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As possibilidades estéticas e narrativas do dispositivo documental

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Academic year: 2021

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“Júlio de Mesquita Filho”

Faculdade de Arquitetura, Artes e Comunicação

Departamento de Comunicação Social

As possibilidades estéticas e narrativas

do dispositivo documental

Orientando EDUARDO RIZZO MAZZETTI Orientador: Prof. Ms ADRIANA CARDOSO NOGUEIRA Banca examinadora: Prof. Dr. JONAS GONÇALVES COELHO Prof. Ms. MARCOS AMÉRICO

Bauru – SP 2 0 0 9

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“Júlio de Mesquita Filho”

Faculdade de Arquitetura, Artes e Comunicação

Departamento de Comunicação Social

As possibilidades estéticas e narrativas

do dispositivo documental

Eduardo Rizzo Mazzetti Nº do RA 531405

Projeto Experimental apresentado como exigência parcial para obtenção do título de Bacharel em Comunicação Social – Habilitação em Rádio e Televisão, ao Departamento de Comunicação Social da Faculdade de Arquitetura, Artes e Comunicação da Universidade Estadual Paulista "Júlio de Mesquita Filho", atendendo à resolução de número 02/84 do Conselho Federal de Educação.

Bauru – SP 2 0 0 9

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Aos meus pais, meu irmão e todas as pessoas que fizeram com que eu me readaptasse a um lugar em que já não me via mais como membro ativo e produtor de pensamento.

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Aos ambientes e pessoas que tornaram esta experiência parte de mim, muito obrigado.

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“Existem momentos na vida em que a questão de saber se se pode pensar diferente do que se pensa, e perceber diferentemente do que se vê, é indispensável para continuar a olhar ou a refletir.”

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INTRODUÇÃO ... 8

1 - BREVE NOÇÃO SOBRE DISPOSITIVO... 11

1.1-Rede de ligações ... 11

1.2-Atualidade ... 13

1.3-Linhas de tensão ... 13

1.4-Discurso ... 14

2 - O DISPOSITIVO E O CINEMA DOCUMENTAL ... 18

2.1-Possibilidades Narrativas de um dispositivo documental ... 23

2.2 - Possibilidades Estéticas de um dispositivo documental ... 31

3 - O DISPOSITIVO E SUAS LINHAS DE ATIVAÇÂO ... 38

4- A INTERAÇÃO DO DISPOSITIVO COM OUTRAS ÁREAS ... 45

CONSIDERAÇÕES FINAIS ... 52

BIBLIOGRAFIA ... 54

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INTRODUÇÃO

O cinema documentário ou de não ficção é uma arte em renovação constante. Ao longo da história este gênero se modificou profundamente e experimentou panoramas novos à sua linguagem, fazendo com que esta prática se desdobrasse em inúmeras possibilidades e campos de atuação. Essas evoluções de linguagem fizeram com que surgisse dentre diversas maneiras de se documentar, o subgênero ou modo de execução baseado nos dispositivos

documentais.

Os dispositivos documentais são uma das diversas possibilidades de se estruturar um documentário. O método estudado evidencia o filme como artefato “ativador de realidade”, capaz de criar e desenvolver situações previamente propostas pelo diretor. Esse projeto é criado com o intuito de se aprofundar na análise dos dispositivos documentais como estratégia narrativa relevante ao panorama do cinema de não ficção.

O primeiro capítulo se destina a analisar o modelo de dispositivo que será usado no restante do projeto. Esse modelo é oriundo de Michel Foucault, e servirá de estrutura para a formulação do paralelo com os dispositivos documentais. Também serão identificados e analisados os principais elementos encontrados nos dispositivos foucaultianos, servindo como base teórica da noção de dispositivo.

Os capítulos que seguem se propõe a analisar a noção de dispositivo no âmbito documental. A evolução da técnica será abordada privilegiando os fatos que tiveram maior relevância aos dispositivos documentais. Uma análise histórica dos principais fatos que determinaram mudanças narrativas e estilísticas ao gênero será elaborada com o intuito de compreender melhor as influências e origens dos dispositivos documentais.

As possibilidades narrativas e estéticas de um dispositivo documental serão tratadas, assim como suas linhas de ativação e sua interação com outras áreas do campo audiovisual. O trabalho se compromete em identificar e analisar as principais características de um dispositivo, baseando sua pesquisa nos caminhos trilhados pelo cinema documental no Brasil e no mundo.

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Partindo da visão de Jean Louis Comolli de que "filmar os homens reais no mundo real representa estar tomado pela desordem dos modos de vida, pelo indizível das vicissitudes do mundo, aquilo que do real se obstina a enganar as previsões" (COMOLLI, 2001, p.105-106), esse trabalho se esforça para analisar e compreender como os dispositivos documentais encaram estas afirmações e desenvolvem seu cinema de “ativação de realidade”. Os dispositivos documentais se mostram como um processo em que não existe doutrina ou teoria limitadora para o seu funcionamento, a atualidade é uma constante em seu processo de ativação e se verifica pela constante renovação de influências e de caminhos a serem seguidos.

A escassez de bibliografia relacionada diretamente ao tema é ao mesmo tempo um obstáculo e uma motivação de servir como futuro material de pesquisa para outros estudantes. Pode-se muitas vezes não notar, mas vivemos e pertencemos a diversos dispositivos e neles agimos como peças fundamentais para seu funcionamento.

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1- BREVE NOÇÃO SOBRE DISPOSITIVO

A definição de dispositivo transita por vários meios e carrega diferentes interpretações, sendo vital situar de onde vem a definição mais adequada a este projeto. O termo segundo o dicionário Aurélio pode ser interpretado como sendo um “aparelho ligado ou adaptado a instrumento ou máquina, que se destina a alguma função adicional ou especial”, mas a utilização aplicada neste trabalho se atém ao dispositivo como regime, estrutura de pensamento e não como ferramenta ou aparelho específico.

As noções de dispositivo serão focadas especialmente no cinema, porém, não será analisada a experiência cinematográfica como dispositivo (o “aparelho de base” de Baudry), mas o dispositivo como plataforma narrativa, para isso serão extraídas as definições de dispositivo vindas de Michel Foucault. O filósofo e teórico francês têm sua definição de dispositivo extraída da sociedade, como relações de poder em que linhas cruzam as relações estabelecidas, linhas de diferentes naturezas que ditam as ações e os discursos, em uma grande rede de ligações.

O dispositivo de Foucault engloba muitas características peculiares, dentre elas: a sua atualidade, suas linhas de tensão e por fim o seu discurso. Estes serão os itens analisados para formulação de um paralelo com o cinema documental onde constatamos se não idêntica, ao menos semelhante rede de ligações.

1.1- Rede de Ligações

Ao identificar os dispositivos na sociedade, Foucault dispõe estes como redes de ligações que estão presentes em qualquer relação, seja humana, hierárquica ou de funcionamento de regimes e doutrinas, classificando tais fenômenos como <<filosofia da relação>>:

Ao descrever o surgimento e o funcionamento de diferentes dispositivos de poder, Foucault inventa uma << filosofia da relação>> e nos faz ver múltiplas redes em que estamos envolvidos, a que somos assujeitados, e que nos constituem à revelia. Redes, ou relações, que se estabelecem entre

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discursos, instituições, espaços, técnicas, regras, o dito e o não-dito de uma época específica, produzindo “mundos”, “sujeitos”, “objetos” – eis o que Foucault define como dispositivo. Ao destrinchar tais mecanismos de dominação, Foucault enfatiza o caráter de artefato de toda e qualquer realidade, produzida por praticas específicas, em um lugar e momento específicos.1

Os dispositivos de poder se instauram nas situações e nas entidades criando modelos e hierarquizando relações, sejam estas feitas a partir do discurso ou de sua estrutura física:

“O princípio é, na periferia, uma construção em anel; no centro, uma torre: esta possui grandes janelas que se abrem para a parte interior de um anel. A construção periférica é dividida em celas, cada uma ocupando toda a largura da construção. Estas celas têm duas janelas: uma abrindo-se para o interior, correspondendo a janela da torre; outra, dando para o exterior, permite que a luz atravesse a cela de um lado a outro. Basta então colocar um vigia na torre central e em cada cela trancafiar um louco,um doente, um condenado, um operário ou um estudante. Devido ao efeito da contraluz, pode-se perceber da torre, recortando-se na luminosidade, as pequenas silhuetas prisioneiras nas celas da periferia. Em suma, inverte-se o princípio da masmorra: a luz e o olhar de um vigia captam melhor que o escuro que, no fundo, protegia (Foucault, 1975)2.

Os dispositivos identificados por Focault são sistemas de poder que se moldam pelo uso e interação com o ambiente em que funcionam. Um dispositivo que recusa se modificar será facilmente derrubado e/ou corrompido, pois descarta uma característica vital de sua existência, a sua atualidade.

1 LINS, Consuelo, Sobre fazer documentários. São Paulo:Rumos Itaú, 2007 2 FOUCAULT, Michel. Surveiller et Punir. Paris: Gallimard, 1975.

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1.2- Atualidade

Bem se sabe que a sociedade está constantemente em transformação, novas informações e novas tecnologias surgem com o passar do tempo, modificando os pensamentos e as ações. Se os dispositivos são encontrados na sociedade, eles também obedecem a esta constante transformação.

A atualidade do dispositivo consiste em uma renovação dada a partir do vivido, as relações presentes em um dispositivo são o que o molda e o que lhe faz funcionar. Um regime que não se permite atualizar pelas relações contidas nele, ou que restringi relações por qualquer meio que seja, está fadado a perder relevância e ser substituído por outro mais interativo.

Gilles Deleuze em “O mistério de Ariana” reforça as idéias Focaultianas de que estamos imersos em dispositivos, e da renovação destes constantemente: “Pertencemos a certos dispositivos e neles agimos. A novidade de um dispositivo em relação aos anteriores é o que chamamos sua atualidade, nossa atualidade. O novo é o atual. O atual não é o que somos, mas aquilo em que vamos nos tornando, o que chegamos a ser, quer dizer, o outro, nossa diferente evolução”.

Se tratarmos os dispositivos documentais como gênero, a atualidade é representada pelos novos filmes que surgem e que se utilizam da plataforma; a cada dispositivo criado, o atual se manifesta permitindo novas redes de ligações. Porém, se tratarmos da atualidade específica de um filme, de um dispositivo documental, vê-se que a atualidade se manifesta através das linhas de ativação, propiciando novos caminhos e novas atualizações a estratégia proposta pelo dispositivo.

1.3- Linhas de tensão

No complexo mecanismo de análise dos dispositivos, são identificadas forças de diferentes funções e naturezas, que funcionam em conjunção, sendo complementares umas as outras. Partimos do princípio do dispositivo como rede de ligações renovável e de constante transformação, a atualidade do processo se dá por contas de inúmeras linhas que cruzam as relações dentro de um dispositivo, as linhas de tensão são as responsáveis pela ativação, manutenção e desenvolvimento de um dispositivo, elas incitam o regime a se modificar e a se atualizar, são as respostas dos elementos participantes desta estratégia, deste regime de ligações:

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“As diferentes linhas de um dispositivo repartem-se em dois grupos: linhas de estratificação ou de sedimentação, linhas de atualização ou de criatividade. A última consequência deste método engloba toda a obra de Foucault (DELEUZE, 1996)”.

Se compreendermos o dispositivo como uma estratégia similar a um jogo, as linhas de tensão contidas nele se manifestam como se fossem as regras (linhas

de sedimentação), e também como a reação dos participantes as regras, as

diversas maneiras de se desenvolver a proposta (linhas de criatividade). É importante destacar que estes dois grupos de linhas não se excluem, participando juntas do desenvolvimento e manutenção do dispositivo.

As linhas de tensão se destacam como elementos vitais no mecanismo do dispositivo, seja criando ou incitando ações e respostas dos elementos envolvidos no dispositivo, seja na formulação de um espaço comum onde o dispositivo atuará. O controle e a liberdade estão nos domínios das linhas ativadoras, que no caso dos dispositivos documentais, funcionam como ativadoras de “realidade”, elas propõe uma noção de “realidade” que só terá vida enquanto o dispositivo documental durar. São situações de recorte temporal específico, que se tornam únicas pelo fato de contarem com elementos e configurações específicas e que dizem respeito apenas a aquele momento.

As linhas de ativação em um dispositivo documental serão analisadas no capítulo 3 deste projeto, sendo um dos elementos de maior relevância para análise da prática do dispositivo no documentário.

1.4- Discurso

Como elemento final de análise das noções de dispositivo vindas de Michel Foucault e que são de extrema importância para o paralelo com os dispositivos documentais, encontramos o discurso como uma das forças de maior importância para a renovação e o molde dos dispositivos. O discurso está impregnado no dispositivo, partindo do pressuposto da rede de ligações, o discurso é a ferramenta mais explorada para desenvolver estas relações, ele atua como disseminador de fatos, de informações, possibilitando a formação de novos pensamentos e ativações para as linhas de tensão.

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O discurso se modificou ao longo do tempo, mudou sua subjetivação, aliando outros elementos e outras referências as suas funções e objetivos:

“Ora, eis que um século mais tarde, a verdade a mais elevada já não residia mais no que era o discurso, ou no que ele fazia, mas residia no que ele dizia: chegou um dia em que a verdade se deslocou do ato ritualizado, eficaz e justo, de enunciação, para o próprio enunciado: para seu sentido, sua forma, seu objeto, sua relação a sua referência.” 3

Tendo força em seu enunciado, o discurso muda o seu foco de atuação, fazendo valer o poder que tem de formular sabedoria e atuar como órgão de comunicação transmissor de conhecimento:

“Nenhum saber se forma sem um sistema de comunicação, de registro, de acumulação, de deslocamento, que é, em si mesmo, uma forma de poder e que é ligado, na sua existência e no seu funcionamento, às outras formas de poder. Nenhum poder, ao contrário, se exerce sem a extração, a apropriação, a distribuição ou a retenção de um saber. Neste nível não há conhecimento de um lado e sociedade de outro, ou a ciência e o Estado, mas as formas fundamentais de saber-poder.” 4

O discurso dentro dos dispositivos funciona também como forma de organização e disseminação de sabedoria e poder, formulando associações e atualizando o mecanismo em trabalho conjunto com as linhas de tensão. O discurso se torna um dos elementos centrais de trabalho das linhas de tensão, pois modifica o panorama do dispositivo toda vez que se manifesta:

“De um modo mais geral, deve-se considerar que não existe enunciado – no sentido foucaultiano – que seja livre, neutro e independente. Todos são sempre parte integrante de um jogo

3 FOUCAULT, Michel. A ordem do discurso. Edições Loyola, São Paulo, 1996. 4 IDEM

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associativo; eles se recortam sempre no interior de um campo enunciativo”.5

Assim o discurso compõe um campo enunciativo novo a cada dispositivo em que atua; nos dispositivos documentais verificamos o discurso como parte central do processo de fabulação de um personagem, através do conjunto de enunciações que executam, esses personagens se permitem desenvolver ao longo da experiência do dispositivo, obedecendo à atualidade do mecanismo e o fazendo funcionar.

5 GUATTARI, Félix. 1985 – Microfísica dos poderes e Micropolítica dos desejos. 7letras, Rio de Janeiro, 2007.

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2- O DISPOSITIVO E O CINEMA DOCUMENTAL

Tendo exposto e analisado as teorias que dão base à noção de dispositivo, o trabalho agora é direcionado a explorar os caminhos e os acontecimentos que fizeram com que o dispositivo entrasse na rota de produção do cinema documentário. Analisar tópicos e discussões históricas da arte documental que contribuíram para os dispositivos documentais existirem e funcionarem, privilegiando a discussão para o cinema nacional.

Para analisarmos qualquer movimento relacionado ao cinema documental brasileiro, é indispensável pensar no todo divido em duas partes:

documentário moderno, e documentário contemporâneo. O primeiro engloba a onda

de produção que teve destaque nos anos 60 com filmes como Viramundo(1965) de Geraldo Sarno, Lavrador(1968) de Paulo Rufino, Opinião Pública(1966) de Arnaldo Jabor entre outros, e a segunda onda, a contemporânea que tem seu início baseado em uma mudança significante no foco das obras no início da década de 70 com nomes como Arthur Omar e Aloysio Raulino, mas que viria a se consolidar durante a década de 80 com cineastas como Eduardo Coutinho e Jorge Furtado.

A principal mudança (no que diz respeito a este projeto) de uma fase para outra foi, além do barateamento dos custos de produção e da captação de som direto, a mudança de rumos quanto à voz e os interesses dos documentaristas. O mundo observava a renovação e a criação de novos modelos de representação de realidade, o cinema direto e o novo cinema verdade traziam novas ideologias na maneira de se realizar um filme, e foram as principais influências do cinema documental brasileiro da era contemporânea:

“Mais do que um estilo, (...), o Cinema Verdade inaugura uma nova ética dentro do documentário, marcada pela noção de reflexividade. O contexto ideológico que cerca o surgimento do Cinema Direto/Verdade mostra, portanto, a confluência de um salto qualitativo tecnológico, acompanhado imediatamente de uma revolução estilística, que desemboca no estabelecimento de uma nova ética para o documentarista. Aos nos depararmos com o discurso ideológico dominante hoje, que sustenta a produção documentária, podemos verificar que este

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discurso tem fortes raízes nas propostas e nos questionamentos do Cinema Verdade”.6

O cinema direto e o cinema verdade conduziam novas maneiras de representação de realidade. Dentre as diversas modificações que compuseram no cenário mundial, as duas correntes instauraram novos modos de abordagem ao processo de se documentar, com destaque para o modo observacional escancarado pelo cinema direto e o modo interativo bastante praticado pelo cinema verdade. Segundo a definição de Bill Nichols para os modos desenvolvidos, o primeiro consiste em defender a não intervenção, não existe representação neste modo, o contato dos atores com a equipe é mínima, procurou-se “comunicar um sentido de acesso imediato ao mundo, situando o espectador na posição de observador ideal (DA-RIN, 2006. p134)”. O modo interativo explorava em mão contrária, a interação entre equipe e os “atores sociais”, a voz do cineasta é presente e parte responsável pela evolução do filme, não sendo negada esta interação em momento algum. As duas correntes continham diferentes concepções de abordagem, mas se focavam na representação do real através de personagens que interagiam e tinham mais relevância com a peça. O retrato clássico, o modo expositivo que explorava a generalização de imagens exemplares era renovado pelo discurso ideológico de exposição de figuras reais.

No Brasil, essas noções eram absorvidas e novas obras surgiram com influências enraizadas nestas correntes. Observamos na fase contemporânea do cinema documental brasileiro o surgimento do termo “outro de classe” elaborada por Jean Claude Bernardet no livro “Cineasta e Imagens do Povo”, em que o “outro de classe”, o marginal, o estereótipo que até então era analisado, entrevistado e mostrado pelo cinema no molde do modo expositivo, consegue dar voz à sua condição em forma de depoimento, rompe com o abafamento do cineasta e cria um novo panorama no cinema documentário brasileiro: o da construção de personagens reais, da possibilidade de intersecção entre o real e o fictício. Bernardet comenta tal processo no filme Tarumã(1975) de Aloysio Raulino:

“(...). Ela quer falar, entrega-se o filme a ela, o cineasta se curva diante do discurso do outro, diante do discurso de

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alguém das classes subalternas. Não é um discurso que ele provoque. É um discurso que se apresenta e que ele apresenta como autônomo. O desejo realiza-se: o outro de classe fala. Por isso, o aproveitamento dos recursos da linguagem cinematográfica é reduzido ao mínimo.”

Era preciso remodelar o sistema de análise dos fenômenos sociais para o cinema, a tendência propunha a troca do macro ao micro, um estudo que começava estruturado nas figuras baseadas no fim da pirâmide, que vivessem a situação e que se mostrassem como personagens reais, dialogando com o cineasta, que agora escutava e apreendia o discurso em vez de realizar um retrato unilateral; os cineastas como produtores de discurso já existiam, mas os cineastas como criadores ativos de realidade e de personagens que figuravam na margem da realidade e da ficção (os falsários de Deleuze) estavam se desenvolvendo.

“Todos os filmes de ficção tendem ao documentário, como todos os grandes documentários tendem à ficção. (...) E quem opta a fundo por um encontra necessariamente o outro no fim do caminho”.7

Com este argumento Godard discute um tema de extrema importância para o cinema documental e para a existência e desenvolvimento dos dispositivos documentais, que tem sua força no processo de fabulação dos personagens reais aliando o documentar juntamente com sua força ficcional, a força explorada como “potência do falso”.8

A persistente discussão que engloba o quadro ficção-documentário em âmbito mundial discute entre outras coisas, ferramentas narrativas que se utilizam dos dois gêneros, e a colocação dos personagens neste quadro, a transição e fabulação de um personagem tanto em uma ficção como em um documentário. Deleuze se arriscou a analisar e explorar os personagens ditos como “falsos”, ele coloca em seu célebre “As potências do falso” novas maneiras de se enxergar e de se analisar um personagem dentro de uma narrativa, em que a verdade e a informação são buscadas, porém, com a utilização de jogos, artimanhas, desvios de

7 GODARD, Jean-Luc. Godard par Godard. Paris: Éditions de lÉtoile, 1985. 8 Deleuze, Gilles. As potências do falso. São Paulo: Brasiliense, 1990.

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caráter que permeiam uma pessoa normal e não mais um estereótipo, Deleuze lança a discussão da imprevisibilidade da narrativa desenvolvida ao longo dos tempos e sua constante obsessão pela renovação. Para ele, “Há uma razão profunda para essa nova situação: contrariamente à forma do verdadeiro que é unificante e tende à identificação de uma personagem (sua descoberta ou simplesmente sua coerência), a potência do falso não é separável de uma irredutível multiplicidade. “Eu é outro” substitui Eu=Eu.”(DELEUZE, 2007, p163).

As renovações de estilo e de linguagem foram dando forma ao surgimento da maneira de se fazer documentários guiados por dispositivos, aliadas as noções teóricas vindas principalmente de Foucault, citado no capítulo anterior, o documentário dispositivo mistura as novas ondas de mudança narrativa cinematográfica e se esbalda nas novas possibilidades tecnológicas.

Eduardo Coutinho deixa claro que seu cinema vai se moldando com a escolha e a criação de dispositivos, sendo ele um dos primeiros cineastas no Brasil a usar e seguir o termo, apesar de ser um dispositivo muito mais fixado no recorte espacial do que na criação de uma narrativa em dispositivo, de um “jogo” a ser seguido, Coutinho delimita seu espaço de criação dos personagens, extrai as informações que deseja e fabula seus objetos de estudo dentro de um limite a ser respeitado. A partir desse processo, vemos uma preocupação com que outros diretores que filmam em formato dispositivo iriam extrair de Coutinho: o respeito com o espaço recortado e com a narrativa escolhida; a possibilidade de não se obter um filme a partir de sua escolha, mas o trabalho árduo de criação e execução para que se torne um, sempre respeitando as linhas de tensão que circundam o documentário. Edifício Master(2002) é um belo exemplo da escolha por um dispositivo espacial: A partir do edifício, o diretor estrutura de forma única um processo de construção de personagens reais, utilizando-se da entrevista como forma de “desabafo” dos personagens e retirando de um pequeno recorte espacial e social, questões de amplitude geral. Vemos neste exemplo o uso de métodos oriundos do cinema verdade/direto, mesclam-se as duas escolas, explora-se o modo interativo através do contato de Coutinho com os personagens e da evolução destes em cena. A atenção do filme é toda voltada aos conflitos e as opiniões das personagens, observando-se com clareza a mudança de foco que era proposta pelas novas correntes documentais.

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Os dispositivos documentais ganham visibilidade no Brasil na era da retomada do documentário nacional, no início dos anos 2000. Essa vertente busca mesclar as influências do passado com novas possibilidades de linguagem, além dos já citados modos observacional e interativo, os dispositivos documentais exploram com intensidade o modo reflexivo, analisado por Bill Nichols como resposta ao ceticismo frente à representação feita nos documentários. Este modo assume a representação diante da câmera e evidencia o caráter de artefato dos filmes, o processo de produção e a participação do diretor são visíveis neste modo.

Por levar o conceito de artefato à criação de suas obras, os dispositivos carregam como principal crítica a manipulação das idéias e conceitos que são passados ao público. Ora se é trabalhada a noção de dispositivo como um recorte, seja ele espacial ou na forma narrativa, existe um esforço do documentarista para que seja respeitada a sua escolha e para que o que se vê na tela resulte da adequação a sua escolha inicial: por conseqüência, teremos um controle, ou não, do que se assiste, transformando-se na principal crítica, mas também, no elemento mais interessante dos dispositivos documentais. Bill Nichols compara a atuação dos documentários com a de um advogado defendendo seu cliente: desta maneira o diretor funciona como o advogado que expõe o caso (o filme) de um determinado ponto de vista, defendendo seus interesses e seus personagens de uma maneira que eles não poderiam fazer sozinhos e que realizem seus interesses específicos.

O dispositivo documental assume na sua formulação, assim como em Foucault, a dinâmica e a constante movimentação do mundo, por isso, a utilização do dispositivo serve como artefato para criação de realidades frente à câmera. A concepção da experiência única é utilizada em um dispositivo documental a todo o momento; sabemos muitas vezes que tal realidade existe, porém, o dispositivo a tensiona e exibe os atores e elementos de forma exclusiva daquela experiência fílmica, caracterizando-o como “ativador de realidade”.

Analisando boa parte da produção brasileira que obedece a linha dos dispositivos documentais, observamos diferentes escolhas de estratégia, ativações do real de naturezas e de origens completamente diferentes, obras com apelo pessoal como no caso de 33(2004) de Kiko Goifman, na qual ele (o diretor) tem 33 dias para achar sua mãe biológica ou em Um passaporte húngaro (2003) de Sandra Kogut, em que a cineasta decide retratar o processo de obtenção do seu passaporte húngaro, com obras de abordagem mais aberta como em Acidente (2005) de Cao

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Guimaraes onde o filme se baseia em um dispositivo-poema, ou então com obras de recorte específico como no já citado Edifício Master (2002) de Eduardo Coutinho. O ponto desta discussão é que os dispositivos se formulam sem regra de criação, a aleatoriedade da escolha de um dispositivo diz respeito apenas à visão do diretor de extrair uma experiência e transformar em filme o que é proposto; nunca se sabe se um dispositivo dará certo ou não. Os diretores optam pela escolha de executar suas obras seguindo dispositivos de diferentes naturezas por acreditarem na força desta linhagem e na imensa oportunidade de criação e improvisação que lhes é oferecida. O cineasta Cao Guimaraes comenta o processo de concepção dos filmes e da importância de se seguir a proposta:

Ao planejar um filme, ao escolher um assunto, você de uma certa forma começa um processo de múltiplos recortes, do macro ao micro, do todo às partes. Você objetiviza um espaço real, prepara a cama onde seu olhar vai poder se deitar. Encontrar um lugar para se permitir estar perdido. Potencializar um descontrole necessário. Este movimento dialético entre o que vem de dentro e o que vem de fora gera um espaço entre, onde o filme habita. O importante é não perder este lugar de vista; lugar que é na verdade um fluxo onde as coisas se embaralham, esvaziam-se de si e revelam-se outras por algum momento. Este lugar é o lugar da câmera ligada diante de alguém ou alguma coisa. Este lugar é um momento, um dos muitos momentos mágicos do processo cinematográfico.9

O processo de construção de um dispositivo documental engloba várias etapas, apesar da aleatoriedade de escolha do mecanismo dos dispositivos, a decisão por uma estratégia leva o realizador a pensar em vários caminhos ao qual o filme pode seguir, possibilidades narrativas e estéticas estão entre as ordens mais importantes para formular-se um dispositivo forte e desenvolvível.

2.1- POSSIBILIDADES NARRATIVAS DE UM DISPOSITIVO DOCUMENTAL

São inúmeras as possibilidades contidas no processo de construção narrativa em um filme, seria impossível padronizar uma técnica renovável que

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experimenta novos horizontes a cada vez que é ativada, mas o propósito deste capítulo é discutir e ponderar visões dentro do processo de construção narrativa observada em um dispositivo documental.

Como já observado nos capítulos anteriores, vimos no Brasil e no mundo o processo de mudança de diálogo dos filmes documentais com o espectador: a já citada mudança de foco do documentário, o processo de construção das personagens reais se iniciava com Robert Flaherty, moldado a partir de um pensamento que hoje vemos como “elementar” no processo de documentar, a concepção formulada pelo criador do célebre Nanook of the North pode parecer simples, mas foi ele quem abriu as portas para a “interação” do cineasta com o personagem, tornando-se um processo altamente utilizado na maneira de se filmar, Flaherty dizia: “Só me sirvo de personagens reais, de gente que vive no local filmado porque, ao afinal das contas são, realmente, os melhores atores”. Um dos pais do documentário, ele abriria as portas para um futuro de “exploração” do ser humano e do ambiente em que se é filmado.

A narrativa então era moldada com um pouco mais de cuidado ao incluir efetivamente o personagem na criação da trama. Depois vieram outras escolas, outros teóricos e outras concepções de desenvolvimento, mas o que de fato interessa para a formulação de um paralelo com o cinema de dispositivos documentais é esta preocupação em elevar o personagem a outro status. Paul Rotha em 1936 já desenvolvia um pensamento de inclusão das personagens ao andamento e criação de filme:

“Evidentemente, só podemos chegar a uma expressão real e completa da cena e da experiência modernas se as pessoas forem relacionadas adequadamente com o seu ambiente. Para isto, é preciso criar e desenvolver o personagem. É preciso que as idéias não evoluam somente no tema, mas também na mente dos personagens, com os quais o público deve se identificar. Pois só assim o documentário atingirá seus objetivos sociológicos e propagandísticos.” 10

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Pensar na evolução da personagem como membro ativo e determinante em um documentário é firmado com o recurso tecnológico do som direto, este advento propicia uma mudança que vinha sendo programada, mas que toma “voz” com a consolidação técnica do som, o processo fílmico documental inteiro é de alguma forma reestruturada, pois com a inserção da voz dos “atores sociais” em questão, a base de interesse em uma peça era deslocada da imagem como um retrato para a imagem acompanhada da voz do sujeito que relatava a sua situação e de certa maneira não dependia exclusivamente dos recursos de apreensão da realidade vindas do documentarista. O som se tornava parte indispensável do processo fílmico, Mario Ruspoli examina o processo de transição de interesses na imagem, na montagem e conseqüentemente na construção narrativa de um filme:

“Ora, o som deve dirigir a imagem, e isto nos parecerá tão mais evidente quando imaginamos uma belíssima imagem,

ilustrando um conteúdo verbal insignificante, que seria automaticamente descartada da montagem, pois apresenta um

interesse puramente visual, que contradiz a pobreza verbal. Ao contrário, na montagem procuraremos conservar a todo custo uma imagem, ainda que pobre, mas que extrai da boca do homem um “momento” revelador, onde a coisa dita é

importante e bem captada pelo técnico de som. ”11

A técnica se desenvolvia dando aos realizadores margem maior a criação e ao desenvolvimento de linguagem, a “verdade no cinema” era trabalhada pelos autores com certa euforia, sendo concretizada pela retomada do termo “cinema-verdade” que vinha de Dziga Vertov com seu termo kinopravda, pelos franceses Jean Rouch e Edgar Morin que adicionam a colocação novo ao termo fazendo isso para se diferenciarem dos métodos do cinema de Vertov, mas que seria complacente com o ideal do soviético de fuga dos lugares fechados e da retratação da vida nas ruas:

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“Refiro-me ao filme dito documentário e não ao filme romanesco. Claro, é pela via do cinema romanesco que o cinema alcançou e continua alcançando suas verdades mais profundas: verdades das relações entre os amantes, parentes, amigos, verdades dos sentimentos e das paixões, verdades das necessidades afetivas do espectador. Mas há uma verdade que o cinema romanesco não pode captar e que é a autenticidade do vivido”.12

A autenticidade do vivido proporcionada pelo documentário seria a grande questão do novo cinema verdade e do cinema direto criado nos Estados Unidos, seguida e almejada também pelos diretores brasileiros que optam pelos dispositivos documentais como reformulação narrativa as estratégias propostas por tais movimentos. Os ideais destas escolas serviram de base para a formulação dos dispositivos propostos pelos brasileiros em questão, tais visões e idealizações da maneira de se filmar foram condensadas e abordadas com uma nova realidade a ser tratada e uma nova plataforma a ser desenvolvida, mas com claras referências ao passado. As pretensões do cinema verdade e do cinema direto podiam ser vistas como as mesmas, assim como as dos dispositivos, mas o método como eram ativadas e desenvolvidas se diferenciavam, as narrativas eram incitadas de maneira diferente e até hoje são (no caso dos dispositivos), causando nos filmes a sensação de atualidade proposta e dissecada neste projeto através da visão de Foucault.

“O documentarista do cinema direto levava sua câmera para uma situação de tensão e torcia por uma crise, a versão de Rouch do cinema-verdade tentava precipitar uma. O artista do cinema direto aspirava à invisibilidade; o artista do cinema-verdade de Rouch era freqüentemente um participante assumido. O artista do cinema direto desempenhava o papel de um observador neutro; o artista do cinema-verdade assumia o de provocador.” 13

12

ROUCH, Jean; MORIN, Edgar. Crônicas de um verão, Paris: Interspetacles, 1962.

13 BARNOUW, Erik. Documentary: a History of the Non-Fiction Film. Nova York: Oxford University Press, 1974.

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Diferentes abordagens para um bem comum: o da ativação de realidade; era assim que o processo narrativo se desenvolvia propiciando aos personagens uma interação e “responsabilidade” maior no resultado do filme que vemos bem incorporada e seguida pelos dispositivos, e não só por meio das palavras e dos depoimentos, mas também pelo processo de exposição da personagem que engloba uma série de estratégias efetuadas pelo diretor para se chegar ao ponto de fabulação e de exposição desejados, as estratégias de ativação identificadas por meio das linhas de ativação nos dispositivos documentais já eram escancaradas por Rouch, Cassavetes e seus contemporâneos, o que vemos com esta citação de Barnouw são questões como a pessoalidade ou falta dela no processo de ativação de realidade ou então a liberdade ou contenção de espaço para os atores agirem, todos estes são elementos que foram anunciados e que depois migraram ao Brasil para desenvolverem-se de outra maneira. Morin dizia ainda que o que lhe “interessa não é o documentário que mostra as aparências, é uma intervenção ativa para ir além das aparências e extrair delas a verdade escondida ou adormecida (ROUCH e MORIN, 1962: 29-30)”, buscando levar as telas um processo de criação narrativa que atendesse a tais aspirações.

A narrativa documental se desenvolve questionando sempre sua atualidade, e se valendo de mais e mais artifícios para que a realidade seja encarada de maneira diferenciada. No Brasil desde a discussão do “outro de classe” viu-se a evolução de linguagem ser amparada pelo suporte técnico e altamente espelhada nos movimentos citados acima como duas de suas principais influências. Em um primeiro momento, a “palavra” se torna o elemento de maior fascinação dos cineastas brasileiros, em específico de Eduardo Coutinho, que constitui no poder da “palavra” de fabular seus personagens a grande marca de construção narrativa de seu cinema. Desenvolver as personagens era desenvolver o método de interação com elas, a fabulação é existente e mais ou menos identificada, cabe ao diretor criar métodos para que o ator do processo se sinta à vontade para fabular-se em um nível satisfatório e de alcance de uma “realidade momentânea”. Coutinho atinge um nível de interação altíssimo com seus personagens, isso é notado nas telas, é passada a sensação de que os objetos de estudo têm para quem falar, não são tratados de longe, o diretor consegue digerir as influências e adaptá-las a realidade em que filma, de filme em filme nota-se a evolução da entrevista e da fabulação que é atingida.

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“O fundamental é o seguinte: não pode ser nem de baixo para cima nem de cima para baixo. O grande problema é a relação que você tem com o outro na filmagem. A primeira coisa é estabelecer que somos diferentes (...) só a partir de uma diferença clara é que você consegue uma igualdade utópica e provisória nas entrevistas. Quando me dizem: as pessoas falam para você. Sim, falam, e eu acho que é por isso: porque sou o curioso que vem de fora, de outro mundo e que aceita, não julga. A primeira coisa, a pessoa não quer ser julgada. A pessoa fala, e se você, como cineasta, diz: essa pessoa é bacana porque ela é típica de um comportamento que pela sociologia... aí acabou. (...) o essencial é a tentativa de se colocar no lugar do outro sem julgar, de entender as razões do outro sem lhe dar razão. Cada pessoa quer ser ouvida na sua singularidade. Eu tento abrir dentro de mim um vazio total, sabe?”14

Com essa passagem Coutinho libera o teor de seu processo de fabulação, que não pode ser julgado como certo ou errado; os resultados são exibidos ao público que adere ou não as visões expostas por ele. O diretor se utiliza desses processos de aproximação com os personagens permitindo-o atingir um alto grau de fabulação, aliando ao seu processo de criação narrativa em boa parte de seus filmes o recorte espacial, a criação de dispositivos espaciais que tratam das mais diversas questões imersas em um cenário recortado cuidadosamente. Esta noção de recorte está presente como mecanismo de desenvolvimento narrativo nos dispositivos documentais, que se permitem desenvolver a narrativa dentro de um espaço previamente pensado, não que os dispositivos não transbordem esta margem traçada, mas funcionam com um mínimo de espaço comum onde possam atuar.

Os dispositivos exploram a riqueza narrativa que as diversas escolas do cinema deixaram, não se atendo a uma ou outra doutrina, a sensação de mistura de influências e características é o que transformam os dispositivos em uma

14 COUTINHO, Eduardo, Entrevista, Cinemais, revista de cinema e outras questões audiovisuais, Rio de Janeiro, n. 22, 2000

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plataforma de execução plural, sem amarras específicas para a sua execução. Lucas Bambozzi, produtor e videomaker diz ser “legítimo que se queira sempre reinventar formas narrativas, que a estrutura e o conteúdo prevaleçam sobre aspectos formais outrora explorados exaustivamente, o que gerou camisas-de-força estilísticas e representou a estagnação para muitos realizadores(BAMBOZZI, 1996: p 76)”. A visão de Bambozzi traduz uma realidade do momento audiovisual, onde não se existe uma grande teoria ou uma grande escola cinematográfica a ser seguida e sim um momento de convergência de culturas e métodos de execução, o artista ainda comenta o panorama documental de produção em vídeo, e seus aspectos narrativos e estilísticos:

“Ou seja, o vídeo já fala da vida. Sua relação narcísica se dá hoje menos com a tecnologia que o possibilita (e o reinventa) e muito mais com o próprio “eu” interiorizado nos contornos de personagens e dos autores. As novas produções documentais se destacam especialmente pela inventividade e pelo suposto descompromisso com o factual, realizando transposições do real para um espaço imaginário, muitas vezes incorporando subjetividades - em alguns casos resultando na sofisticação da linguagem. Narrativas se afirmam dentro do âmbito pessoal e passam a retratar o vasto campo das inquietações humanas. Ocorre com mais freqüência o encontro entre o tema, o objeto de interesse e a noção de obra – agora mais como intenção e menos como casualidade. A produção atual, apesar de escassa, vem se permitindo contudo a coragem da eterna redescoberta da linguagem. Ás vezes fazendo malabarismos ao se sustentar no âmbito da sofisticação e da “construção de sentido”, ás vezes enunciando a autoria com sinceridade e clareza.”15

A “redescoberta de linguagem” que Bambozzi trata no trecho acima é permanente na noção do dispositivo documental, a própria estratégia de jogo

15 BAMBOZZI, Lucas, O contexto do vídeo no Brasil, America With/Out Borders, Video Data Bank, Chicago, 1996.

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evidencia este fato, ao passo que a cada jogo proposto, a cada dispositivo iniciado, temos uma nova configuração dos fatos e por fim a tentativa de redescoberta de uma nova linguagem. No premiado Acidente (2005), Cao Guimaraes e Pablo Lobato criam uma nova concepção que chamam de dispositivo-poesia na qual extraem a narrativa do filme a partir do nome de 20 cidades mineiras que viram uma poesia, os dois partem e filmam suas impressões sobre tais cidades, a imagem adquire força máxima em detrimento de uma narrativa que a princípio se torna vazia, mas com primazia os dois conseguem fazer um retrato pessoal e artístico das cidades, fixando o filme na idéia inicial do dispositivo: que era montar uma poesia com os nomes e gravar imagens e retratos quase que instantâneos dos lugares visitados. Os realizadores não buscavam mapear as cidades e explorá-las como pontos de interesse turístico, mas sim mapear as cidades e tirar impressões delas enquanto estas estivessem sendo “ativadas”. Consuelo Lins comenta o processo de relação entre os idealizadores do projeto e a temática do filme:

“O poema implicava uma abertura na relação com as cidades que essa temática da origem destruía. “Excluiu-se, portanto, o assunto, e o filme ficou sobre assunto nenhum”, diz Cao Guimarães.”16

Seria impossível especificar as possibilidades narrativas de um dispositivo documental, o que foi tratado e discutido nesta passagem foram alguns dos caminhos que se deram para que os dispositivos documentais assumissem suas premissas narrativas com o decorrer do tempo, entender de onde vieram suas principais influências e aspirações narrativas ajudam na compreensão de um processo de criação pouco comprometido com alguma linha específica ou com alguma doutrina limitadora. Fecho esta passagem com uma citação de Ieda Tucherman sobre dispositivos, que carrega um pouco de tudo que foi discorrido nestas páginas:

“Um dispositivo é um regime, para começar, e não um equipamento; um regime fazer ver e fazer dizer, que distribui o visível e o invisível, fazendo nascer ou desaparecer o objeto que não existiria fora desta luz; assim não devemos buscar

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sujeitos e objetos mas regimes de constituição de sujeitos e objetos.”17

2.2- POSSIBILIDADES ESTÉTICAS DE UM DISPOSITIVO DOCUMENTAL

Discutir estética é primeiramente discutir o entendimento da palavra para o meio em que se decide analisá-la, “a ciência do belo” é observada em todos os segmentos artísticos de nossa sociedade, sendo responsável pela reunião de elementos de caracterização e distinção entre as artes. A noção de estética cinematográfica e mais especificamente contida em um dispositivo documental que abordaremos neste trecho concentra-se em tratar de questões pertinentes a formação de um consenso estético e estilístico das imagens geradas a partir de um dispositivo documental, analisando o mecanismo que os diretores exploram as possibilidades de criação da imagem.

A estética cinematográfica se estende por várias definições, Jacques Aumont a define também como “a possibilidade de uma poética do cinema – ou seja, de uma concepção geral da natureza do cinema, da criação fílmica, da relação do fílmico com o mundo afílmico ou profílmico”18

,que se atém tanto na esfera narrativa quanto na imagética, Aumont a define como um elemento distinto, de absorção de influências vindas de outras áreas mas que se cria e desenvolve a partir do seu uso exclusivo e pensado para o cinema.

Obter uma escritura cinematográfica era um dos passos a fim de se chegar a uma estética cinematográfica estabelecida, diversos cineastas tentaram a partir de seus processos de criação estabelecer algo parecido a uma escritura, algum padrão que obedecesse aos seus anseios, porém cabia a cada um o seu próprio método de concepção e a sua própria definição do que seria uma escritura cinematográfica ideal. Dziga Vertov defendia “a vida de improviso”, a pouca ou quase nenhuma interferência no processo de captação documental, mas obtinha a sua escritura fílmica complementada no processo de montagem:

“Durante quinze anos eu aprendi cine-escritura. Eu aprendi a arte de escrever não com uma caneta, mas com uma câmera.

17

TUCHERMAN, Ieda, Michel Foucault, hoje ou ainda: Do dispositivo de vigilância ao dispositivo de exposição da intimidade, Foucault Hoje, 7Letras, Rio de Janeiro,2007.

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A falta de um alfabeto cinematográfico me perturbava. Eu tentei criar este alfabeto. Eu me especializei na “cine-escritura dos fatos”. Eu me esforcei para me tornar um cine-escritor das atualidades. Eu aprendi este ofício diante de uma mesa de montagem.”19

Vertov construiu sua própria escritura, seu próprio método de montagem que se compunha de um espaço-tempo descontínuo, Flaherty optou pela continuidade narrativa, pela construção de uma unidade narrativa bem estabelecida, e assim outros cineastas criavam suas próprias maneiras de se “escrever” uma peça documental, mas o que se verificava era a criação de estilos diferentes. O estilo a que todos obedeciam era ao documental, mas desenvolviam dentro deste, vários outros estilos de se abordar a mesma prática:

“O estilo é a parte de expressão deixada à liberdade de cada um, não diretamente imposto pelas normas, pelas regras de uso. É a maneira de se expressar própria a uma pessoa, a um grupo, a um tipo de discurso. É também o conjunto de caracteres singulares de uma obra de arte, que permitem aproximá-la de outras obras para compará-la ou opô-la. A história da arte, porém, evidenciou recorrências estilísticas, que permitem definir “estilos” mais globais, caracterizando não mais um artista, uma obra, e sim conjuntos de obras, às vezes vastos (“períodos”, por exemplo, como o clássico, o barroco, etc.). ”20

Os dispositivos documentais são claramente outro estilo de documentar, que se diferenciam por estarem em um grupo utilizador em partes da mesma técnica narrativa. O âmbito estilístico que será debatido após esta breve introdução será o imagético, como são tratadas as imagens dos dispositivos a partir de sua ativação, desde sua concepção à sua qualidade técnica e importância para o andamento e suporte do filme.

19 “Derniére Expérience”. Op. Cit, 1972:181.

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A principal diferenciação no trato da imagem, e não só nos dispositivos documentais, são as propostas que o filme seguirá, a proposta dá uma abertura maior ou menor ao desenvolvimento de uma imagem mais poética e de estética mais trabalhada. Pelo fato dos dispositivos documentais trabalharem uma estratégia inicial a qual seguirão, alguns filmes adotam desde o começo sua preocupação pela estética da imagem, a proposta os permite desenvolver este quesito mais do que em outros filmes, se tornando elemento central para realização do dispositivo, enquanto em outros casos, a estética da imagem é trabalhada como auxílio ao que é buscado pelo dispositivo, deixa-se de lado a preocupação excessiva pela estética em detrimento do dispositivo “narrativo”.

Como elementos de análise serão debatidos os filmes Acidente (2005) de Cao Guimarães e Pablo Lobato e 33(2002) de Kiko Goifman, que demonstram diferentes tratamentos estéticos a imagem exibida, um utilizando-se de elementos estéticos como ponto central e o outro os utilizando como elemento de complementação a carga dramática do filme.

Já citado anteriormente, o filme Acidente se trata de um experimento executado por Guimaraes e Lobato classificado como dispositivo-poema, que tem como mote central a construção de um poema a partir de 20 nomes de cidades mineiras, eles as escolhem e filmando em suporte digital e também super-8, retiram suas impressões e fragmentos das cidades visitadas. O filme é estruturado então em uma série de retratos pessoais, em momento algum se verifica documentação histórica ou investigativa, o foco das filmagens é de teor ilustrativo aos nomes formuladores do poema, abrindo-se um leque enorme de possibilidades estéticas à execução das imagens.

Ao se decidirem pelas 20 cidades, os diretores não têm escolha de mudança no roteiro das visitas, o funcionamento do dispositivo os “força” a trabalhar com os nomes pré-estabelecidos, sendo esta a única imposição da proposta cabe aos realizadores criar e ambientar estes lugares como bem entenderem, a duração, os personagens e a forma como serão dispostos pouco importam para a realização do dispositivo, abrindo total liberdade à concepção imagética do filme. O que se vê é a construção de fragmentos esteticamente belos, a única preocupação é retratar questões de cunho pessoal e “repousar” o olhar sobre elementos de destaque em cada local. A seqüencialidade das imagens pouco importa, estas não contêm carga referencial, tira-se o peso do retrato geográfico intenso para investir-se em planos

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seqüencia bem construídos e de fluidez natural, o dispositivo propicia esta abertura e necessita de tal, o teor lúdico com que as imagens são expostas evidencia a preocupação por se poetizar uma realidade banal, um cotidiano que não contêm motivo especial para ser filmado além de sua beleza bem criada por Cao e Pablo.

“E estamos falando em cinema, e não em pinturas ou quadros fixos. A construção das imagens e seus encadeamentos são feitos por Cao Guimarães e Pablo Lobato tendo sempre em mente o dispositivo que utilizam. Se o cinema é capaz de criar imagens em movimento, os diretores não abrem mão de explorar suas instigantes e variáveis possibilidades”21

.

O dispositivo de Acidente se ativa e se desenvolve privilegiando a parte estética das imagens, Consuelo Lins diz que “trata-se de um documentário em que a dimensão propositiva do dispositivo se mistura a uma dimensão mais plástica, contemplativa e formal”, “o filme aposta na ampliação das possibilidades de “interesse” do documentário, geralmente fadado à relevância e a objetividade temáticas (LINS, 2008 p.61)”, desde sua concepção existe este interesse em explorar as imagens de forma artística e de dar interesse ao teor plástico da obra, pois ao definir que as cidades escolhidas em questão serviriam tão somente para formarem o poema, exclui-se qualquer outro vínculo de criação narrativa senão a visita, elas se transformam em instrumentos de poetização da imagem, em laboratórios reais dos diretores, que não precisam investigar os lugares ou se apreenderem em algo específico que aconteça na cidade. A câmera se torna livre para construir um cenário que julgue interessante, que adicione beleza à narrativa baseada em imagens bem concebidas.

Se em Acidente temos na plástica das imagens o ponto de interesse central da peça, em 33, notamos que toda a concepção estética do filme parte do pressuposto narrativo instaurado pelo dispositivo. No trabalho de Kiko Goifman, o diretor filma a busca por sua mãe biológica num prazo de 33 dias, que corresponde a sua idade, e no decorrer destes dias segue o dispositivo baseando a construção narrativa e também estética nos métodos bem conhecidos dos detetives

21 Revista Contracampo de cinema. Acidente, 2006

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clássicos. Com claras referências a estes, Kiko trata suas imagens baseadas em filmes de estética noir, desde a escolha do branco e preto como quanto as imagens de busca em constante movimento e de suspense, em lugares incertos de clima tenso e de expectativa.

O interesse principal de Kiko é com certeza a busca por sua mãe biológica, mas a construção das imagens complementa de maneira rica o propósito do filme, optar por uma roupagem de molde noir faz com que o filme possibilite novas fabulações, personagens e caminhos a serem seguidos. A intervenção do diretor é esperada, pois se trata de uma causa extremamente pessoal, e ele a faz respeitando a estética seguida pelo filme: confissões como se fossem para um diário, depoimentos no decorrer do processo, toda ambientação das imagens seguindo a linha do diário de um detetive.

O cuidado com a imagem é evidente, mas nota-se que diferentemente do caso de Cao, Kiko não estende o dispositivo quase que inteiramente ao cuidado estético da imagem, ele precisa entrar em lugares que não se permitem câmeras, entrevistar pessoas e sair às ruas em busca de informações, por isso em determinados momentos as imagens privilegiam o conteúdo, e fazem isso porque necessitam. Nos momentos em que dialoga com a câmera ou confessa algo, o diretor preenche o filme com imagens de situações incertas, de ambientes por vezes amplos como vistas panorâmicas e por vezes sufocantes como lojas e pessoas com feições irreconhecíveis passando rapidamente, o que acrescenta dramaticidade a busca, as imagens de incerteza se estendem ao longo do filme, em certo ponto sente-se que o diretor não tem mais por onde explorar seu dispositivo, que já esgotou suas possibilidades, ou que não dispõe mais de recursos criativos para preenchê-lo, mas mesmo assim com o tratamento que dispõe às imagens ele de certa forma consegue segurar a atenção do espectador e completar as lacunas existentes no filme.

Nestes dois exemplos temos processos de criação estética da imagem que se diferenciam pela abertura que os dispositivos propiciam aos cineastas, se em um o dispositivo o faz fundar seu filme na composição estética da imagem com cuidado quase que exclusivo a ela, no outro a estética das imagens complementa a força narrativa do dispositivo, servindo de roupagem necessária para a fabulação de uma realidade desejada. A escritura cinematográfica dos dois é diferente, pertencem ao mesmo estilo, o de basearem suas narrativas em dispositivos

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documentais, mas desenvolvem sua escritura e seu estilo próprio, valendo-se de maior ou menor cuidado estético e estilístico à imagem.

As possibilidades estéticas em uma peça documental fundada nos dispositivos são diversas, estes exemplos servem como base para a formulação de um pensamento que consiste na força do dispositivo de formular os seus interesses, o dispositivo já é concebido com uma mínima idéia por parte do cineasta de por onde se caminhar, por que meios o filme tende a se fabular mais e a concluir o projeto com satisfação, a estética das imagens é mais um desses diversos caminhos aos quais os dispositivos documentais tendem a se fabular e a ganhar notoriedade.

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O DISPOSITIVO E SUAS LINHAS DE

ATIVAÇÃO

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3- O DISPOSITIVO E SUAS LINHAS DE ATIVAÇÂO

Tratar das linhas de ativação em um dispositivo documental é uma tarefa de extrema abstração e para isso o capítulo se inicia com duas citações que situam de que forma estas linhas estão presentes em uma obra. A primeira será uma reutilização da citação de Gilles Deleuze já usada no capítulo Breve noção

sobre dispositivo deste trabalho e a segunda explorará a questão das linhas de

ativação diretamente relacionadas à questão dos dispositivos documentais:

“As diferentes linhas de um dispositivo repartem-se em dois grupos: linhas de estratificação ou de sedimentação, linhas de atualização ou de criatividade. A última conseqüência deste método engloba toda a obra de Foucault (DELEUZE, 1996)”.

A segunda citação é de Cezar Migliorin, que se atém a questão das linhas para a execução de uma obra:

O dispositivo é a introdução de linhas ativadoras em um universo escolhido. O criador recorta um espaço, um tempo, um tipo e/ou uma quantidade de atores e, a esse universo, acrescenta uma camada que forçará movimentos e conexões entre os atores (personagens, técnicos, clima, aparato técnico, geografia etc.). O dispositivo pressupõe duas linhas complementares: uma de extremo controle, regras, limites, recortes; e outra de absoluta abertura, dependente da ação dos atores e de suas interconexões; e mais: a criação de um dispositivo não pressupõe uma obra. O dispositivo é uma experiência não roteirizável, ao mesmo tempo em que a utilização de dispositivos não gera boas ou más obras por princípio.22

Essas duas visões certamente facilitam a visualização das linhas dentro de uma obra, deixam claro o sistema de como trabalham, impondo limites, sobretudo na parte espacial e organizacional da obra. É necessário seguir algumas imposições, geralmente imposições feitas pelo próprio dispositivo, como no caso de

Rua de Mão Dupla (2003) de Cao Guimaraes, no qual os participantes do

22 MIGLIORIN,Cezar. O dispositivo como estratégia narrativa. Revista Acadêmica de Cinema Digitarama, 2005.

Disponivel em: http://www.estacio.br/graduacao/cinema/digitagrama/numero3/cmigliorin.asp. Acesso em 09 maio.2009

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dispositivo têm de passar um dia na casa de um estranho, convivendo com os pertences do outro e gravando o que lhes for mais interessante (o diretor deixa a câmera com o participante). Assim, no dia seguinte, com as “impressões” gravadas eles, debatem para a câmera como imaginam que seja o dono do lugar. Nesta obra fica clara a utilização da linha de sedimentação, impondo limites para a execução da obra, acima de tudo para a ativação do dispositivo; se o dispositivo neste caso é trocar as pessoas de ambiente e lhes dar uma câmera pra que filmem o que quiserem e depois recolher depoimentos destas, é obvia a necessidade de limites para que esse panorama aconteça como escolher as pessoas, disponibilizar os equipamentos e todas as outras partes de um processo de produção. Mas, além disso, a linha de sedimentação funciona aqui como as regras do jogo, no momento em que os atores são determinados e aceitam participar do filme. O dispositivo é ativado e a partir daquele momento a linha de sedimentação fica clara e concretizada, dando suporte ao funcionamento da segunda linha presente no processo, a linha de criatividade.

Com as cartas na mesa, a linha de criatividade atua como fabuladora de uma nova realidade e como uma espécie de narrativa instaurada na obra. No caso de Rua de mão dupla, tal linha se mostra mais ampla do que os indícios que o processo de ativação da linha de sedimentação promete. O trabalho de transformação dos personagens é todo apoiado na criatividade desta linha. Por isso, é possível juntar a concepção foucaultiana de rede de ligações estabelecidas no dispositivo, pois no filme de Cao, os personagens têm de se relacionar e atualizar os seus pensamentos a todo o instante: analisar o outro é também analisar a si mesmo, sendo este o grande trunfo da linha de criatividade instaurada neste dispositivo. Já dentro da esfera da linha de criatividade o diretor não impõe nenhum limite quanto à linguagem, quanto ao que deve ser filmado e ao que deve ser relatado no dia seguinte. Cabe a ele (diretor) acreditar no dispositivo, criar um ambiente em que incite os personagens a se aprofundarem na proposta e colaborarem para o andamento do dispositivo. A máxima da liberdade nesta linha é que o diretor não controla em momento nenhum o que é gravado, nem narrativamente, nem tecnicamente: vemos a criação de uma narrativa dividida entre personagem e diretor, que funciona apenas como organizador de tais retratos.

O trabalho das linhas de ativação parece óbvio, uma estrutura o filme e a outra dá liberdade aos atores para que possam desenvolver o proposto, mas tal

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tarefa não se resume a essas simples resoluções. É necessário um pensamento estrutural e de abstração na estrutura do filme, pois um dispositivo sempre será vago até a sua ativação, até o momento de sua realização. Preparar o terreno, por mais fantasioso e às vezes não muito verossímil que seja está no domínio do diretor para que o dispositivo se desenvolva.

No caso de Um passaporte húngaro (2003), a diretora Sandra Kogut decide apoiar o dispositivo de seu filme no processo de obtenção do seu passaporte húngaro. Temos então, aparentemente um panorama não muito inovador: ela supostamente filmaria a burocracia de tirar seu passaporte húngaro através das leis do Brasil, já que é brasileira, porém, a diretora consegue transformar o seu filme em um estudo muito mais abrangente do que apenas uma “aventura” de tirar seu passaporte. Ela inicia o filme ativando o dispositivo para ela e para o espectador: vemos um telefone e escutamos em francês que ela não conseguirá tirar o passaporte húngaro; Essa é uma das várias questões que o filme já levanta no seu início e neste instante percebemos que a diretora se utilizará de propostas que até então não eram “imagináveis”, como dar entrada ao processo através da embaixada húngara na França. No entanto a partir daí o dispositivo nos leva em uma trama de “busca” muito bem estruturada, explorando diversas possibilidades em suas linhas de ativação.

Neste filme vemos um dispositivo extremamente carregado de questões pessoais à primeira vista, pois se trata de um processo que diz respeito apenas à diretora, mas, temos um filme que se desenrola mostrando a atuação das duas linhas, a de sedimentação e a de criatividade trabalhando juntamente, explorando não apenas o caso da diretora, mas extraindo questões gerais, como a questão da identidade, questões históricas de imigração e de culturas diferentes que se condensam em meio a “busca do passaporte”. A diretora busca formar viável uma narrativa aceitável e interessante para a formulação de um filme e faz isso decidindo por incluir a França na rota do processo, além disso, ela explora os lugares sempre com a câmera na mão, decide investigar as questões da imigração dos países, visitar familiares na Hungria, entrevistar a sua avó que é húngara e que contextualiza o espectador sobre o viés histórico da vinda da família ao Brasil, levar o filme e o dispositivo a um estudo sociológico, mas que ainda sim é uma questão pessoal e intransferível. Tendo que visitar mais pessoas e estendendo o tempo de realização do seu filme, a diretora consegue atingir um alto nível de fabulação dos

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