Obras publicadas nesta colecção:
I -Fábulas, La Fontaine
2 -A Canção de Rolando
RABELAIS
GARGÂNTUA
Título original: Gargantua
Tradução de Maria Gabriela de Bragança Capa: estúdios P. E. A.
Direitos reservados por Publicações Europa-América
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Editor: Francisco Lyon de Castro
PUBLICAÇÕES EUROPA-AMÉRICA, LDA. Apartado 8
2726 MEM MARTINS CODEX PORTUGAL
Edição n.� 15/003/4444 Execução técnica: Gráfica Europam, Lda., Mira-Sintra- Mem Martins
ÍNDICE
Pág
Prefácio de Victor Hugo . . .. . .. . .. . .. . .. . .. ... . .. . .. . .. . .. . .. . .. 9 Introdução . . . 13 A vida muito horrífica do grande Gargântua . . . 25
PREFÁCIO
Rabelais é a Gália; e quem diz a Gália diz também a Gré cia, pois o sal ático e a graça gaulesa têm no fundo o mesmo sa bor, e se alguma coisa, à parte os edifícios, se assemelhava ao Pireu, é La Rapée. Aristófanes encontra alguém maior do que ele; Aristófanes é mau, Rabelais é bom. Rabelais defenderia Sócrates. Na ordem dos grandes génios, Rabelais segue crono logicamente Dante; depois da fisionomia severa, a face trocis ta. Rabelais é a máscara formidável da comédia antiga separa da do proscénio grego, de bronze feito carne, doravante um ros to humano e vivo, continuando enorme e vindo rir de nós entre nós e connosco. Dante e Rabelais vêm da escola dos frades franciscanos, como mais tarde Voltaire dos jesuítas; Dante é o luto, Rabelais a paródia, Voltaire a ironia; tudo isso sai da igre ja contra a igreja. Todo. o génio tem a sua invenção ou a sua descoberta; Rabelais teve este achado: o ventre. A serpente está no homem, é o intestino. Ela tenta, trai e castiga. O homem, uno como espírito e complexo como homem, tem para a sua mis são terrestre três centros: o cérebro, o coração e o ventre; cada um desses três centros é angusto por uma grande função que lhe é própria; o cérebro tem o pensamento, o coração tem o amor, o ventre tem a paternidade e a maternidade. O ventre po de ser trágico. Feri ve1ttrem, diz Agripina. Catarina Sforza, ameaçada com a morte dos seus filhos feitos reféns, desnudou -se até ao umbigo nas ameias da cidadela de Rimini, e disse ao inimigo: Aqui tenho com que fazer outros. Numa das con vulsões épicas de Paris, uma mulher do povo, de pé sobre uma barricada, levantou as saias, mostrou ao exército o ventre nu e gritou: Matai as vossas mães. Os soldados crivaram de balas este ventre. O ventre tem o seu heroísmo, e todavia é dele que de correm, na vida a corrupção, e na arte a comédia. '0 peito, onde
R,1BELAIS
se situa o coração, tem como extremidade a cabeça; o ventre tem o falo. Sendo o centro da matéria, o ventre é a nossa satisfa ção e o nosso perigo ; contém o apetite, a saciedade e a podridão. As dedicações e as ternuras que através dele se apossam de nós estão sujeitas a morrer; substitui-as o egoísmo. Facilmente as entranhas se convertem em tripas. É triste que o hino possa avi nhar-se e que a estrofe se deforme em cantoria. Isso resulta do animal que há no homem. O ventre é essencialmente esse ani mal. A degradação parece ser a sua lei. A escala da poesia sen sual tem, ao nível mais alto, o Cântico dos Cânticos e, ao nível mais baixo, a graçola. O ventre-deus é Sileno; o ventre-impe rador é Vitélio ; o ventre-animal é o porco. Um dos horríveis Ptolomeus chamava-se o Ventre, Physcon. O ventre é para a humanidade um peso temível ; rompe a cada instante o equilí brio entre a alma e o corpo. Ench e a história. É respon sável por quase todos os crimes. É o odre dos vícios. É ele que pela volúp tia faz o sultão, e pela embriaguez faz o czar. É ele que mostra a Tarquínio o leito de Lucrécia; é ele que acaba por fazer delibe rar sobre o molho de um rodovalho o senado que esperou Breno e deslumbrou Jugurta. É ele que acon selh a ao libertino arrui nado que era César a passagem do Rubicão. Passar o Rubicão, como isso permite pagar as dívidas, ter belas mulheres, comer bons jantares! E os soldados romanos entram em Roma com e s te brado : Urbani, claudite uxores; moechum calvum adduci mus. O apetite deprava a inteligência. A volúpia substitui a vontade. No princípio, como sempre, há pouca nobreza. É a or gia. Há uma diferença entre ficar toldado e bêbado. Depois a or gia degenera em comezaina. Onde estava Salomão surge Ram ponneau. O homem é uma barrica. Um dilúvio interior de ideias tenebrosas submerge o pensamento ; a con sciência afoga da já não con segue fazer sinal à alma embriagada. E stá con su mado o embrutecimento. Já n em é cínico, é vazio e estúpido. Diógenes desaparece; só fica o tonel. Começa-se com Alcibía des e acaba-se com Trimalcião. O quadro está completo. Não há mais nada, n em dignidade, nem pudor, nem h onra, nem virtude, n em espírito; o gozo animal nu e cru, a impureza nua e crua. O pensamento dissolve-se na saciedade; o con sumo car nal absorve tudo ; nada subsiste da grande criatura soberana habituada pela alma; seja-nos permitida a expressão: o ventre come o homem. Estado final de todas as sociedades onde o ideal se eclipsa. E isso passa por prosperidade e ch ama-se
en-GARGÍINTUA
grandecer. Às vezes até os filósofos concorrem estouvadamen te para esse abaixamento, pondo nas doutrinas o materialismo que está nas consciências. Esta redução do homem ao animal é uma grande miséria. O seu primeiro fruto é a torpeza que se tor na visível por todos os lados e até nos cumes da sociedade: no juiz venal) no padre simoníaco, no soldado condottiere. Leis, costumes e crenças são estrumeira. Totus homo fit excremen tum. No século XVI, todas as instituições do passado estão redu
zidas a isso; Rabelais toma conta dessa situação, constata-a e levanta o auto desse ventre que é o mundo. A civilização não é mais que uma massa, a ciência é matéria, a religião engor dou, a feudalidade digere, a realeza está obesa. Quem é Henri que VIII? Uma pança. Roma é uma velha gorda e farta. É isso saúde? É isso doença? É talvez gordura, é talvez hidropisia. Questão a esclarecer. Rabelais, médico e cura, toma o pulso ao papado. Abana a cabeça e desata a rir. Foi porque encontrou a vida? Não, porque sentiu a morte. Com efeito, o papado expira. Enquanto Lutero reforma, Rabelais faz chacota. Qual vai mais direito ao fim? Rabelais troça do monge, do bispo, do papa; riso feito de estertor. Este guizo toca a finados. Então? Julguei que era uma patuscada e é uma agonia; uma pessoa pode enganar -se quanto ao soluço. Riamos porém. A morte está à mesa. A úl tima gota brinda com o último suspiro. Uma agonia no meio da paródia, esplêndida coisa. O cólon intestinal é rei. Todo este velho mundo festeja e rebenta. E Rabelais entroniza uma di nastia de ventres: Grandgousier, Pantagruel e Gargântua. Ra belais. é o Ésquilo da comezaina, 6 que é grande, se nos lembrar mos que comer é devorar. Há um abismo no comilão. Comei, pois, senhores, e bebei, e acabai. Viver é uma canção cujo re frão é morrer. Há quem escave sob o género humano deprava do temíveis calabouços; em matéria de subterrâneos, o grande Rabelais contenta-se com a cave. O universo que Dante punha no inferno, Rabelais mete-<> dentro dum casco. O seu livro não é outra coisa. Os sete círculos de Alighieri abarrotam e encer ram este prodigioso tonel. Olhai para dentro do monstruoso cas co, e aí os vereis. Em Rabelais chamam-se: Preguiça, Orgu lho, Inveja, Avareza, Cólera. Luxúria. Gula: e é assim que de repente vos encontrareis com o temível folgazão. E onde? Na igreja. Os sete pecados são a prédica deste cura. Rabelais é pa dre, e o correctivo bem ordenado começa por si próprio. É, pois, no clero que bate primeiro. O que é ser da casa! O papado morre
RABELAJS
de indigestão, Rabelais faz-lhe uma farsa. Farsa de titã. A ale gria pantagruélica não é menos grandiosa que a alegria jupite riana. Maxila contra maxila; a maxila monárquica e sacer dotal come; a maxila rabelaisiana ri. Quem tiver lido Rabe lais terá sempre diante dos olhos esta confrontação severa: a máscara da Teocracia fixamente contemplada pela máscara da Comédia.
VICTOR HUGO
INTRODUÇÃO
RABELAIS NO TEMPO DE GARGÂNTUA
Desde o dia de Todos-os-Santos de 1 532, Rabelais é médico -chefe do Hospital de Notre-Dame-de-Pitié de Pont du Rho qe, em Lyon : funções pouco lucrativas (40 libras por ano) mas que atestam a reputação médica de Rabelais, embora não fi gure no catálogo de Symphorien Champier. As suas primeiras publicações referem-se à medicina (Lettres médicales de Ma nardi, Aforismos de Hipócrates) ou à sátira humanista (pseudo testamento de Cuspidius). Mas o seu verdadeiro génio surge com Pantagruel, publicado para a primeira feira de Novembro de 1532, desopressão pelo riso ante a estupidez humana. No ras to de Erasmo, mas de modo men os concertado e mais jovial, Ra belais contribui para o enterro da tradição escolástica e a res tauração da idade áurea das Humanidades. Tem relações com humanistas como Hilaire Bertoul, antigo secretário de Eras mo. Antoine du Saix, culto prelado, Salmon Macrin , poeta neo latino, Clément Marot e outros. Irá ele descansar à sombra do êxito do seu romance, consagrado pela condenação da Sorbon ne (1533) por obscenidade? Pelo contrário, persevera e, pegando na genealogia do seu h erói de trás para a frente, conta as aven turas do pai deste, Gargântua, bem conhecido do público desde o aparecimento do folheto de cordel Les grandes et inestimables Cronicques de l'énorme géant Gargantua (1532).
Vida em Chion e em Roma
Nem o cargo n o Hospital nem as suas diversas publicações fazem de Rabelais um sedentário; em 1532, foi revisitar a sua terra de vacas, com a Deviniêre natal e os burgos vizinhos, Gra vot, Chavigny, Cinays. Escutou as lamentações do seu velho
RIIBEL!11S
pai, Antoine Rabelais, em demanda com o vizinho e antigo amigo, Gaucher de Saint-Marthe, senh or de Lerné, médico da abadessa de Fontevrault. A chicana transformou em inferno o paraíso rústico. Antoine já não pode, como o bom Grandgou sier, cozer as suas castanh a s no átrio com toda a tranquilida de. Terá Françoise posto os seus conhecimentos jurídicos ao serviço do pai? Não se sabe, mas fará melhor, pois, no seu ro mance, o irascível Gaucher tornar-se-á o arrogante Picroco le, finalmente vencido e refugiado em Lyon, pobre j ornaleiro colérico, à espera de que as galinhas tivessem dentes. O riso consolará das maçadas do processo. · ·
Em 1534, nova viagem, realização do sonho d� todos os hu mani stas: Rabelais acompanh a a Roma, como médico parti cular, Jean du Bellay, bispo de Paris, enviado ao Papa por Fran cisco I, para o desligar da aliança com Carlos V. Inicia-se Ra belais, como o poeta Joachim du Bellay, nos jogos subtis da cor te romana? A sua epístola dedicatória da Topografia romana de Marliani, dirigida a Jean du Bellay (31 de Agosto de 1534), é sobretudo o reflexo do seu entusiasmo pelos vestígios da An tiguidade, e da sua curiosidade científica: O que mais tenho desejado desde que possuo algum sentimento do progresso das belas-artes, é percorrer a Itália e visitar Roma, cabeça do mun do .. . Muito antes de chegarmos a Roma, e u concebera em espí rito e em pensamento uma ideia das coisas cujo desejo me atraí
ra a tal cidade. Primeiro, resolvera visitar os homens dou tos ... Depois (o que já pertence à minha arte), queria ver as plantas, os animais e certos medicamentos. Enfim, prometia a mim próprio descrever o aspecto da cidade socorrendo-me da pena e do lápis . .. (A. Lefranc, tradução da epístola em latim.)
Mais tarde, Rabelais voltará algumas vezes a Itália, no meadamente em 1535-1536, mas as preocupações do monge em rompimento com o claustro passarão à frente das alegrias do
humanista. ·
Genealogia às avessas
Se a edição colectiva de 1542 põe à cabeça o Gargântua, or dem lógica, uma vez que o seu herói é o pai de Pantagruel, de facto, a publicação do Pantagruel foi anterior à de Gargântua, pois a sua primeira edição é de 1532, ao passo que a primeira, datada, de Gargântua, é de 1535, precedida, é certo, por uma edi ção desprovida de data, e sem dúvida um ano anterior. Na
or-Gi\RGÂNTUA
dem da criação literária, o filho nasceu por conseguinte antes do pai. A. Lefranc estabeleceu esta anterioridade de maneira muito comprovativa, baseando-se nas próprias confidências de Rabelais nos dois romances: este qualifica como primeiro li vro o Pantagruel (cap. XXXIV) e, logo no primeiro capítulo do Gargântua, remete para o Pantagruel de modo a desculpar-se de não enumerar todos os antepassados do seu gigante: Remeto -vos para a grande crónica pantagruelina a fim de reconhecer des a genealogia e a antiguidade donde nos veio Gargântua ...
Para aliciar o leitor, o subtítulo declara que o romance está cheio de pantagruelismo, garantindo assim o parentesco espiri tual das duas obras. Enfim, Frei Jean, o monge frascário, de goela aberta, não aparece no Pantagruel, e figura no Terceiro e Quarto Livro, posterior ao Gargântua. A interpretação do texto confirma as indicações dadas pela cronologia das edições.
«Gargântua» e os teólogos
Se a anterioridade de Gargântua é um facto adquirido, ain� da nos perdemos em hipóteses sobre o período de composição e a data da publicação: uma e outra precedem, sem dúvida, de perto o Affaire des Placards (17-18 de Outubro de 1534). No momento da condenação do Pantagruel (1533) pela Sorbonne, o governo real é favorável aos reformadores; Francisco
I
manda riscar de uma lista de obras proibidas o Miroir de l'âme pécheresse da sua irmã Margarida de Navarra; Beda, director do colégio de Montaigu, esse colégio de piolheira, defensor da tradição e, por isso mesmo, cabeça de turco dos teólogos humanistas, é exila do; Gérard Roussel, convertido ao Evangelismo, prega no Lou vre. Mas o conflito reacende-se: um discurso imprudente do reitor da Universidade, Nicolas Cop, suscita a repressão contra os suspeitos do luteranismo: é a vez de Gérard Roussel e os leito res do College des Trais Langues serem encarcerados. Entre tanto, FranciscoI,
que negoceia com os protestantes alemães, dá-lhes ordem de soltura, e durante alguns meses o Evangelis mo leva a melhor.A
afixação de panfletos contra a missa (17--18 de Outubro de 1534) inverte a situação: o rei, ultrajado na sua autoridade, trata os reformadores como súbditos sedicio sos, não distinguindo os evangelistas dos luteranos: sucedem -se as detenções, os exílios, os suplícios, até Fevereiro de 1535, data em que Francisco -I começa uma reaproximação com os Es tados alemães.RABELAJS
Neste imbróglio político-teológico, que papel teria Gargân tua? A sátira dos beatos, hipócritas e falsos, do culto dos santos, dos «perdõeS>> é já muito viva no Pantagruel, mas não ultrapas sa os gracejos tradicionais e os ataques dos humanistas, par ticularmente de Erasmo nos seus Colóquios e no Elogio da Lou cura. No Gargântua, a crítica às instituições humanas alar� ga-se e aprofunda-se. Reencontram-se os gracejos sobre os nomes e a influência dos santos (caps. XVII, XXVII), sobre a água
benta (cap. Xllll), as relíquias e as peregrinações (cap. XLV),
mas mais apoiadas e mais concertadas. No capítulo VI, Garga
melle, prestes a parir, prefere ouvir tais textos do Evangelho a
ouvir a vida de Santa Margarida ... fazendo-se assim intérpre te do pensamento de Rabelais. Entre as práticas ridículas ensi nadas pelos preceptores góticos, Mestre Tubal Holofernes e Jobe lin Bridé, figuram com relevo as vinte e seis ou trinta missas quotidianas, com as ladainhas de horas e orações maquinal mente resmoneadas (cap. XXI). Em contrapartida, sob a direc
ção de Ponócrates, nenhuma cerimónia na missa, mas antes a leitura matinal de alguma página das Divinas Escrituras (cap. XXIII). No capítulo XLV, exorta os peregrinos a não acredi
tarem nos falsos profetas, que imaginam os santos capazes de espalhar doenças para terem depois o prazer de curá-las. As re gras monásticas e a vida dos religiosos são cruelmente escar necidas nos capítulos XXVII, XL (Porque fugiram os frades do mundo . .. ) e Xll (Como o monge pôs Gargântua a dormir, e das suas Horas e Breviário). Mais ainda, alusões ao dogma da Gra ça (caps. XXIX e XL), ao bom doutor evangélico e ao bom apóstolo
São Paulo testemunham uma simpatia declarada pelo regresso à simplicidade evangélica, liberta das superstições e costumes a·cumulados ao longo dos séculos. Poder-se-á imagin,ar uma tomada de posição tão manifesta em plena repressão? E presu mível que a composição do romance satírico tenha ocorrido du rante uma acalmia, em que o rei de França e o bom gigante Gargântua podiam entender-se bem. Em 1535, Rabelais aban dona bruscamente as suas funções no hospital; só lhe encontra mos o rasto passados vários meses, no séquito de Jean du Bel lay, promovido a cardeal; hábil manobra: Rabelais distancia -se da Sorbonne, mais intolerante que Roma, e obtém a sua reintegração na ordem dos beneditinos. Foi isso uma moeda de troca? A edição de 1552 de Gargântua, sem renegar as posições fundamentais, atenua as audácias verbais: os teólogos trans formam-se em sofistas, o que não engana os leitores adverti dos, mas salva a face ante os profanos.
GARGÂNTUA
De Chinon ao reino dos Canarres
Na divertida miscelânia das paródias aos romances de ca valaria franceses ou italianos, temas extraídos das Grandes Crónicas, recordações dos anos de convento, dos processos fa miliares, dos conflitos entre Reformadores e Tradicionalis tas, os h eróis de Rabelais, quer sejam gigantes ou simples homens, ora vivem na província natal, à beira do Loire, ora evocam terras fabulosas, Utopia e o reino dos Canarres, para lá dos mares (caps. xrn, XXI, L). Este misto de experiências e
sonhos, de real e irreal, que por vezes surpreende o leitor dos nossos dias, não espantava os contemporâneos de Rabelais. O culto da razão não banira da imaginação popular as fadas, os magos, os gigantes e os mon stros. Quantos acreditavam, como o Sganarelle de Moliere, tão firmemente no lobisomem e no fra de corcunda como no diabo?
Os roman ces de cavalaria forn ecem o plano geral: o nasci mento do gigante, as suas «Infâncias», a sua «Instituição>>, e
enfim as suas proezas guerreiras. O s contistas italianos intro duzem no universo dos gigantes comparsas de dimensões humanas e nomes simbólicos, processo que foi utilizado por Ra belais no Pantagruel e no Gangântua: Epistémon representa a sabedoria, Eustenes a força, Ponocrátes o ardor intelectual, Pi crocole o bilioso arrebatado, etc. É inútil traduzir os nomes dos capitães Spadassin e Merdaille. De origem grega, italiana ou popular, esta onomástica é justificada pelo comportamento das personagens. Que haverá de espantoso no facto de Ginasta, o es cudeiro de Gargântua, deixar o capitão Tripet estupefacto com um deslumbrante volteio (cap. XXXV)?
As Grandes Crónicas transmitem a Rabelais a sua persona gem central , Gargântua, cuja estatura gigantesca, bulimia, bom humor e bonomia já eram familiares ao público. O nome, que evoca uma goela mon struosa, capaz de engolir seis peregri nos como caracóis numa salada (cap. XXXVIII), figura desde 14 71 num Registo de Jehan Georges, cura de Hérignat, cobra dor do bispo de Limoges, como alcunha de um familiar do prela do. Era, sem dúvida, tão antigo como o do diabrete Pantagruel, minúsculo antepassado do primeiro gigante de Rabelai s. Al guns dos mais desopilantes episódi os derivam igualmente do livrinho popular: o vestuário de Gargântua (cap. Vlli), a ori gem da planície de Beauce, que seria uma floresta abatida pelo rabo da égua de Gargântua, com maior rapidez do que se fosse
RABELAJS
um
bulldozer(cap.
XVI),os sinos de Notre Dame servindo de
guizos
àdita égua (cap.
XVll).Mas no meio desta fantasia carnavalesca, onde se confun
dem lugares e tempos, a actualidade da crónica chinonesa dá o
seu sabor rústico.
Desde sempre os críticos notaram que a guerra picrocolina
se desenrolava nas imediações próximas da Deviniere, num
perímetro limi.tado por Lerné, Roche-Clermault, Vaugaudry,
La Vauguyon e o vau de Veede, localidades e povoados que ain
da hoje existem; é possível seguir num mapa os movimentos
das tropas de Gargântua e do seu adversário. Mas seriam as re
ferências
àt
&pografia chinonesa um artifício do contista dese
joso de ilustrar a sua terra natal , tornando-a tão famosa como
Tróia, Roma ou Ron cesvales? Abel Lefranc e os seus discí
pulos conseguiram estabelecer, graças a minuciosas inves
tigações nos arquivos locais, não só que o cenário da guerra
picrocolina era real mas também que esta era a transposição
do processo que opôs Gaucher de Sainte-Marthe a Antoine Rabe
lais e
àconfederação dos mercadores e transportadores flu
viai s. A identificação de determinados actores parece estabele
cida, em particular de Ulrich Gallet,. mensageiro de Grandgou
sier junto de Picrocole (cap.
XXX)com Jehan Gallet, advogado
do rei em Chinon, parente dos Rabelais, e defensor da confede
ração no Paralamento de Paris. Marquet,
o grande bastonárioda confraria dos <<(ouaciers»(*)
de Lerné, que, com as suas bru
talidades, desencadeia as hostilidades, evoca o sogro de Gau
cher. Toda a região de Chinon devia estar em ebulição, pois o
diferendo opunha um conj unto de famílias e aldeias. A famí
lia Sainte-Marth e reconh eceu-se em Picrocole, e o seu ódio
contra Rabelais por certo que não se aplacou com esta imortali
zação grotesca.
Opanfleto de Gabriel de Puy-Herbault, religio
so da abadia de Fontevrault (onde Gaucher era médico), contra
o conti sta qualificado como ateu e epicurista
(Theotim us, 1549),não será uma remota sequela do processo e uma réplica ao
Gargântua ?
Em todo o caso, Charles de Saint-Marthe, segundo fi
lho de Gaucher, e aliás humanista e poeta, achou o panfleto mui
to a seu gosto.
A
guerra picrocolinaaparece, pois, como o disfarce épico da
crónica chinonesa, onde a família Rabelais tivera um papel
preponderante.
GIIRGÂNTUII
Deveremos no entanto procurar fundamentos de realidade
em càda episódio, em cada personagem? Isso seria negar toda
a invenção, toda a fantasia ao génio criador do romancista. Se
ria
omesmo que crer que o
Lutriné a história exacta do conflito
entre os cantores e as cantoras do coro da Sainte-Chapelle. Ra
belais parte do real , mas engrandece, tran sforma e generaliza
essa verdade de facto para lhe dar um significado simbólico de
dimensões universais. Evade-se da região de Chinon para so
nhar com as ilh as de além-mar, como o reino de Canarre
(cap.
L),ou da Utopia, o país de parte nenhuma.
O humanista perante a pedagogia e a política
Entre mentirolas e obscenidades, a carta de Gargântua
(Pantagruel,
cap.
VIII)surpreende pela sua gravidade : expri
me a satisfação de Rabelais perante o progresso das luzes e a
sua confiança no futuro. Mas i s so é apenas um esboço. Em com
pensação, o
Gargântuadesenvolve, se não um sistema, ao me
nos uma atitude racional perante a vida.
As críticas esboçadas contra o pedantismo e a ignorância
no
Pantagruel(cap.
VII, os belos livros da livraria de São Vítor,e cap.
VIII,a
Cartade Gargântua) tomam forma em vários capí
tulos do
Gargântua,que acusam sem nenhuma ambiguidade
oespírito, os programas e os métodos da escolástica (caps.
XIV,XV, XXI).
Sujeito aos preceptores góticos, Tubal Holofernes e Jo
belin Bridé, Gargântua, não obstante as suas felizes aptidões
naturais, não pode deixar de ficar
louco, parvo, todo sonhador eatoleimado.
Ponócrates, pelo contrário, faz do seu aluno um poço de ciên
cia, ao mesmo tempo que lhe cuida do corpo. Graças a um ho
rário racional, permite-lh e abordar todos os ramos do saber,
sem nunca perder o contacto com a Natureza, que é o livro su
premo. Exercícios físicos metódicos completam a instrução
(caps.
xxnr, XXIV).Em vez do cavaleiro maciço e obtuso, forma
um príncipe sábio e sensato, de corpo flexível, resistente e ágil.
No primeiro romance, o rei só aparece como ch efe guerrei
ro: Pantagruel vence e faz prisioneiro o seu adversário, o rei
Anarche; a sorte deste é decidida em poucas páginas.
O Gargântua
põe em cena três tipos de soberanos, cujo carácter e
cujos actos são amplamente descritos.
Oirascível Picrocole é
otipo do mau rei: ambicioso, brutal , belicoso, crédulo, obedece
sem reflectir às sugestões dos maus con selheiros e já se julga
RABELAIS
senhor do mundo (cap.
XXXIII).Arrastado pela sua falta de
comedimento, esquece todos os sentimentos humanos: a antiga
amizade com Grandgousier, o respeito devido aos embaixado
res, a obediência aos preceitos do cristianismo.
Oseu castigo é
muito mais motivado do que o de Anarca.
Grandgousier representa um velho soberano bonacheirão,
consciencioso e pacífico. Está tão certo do seu direito que, a prin
cípio, não quer acreditar na agressão de Picrocole; tão desejoso
da paz, que propõe o seu restabelecimento, mesmo
àcusta de con
cessões exorbitantes (caps.
XXVIII, XXX, XXXl);tão apegado aos
seus súbditos, que considera um dever protegê-los
àcusta do
seu repouso:
A razão assim o quer, pois o seu labor me mantéme o seu suor me alimenta, a mim, a meus filhos e à minha famí
lia
(cap.
XXVIII).Vitorioso, manda Toucquedillon ao encontro
do seu rei com uma mensagem de paz. Toda a sua política se
conforma com as lições do Evangelho:
Já não estamos em tempo de assim conquistar os reinos com prejuízo do nosso próxi mo e irmão cristão. Essa imitação dos antigos Hércules, Ale xandres, Aníbais, Cipiões, Césares e outros tais é contrária ao preceito do Evangelho, que nos manda guardar, salvar, reger e administrar cada um dos nossos países e terras, não invadir hostilmente os outros .. .
(cap.
XLVI).Na força da vida, Gargântua é menos meditativo
edevoto
do que o seu bondoso pai . Quando Eudémon, espantado com a
«honestidade•• de frei Jean, pergunta por que razão fugiram o s
monges d o mundo, Gargântua lança uma violenta sátira con
tra esses comedores de pecados, tão inúteis como os macacos:
De igual modo um monge (falo desses monges ociosos e desocu pados) não lavra como o camponês, não guarda o país como o ho mem de guerra, não cura (os enfermos) como o médico, não pre ga nem doutrina como o bom doutor evangélico e pedagogo
.
..(cap.
XL).Chocado com esta diatribe, Grandgousier intervém:
Talvez, mas. . . rezam por nós a Deus.
Gargântua varre a objec
ção e redobra de veemência:
Nada menos. . . É verdade que molestam a vizinhança toda à força de tilintar as suas campai nhas .. . resmoneiam à grande lendas e salmos que não enten dem; recitam muitos padres-nossos entremeados de longas ave-marias sem pensar e sem entender nada dessas orações, e a isso chamo eu fazer troça de Deus, e não oração .. . (Ibid. )
Ma
nifestamente, Rabelai s traça aqui o retrato do rei segundo os
seus votos: um soberano liberto das tradições escolásticas, ca
paz de exterminar os sorbonagros (cap.
XX),e de encoraj ar o
GARGÂNTUA
Este antepassado dos <<déspotas esclarecidos>> é tão hábil es
tratego como rude combatente. As vitórias de Pantagruel são
proezas excepcionais ou enormes farsas; as de Gargântua exi
gem força (cap.
XXXVI)e inteligência (cap.
XLVIIT),a tal ponto
que a sua táctica contra Picrocole fez supor que Rabelais fre
quentara a Escola de Guerra das nossos dias!
Após a vitória, mostra-se tão generoso e prudente como
Grandgousier, perdoando aos vencidos, neutralizando os res
ponsáveis pela guerra e preparando uma paz duradoura com
uma reconciliação geral ; a sua arenga aos vencidos é um belo
exemplo de discurso político (L). Ainda neste ponto, o
Gargântua
reflecte as ideias comuns a Erasmo, Guillaume Budé e mui
tos outros humanistas sobre os deveres e as responsabilidades
dos reis, sobre a guerra e a paz numa civilização cristã. Pode
-se, sem cair no exagero, extrair n ão só uma pedagogia mas
uma política e uma teologia destas
alegres e novas crónicas. OPrólogo do autor
não enganava ao garantir que
a droga dentro contida tem muito mais valor do que a caixa prometia.A arte e a vida
Mas, em Rabelais, as doutrinas nunca murcham em con
ceitos ; é a própria vida que impõe as suas leis e rebenta por to
dos os lados em jactos sumarentos como a seiva da vinha n a
Primavera. Disso é testemunha
a fala dos bem bebidos(cap.
V),
onde cada personagem actua e fala de acordo com o seu tem
peramento, idade e condição. Di sso é testemunha frei Jean,
degoela aberta. . . avantajado de nariz,
tão lesto no serviço do vi
nho como no serviço divino, que, enquanto os seus confrades re
citam litanias, extermina com o báculo da sua cruz os
13 622inimigos que haviam invadido o recinto de Seuilly. Ignorante
sem escrúpulos, crente sem devoção, amador de histórias bre
jeiras e de boa comida, intrépido combatente, frei Jean é um
compincha tão espantoso como Panúrgio, mas mais, dinâmico
e mais aberto. Cabe-lh e o direito de organizar a seu gosto o anti
convento de Thelenie.
A abadia de Theleme é o fecho da abóbada de todo o roman
ce; é o remate dos estudos renovados, a recompensa pacífica
das provações sofridas durante a guerra, o sonh o de uma exis
tência que concilia as alegrias naturais e os requintados praze
res da sociedade. P. Villey vê nela
o mito principal do GargânRABELAJS
da Idade Média, simbolizado pelo claustro .. . o ideal novo de vi da livre, luxuosa e sábia.
Theleme é seguramente o inverso da
vida monástica, pois não há outra regra além do prazer, nenhu
ma clausura, nenhuma separação dos sexos, e os thelemitas,
longe de pronunciar votos perpétuos, deixam a abadia para ca
sarem de acordo com os seus sentimentos. Antes de Rabelais,
Erasmo, nos seus
Colóquiose no
Elogio da Loucura,mostrara
-se muito mais violento contra as regras conventuais; por seu
lado, um franciscano de Avignon, François Lambert, imagi
nara uma abadia mista, onde se aproximavam os sexos em vez
de se separarem
(Humanisme e Renaissance,tomo
XI, 1949).Mas a novidade é construir um convento que seja um palácio
como os de Chantilly ou de Bonnivet, é pôr esses pseudo-religio
sos e religiosas a viver como as damas e os senhores da' corte.
A
ausência de coacção é corrigida pelo berço, as aptidões natu
rais e a educação. Mais que. uma oposição sistemática à tradi
ção monástica, a abadia de Theleme é
um encantador quadrodo Renascimento. . . Os luteranos e os calvinistas não teriam admitido a liberdade de Theleme
(Morçay ).
Do
Pantagruelao
Gargântua,não só o pensamento de Rabe
lais cresceu em vigor e coesão, mas também a sua arte em ma
turidade. Acabaram-se as acumulações de obscenidades gra
tuitas (no cap.
XV,por exemplo), ou as invenções desmesuradas
(caps.
XI, XII, XIII),ou as mímicas h erméticas (cap.
XIX),ou as di
gressões intempestivas. Sem se cingir a uma composição rígi
da que não se adaptava nem ao seu temperamento nem às mo
das literárias da época, Rabelais organizou os episódios do seu
romance com ordem e clareza: precedida (ou pouco menos) por
uma fantasia poética,
Les Franfeluches antidotées(cap.
II),e se
guida pelo
Enigme en prophetie(cap.
LVIII),poema de Saint-Ge
lais, a vida de Gargântua desenrola-se com relativa verosimi
lhança: nascimento, educação, façanhas guerreiras, recom
pensa dos vencedores.
O enigmasurpreende o gosto actual e dá
que pensar aos críticos, mas era um jogo de espírito muito apre
ciado no século
XVI.Para espicaçar a curiosidade dos leitores,
Rabelais imaginou duas soluções contraditórias: cada um que
escolh a segundo as suas preferênci as a de Gargântua ou a de
Frei Jean . Mas há muitas razões para admitir que a interpreta
ção do monge é uma maneira de se furtar
àcondenação dos fal
sos beatos depois de ter troçado deles uma última vez.
Neste segundo volume,
conclui Morçay,
Rabelais deu o me lhor de si, um riso são, mais gaulês que ateniense, um realis mo sólido, um espírito satírico onde há sobretudo alegria, umaCARCÂNTUA
arte superior de contista e de retratista, uma filosofia feita de epicurismo sorridente e moderado. Não há entremezes e os ele mentos variados que compõem esta epopeia em prosa fundem -se numa unidade perfeita. O
Gargântua
é a obra-prima de Rabelais.P. MICHEL
O presente texto
Existe na Biblioteca Nacional(*) uma edição do
Gargântua,
sem data, mas provavelmente de
1534;duas outras, publica
das por Juste, em Lyon, sucederam-lhe em
1535e
1537,depois
uma quarta, em Paris, igualmente de
1537.A quinta edição,
publicada em Lyon , por Juste, em
1542,foi a última revista pelo
autor, pelo que, como é costume das edições críticas, nomeada
mente de A. Lefranc na sua edição magistral, foi o texto que se
guimos.
Uma sexta edição foi publicada em Lyon em
1 542pelo huma
nista Etienne Dolet, sem ter em conta as modificações introdu
zidas pelo autor e sem o seu consentimento: daí o desagrado de
Rabelais e o seu rompimento com Dolet.
Outras edições, derivadas quer da de Rabelai s
(1542)quer
da de Dolet, surgiram em Lyon, Val�nce e Paris.
As diferenças entre o texto de
1534-1535e o de
1542consis
tem sobretudo em atenuações formais da sátira contra os teó
logos, que se convertem em ••sofistas». São mencionadas nas
variantes. Destas, apenas mantivemos as que apresentam
uma ligeira diferença de sentido. Em compen sação, todas as
notas susceptíveis de facilitar a compreensão do texto foram
não só mantidas mas assinaladas à luz dos trabalhos recentes,
pois a erudição contribui para o prazer da leitura. E agora, se
gundo o conselho de Mestre Alcofribas no seu
Prólogo: Diverti-vos, meus amores, e alegremente lede o resto, com todo o à-vontade do corpo e vantagem para os rins!
A VIDA
MUITO HORRÍFICA
DOGRANDEGARGÂNTUA
Pai de
Pantagruel
Em tempos composta por M.
Alcofribas,
Condensador de
Quinta Essência1
Livro cheio de Pantagruelisnw
AOS LEITORES
Amigos leitores que lerd
es este livro,
Despojai-vos de toda a
paixão ;
E,
ao lê-lo, nãovos escandalizeis:
Não contém nem mal n
e
minfecção.
É verdade que aqui pouca
perfeição
Aprendereis, a não ser para
rir;
Outro assunto não
pode meu coração eleger,
Vendo o luto que
vos desgasta e consome
Melhor
é
escrever de risoque de lágrimas,
NOTAS
I Alcofribas é o mesmo nome, anagrama abreviado de François Rabe lais, que figurava nas edições do Pantagruel, a partir de 1 534. -O Condensa
dor de Quinta Essência é o Alquimista.
2 Esta célebre máxima, que se tornou o sfmbolo do humor rabelaisiano, é
extraída de Aristóteles, De partibus animalium, III, 10: «O homem é o único dos seres animados que sabe riz�·. e encontra-se igualmente nas obras do poe ta 9uillaume Bouchet, amigo de Rabelais.
PRÓLOGO DO AUTOR
B eberrões ilustríssimos e vós, preciosiSSimos bexigosos
- porque a vós e n ão a outros são dedicados os meus escritos -,
Alcibíades, no diálogo de Platão intitulado
O Banquete,louvan
do o seu preceptor Sócrates, incontestavelmente o príncipe dos
fi-1ósofos, entre outras palavras o diz semelh ante aos Silenos. O s
Silenos eram outrora umas caixinhas, tais como as vemos hoje
nas boticas, pintadas em cima com figuras alegres e frívolas,
como harpiasi , sátiras, pássaros com freio, lebres carnudas, pa
tas albardadas, bodes voadores, veados entre varais2 e outras
que tais pinturas arremedadas para provocar o riso nas pes
soas (tal foi Sileno, mestre do bom Baco); mas no seu interior
conservavam-se finas drogas como o bálsamo3, o âmbar cin
zento , o amamo, o almíscar, a civeta, pedrarias e outras coisas
preciosas. Assim ele dizia ser Sócrates, porque, vendo-o por fo
ra e apreci ando-o pela aparência exterior, ninguém daria por
ele uma casca de cebola, tão feio ele era de corpo e ridículo no
porte, com o n ariz ponti agudo, olhar de touro, o rosto.de um lou
co, simples n o s costumes, rústicos na vestimenta, pobre de fortu
na, infortunado com as mulheres, inepto para todos os ofícios
da república, sempre a rir, sempre a beber tan to como qualquer
outro, sempre
atroçar, sempre a dissimular o seu divino saber;
mas, abrindo essa caixa , encontrar-se-ia dentro dela uma ce
leste e in apreciável droga: entendimento mais que humano,
virtude maravilhosa, coragem invencível, sobreidade sem
par, contentamento certo, segurança perfeita, desprezo incrível
por tudo o que leva os humanos a velar, correr, trabalhar, n ave
gar e batalhar4.
, A que propósito, em vossa opinião, se destina este prelúdio?
E por que, meus bons discípulos, e algun s outros ociosos, ao ler
des os alegres títulos de algun s livros da nossa invenção, como
Gargântua, Pantagruel, Fessepinte, A Dignidade das Bragui lhas, Ervilhas com toucinho cum commento,
etc. , julgais
mui-RllBELAJS
to facilmente que, por dentro, são tratados de graçolas, brinca
deiras e intrujices, visto que a insígnia exterior (é o título),
sem querer saber de mais nada, é correntemente acolhida
como motivo de riso e chacota. Mas não é com tal leviandade
que convém estimar as obras humanas. Pois vós mesmos di
zeis que o hábito não faz o monge, e um qualquer vestido com o
habito monacal não tem por dentro nada de monge, e outro usa
capa à espanhola e a sua coragem não deve nada à Espanha5.
Por isso é preci so abrir o livro e pesar cuidadosamente o que ne
le é deduzido. Sabereis então que a droga nele contida tem m ui
to mais valor do que a caixa prom etia, i sto é, que as matérias
aqui tratadas não são tão galhofeiras como o título pretendia.
E, dado o acaso de encontrardes em sentido literal matérias
muito alegres e correspondentes ao nome, não deveis todavia fi
car por aí, como
aouvir o canto das Sereias, mas ellYmais alto
sentido interpretar o que por acaso cuideis ser dito de coração
alegre.
Já alguma vez desrolhastes uma garrafa? Irra! Recordai a
vossa atitude. Ma� vistes alguma vez um cão ao encontrar um
osso com tutano? E, como diz Platão, liv. II da
República,o mais
filósofo dos animai s deste mundo. Se já o vistes, pudestes notar
com que devoção ele o espreita, com que fervor o guarda, com
que prudência começa a roê-lo, com que afeição o parte, e com
que diligência o chupa. Quem o induz a fazê-lo? Qual a e spe
rança do seu estudo? Qu_e bem pretende alcançar? Nada mais
que um pouco de tutano. E verdade que esse pouco é mais delicio
so do que o muito de todas as outras coi sas, porque o tutano é um
alimento elaborado com perfeição da natureza, como diz Gale
no, in
Fac. Natur., III,e
De usu parti, XI.Segundo este exemplo, convém-vos ser sábios, para fare
jar, cheirar e apreciar estes belos livros saborosos, procurá-los
com ligeireza e encontrá-los com ousadia; depoi s, na leitura
curiosa e na meditação frequente, deveis abrir o osso e chupar o
substancioso tutano - ou seja, o mesmo que eu quero significar
com estes símbolos pitagóricos6 - com a esperança certa de vos
tomardes avisados e valorosos com a dita leitura, pois nesta
encontrareis m elhor gosto e doutrina mais abscôndita, a qual
vos revelará altíssimos sacramentos e horríficos mistérios,
tanto n o que respeita à nossa religião como ao estado político e à
vida económi ca.
Acreditais que jamais Homero, ao escrever a
Ilíadae a
Odisseia,
pensou nas alegori as com que as rechearam Plutar
co7, Heráclides Pônticos, Eustácio9, Fomuto, e que Poligiano
G;\RGÂNTUA
lhes roubou? Se acreditais, não vos aproximais nem com os pés
nem com as mãos da minha opi nião, que decreta que Homero
as imaginou
tão pouco como Ovídio,nas suas
Metamorfoses,aos sacramen
tos do Evangelhoio, comotal Frei Lubinll, verda
deiro parasita,
se esforçou pord
em
ons
trar, se acaso encontra
va pessoas
tão tolas como ele,e
(comodiz o provérbio), tampa
digna de tal panela.
S e não ac
redi
tais
, porque n ão fareis o mesmo comestas ale
gres e novas
crónicas, embora aoditá-las eu não pensasse
mais nelas do q
ue vós, quebebeis talvez tanto como eu? Pois, na
composição deste
livrosenhori al, não perdi nem empreguei
mais nem
outro tempo doque
o estabelecidopara tomar a mi
nh a re
fe
içã
o corporal, ou seja, bebendoe comendo. Chegou as
sim a hora devida de
escreverestas altas matérias e ciências
profundas,
comotã�
bem sabiamfazer Homero, paradigma de
todos os
filólogos,e
Eni
oi :l, pai dospoetas latinos, conforme o tes
temunha
Horácio, embora ummalcriado tenha dito que os seus
poemas cheiram
maisa vinho que a óleo.
O mesmo disse um velhaco dos meus livros; mas merda
para ele! Como é mais apetitoso, risonh o, atraente, mais celeste
e delicioso o odor do
vinhodo que do óleo! E acharei tão glorioso
que digam de mim que gastei mais em vinho do que em óleo,
como Demósten es,
quandolhe diziam que gastava m ais em
óleo do que em
vinho. Paramim só é honra e glória ser dito e re
putado bom
compi n chae
bomcompanheiro, e com esse nome
sou bem-vindo
entre todas as boascompanhias de pantagrue
listas. A
Demóstenes foi cen
surado por um espírito azedo que
as suas
Oraçôes ch
eira
va
m à ser
api
lhe
ira de um imundo
esu
jo azeiteiro.
Interpretai, pois,todos os meus factos e ditos no que
têm
de perfeição; reverenciaio cérebro caseíforme que vos dis
trai com
estes belosdi
spara
tes e, se puderdes, considerai-me
sempre um
hom
em alegre.Pois di
verti-
vos
, meus amores,e
alegrementelede o resto,
com todo o
à-vontade do corpo e com van
tage
mpara os rins !
Mas escutai ,
ó estúpidos - que umaúlcera nas pernas vos dei
xe coxos!
- não vos esq
ueça
is de beber
àminha saúde, e logo
vos darei razão.
NOTAS
1 Monstms alados mm rosto de mu lhcr c corpo de abutre.
2 Rabclais completa os monstn)s da mitologia com animais fantásticos, acumulando caracterizações jocosas-: pá.�8arcm com freio como os cavalos,
le-RJ\BELAIS
bres carnudas como as vacas, patas albardada.• como os burros, bodes voadores e veados entre varais atrelados como cavalos. Platão, no Banquete (21 5 A), ape: nas escreveu: «Digo que ele (Sócrates) é muito semelhante a esses Silcnos ex postos nas lojas dos cstatuií1'ios c que os artistas representaram ostentan do gai tas campestres c flautas. Quando se separam as duns peças qu e formam essas estatuetas, descobre-se no interior a imagem de um deus.» Silcno, pai nu triente de Baco, era n�prcscRtado como um bob� hilariante e grotesco.
3 Bálsamo de Meca, suco resinoso. - Ambar cinzento, sccr<.>ção do cacha lote, a que Rabclais chama «esperma de baleia» no Pantagruel (cap. XXN, p.
321 ). - Amomo, planta odorífera dn Ásia. - Alm{scar, produto odmífcro ex traído do gato-almiscareim. - Civeta, pequeno cnrnívoro de que se extraía
um perfume. - Pedrarias, os boticários mi stu ravam pedras preciosas com ex cipicntes, como remédios «parn reparar os espíritos vitais .. . por causn da sua luz que simbolizn os espíritos» (Guillau me Bouchet). Estas drogns faziam
realmente pm"ic da fnrmacopeia da época, bem como os remédios bizarros cita dos por Mo ntaigne (Enwicm Ir, :{7).
4 Este elogio de Sócrates, ele acordo com os retratos dcixndos por Platão (cf. O Banquete) c Xcnof(mtc, é inspirado (c por vezes trnduzido) cm Erasmo, Adágios, Silenni Alcibiadi.� (Ir r, 2, 1 ), que tamMm eleve ler sido a fonte de Mon
taignc. A comparaçüo entre Sócrates c Sileno era muito popular nos hu ma nistas.
6 Os espanhóis eram célebres peln sun valentia c a sua basófia (cf. a figu ra elo Matnmouros cm L'Illusion Comique de Corncille).
7 Os humanistns consideravam a Iilosofia ele Pitágoras como cheia de símbolos, como também os mistél-ios de Orfeu.
B Atribuía-se a Plutarco um tratado sobre a vida e a poesia de Homero.
9 Alusão ao tratado De Alegoriis apud Homerum (Alegoria.� homéricas) de um gramático latino, Herô.clides do Ponto.
!O Eustácio, arcebispo de Tcssalónica (séc'Ulo Xll), escrevera um comentá rio sobre Homem. Também Cornutos (Phornute), filósofo estóico do século 1 da era cristã. Poliziarlü, humanista do século xv, editado cm Lyon cm 1 533 por
Gryphc. Poliziano plagiara copiosamente os seus antecessores.
'-11 A ironia de Rabelais relativa nos amadores de símbolos é aqui confir mada. As Meta.m.(}lj(>se.� haviam sido consideradas como uma antecipação alegórica do Evangelho pelo dominicano Walluys (século XIV).
12 Frei Lubin, sinónimo ele monge ignorante e estúpido (cf. Marot, Baila de de frere Lubin.), que fi!,'l.lra no Catálogo ela livraria de Séú> Vüor (p. 1 1 5) no Pantagruel: «Três livms do Reverendo Padre Frei Lubin, padre provincial de Bavardclie, sobre tiras ele toucinho para tlincar ...
13 Énio (239-1G9 a. C.), inlmdutor do helenismo cm Roma c autor de u m
poema épicos, os Anai.�. Sc!,'l.lndo Horácio (Epf.�tulas r, XIX), só compunha depois de beber.
CAPÍTULO I
DA GENEALOGIA E ANTIGUIDADE DE GARGÂNTUA
Remeto-vos para a gTande cromca Pantagruelinal a fim de reconhecerdes a genealogia e a antiguidade de que nos veio Gargântua. Nela sabereis mais detidamente como nasceram os gigantes neste mundo e como destes, por linha directa, pro veio Gargântua, pai de PantagTuel, e não levareis a mal se por agora me abstenho de repeti-lo, embora o caso seja de tal natu reza que, quanto mais for relembrado, mais agradará a Vos sas Senhorias. Para isso tendes a autoridade de Platão, in File bo e Górgias, e de Flaco, que dizem de algumas matérias, como aquela de que vos falo, que são mais deleitáveis, quanto mais vezes forem repetidas.
Prouvera a Deus que cada qual soubesse tão seguramente a sua genealogia, desde a Arca de Noé até aos nossos dias! Penso que muitos são hoje imperadores, reis, duques, príncipes e pa pas na terra e que descendem de portadores de relíquias e frio leiras, como outros, pelo contrário, são mendigos de hospício, indigentes e miseráveis, e que descendem pelo sangue e pela li nhagem de grandes reis e imperadores, devido
à
admirável trajectória dos reinos e impérios:dos assírios aos medos, dos medos aos persas, dos persas aos macedónios, dos macedónios aos romanos, dos romanos aos gregos, dos gregos aos franceses2.
E, para vos falar de mim próprio, creio ser descendente de algum rei muito rico ou príncipe dos tempos idos, porque ja mais tereis visto homem que mais desejasse ser rei e rico do que eu, a fim de comer bem, não trabalhar, não ter cuidados, e
RABELAJS
enriquecer os meus amigos e todas as pessoas de bem e de sa ber. Mas o que me reconforta é que, no outro mundo, sê-lo-ei, e até maior do que no presente ousaria desejar. Reconfortai tam bém a vossa infelicidade com este ou ain da melhor pensamen
to,
e bebei-lhe bem, se puderdes.Voltando à vaca fria, digo-vos que por graça soberana dos céus nos foram con servadas a antiguidade e a gen ealogia de Gargântua, mais completa s que quaisquer outras, excepto a do Messias, de quem não fal o porque n ão me compete e porque os diabos3 (que são o s caluniadores e o s falsos beatos) a isso se
opõem. E
foi encontrada por Jean Audeau num prado que ele tinha perto de Arceau Gualeau, abaixo da Olive, para os lados de Narsay, no qual prado, ao desen tupirem os fossos, tocaram os cavadores com as suas enxadas num gran de túmulo de bronze, desmesuradamente comprido, pois jamais lh e encontraram a extremidade porque se al on gava muito para diante nas repre sas de Vienne. Ao abri-lo em certo ponto, marcado com o de senh o de um copo em volta do qual estava escrito em letras etruscas4: HIC BIBITUR , encontraram nove frascos disposto s na
mesma ordem como se espetam os paus para os jogo da bola na Gasconh a, entre os quais o que estava no meio cobria um gran
de, gordo e cin zento, bonito, pequeno e bolorento livrinho, chei rando mais mas não melhor do que rosas.
Neste se ach ou a dita genealogia, escri ta em l etras de chan celaria5, não em papel, não em pergaminho, não em cera, mas em casca de olmo, e tão gastas pela vetustez que ma
�
se podiam decifrar três seguidas.Embora in digno de tal tarefa, fui chamado a decifrar o tex to e, com gran de reforço de óculos, praticando a arte de ler letras não aparentes, como ensina Aristóteles6, traduzi, como podereis ver pantagruelizan do, isto é, bebendo à tripa forra e lendo as gestas h orríficas de Pantagruel . ·
No fim do livro havia um pequeno tratado intitulado : Les Franfeluches antidotées1. Os ratos e as baratas, ou (para que não minta) outros bichos malignos, tinham roído o começo; o
resto acrescen tei-o eu adiante, por reverência às coisas an
tigas.
NOTAS
I O ca pítu l o I do Pantagruel (1 5a2), i ntitu lado «Dn origem c anliguidadc do !,'!'ande PantagJucl .. , compreen de u ma longa genealogia cm que se mistu ram os gigantes b1blicos, os gigantes a n tigos c os person agens de romance.
Gi\RGÂNJVA
2 Esta transferência do i m pério dos assírios para os li·anccscs não pare
cia fantasista nos contem porâ neos de Rabelni s; não só os escritores (Jean Bou chct, Margarida de Navarra) co mo também os judstas a i nvocavam para fu n damentar as pretensões de Fra ncisco I ao i m péJio - por gregos deve entender -se o império bizantino, destru ído pelos turcos cm 1 45a.
3 Duplo sentido: diabos c calu niadores (da cti molo!,ria grega, õwj3<iÂ.Â.ro:
caluniar). ·
4 Erudição fantasista: ai nda hoje o al fabeto etrusco não está decifrado com segurança , c não tem nada de comu m com o lati m: Hic bibitur (Aqui bebe -se). Mas será o grande tllmulo ele bronze puramente i mn!,ri mirio ou trntnr-se--á de um tú mul o real amp l iado peia i magin ação do romanci sta, como o
sepul-cro de Geojfroy dente-gra.nde ou o dól men de Ú!. Pierre Leuée? (cf. Panta
gruel, cap. V, p. 87).
5 Letras usadas n a chancclnrin papal, cu rsivo mu itas vezes ilcgfvcl.
6 Referência fantasista a Ar; stótelcs: os pedantes rcfer;am-sc cm tudo
às su ns obras.
CAPÍTULO
II
AS BAGATELAS COM ANTÍDOTO,
ENCONTRADAS NUM MONUMENTO ANTIG01
Eis chegado o grande vencedor dos Cimbros2, Passando pelo ar, por temor do orvalho. À sua chegada encheram-se os bebedouros De manteiga fresca, caindo em catadupa Da qual quando foi regado o grande mar Gritou bem alto: <<Senhores, por favor, pescai-o, Pois a sua barba está quase toda lambuzada Ou pelo menos estendei-lhe uma escada.» Alguns diziam que lamber-lhe a pantufa3 Era melhor do que obter as indulgências4; Mas apareceu um afectado biltre,
Saído do buraco onde se pescam os mujos, Que disse: <<Senhores, por Deus não o façamos; A enguia está lá e nesse antro se esconde; Lá encontrareis (se olharmos de perto) Uma grande tiara no fundo da sua murças.,, Quando estava prestes a ler o capítulo, Só se encontraram os cornos de um bezerro. <<Eu (dizia ele) sinto o fundo da minha mitra Tão frio que à volta me enregela o cérebro.>> Aqueceram-no com perfume de nabo, E ficou contente por se sentar à lareira6, Contanto que dêem um novo cavalo de tiro A tantos que têm mau génio7.
E falaram da cova de São Patrícios, De Gibraltar9 e de mil outras covas:
GARGÂNIUA Se as pudessem reduzir a uma cicatriz
De tal maneira que nunca mais tivessem tosse, Visto que a todos parecia impertinente
Vê-las abrirem-se assim a cada aragem; Se acaso estivessem fechadas,
Poderiam amarrá-las como reféns. Nesse passo foi o corvo depenado Por Hércules, que vinha da Líbia.
<�O quê! disse Minos'o, então não sou chamado a isso? A parte eu, todos são convidados,
E depois querem que me passe vontade De fornecer-lhes ostras e rãs;
O diabo me carregue se me interessa Ir à sua venda de andrajos.»
Para o liquidar veio Q.
B.
que coxeia, Ao salvo-conduto dos mimosos estorninhos, O peneireiro, primo do grande Ciclope, Massacrou-os. Cada qual assoa o nariz; Nesta seara poucos maricas nasceram Que não tenham sido peneirados. Correi todos e chamai às armas: E tereis mais do que tivestes antanho. Pouco depois a ave de Júpiterl l Decidiu apostar no pior,Mas vendo-os agastarem-se tanto, Receou que pusessem de rastos o império, E preferiu roubar o fogo do império celeste, Ao tronco onde se vendem arenques fumados A sujeitar aos ditos dos massoretasl2
O ar sereno, contra o qual se conspira. Tudo concluído, foi,
Apesar de Atéi3, afiada a coxa de garçal4, Que ali se sentou, vendo Pentasileia1 5 Que em velha vendia agriões.
Todos gritavam : «Vil carvoeira
Acaso te compete encontrar pelo caminho? Tu a roubaste, a romana bandeira
RABELAIS
Se não fosse Juno que sob o arco celestel6 Com o seu bufol
7
caçava pássaros,Tinham-lhe pregado uma partida tão grande Que ficaria toda amachucada.
Tal foi o acordo que deste bom bocado Havia de ter dois ovos de ProserpinalB E, se jamais se irritasse,
A amarrariam ao monte do espinheiro. Sete meses depois - tirem-lhe vinte e dois Aquele que outrora aniquilou Cartago Cortesmente se pôs no meio deles, Pedindo-lhes a sua herança, Ou que fizessem ajusta partilha Segundo a lei de atirar o prego ao ar Distribuindo uma concha de sopa
Aos seus carregadores que fizeram o contrato. Mas o ano virá, assinalado por um arco turquês, De cinco fusos e três fundos de de panela, Em que, de costas, um rei muito cortês � bexigoso, estará vestido de arminho. O, piedade! Por causa de um hipócrita Deixareis afundarem-se tantas terras? Cessai, cessai ; ninguém imita essa máscara; Retirai-vos para o irmão das serpentesl9. Passado um ano, aquele que é20 reinará Pacificamente com seus bons amigos. Nem grosseria nem ultraje então reinarão; Toda a boa-vontade terá o seu compromisso, E o prazer que então foi prometido
Às gentes do céu, virá no seu campanário; Então as coudelarias que estavam espantadas Triunfarão em reais palafréns.
E durará esse tempo de passe-passe Até que Março seja acorrentado.
Depois virá outro que a todos ultrapassa, Delicioso, ameno, belo sem par.
Erguei os vossos corações, vinde a esse repasto, Meus vassalos, pois morreu
GARGÂNIUA Quem para grande bem não voltará Tão calmo está o tempo passado. Finalmente, o que foi de cera
Estará alojado nos gonzos de Jacquemart21 E não mais será chamado: «Sire, siref» O que toca o sino e tem a chaleira, Ele, que poderia agarrar na sua espada, Em breve não haveria mais cuidados, E, com cordel, poder-se-ia
Atar toda a loja dos abusos22(*). NOTAS
1 As Bagatelas são um <<enigma», género literário que estava cm moda no século XVI. Thomas Scbillet, na sua Arte Poética, define o enigma como uma <<alegoria obscura». O jogo consiste em descrever um tema banal com grande profusão de imagens incoerentes . O poeta da corte Mellin de Saint-Ge lais foi especialista nesse género. O capítulo LVIII do Gargântua, <<Enigma em profecia», reproduz um poema de Saint-Gelais, que Gargântua interpreta como <<O decurso e a manutenção da verdade divina», ao passo que frei Jean só vê nele uma <<descrição do jogo da péla sob palavras obscuras». O enigma pres ta-se à introdução de incongruências entremeadas de alusões satíricas. Será ainda o jogo favorito dos salões preciosos do século (cf. Précieuses ridicules).
2 Mário (1 56-86 a. C.) venceu os Teutões em Aix-en-Provence (102 a. C.). O enigma começa com uma paródia de tom épico para melhor masca rar a futilidade do tema. Rabelais reforça o jogo supondo que o começo dos pri meiros versos foi comido pelas baratas, degradação que atesta a antigui dade do manuscrito.
3 Alusão possível à pantufa do papa, que é da tradição ser beijada nas au diências.
4 Alusão à concessão de indulgências ou perdões, em troca de dinheiro. Rabelais criticou este abuso no Pantagruel (cap. XVII, p. 243 599). Como Panúr gio ganhava os perdões .. .
5 Chapéu forrado usado pelos papas e pelos cónegos na Idade Média.
6 Esta caricatura do papa aquecendo-se à lareira e perfumado com essên cia de nabo (em vez de incenso) é muito mais irreverente do que a de Júlio II
no Pantagruel (cap. XXX, p. 397).
7 Estas pessoas de mau génio são possivelmente os ,,falsos beatos» que atacavam os humanistas e os evangelistas. O cavalo de tiro que deseja o papa retirado ao canto da lareira representa talvez o seu sucessor eventu al, a puxar
a carroça da Igrej a.
1 É possível que não seja este o sentido de mui tos dos versos do enigma, que já mesmo em francês parece às vezes absurdo e difícil de interpretar, sobretudo pelo carácter elíptico que apresenta. (N. da T.)
RABEIA.JS
8 A cova de São Patrlcio situa-se numa ilha do lago Derg, no condado de Donegal, na Irlanda. Passava por ser uma das entradas do Purgatório e tor nou-se um local de peregrinações.
9 Gibraltar, também chamado «cova da Sibila .. , por confusão entre Sevi lha e Sibila.
10 Minos, juiz nos Infernos. Esta mitologia fantasiosa foi sem dúvida mo-tivada pela ideia do Purgatório evocada pela «cova de São Patrício ...
1 1 A águia.
12 Comentadores hebreus da Bíblia.
1 3 Na mitologia grega,.esta deusa provocava as querelas.
14 Provável reminiscência de Marot, EpUre au Roi... (Adolescence Clé mentine, l 5 32):
Et si m'a fait la cuisse hérortniere, L'estomac sec, le ventre plat e vague.
1 5 Pentesüeia, rainha das amazonas, foi morta por Aquiles no cerco de Tróia. Simboliza a coragem. Cf. Pantagruel, cap. XXX, p. 399: ,J>entesileia era vendedora de agriões... A degradação burlesca das personagens mitológi cas é idêntica: Pentesileia, jovem heroína caída em combate, só pode ser ven dedora de agriões na velhice.
1 6 Arco--íris.
1 7 Grand duc, utilizado na caça como ave de altanaria. 1 8 Deusa dos Infernos.
1 9 O diabo (a serpente do paraíso terrestre). 20 Deus.
21 Personagem de ferro que dá as horas nos relógios dos campanários.
22 Esta loja de abusos designará a Igreja? Rabelais não revelou o sentido do seu enigma. Pode pensar-se que às alusões satíricas se juntam fantasias alegres destinadas a dar que fazer aos futuros glosadores. Estas fatrasies eram muito apreciadas no século XVI.
CAPÍTULO III
COMO GARGÂNTUA ESTEVE ONZE MESES NO VENTRE DA MÃE
Grandgousier era bom companheiro no seu tempo, gostando de emborcar o seu copo até ao fundo, como tantos homens que en tão havia na terra, e gostava de comer coisas salgadas. Para tal, tinha geralmente uma munição de presuntos de Mayence e de Baionne, muitas línguas de vaca fumadas, grande abun dância de chouriços na estação própria, e carne de vaca salga da com mostarda, grande doses de butargosl , uma provisão de sal sichas, não de Bolonha (pois tinha medo dos alimentos lom bardos2), mas de Bigorre, de Lonquaulnay, de Brene e de Rouar gue.
Ao chegar à idade viril, desposou Gargamelle3, filha do rei dos Parpaillos4, rapariga bonita e de boa cara, e os dois brinca vam muitas vezes ao animal de duas costas(*), esfregando ale gremente as banhas, até que ela ficou prenha de um belo filho e o carregou até aos onze meses5.
Pois tanto tempo, ou mesmo mais, podem as mulheres an dar de barriga, sobretudo quando se trata de alguma obra-pri ma e personagem que haja de fazer grandes proezas no seu tem po, como diz Homero que o filho com que Neptuno emprenhou a ninfa6 nasceu ao fim de um ano: foi no décimo segundo mês. Pois (como diz A. Gélio7, liv. iij), esse longo tempo convinha à dignidade de Neptuno, de modo que a criança se formasse com perfeição. Pela mesma razão, Júpiter fez durar xlviij horas a noite em que dormiu com Alcmenas, pois em menos tempo não poderia forjar Hércules, que limpou o mundo de monstro� e ti ranos.