o mundo. A civilização não é mais que uma massa, a ciência é matéria, a religião engor­ dou, a feudalidade digere, a realeza está obesa. Quem é Henri­ que VIII? Uma pança. Roma é uma velha gorda e farta. É isso saúde? É isso doença? É talvez gordura, é talvez hidropisia. Questão a esclarecer. Rabelais, médico e cura, toma o pulso ao papado. Abana a cabeça e desata a rir. Foi porque encontrou a vida? Não, porque sentiu a morte. Com efeito, o papado expira. Enquanto Lutero reforma, Rabelais faz chacota. Qual vai mais direito ao fim? Rabelais troça do monge, do bispo, do papa; riso feito de estertor. Este guizo toca a finados. Então? Julguei que era uma patuscada e é uma agonia; uma pessoa pode enganar­ -se quanto ao soluço. Riamos porém. A morte está à mesa. A úl­ tima gota brinda com o último suspiro. Uma agonia no meio da paródia, esplêndida coisa. O cólon intestinal é rei. Todo este velho mundo festeja e rebenta. E Rabelais entroniza uma di­ nastia de ventres: Grandgousier, Pantagruel e Gargântua. Ra­ belais. é o Ésquilo da comezaina, 6 que é grande, se nos lembrar­ mos que comer é devorar. Há um abismo no comilão. Comei, pois, senhores, e bebei, e acabai. Viver é uma canção cujo re­ frão é morrer. Há quem escave sob o género humano deprava­ do temíveis calabouços; em matéria de subterrâneos, o grande Rabelais contenta-se com a cave. O universo que Dante punha no inferno, Rabelais mete-<> dentro dum casco. O seu livro não é outra coisa. Os sete círculos de Alighieri abarrotam e encer­ ram este prodigioso tonel. Olhai para dentro do monstruoso cas­ co, e aí os vereis. Em Rabelais chamam-se: Preguiça, Orgu­ lho, Inveja, Avareza, Cólera. Luxúria. Gula: e é assim que de repente vos encontrareis com o temível folgazão. E onde? Na igreja. Os sete pecados são a prédica deste cura. Rabelais é pa­ dre, e o correctivo bem ordenado começa por si próprio. É, pois, no clero que bate primeiro. O que é ser da casa! O papado morre

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RABELAJS

de indigestão, Rabelais faz-lhe uma farsa. Farsa de titã. A ale­ gria pantagruélica não é menos grandiosa que a alegria jupite­ riana. Maxila contra maxila; a maxila monárquica e sacer­ dotal come; a maxila rabelaisiana ri. Quem tiver lido Rabe­ lais terá sempre diante dos olhos esta confrontação severa: a máscara da Teocracia fixamente contemplada pela máscara da Comédia.

VICTOR HUGO

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INTRODUÇÃO

RABELAIS NO TEMPO DE GARGÂNTUA

Desde o dia de Todos-os-Santos de 1 532, Rabelais é médico­ -chefe do Hospital de Notre-Dame-de-Pitié de Pont du Rho­ qe, em Lyon : funções pouco lucrativas (40 libras por ano) mas que atestam a reputação médica de Rabelais, embora não fi­ gure no catálogo de Symphorien Champier. As suas primeiras publicações referem-se à medicina (Lettres médicales de Ma­ nardi, Aforismos de Hipócrates) ou à sátira humanista (pseudo­ testamento de Cuspidius). Mas o seu verdadeiro génio surge com Pantagruel, publicado para a primeira feira de Novembro de 1532, desopressão pelo riso ante a estupidez humana. No ras­ to de Erasmo, mas de modo men os concertado e mais jovial, Ra­ belais contribui para o enterro da tradição escolástica e a res­ tauração da idade áurea das Humanidades. Tem relações com humanistas como Hilaire Bertoul, antigo secretário de Eras­ mo. Antoine du Saix, culto prelado, Salmon Macrin , poeta neo­ latino, Clément Marot e outros. Irá ele descansar à sombra do êxito do seu romance, consagrado pela condenação da Sorbon­ ne (1533) por obscenidade? Pelo contrário, persevera e, pegando na genealogia do seu h erói de trás para a frente, conta as aven­ turas do pai deste, Gargântua, bem conhecido do público desde o aparecimento do folheto de cordel Les grandes et inestimables Cronicques de l'énorme géant Gargantua (1532).

Vida em Chion e em Roma

Nem o cargo n o Hospital nem as suas diversas publicações fazem de Rabelais um sedentário; em 1532, foi revisitar a sua terra de vacas, com a Deviniêre natal e os burgos vizinhos, Gra­ vot, Chavigny, Cinays. Escutou as lamentações do seu velho

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RIIBEL!11S

pai, Antoine Rabelais, em demanda com o vizinho e antigo amigo, Gaucher de Saint-Marthe, senh or de Lerné, médico da abadessa de Fontevrault. A chicana transformou em inferno o paraíso rústico. Antoine já não pode, como o bom Grandgou­ sier, cozer as suas castanh a s no átrio com toda a tranquilida­ de. Terá Françoise posto os seus conhecimentos jurídicos ao serviço do pai? Não se sabe, mas fará melhor, pois, no seu ro­ mance, o irascível Gaucher tornar-se-á o arrogante Picroco­ le, finalmente vencido e refugiado em Lyon, pobre j ornaleiro colérico, à espera de que as galinhas tivessem dentes. O riso consolará das maçadas do processo. · ·

Em 1534, nova viagem, realização do sonho d� todos os hu­ mani stas: Rabelais acompanh a a Roma, como médico parti­ cular, Jean du Bellay, bispo de Paris, enviado ao Papa por Fran­ cisco I, para o desligar da aliança com Carlos V. Inicia-se Ra­ belais, como o poeta Joachim du Bellay, nos jogos subtis da cor­ te romana? A sua epístola dedicatória da Topografia romana de Marliani, dirigida a Jean du Bellay (31 de Agosto de 1534), é sobretudo o reflexo do seu entusiasmo pelos vestígios da An­ tiguidade, e da sua curiosidade científica: O que mais tenho desejado desde que possuo algum sentimento do progresso das belas-artes, é percorrer a Itália e visitar Roma, cabeça do mun­ do .. . Muito antes de chegarmos a Roma, e u concebera em espí­ rito e em pensamento uma ideia das coisas cujo desejo me atraí­

ra a tal cidade. Primeiro, resolvera visitar os homens dou­ tos ... Depois (o que já pertence à minha arte), queria ver as plantas, os animais e certos medicamentos. Enfim, prometia a mim próprio descrever o aspecto da cidade socorrendo-me da pena e do lápis . .. (A. Lefranc, tradução da epístola em latim.)

Mais tarde, Rabelais voltará algumas vezes a Itália, no­ meadamente em 1535-1536, mas as preocupações do monge em rompimento com o claustro passarão à frente das alegrias do

humanista. ·

Genealogia às avessas

Se a edição colectiva de 1542 põe à cabeça o Gargântua, or­ dem lógica, uma vez que o seu herói é o pai de Pantagruel, de facto, a publicação do Pantagruel foi anterior à de Gargântua, pois a sua primeira edição é de 1532, ao passo que a primeira, datada, de Gargântua, é de 1535, precedida, é certo, por uma edi­ ção desprovida de data, e sem dúvida um ano anterior. Na

(14)

or-Gi\RGÂNTUA

dem da criação literária, o filho nasceu por conseguinte antes do pai. A. Lefranc estabeleceu esta anterioridade de maneira muito comprovativa, baseando-se nas próprias confidências de Rabelais nos dois romances: este qualifica como primeiro li­ vro o Pantagruel (cap. XXXIV) e, logo no primeiro capítulo do Gargântua, remete para o Pantagruel de modo a desculpar-se de não enumerar todos os antepassados do seu gigante: Remeto­ -vos para a grande crónica pantagruelina a fim de reconhecer­ des a genealogia e a antiguidade donde nos veio Gargântua ...

Para aliciar o leitor, o subtítulo declara que o romance está cheio de pantagruelismo, garantindo assim o parentesco espiri­ tual das duas obras. Enfim, Frei Jean, o monge frascário, de goela aberta, não aparece no Pantagruel, e figura no Terceiro e Quarto Livro, posterior ao Gargântua. A interpretação do texto confirma as indicações dadas pela cronologia das edições.

«Gargântua» e os teólogos

Se a anterioridade de Gargântua é um facto adquirido, ain� da nos perdemos em hipóteses sobre o período de composição e a data da publicação: uma e outra precedem, sem dúvida, de perto o Affaire des Placards (17-18 de Outubro de 1534). No momento da condenação do Pantagruel (1533) pela Sorbonne, o governo real é favorável aos reformadores; Francisco

I

manda riscar de uma lista de obras proibidas o Miroir de l'âme pécheresse da sua irmã Margarida de Navarra; Beda, director do colégio de Montaigu, esse colégio de piolheira, defensor da tradição e, por isso mesmo, cabeça de turco dos teólogos humanistas, é exila­ do; Gérard Roussel, convertido ao Evangelismo, prega no Lou­ vre. Mas o conflito reacende-se: um discurso imprudente do reitor da Universidade, Nicolas Cop, suscita a repressão contra os suspeitos do luteranismo: é a vez de Gérard Roussel e os leito­ res do College des Trais Langues serem encarcerados. Entre­ tanto, Francisco

I,

que negoceia com os protestantes alemães, dá-lhes ordem de soltura, e durante alguns meses o Evangelis­ mo leva a melhor.

A

afixação de panfletos contra a missa (17--18 de Outubro de 1534) inverte a situação: o rei, ultrajado na sua autoridade, trata os reformadores como súbditos sedicio­ sos, não distinguindo os evangelistas dos luteranos: sucedem­ -se as detenções, os exílios, os suplícios, até Fevereiro de 1535, data em que Francisco -I começa uma reaproximação com os Es­ tados alemães.

(15)

RABELAJS

Neste imbróglio político-teológico, que papel teria Gargân­ tua? A sátira dos beatos, hipócritas e falsos, do culto dos santos, dos «perdõeS>> é já muito viva no Pantagruel, mas não ultrapas­ sa os gracejos tradicionais e os ataques dos humanistas, par­ ticularmente de Erasmo nos seus Colóquios e no Elogio da Lou­ cura. No Gargântua, a crítica às instituições humanas alar� ga-se e aprofunda-se. Reencontram-se os gracejos sobre os nomes e a influência dos santos (caps. XVII, XXVII), sobre a água

benta (cap. Xllll), as relíquias e as peregrinações (cap. XLV),

mas mais apoiadas e mais concertadas. No capítulo VI, Garga­

melle, prestes a parir, prefere ouvir tais textos do Evangelho a

ouvir a vida de Santa Margarida ... fazendo-se assim intérpre­ te do pensamento de Rabelais. Entre as práticas ridículas ensi­ nadas pelos preceptores góticos, Mestre Tubal Holofernes e Jobe­ lin Bridé, figuram com relevo as vinte e seis ou trinta missas quotidianas, com as ladainhas de horas e orações maquinal­ mente resmoneadas (cap. XXI). Em contrapartida, sob a direc­

ção de Ponócrates, nenhuma cerimónia na missa, mas antes a leitura matinal de alguma página das Divinas Escrituras (cap. XXIII). No capítulo XLV, exorta os peregrinos a não acredi­

tarem nos falsos profetas, que imaginam os santos capazes de espalhar doenças para terem depois o prazer de curá-las. As re­ gras monásticas e a vida dos religiosos são cruelmente escar­ necidas nos capítulos XXVII, XL (Porque fugiram os frades do mundo . .. ) e Xll (Como o monge pôs Gargântua a dormir, e das suas Horas e Breviário). Mais ainda, alusões ao dogma da Gra­ ça (caps. XXIX e XL), ao bom doutor evangélico e ao bom apóstolo

São Paulo testemunham uma simpatia declarada pelo regresso à simplicidade evangélica, liberta das superstições e costumes a·cumulados ao longo dos séculos. Poder-se-á imagin,ar uma tomada de posição tão manifesta em plena repressão? E presu­ mível que a composição do romance satírico tenha ocorrido du­ rante uma acalmia, em que o rei de França e o bom gigante Gargântua podiam entender-se bem. Em 1535, Rabelais aban­ dona bruscamente as suas funções no hospital; só lhe encontra­ mos o rasto passados vários meses, no séquito de Jean du Bel­ lay, promovido a cardeal; hábil manobra: Rabelais distancia­ -se da Sorbonne, mais intolerante que Roma, e obtém a sua reintegração na ordem dos beneditinos. Foi isso uma moeda de troca? A edição de 1552 de Gargântua, sem renegar as posições fundamentais, atenua as audácias verbais: os teólogos trans­ formam-se em sofistas, o que não engana os leitores adverti­ dos, mas salva a face ante os profanos.

(16)

GARGÂNTUA

De Chinon ao reino dos Canarres

Na divertida miscelânia das paródias aos romances de ca­ valaria franceses ou italianos, temas extraídos das Grandes Crónicas, recordações dos anos de convento, dos processos fa­ miliares, dos conflitos entre Reformadores e Tradicionalis­ tas, os h eróis de Rabelais, quer sejam gigantes ou simples homens, ora vivem na província natal, à beira do Loire, ora evocam terras fabulosas, Utopia e o reino dos Canarres, para lá dos mares (caps. xrn, XXI, L). Este misto de experiências e

sonhos, de real e irreal, que por vezes surpreende o leitor dos nossos dias, não espantava os contemporâneos de Rabelais. O culto da razão não banira da imaginação popular as fadas, os magos, os gigantes e os mon stros. Quantos acreditavam, como o Sganarelle de Moliere, tão firmemente no lobisomem e no fra­ de corcunda como no diabo?

Os roman ces de cavalaria forn ecem o plano geral: o nasci­ mento do gigante, as suas «Infâncias», a sua «Instituição>>, e

enfim as suas proezas guerreiras. O s contistas italianos intro­ duzem no universo dos gigantes comparsas de dimensões humanas e nomes simbólicos, processo que foi utilizado por Ra­ belais no Pantagruel e no Gangântua: Epistémon representa a sabedoria, Eustenes a força, Ponocrátes o ardor intelectual, Pi­ crocole o bilioso arrebatado, etc. É inútil traduzir os nomes dos capitães Spadassin e Merdaille. De origem grega, italiana ou popular, esta onomástica é justificada pelo comportamento das personagens. Que haverá de espantoso no facto de Ginasta, o es­ cudeiro de Gargântua, deixar o capitão Tripet estupefacto com um deslumbrante volteio (cap. XXXV)?

As Grandes Crónicas transmitem a Rabelais a sua persona­ gem central , Gargântua, cuja estatura gigantesca, bulimia, bom humor e bonomia já eram familiares ao público. O nome, que evoca uma goela mon struosa, capaz de engolir seis peregri­ nos como caracóis numa salada (cap. XXXVIII), figura desde 14 71 num Registo de Jehan Georges, cura de Hérignat, cobra­ dor do bispo de Limoges, como alcunha de um familiar do prela­ do. Era, sem dúvida, tão antigo como o do diabrete Pantagruel, minúsculo antepassado do primeiro gigante de Rabelai s. Al­ guns dos mais desopilantes episódi os derivam igualmente do livrinho popular: o vestuário de Gargântua (cap. Vlli), a ori­ gem da planície de Beauce, que seria uma floresta abatida pelo rabo da égua de Gargântua, com maior rapidez do que se fosse

(17)

RABELAJS

um

bulldozer

(cap.

XVI),

os sinos de Notre Dame servindo de

guizos

à

dita égua (cap.

XVll).

Mas no meio desta fantasia carnavalesca, onde se confun­

dem lugares e tempos, a actualidade da crónica chinonesa dá o

seu sabor rústico.

Desde sempre os críticos notaram que a guerra picrocolina

se desenrolava nas imediações próximas da Deviniere, num

perímetro limi.tado por Lerné, Roche-Clermault, Vaugaudry,

La Vauguyon e o vau de Veede, localidades e povoados que ain­

da hoje existem; é possível seguir num mapa os movimentos

das tropas de Gargântua e do seu adversário. Mas seriam as re­

ferências

à

t

&

pografia chinonesa um artifício do contista dese­

joso de ilustrar a sua terra natal , tornando-a tão famosa como

Tróia, Roma ou Ron cesvales? Abel Lefranc e os seus discí­

pulos conseguiram estabelecer, graças a minuciosas inves­

tigações nos arquivos locais, não só que o cenário da guerra

picrocolina era real mas também que esta era a transposição

do processo que opôs Gaucher de Sainte-Marthe a Antoine Rabe­

lais e

à

confederação dos mercadores e transportadores flu­

viai s. A identificação de determinados actores parece estabele­

cida, em particular de Ulrich Gallet,. mensageiro de Grandgou­

sier junto de Picrocole (cap.

XXX)

com Jehan Gallet, advogado

do rei em Chinon, parente dos Rabelais, e defensor da confede­

ração no Paralamento de Paris. Marquet,

o grande bastonário

da confraria dos <<(ouaciers»(*)

de Lerné, que, com as suas bru­

talidades, desencadeia as hostilidades, evoca o sogro de Gau­

cher. Toda a região de Chinon devia estar em ebulição, pois o

diferendo opunha um conj unto de famílias e aldeias. A famí­

lia Sainte-Marth e reconh eceu-se em Picrocole, e o seu ódio

contra Rabelais por certo que não se aplacou com esta imortali­

zação grotesca.

O

panfleto de Gabriel de Puy-Herbault, religio­

so da abadia de Fontevrault (onde Gaucher era médico), contra

o conti sta qualificado como ateu e epicurista

(Theotim us, 1549),

não será uma remota sequela do processo e uma réplica ao

Gar­

gântua ?

Em todo o caso, Charles de Saint-Marthe, segundo fi­

lho de Gaucher, e aliás humanista e poeta, achou o panfleto mui­

to a seu gosto.

A

guerra picrocolina

aparece, pois, como o disfarce épico da

crónica chinonesa, onde a família Rabelais tivera um papel

preponderante.

(18)

GIIRGÂNTUII

Deveremos no entanto procurar fundamentos de realidade

em càda episódio, em cada personagem? Isso seria negar toda

a invenção, toda a fantasia ao génio criador do romancista. Se­

ria

o

mesmo que crer que o

Lutrin

é a história exacta do conflito

entre os cantores e as cantoras do coro da Sainte-Chapelle. Ra­

belais parte do real , mas engrandece, tran sforma e generaliza

essa verdade de facto para lhe dar um significado simbólico de

dimensões universais. Evade-se da região de Chinon para so­

nhar com as ilh as de além-mar, como o reino de Canarre

(cap.

L),

ou da Utopia, o país de parte nenhuma.

O humanista perante a pedagogia e a política

Entre mentirolas e obscenidades, a carta de Gargântua

(Pantagruel,

cap.

VIII)

surpreende pela sua gravidade : expri­

me a satisfação de Rabelais perante o progresso das luzes e a

sua confiança no futuro. Mas i s so é apenas um esboço. Em com­

pensação, o

Gargântua

desenvolve, se não um sistema, ao me­

nos uma atitude racional perante a vida.

As críticas esboçadas contra o pedantismo e a ignorância

no

Pantagruel

(cap.

VII, os belos livros da livraria de São Vítor,

e cap.

VIII,

a

Carta

de Gargântua) tomam forma em vários capí­

tulos do

Gargântua,

que acusam sem nenhuma ambiguidade

o

espírito, os programas e os métodos da escolástica (caps.

XIV,

XV, XXI).

Sujeito aos preceptores góticos, Tubal Holofernes e Jo­

belin Bridé, Gargântua, não obstante as suas felizes aptidões

naturais, não pode deixar de ficar

louco, parvo, todo sonhador e

atoleimado.

Ponócrates, pelo contrário, faz do seu aluno um poço de ciên­

cia, ao mesmo tempo que lhe cuida do corpo. Graças a um ho­

rário racional, permite-lh e abordar todos os ramos do saber,

sem nunca perder o contacto com a Natureza, que é o livro su­

premo. Exercícios físicos metódicos completam a instrução

(caps.

xxnr, XXIV).

Em vez do cavaleiro maciço e obtuso, forma

um príncipe sábio e sensato, de corpo flexível, resistente e ágil.

No primeiro romance, o rei só aparece como ch efe guerrei­

ro: Pantagruel vence e faz prisioneiro o seu adversário, o rei

Anarche; a sorte deste é decidida em poucas páginas.

O Gar­

gântua

põe em cena três tipos de soberanos, cujo carácter e

cujos actos são amplamente descritos.

O

irascível Picrocole é

o

tipo do mau rei: ambicioso, brutal , belicoso, crédulo, obedece

sem reflectir às sugestões dos maus con selheiros e já se julga

(19)

RABELAIS

senhor do mundo (cap.

XXXIII).

Arrastado pela sua falta de

comedimento, esquece todos os sentimentos humanos: a antiga

amizade com Grandgousier, o respeito devido aos embaixado­

res, a obediência aos preceitos do cristianismo.

O

seu castigo é

muito mais motivado do que o de Anarca.

Grandgousier representa um velho soberano bonacheirão,

consciencioso e pacífico. Está tão certo do seu direito que, a prin­

cípio, não quer acreditar na agressão de Picrocole; tão desejoso

da paz, que propõe o seu restabelecimento, mesmo

à

custa de con­

cessões exorbitantes (caps.

XXVIII, XXX, XXXl);

tão apegado aos

seus súbditos, que considera um dever protegê-los

à

custa do

seu repouso:

A razão assim o quer, pois o seu labor me mantém

e o seu suor me alimenta, a mim, a meus filhos e à minha famí­

lia

(cap.

XXVIII).

Vitorioso, manda Toucquedillon ao encontro

do seu rei com uma mensagem de paz. Toda a sua política se

conforma com as lições do Evangelho:

Já não estamos em tem­

po de assim conquistar os reinos com prejuízo do nosso próxi­ mo e irmão cristão. Essa imitação dos antigos Hércules, Ale­ xandres, Aníbais, Cipiões, Césares e outros tais é contrária ao preceito do Evangelho, que nos manda guardar, salvar, reger e administrar cada um dos nossos países e terras, não invadir hostilmente os outros .. .

(cap.

XLVI).

Na força da vida, Gargântua é menos meditativo

e

devoto

do que o seu bondoso pai . Quando Eudémon, espantado com a

«honestidade•• de frei Jean, pergunta por que razão fugiram o s

monges d o mundo, Gargântua lança uma violenta sátira con­

tra esses comedores de pecados, tão inúteis como os macacos:

De igual modo um monge (falo desses monges ociosos e desocu­ pados) não lavra como o camponês, não guarda o país como o ho­ mem de guerra, não cura (os enfermos) como o médico, não pre­ ga nem doutrina como o bom doutor evangélico e pedagogo

.

..

(cap.

XL).

Chocado com esta diatribe, Grandgousier intervém:

Talvez, mas. . . rezam por nós a Deus.

Gargântua varre a objec­

ção e redobra de veemência:

Nada menos. . . É verdade que mo­

lestam a vizinhança toda à força de tilintar as suas campai­ nhas .. . resmoneiam à grande lendas e salmos que não enten­ dem; recitam muitos padres-nossos entremeados de longas ave-marias sem pensar e sem entender nada dessas orações, e a isso chamo eu fazer troça de Deus, e não oração .. . (Ibid. )

Ma­

nifestamente, Rabelai s traça aqui o retrato do rei segundo os

seus votos: um soberano liberto das tradições escolásticas, ca­

paz de exterminar os sorbonagros (cap.

XX),

e de encoraj ar o

(20)

GARGÂNTUA

Este antepassado dos <<déspotas esclarecidos>> é tão hábil es­

tratego como rude combatente. As vitórias de Pantagruel são

proezas excepcionais ou enormes farsas; as de Gargântua exi­

gem força (cap.

XXXVI)

e inteligência (cap.

XLVIIT),

a tal ponto

que a sua táctica contra Picrocole fez supor que Rabelais fre­

quentara a Escola de Guerra das nossos dias!

Após a vitória, mostra-se tão generoso e prudente como

Grandgousier, perdoando aos vencidos, neutralizando os res­

ponsáveis pela guerra e preparando uma paz duradoura com

uma reconciliação geral ; a sua arenga aos vencidos é um belo

exemplo de discurso político (L). Ainda neste ponto, o

Gargân­

tua

reflecte as ideias comuns a Erasmo, Guillaume Budé e mui­

tos outros humanistas sobre os deveres e as responsabilidades

dos reis, sobre a guerra e a paz numa civilização cristã. Pode­

-se, sem cair no exagero, extrair n ão só uma pedagogia mas

uma política e uma teologia destas

alegres e novas crónicas. O

Prólogo do autor

não enganava ao garantir que

a droga dentro contida tem muito mais valor do que a caixa prometia.

A arte e a vida

Mas, em Rabelais, as doutrinas nunca murcham em con­

ceitos ; é a própria vida que impõe as suas leis e rebenta por to­

dos os lados em jactos sumarentos como a seiva da vinha n a

Primavera. Disso é testemunha

a fala dos bem bebidos

(cap.

V),

onde cada personagem actua e fala de acordo com o seu tem­

peramento, idade e condição. Di sso é testemunha frei Jean,

de

goela aberta. . . avantajado de nariz,

tão lesto no serviço do vi­

nho como no serviço divino, que, enquanto os seus confrades re­

citam litanias, extermina com o báculo da sua cruz os

13 622

inimigos que haviam invadido o recinto de Seuilly. Ignorante

sem escrúpulos, crente sem devoção, amador de histórias bre­

jeiras e de boa comida, intrépido combatente, frei Jean é um

compincha tão espantoso como Panúrgio, mas mais, dinâmico

e mais aberto. Cabe-lh e o direito de organizar a seu gosto o anti­

convento de Thelenie.

A abadia de Theleme é o fecho da abóbada de todo o roman­

ce; é o remate dos estudos renovados, a recompensa pacífica

das provações sofridas durante a guerra, o sonh o de uma exis­

tência que concilia as alegrias naturais e os requintados praze­

res da sociedade. P. Villey vê nela

o mito principal do Gargân­

(21)

RABELAJS

da Idade Média, simbolizado pelo claustro .. . o ideal novo de vi­ da livre, luxuosa e sábia.

Theleme é seguramente o inverso da

vida monástica, pois não há outra regra além do prazer, nenhu­

ma clausura, nenhuma separação dos sexos, e os thelemitas,

longe de pronunciar votos perpétuos, deixam a abadia para ca­

sarem de acordo com os seus sentimentos. Antes de Rabelais,

Erasmo, nos seus

Colóquios

e no

Elogio da Loucura,

mostrara­

-se muito mais violento contra as regras conventuais; por seu

lado, um franciscano de Avignon, François Lambert, imagi­

nara uma abadia mista, onde se aproximavam os sexos em vez

de se separarem

(Humanisme e Renaissance,

tomo

XI, 1949).

Mas a novidade é construir um convento que seja um palácio

como os de Chantilly ou de Bonnivet, é pôr esses pseudo-religio­

sos e religiosas a viver como as damas e os senhores da' corte.

A

ausência de coacção é corrigida pelo berço, as aptidões natu­

rais e a educação. Mais que. uma oposição sistemática à tradi­

ção monástica, a abadia de Theleme é

um encantador quadro

do Renascimento. . . Os luteranos e os calvinistas não teriam admitido a liberdade de Theleme

(Morçay ).

Do

Pantagruel

ao

Gargântua,

não só o pensamento de Rabe­

lais cresceu em vigor e coesão, mas também a sua arte em ma­

turidade. Acabaram-se as acumulações de obscenidades gra­

tuitas (no cap.

XV,

por exemplo), ou as invenções desmesuradas

(caps.

XI, XII, XIII),

ou as mímicas h erméticas (cap.

XIX),

ou as di­

gressões intempestivas. Sem se cingir a uma composição rígi­

da que não se adaptava nem ao seu temperamento nem às mo­

das literárias da época, Rabelais organizou os episódios do seu

romance com ordem e clareza: precedida (ou pouco menos) por

uma fantasia poética,

Les Franfeluches antidotées

(cap.

II),

e se­

guida pelo

Enigme en prophetie

(cap.

LVIII),

poema de Saint-Ge­

lais, a vida de Gargântua desenrola-se com relativa verosimi­

lhança: nascimento, educação, façanhas guerreiras, recom­

pensa dos vencedores.

O enigma

surpreende o gosto actual e dá

que pensar aos críticos, mas era um jogo de espírito muito apre­

ciado no século

XVI.

Para espicaçar a curiosidade dos leitores,

Rabelais imaginou duas soluções contraditórias: cada um que

escolh a segundo as suas preferênci as a de Gargântua ou a de

Frei Jean . Mas há muitas razões para admitir que a interpreta­

ção do monge é uma maneira de se furtar

à

condenação dos fal­

sos beatos depois de ter troçado deles uma última vez.

Neste segundo volume,

conclui Morçay,

Rabelais deu o me­ lhor de si, um riso são, mais gaulês que ateniense, um realis­ mo sólido, um espírito satírico onde há sobretudo alegria, uma

(22)

CARCÂNTUA

arte superior de contista e de retratista, uma filosofia feita de epicurismo sorridente e moderado. Não há entremezes e os ele­ mentos variados que compõem esta epopeia em prosa fundem­ -se numa unidade perfeita. O

Gargântua

é a obra-prima de Rabelais.

P. MICHEL

O presente texto

Existe na Biblioteca Nacional(*) uma edição do

Gargân­

tua,

sem data, mas provavelmente de

1534;

duas outras, publica­

das por Juste, em Lyon, sucederam-lhe em

1535

e

1537,

depois

uma quarta, em Paris, igualmente de

1537.

A quinta edição,

publicada em Lyon , por Juste, em

1542,

foi a última revista pelo

autor, pelo que, como é costume das edições críticas, nomeada­

mente de A. Lefranc na sua edição magistral, foi o texto que se­

guimos.

Uma sexta edição foi publicada em Lyon em

1 542

pelo huma­

nista Etienne Dolet, sem ter em conta as modificações introdu­

zidas pelo autor e sem o seu consentimento: daí o desagrado de

Rabelais e o seu rompimento com Dolet.

Outras edições, derivadas quer da de Rabelai s

(1542)

quer

da de Dolet, surgiram em Lyon, Val�nce e Paris.

As diferenças entre o texto de

1534-1535

e o de

1542

consis­

tem sobretudo em atenuações formais da sátira contra os teó­

logos, que se convertem em ••sofistas». São mencionadas nas

variantes. Destas, apenas mantivemos as que apresentam

uma ligeira diferença de sentido. Em compen sação, todas as

notas susceptíveis de facilitar a compreensão do texto foram

não só mantidas mas assinaladas à luz dos trabalhos recentes,

pois a erudição contribui para o prazer da leitura. E agora, se­

gundo o conselho de Mestre Alcofribas no seu

Prólogo: Diverti­

-vos, meus amores, e alegremente lede o resto, com todo o à-vontade do corpo e vantagem para os rins!

(23)

A VIDA

MUITO HORRÍFICA

DOGRANDEGARGÂNTUA

Pai de

Pantagruel

Em tempos composta por M.

Alcofribas,

Condensador de

Quinta Essência1

Livro cheio de Pantagruelisnw

AOS LEITORES

Amigos leitores que lerd

es este livro,

Despojai-vos de toda a

paixão ;

E,

ao lê-lo, não

vos escandalizeis:

Não contém nem mal n

e

m

infecção.

É verdade que aqui pouca

perfeição

Aprendereis, a não ser para

rir;

Outro assunto não

pode meu coração eleger,

Vendo o luto que

vos desgasta e consome

Melhor

é

escrever de riso

que de lágrimas,

(24)

NOTAS

I Alcofribas é o mesmo nome, anagrama abreviado de François Rabe­ lais, que figurava nas edições do Pantagruel, a partir de 1 534. -O Condensa­

dor de Quinta Essência é o Alquimista.

2 Esta célebre máxima, que se tornou o sfmbolo do humor rabelaisiano, é

extraída de Aristóteles, De partibus animalium, III, 10: «O homem é o único dos seres animados que sabe riz�·. e encontra-se igualmente nas obras do poe­ ta 9uillaume Bouchet, amigo de Rabelais.

(25)

PRÓLOGO DO AUTOR

B eberrões ilustríssimos e vós, preciosiSSimos bexigosos

- porque a vós e n ão a outros são dedicados os meus escritos -,

Alcibíades, no diálogo de Platão intitulado

O Banquete,

louvan­

do o seu preceptor Sócrates, incontestavelmente o príncipe dos

fi-1ósofos, entre outras palavras o diz semelh ante aos Silenos. O s

Silenos eram outrora umas caixinhas, tais como as vemos hoje

nas boticas, pintadas em cima com figuras alegres e frívolas,

como harpiasi , sátiras, pássaros com freio, lebres carnudas, pa­

tas albardadas, bodes voadores, veados entre varais2 e outras

que tais pinturas arremedadas para provocar o riso nas pes­

soas (tal foi Sileno, mestre do bom Baco); mas no seu interior

conservavam-se finas drogas como o bálsamo3, o âmbar cin­

zento , o amamo, o almíscar, a civeta, pedrarias e outras coisas

preciosas. Assim ele dizia ser Sócrates, porque, vendo-o por fo­

ra e apreci ando-o pela aparência exterior, ninguém daria por

ele uma casca de cebola, tão feio ele era de corpo e ridículo no

porte, com o n ariz ponti agudo, olhar de touro, o rosto.de um lou­

co, simples n o s costumes, rústicos na vestimenta, pobre de fortu­

na, infortunado com as mulheres, inepto para todos os ofícios

da república, sempre a rir, sempre a beber tan to como qualquer

outro, sempre

a

troçar, sempre a dissimular o seu divino saber;

mas, abrindo essa caixa , encontrar-se-ia dentro dela uma ce­

leste e in apreciável droga: entendimento mais que humano,

virtude maravilhosa, coragem invencível, sobreidade sem

par, contentamento certo, segurança perfeita, desprezo incrível

por tudo o que leva os humanos a velar, correr, trabalhar, n ave­

gar e batalhar4.

, A que propósito, em vossa opinião, se destina este prelúdio?

E por que, meus bons discípulos, e algun s outros ociosos, ao ler­

des os alegres títulos de algun s livros da nossa invenção, como

Gargântua, Pantagruel, Fessepinte, A Dignidade das Bragui­ lhas, Ervilhas com toucinho cum commento,

etc. , julgais

(26)

mui-RllBELAJS

to facilmente que, por dentro, são tratados de graçolas, brinca­

deiras e intrujices, visto que a insígnia exterior (é o título),

sem querer saber de mais nada, é correntemente acolhida

como motivo de riso e chacota. Mas não é com tal leviandade

que convém estimar as obras humanas. Pois vós mesmos di­

zeis que o hábito não faz o monge, e um qualquer vestido com o

habito monacal não tem por dentro nada de monge, e outro usa

capa à espanhola e a sua coragem não deve nada à Espanha5.

Por isso é preci so abrir o livro e pesar cuidadosamente o que ne­

le é deduzido. Sabereis então que a droga nele contida tem m ui­

to mais valor do que a caixa prom etia, i sto é, que as matérias

aqui tratadas não são tão galhofeiras como o título pretendia.

E, dado o acaso de encontrardes em sentido literal matérias

muito alegres e correspondentes ao nome, não deveis todavia fi­

car por aí, como

a

ouvir o canto das Sereias, mas ellYmais alto

sentido interpretar o que por acaso cuideis ser dito de coração

alegre.

Já alguma vez desrolhastes uma garrafa? Irra! Recordai a

vossa atitude. Ma� vistes alguma vez um cão ao encontrar um

osso com tutano? E, como diz Platão, liv. II da

República,

o mais

filósofo dos animai s deste mundo. Se já o vistes, pudestes notar

com que devoção ele o espreita, com que fervor o guarda, com

que prudência começa a roê-lo, com que afeição o parte, e com

que diligência o chupa. Quem o induz a fazê-lo? Qual a e spe­

rança do seu estudo? Qu_e bem pretende alcançar? Nada mais

que um pouco de tutano. E verdade que esse pouco é mais delicio­

so do que o muito de todas as outras coi sas, porque o tutano é um

alimento elaborado com perfeição da natureza, como diz Gale­

no, in

Fac. Natur., III,

e

De usu parti, XI.

Segundo este exemplo, convém-vos ser sábios, para fare­

jar, cheirar e apreciar estes belos livros saborosos, procurá-los

com ligeireza e encontrá-los com ousadia; depoi s, na leitura

curiosa e na meditação frequente, deveis abrir o osso e chupar o

substancioso tutano - ou seja, o mesmo que eu quero significar

com estes símbolos pitagóricos6 - com a esperança certa de vos

tomardes avisados e valorosos com a dita leitura, pois nesta

encontrareis m elhor gosto e doutrina mais abscôndita, a qual

vos revelará altíssimos sacramentos e horríficos mistérios,

tanto n o que respeita à nossa religião como ao estado político e à

vida económi ca.

Acreditais que jamais Homero, ao escrever a

Ilíada

e a

Odisseia,

pensou nas alegori as com que as rechearam Plutar­

co7, Heráclides Pônticos, Eustácio9, Fomuto, e que Poligiano

(27)

G;\RGÂNTUA

lhes roubou? Se acreditais, não vos aproximais nem com os pés

nem com as mãos da minha opi nião, que decreta que Homero

as imaginou

tão pouco como Ovídio,

nas suas

Metamorfoses,

aos sacramen

tos do Evangelhoio, como

tal Frei Lubinll, verda­

deiro parasita,

se esforçou por

d

e

m

o

ns

tr

ar, se acaso encontra­

va pessoas

tão tolas como ele,

e

(como

diz o provérbio), tampa

digna de tal panela.

S e não ac

re

di

ta

is

, porque n ão fareis o mesmo com

estas ale­

gres e novas

crónicas, embora ao

ditá-las eu não pensasse

mais nelas do q

ue vós, que

bebeis talvez tanto como eu? Pois, na

composição deste

livro

senhori al, não perdi nem empreguei

mais nem

outro tempo do

que

o estabelecido

para tomar a mi­

nh a re

f

e

i

çã

o corporal, ou seja, bebendo

e comendo. Chegou as­

sim a hora devida de

escrever

estas altas matérias e ciências

profundas,

como

tã�

bem sabiam

fazer Homero, paradigma de

todos os

filólogos,

e

E

ni

oi :l, pai dos

poetas latinos, conforme o tes­

temunha

Horácio, embora um

malcriado tenha dito que os seus

poemas cheiram

mais

a vinho que a óleo.

O mesmo disse um velhaco dos meus livros; mas merda

para ele! Como é mais apetitoso, risonh o, atraente, mais celeste

e delicioso o odor do

vinho

do que do óleo! E acharei tão glorioso

que digam de mim que gastei mais em vinho do que em óleo,

como Demósten es,

quando

lhe diziam que gastava m ais em

óleo do que em

vinho. Para

mim só é honra e glória ser dito e re­

putado bom

compi n cha

e

bom

companheiro, e com esse nome

sou bem-vindo

entre todas as boas

companhias de pantagrue­

listas. A

Demóstenes foi ce

n

sur

ado por um espírito azedo que

as suas

Oraçôes c

h

e

ira

v

a

m à se

r

ap

i

l

he

i

ra de um imundo

e

su­

jo azeiteiro.

Interpretai, pois,

todos os meus factos e ditos no que

têm

de perfeição; reverenciai

o cérebro caseíforme que vos dis­

trai com

estes belos

di

spar

a

t

es e, se puderdes, considerai-me

sempre um

ho

m

em alegre.

Pois di

vert

i-

vo

s

, meus amores,

e

alegremente

lede o resto,

com todo o

à-vontade do corpo e com v

an

ta

ge

m

para os rins !

Mas escutai ,

ó estúpidos - que uma

úlcera nas pernas vos dei­

xe coxos!

- não vos es

q

ueç

a

i

s de beber

à

minha saúde, e logo

vos darei razão.

NOTAS

1 Monstms alados mm rosto de mu lhcr c corpo de abutre.

2 Rabclais completa os monstn)s da mitologia com animais fantásticos, acumulando caracterizações jocosas-: pá.�8arcm com freio como os cavalos,

(28)

le-RJ\BELAIS

bres carnudas como as vacas, patas albardada.• como os burros, bodes voadores e veados entre varais atrelados como cavalos. Platão, no Banquete (21 5 A), ape: nas escreveu: «Digo que ele (Sócrates) é muito semelhante a esses Silcnos ex­ postos nas lojas dos cstatuií1'ios c que os artistas representaram ostentan do gai­ tas campestres c flautas. Quando se separam as duns peças qu e formam essas estatuetas, descobre-se no interior a imagem de um deus.» Silcno, pai nu­ triente de Baco, era n�prcscRtado como um bob� hilariante e grotesco.

3 Bálsamo de Meca, suco resinoso. - Ambar cinzento, sccr<.>ção do cacha­ lote, a que Rabclais chama «esperma de baleia» no Pantagruel (cap. XXN, p.

321 ). - Amomo, planta odorífera dn Ásia. - Alm{scar, produto odmífcro ex­ traído do gato-almiscareim. - Civeta, pequeno cnrnívoro de que se extraía

um perfume. - Pedrarias, os boticários mi stu ravam pedras preciosas com ex­ cipicntes, como remédios «parn reparar os espíritos vitais .. . por causn da sua luz que simbolizn os espíritos» (Guillau me Bouchet). Estas drogns faziam

realmente pm"ic da fnrmacopeia da época, bem como os remédios bizarros cita­ dos por Mo ntaigne (Enwicm Ir, :{7).

4 Este elogio de Sócrates, ele acordo com os retratos dcixndos por Platão (cf. O Banquete) c Xcnof(mtc, é inspirado (c por vezes trnduzido) cm Erasmo, Adágios, Silenni Alcibiadi.� (Ir r, 2, 1 ), que tamMm eleve ler sido a fonte de Mon­

taignc. A comparaçüo entre Sócrates c Sileno era muito popular nos hu ma­ nistas.

6 Os espanhóis eram célebres peln sun valentia c a sua basófia (cf. a figu­ ra elo Matnmouros cm L'Illusion Comique de Corncille).

7 Os humanistns consideravam a Iilosofia ele Pitágoras como cheia de símbolos, como também os mistél-ios de Orfeu.

B Atribuía-se a Plutarco um tratado sobre a vida e a poesia de Homero.

9 Alusão ao tratado De Alegoriis apud Homerum (Alegoria.� homéricas) de um gramático latino, Herô.clides do Ponto.

!O Eustácio, arcebispo de Tcssalónica (séc'Ulo Xll), escrevera um comentá­ rio sobre Homem. Também Cornutos (Phornute), filósofo estóico do século 1 da era cristã. Poliziarlü, humanista do século xv, editado cm Lyon cm 1 533 por

Gryphc. Poliziano plagiara copiosamente os seus antecessores.

'-11 A ironia de Rabelais relativa nos amadores de símbolos é aqui confir­ mada. As Meta.m.(}lj(>se.� haviam sido consideradas como uma antecipação alegórica do Evangelho pelo dominicano Walluys (século XIV).

12 Frei Lubin, sinónimo ele monge ignorante e estúpido (cf. Marot, Baila­ de de frere Lubin.), que fi!,'l.lra no Catálogo ela livraria de Séú> Vüor (p. 1 1 5) no Pantagruel: «Três livms do Reverendo Padre Frei Lubin, padre provincial de Bavardclie, sobre tiras ele toucinho para tlincar ...

13 Énio (239-1G9 a. C.), inlmdutor do helenismo cm Roma c autor de u m

poema épicos, os Anai.�. Sc!,'l.lndo Horácio (Epf.�tulas r, XIX), só compunha depois de beber.

(29)

CAPÍTULO I

DA GENEALOGIA E ANTIGUIDADE DE GARGÂNTUA

Remeto-vos para a gTande cromca Pantagruelinal a fim de reconhecerdes a genealogia e a antiguidade de que nos veio Gargântua. Nela sabereis mais detidamente como nasceram os gigantes neste mundo e como destes, por linha directa, pro­ veio Gargântua, pai de PantagTuel, e não levareis a mal se por agora me abstenho de repeti-lo, embora o caso seja de tal natu­ reza que, quanto mais for relembrado, mais agradará a Vos­ sas Senhorias. Para isso tendes a autoridade de Platão, in File­ bo e Górgias, e de Flaco, que dizem de algumas matérias, como aquela de que vos falo, que são mais deleitáveis, quanto mais vezes forem repetidas.

Prouvera a Deus que cada qual soubesse tão seguramente a sua genealogia, desde a Arca de Noé até aos nossos dias! Penso que muitos são hoje imperadores, reis, duques, príncipes e pa­ pas na terra e que descendem de portadores de relíquias e frio­ leiras, como outros, pelo contrário, são mendigos de hospício, indigentes e miseráveis, e que descendem pelo sangue e pela li­ nhagem de grandes reis e imperadores, devido

à

admirável trajectória dos reinos e impérios:

dos assírios aos medos, dos medos aos persas, dos persas aos macedónios, dos macedónios aos romanos, dos romanos aos gregos, dos gregos aos franceses2.

E, para vos falar de mim próprio, creio ser descendente de algum rei muito rico ou príncipe dos tempos idos, porque ja­ mais tereis visto homem que mais desejasse ser rei e rico do que eu, a fim de comer bem, não trabalhar, não ter cuidados, e

(30)

RABELAJS

enriquecer os meus amigos e todas as pessoas de bem e de sa­ ber. Mas o que me reconforta é que, no outro mundo, sê-lo-ei, e até maior do que no presente ousaria desejar. Reconfortai tam­ bém a vossa infelicidade com este ou ain da melhor pensamen­

to,

e bebei-lhe bem, se puderdes.

Voltando à vaca fria, digo-vos que por graça soberana dos céus nos foram con servadas a antiguidade e a gen ealogia de Gargântua, mais completa s que quaisquer outras, excepto a do Messias, de quem não fal o porque n ão me compete e porque os diabos3 (que são o s caluniadores e o s falsos beatos) a isso se

opõem. E

foi encontrada por Jean Audeau num prado que ele ti­

nha perto de Arceau Gualeau, abaixo da Olive, para os lados de Narsay, no qual prado, ao desen tupirem os fossos, tocaram os cavadores com as suas enxadas num gran de túmulo de bronze, desmesuradamente comprido, pois jamais lh e encontraram a extremidade porque se al on gava muito para diante nas repre­ sas de Vienne. Ao abri-lo em certo ponto, marcado com o de­ senh o de um copo em volta do qual estava escrito em letras etruscas4: HIC BIBITUR , encontraram nove frascos disposto s na

mesma ordem como se espetam os paus para os jogo da bola na Gasconh a, entre os quais o que estava no meio cobria um gran­

de, gordo e cin zento, bonito, pequeno e bolorento livrinho, chei­ rando mais mas não melhor do que rosas.

Neste se ach ou a dita genealogia, escri ta em l etras de chan­ celaria5, não em papel, não em pergaminho, não em cera, mas em casca de olmo, e tão gastas pela vetustez que ma

se podiam decifrar três seguidas.

Embora in digno de tal tarefa, fui chamado a decifrar o tex­ to e, com gran de reforço de óculos, praticando a arte de ler letras não aparentes, como ensina Aristóteles6, traduzi, como podereis ver pantagruelizan do, isto é, bebendo à tripa forra e lendo as gestas h orríficas de Pantagruel . ·

No fim do livro havia um pequeno tratado intitulado : Les Franfeluches antidotées1. Os ratos e as baratas, ou (para que não minta) outros bichos malignos, tinham roído o começo; o

resto acrescen tei-o eu adiante, por reverência às coisas an­

tigas.

NOTAS

I O ca pítu l o I do Pantagruel (1 5a2), i ntitu lado «Dn origem c anliguidadc do !,'!'ande PantagJucl .. , compreen de u ma longa genealogia cm que se mistu­ ram os gigantes b1blicos, os gigantes a n tigos c os person agens de romance.

(31)

Gi\RGÂNJVA

2 Esta transferência do i m pério dos assírios para os li·anccscs não pare­

cia fantasista nos contem porâ neos de Rabelni s; não só os escritores (Jean Bou­ chct, Margarida de Navarra) co mo também os judstas a i nvocavam para fu n­ damentar as pretensões de Fra ncisco I ao i m péJio - por gregos deve entender­ -se o império bizantino, destru ído pelos turcos cm 1 45a.

3 Duplo sentido: diabos c calu niadores (da cti molo!,ria grega, õwj3<iÂ.Â.ro:

caluniar). ·

4 Erudição fantasista: ai nda hoje o al fabeto etrusco não está decifrado com segurança , c não tem nada de comu m com o lati m: Hic bibitur (Aqui bebe­ -se). Mas será o grande tllmulo ele bronze puramente i mn!,ri mirio ou trntnr-se--á de um tú mul o real amp l iado peia i magin ação do romanci sta, como o

sepul-cro de Geojfroy dente-gra.nde ou o dól men de Ú!. Pierre Leuée? (cf. Panta­

gruel, cap. V, p. 87).

5 Letras usadas n a chancclnrin papal, cu rsivo mu itas vezes ilcgfvcl.

6 Referência fantasista a Ar; stótelcs: os pedantes rcfer;am-sc cm tudo

às su ns obras.

(32)

CAPÍTULO

II

AS BAGATELAS COM ANTÍDOTO,

ENCONTRADAS NUM MONUMENTO ANTIG01

Eis chegado o grande vencedor dos Cimbros2, Passando pelo ar, por temor do orvalho. À sua chegada encheram-se os bebedouros De manteiga fresca, caindo em catadupa Da qual quando foi regado o grande mar Gritou bem alto: <<Senhores, por favor, pescai-o, Pois a sua barba está quase toda lambuzada Ou pelo menos estendei-lhe uma escada.» Alguns diziam que lamber-lhe a pantufa3 Era melhor do que obter as indulgências4; Mas apareceu um afectado biltre,

Saído do buraco onde se pescam os mujos, Que disse: <<Senhores, por Deus não o façamos; A enguia está lá e nesse antro se esconde; Lá encontrareis (se olharmos de perto) Uma grande tiara no fundo da sua murças.,, Quando estava prestes a ler o capítulo, Só se encontraram os cornos de um bezerro. <<Eu (dizia ele) sinto o fundo da minha mitra Tão frio que à volta me enregela o cérebro.>> Aqueceram-no com perfume de nabo, E ficou contente por se sentar à lareira6, Contanto que dêem um novo cavalo de tiro A tantos que têm mau génio7.

E falaram da cova de São Patrícios, De Gibraltar9 e de mil outras covas:

(33)

GARGÂNIUA Se as pudessem reduzir a uma cicatriz

De tal maneira que nunca mais tivessem tosse, Visto que a todos parecia impertinente

Vê-las abrirem-se assim a cada aragem; Se acaso estivessem fechadas,

Poderiam amarrá-las como reféns. Nesse passo foi o corvo depenado Por Hércules, que vinha da Líbia.

<�O quê! disse Minos'o, então não sou chamado a isso? A parte eu, todos são convidados,

E depois querem que me passe vontade De fornecer-lhes ostras e rãs;

O diabo me carregue se me interessa Ir à sua venda de andrajos.»

Para o liquidar veio Q.

B.

que coxeia, Ao salvo-conduto dos mimosos estorninhos, O peneireiro, primo do grande Ciclope, Massacrou-os. Cada qual assoa o nariz; Nesta seara poucos maricas nasceram Que não tenham sido peneirados. Correi todos e chamai às armas: E tereis mais do que tivestes antanho. Pouco depois a ave de Júpiterl l Decidiu apostar no pior,

Mas vendo-os agastarem-se tanto, Receou que pusessem de rastos o império, E preferiu roubar o fogo do império celeste, Ao tronco onde se vendem arenques fumados A sujeitar aos ditos dos massoretasl2

O ar sereno, contra o qual se conspira. Tudo concluído, foi,

Apesar de Atéi3, afiada a coxa de garçal4, Que ali se sentou, vendo Pentasileia1 5 Que em velha vendia agriões.

Todos gritavam : «Vil carvoeira

Acaso te compete encontrar pelo caminho? Tu a roubaste, a romana bandeira

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RABELAIS

Se não fosse Juno que sob o arco celestel6 Com o seu bufol

7

caçava pássaros,

Tinham-lhe pregado uma partida tão grande Que ficaria toda amachucada.

Tal foi o acordo que deste bom bocado Havia de ter dois ovos de ProserpinalB E, se jamais se irritasse,

A amarrariam ao monte do espinheiro. Sete meses depois - tirem-lhe vinte e dois ­ Aquele que outrora aniquilou Cartago Cortesmente se pôs no meio deles, Pedindo-lhes a sua herança, Ou que fizessem ajusta partilha Segundo a lei de atirar o prego ao ar Distribuindo uma concha de sopa

Aos seus carregadores que fizeram o contrato. Mas o ano virá, assinalado por um arco turquês, De cinco fusos e três fundos de de panela, Em que, de costas, um rei muito cortês � bexigoso, estará vestido de arminho. O, piedade! Por causa de um hipócrita Deixareis afundarem-se tantas terras? Cessai, cessai ; ninguém imita essa máscara; Retirai-vos para o irmão das serpentesl9. Passado um ano, aquele que é20 reinará Pacificamente com seus bons amigos. Nem grosseria nem ultraje então reinarão; Toda a boa-vontade terá o seu compromisso, E o prazer que então foi prometido

Às gentes do céu, virá no seu campanário; Então as coudelarias que estavam espantadas Triunfarão em reais palafréns.

E durará esse tempo de passe-passe Até que Março seja acorrentado.

Depois virá outro que a todos ultrapassa, Delicioso, ameno, belo sem par.

Erguei os vossos corações, vinde a esse repasto, Meus vassalos, pois morreu

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GARGÂNIUA Quem para grande bem não voltará Tão calmo está o tempo passado. Finalmente, o que foi de cera

Estará alojado nos gonzos de Jacquemart21 E não mais será chamado: «Sire, siref» O que toca o sino e tem a chaleira, Ele, que poderia agarrar na sua espada, Em breve não haveria mais cuidados, E, com cordel, poder-se-ia

Atar toda a loja dos abusos22(*). NOTAS

1 As Bagatelas são um <<enigma», género literário que estava cm moda no século XVI. Thomas Scbillet, na sua Arte Poética, define o enigma como uma <<alegoria obscura». O jogo consiste em descrever um tema banal com grande profusão de imagens incoerentes . O poeta da corte Mellin de Saint-Ge­ lais foi especialista nesse género. O capítulo LVIII do Gargântua, <<Enigma em profecia», reproduz um poema de Saint-Gelais, que Gargântua interpreta como <<O decurso e a manutenção da verdade divina», ao passo que frei Jean só vê nele uma <<descrição do jogo da péla sob palavras obscuras». O enigma pres­ ta-se à introdução de incongruências entremeadas de alusões satíricas. Será ainda o jogo favorito dos salões preciosos do século (cf. Précieuses ridicules).

2 Mário (1 56-86 a. C.) venceu os Teutões em Aix-en-Provence (102 a. C.). O enigma começa com uma paródia de tom épico para melhor masca­ rar a futilidade do tema. Rabelais reforça o jogo supondo que o começo dos pri­ meiros versos foi comido pelas baratas, degradação que atesta a antigui dade do manuscrito.

3 Alusão possível à pantufa do papa, que é da tradição ser beijada nas au­ diências.

4 Alusão à concessão de indulgências ou perdões, em troca de dinheiro. Rabelais criticou este abuso no Pantagruel (cap. XVII, p. 243 599). Como Panúr­ gio ganhava os perdões .. .

5 Chapéu forrado usado pelos papas e pelos cónegos na Idade Média.

6 Esta caricatura do papa aquecendo-se à lareira e perfumado com essên­ cia de nabo (em vez de incenso) é muito mais irreverente do que a de Júlio II

no Pantagruel (cap. XXX, p. 397).

7 Estas pessoas de mau génio são possivelmente os ,,falsos beatos» que atacavam os humanistas e os evangelistas. O cavalo de tiro que deseja o papa retirado ao canto da lareira representa talvez o seu sucessor eventu al, a puxar

a carroça da Igrej a.

1 É possível que não seja este o sentido de mui tos dos versos do enigma, que já mesmo em francês parece às vezes absurdo e difícil de interpretar, sobretudo pelo carácter elíptico que apresenta. (N. da T.)

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RABEIA.JS

8 A cova de São Patrlcio situa-se numa ilha do lago Derg, no condado de Donegal, na Irlanda. Passava por ser uma das entradas do Purgatório e tor­ nou-se um local de peregrinações.

9 Gibraltar, também chamado «cova da Sibila .. , por confusão entre Sevi­ lha e Sibila.

10 Minos, juiz nos Infernos. Esta mitologia fantasiosa foi sem dúvida mo-tivada pela ideia do Purgatório evocada pela «cova de São Patrício ...

1 1 A águia.

12 Comentadores hebreus da Bíblia.

1 3 Na mitologia grega,.esta deusa provocava as querelas.

14 Provável reminiscência de Marot, EpUre au Roi... (Adolescence Clé­ mentine, l 5 32):

Et si m'a fait la cuisse hérortniere, L'estomac sec, le ventre plat e vague.

1 5 Pentesüeia, rainha das amazonas, foi morta por Aquiles no cerco de Tróia. Simboliza a coragem. Cf. Pantagruel, cap. XXX, p. 399: ,J>entesileia era vendedora de agriões... A degradação burlesca das personagens mitológi­ cas é idêntica: Pentesileia, jovem heroína caída em combate, só pode ser ven­ dedora de agriões na velhice.

1 6 Arco--íris.

1 7 Grand duc, utilizado na caça como ave de altanaria. 1 8 Deusa dos Infernos.

1 9 O diabo (a serpente do paraíso terrestre). 20 Deus.

21 Personagem de ferro que dá as horas nos relógios dos campanários.

22 Esta loja de abusos designará a Igreja? Rabelais não revelou o sentido do seu enigma. Pode pensar-se que às alusões satíricas se juntam fantasias alegres destinadas a dar que fazer aos futuros glosadores. Estas fatrasies eram muito apreciadas no século XVI.

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CAPÍTULO III

COMO GARGÂNTUA ESTEVE ONZE MESES NO VENTRE DA MÃE

Grandgousier era bom companheiro no seu tempo, gostando de emborcar o seu copo até ao fundo, como tantos homens que en­ tão havia na terra, e gostava de comer coisas salgadas. Para tal, tinha geralmente uma munição de presuntos de Mayence e de Baionne, muitas línguas de vaca fumadas, grande abun­ dância de chouriços na estação própria, e carne de vaca salga­ da com mostarda, grande doses de butargosl , uma provisão de sal sichas, não de Bolonha (pois tinha medo dos alimentos lom­ bardos2), mas de Bigorre, de Lonquaulnay, de Brene e de Rouar­ gue.

Ao chegar à idade viril, desposou Gargamelle3, filha do rei dos Parpaillos4, rapariga bonita e de boa cara, e os dois brinca­ vam muitas vezes ao animal de duas costas(*), esfregando ale­ gremente as banhas, até que ela ficou prenha de um belo filho e o carregou até aos onze meses5.

Pois tanto tempo, ou mesmo mais, podem as mulheres an­ dar de barriga, sobretudo quando se trata de alguma obra-pri­ ma e personagem que haja de fazer grandes proezas no seu tem­ po, como diz Homero que o filho com que Neptuno emprenhou a ninfa6 nasceu ao fim de um ano: foi no décimo segundo mês. Pois (como diz A. Gélio7, liv. iij), esse longo tempo convinha à dignidade de Neptuno, de modo que a criança se formasse com perfeição. Pela mesma razão, Júpiter fez durar xlviij horas a noite em que dormiu com Alcmenas, pois em menos tempo não poderia forjar Hércules, que limpou o mundo de monstro� e ti­ ranos.

Referências

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