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Para nascer, basta estar vivo: o trabalho da contratransferência na análise de casos fronteiriços

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Academic year: 2021

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Para nascer, basta estar vivo: o trabalho da

contratransferência na análise de casos fronteiriços

Morgana Mengue Saft Tarragó1

RESUMO

O presente artigo aborda questões acerca da temática da contratransferência como recurso privilegiado no tratamento de casos fronteiriços. Para isso, a autora des-creve, sucintamente, as manifestações contratransferenciais específicas em cada estrutura clínica, a fim de discriminar o que é sentido no analista e que pode pas-sar a ser instrumentalizado na relação analítica. Em seguida, avança a uma breve revisão da literatura, tendo em vista, especificamente, os impasses encontrados no tratamento destas organizações psíquicas, buscando referências norteadoras que deem pistas seguras acerca do que está implicado nesse quadro de limites psíqui-cos insuficientemente demarcados. Na terceira parte do artigo aborda especifica-mente as manifestações contratransferenciais, suas particularidades e desafios im-postos ao analista na clínica de casos fronteiriços. Por fim, suscitada pela vivência clínica e amparada por este estudo, sugere a proposição de uma atitude analítica nomeada ação específica do analista, mobilizada por comunicação inconsciente e transportada via contratransferencial. O título deste escrito remete à ideia de que o analista precisa ter capacidade e desejo de investir, com interesse, curiosida-de, inquietações e espaço psíquico para emprestar enquanto for necessário. Vivo, como quem empresta, enquanto necessário, o seu psiquismo para o analisando viver sua história e fazê-la passado. A contratransferência se presta como bússola analítica para acompanhar o analisando que busca, sem âncora à sua disposição, um porto seguro para marcar as fronteiras em seu psiquismo ainda incipiente. Palavras-chave: Casos fronteiriços. Contratransferência. Ação específica do analista.

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1 INTRODUÇÃO

[...] entendemos que a contratransferência, mais do que uma descarga catártica, pode ser uma forma de “trabalho do afeto”, percebido e processado pelo psiquismo do psicana-lista que, dessa forma, reintroduz a afetividade e a questão do sentir entre a dupla analítica (DALLAZEN; KUPER-MANN, 2017, p. 69).

O trabalho analítico ainda apresenta impasses, assim como apresentou nos primórdios da psicanálise no tratamento da histeria. Aprendemos com Freud que é imprescindível nos debruçarmos sobre as dificuldades clínicas para avançar teórica e tecnicamente. O interesse por este estudo se justifica, especificamente, pelos impas-ses encontrados na clínica de casos fronteiriços. A exigência constante de transitar entre “o vazio – que deverá ser preenchido – e o transbordamento – que precisará ser esvaziado” (GREEN, 1986, p. 48) –, em busca de um intercâmbio equilibrado, demanda que o psiquismo do analista tenha condições de criar vias de simbolização com “pacientes que apresentam dificuldade de simbolizar” (DALLAZEN; KU-PERMANN, 2017, p. 77). Contar com as produções possíveis via contratransfe-rência pode ser elemento raro, portanto, precioso, que nos ajuda a alcançar um bom equilíbrio que não extrapole em falta, tampouco em excesso.

Partindo da experiência clínica, podemos dizer que a escuta de sujeitos com estrutura neurótica nos remete a experimentar, contratransferencialmente, aspectos relativos às vivências edípicas de quem nos fala. Estão em jogo o conflito, a ambi-valência, o complexo de castração, o predomínio do amor sobre o ódio, o recalque, o reconhecimento da diferença, da alteridade e as angústias relacionadas. O que não sabemos daquele que escutamos ainda nos permite vislumbrar caminhos, mes-mo que estes estejam interrompidos ou eventualmente intransitáveis por conta de um recalcamento eficaz. Há uma estrutura organizada, as fronteiras psíquicas es-tão suficientemente delimitadas e os destinos da pulsão podem nos indicar trajetos razoáveis para utilização da técnica analítica dedutiva (GREEN, 1986, p. 44). O analisando neurótico exige o uso de nossas funções mentais, mais que capacidade afetiva ou empatia. A neurose se estabelece no domínio do pensamento, ainda que

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conserve um enclave protegido da prova de realidade e submetido ao princípio do prazer: a atividade fantasmática (CHASSEGUET-SMIRGEL, 1991, p. 290). No neurótico, sabemos que há uma falta do que houve (ROCHA, 2012).

Na perversão, a desmentida, quando inadvertidos pela inexperiência clínica, pode nos levar à baila de um mundo sem diferenças e nos deixar seduzir pela igualdade que desqualifica a Lei e acena para o engodo do se todos, eu também. O perverso se empenha em vasculhar os segredos mais íntimos do analista na busca de provar que, se mesmo ele passou pelo polimorfismo da sexualidade, porque

teria eu de abrir mão dele? Assim nos enfrenta o perverso. Contudo, na medida

em que a perversão se estrutura, temos notícias de um psiquismo marcado pela recusa (Verleugnung), pela dissociação, pelo ato onde haveria de estar fantasia. A cumplicidade libidinal erótica da mãe e a complacência silenciosa do pai, impe-dem a fantasia de sedução. Impõe-se a verdadeira sedução (ROCHA, 2012). Na contratransferência, é possível transitar pelas bordas de um poço que não se fez rio, não formou processos psíquicos mais elaborados que pudessem desaguar em destinos pulsionais cerceados pelo recalcamento. Assim se organiza a estrutura perversa: o ato perverso ao lado do ato mágico, entre a alucinação e a fantasia na luta, para não ruir na psicose.

A psicose se estrutura como uma organização defensiva contra a realidade in-tolerável e tenta, por consequência, substituí-la. A forclusão, mecanismo peculiar, incide na realidade externa, que é substituída pela realidade interna. Segundo Freud (1924a), na psicose, a transformação da realidade se efetua sobre precipitados psí-quicos de anteriores relações com ela, isto é, “sobre os traços de memória, as sentações (Vorstellungen) e os juízos, por meio dos quais a realidade se fazia repre-sentar no mundo psíquico” (FREUD, 1924a, p. 129). O que prevalece na psicose é a influência do Id. Contratransferencialmente, essa estrutura psíquica demanda que o analista duvide da certeza de uma fala fragmentada, mas hermeticamente fechada, que serve para tamponar os buracos da constituição psíquica. Há uma falha do que concerne à simbolização da ausência. Fruto de um Eu fragilizado em sua constitui-ção e refém da regressão deste, a psicose está marcada nestes aspectos alucinatórios: “confusão alucinatória e as alucinações esquizofrênicas geradas pelo retorno à fase de satisfação alucinatória do desejo” (CHASSEGUET-SMIRGEL, 1991, p. 290).

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Por fim, nos estados fronteiriços, o que os caracteriza “é a falta de organi-zação e de estruturação” (GREEN, 1986, p. 44). A fragilidade do Eu remete à existência de um limite que não protege e dificulta que a função analítica possa ser exercida com maior liberdade. Essas situações clínicas são consideradas como limites pelo fato de que a problemática central está situada na própria questão de fronteira psíquica. Nessas condições, o analista se esforça para encontrar um nível adequado de investimento. O analista, “[...] tende a oscilar entre posições subje-tivas, todas elas marcadas pela ameaça de desregulagem inerente à problemática dos limites e da perda da função-limite organizada no curso do funcionamento psíquico” (ROUSSILLON, 2007, p. 267).

Portanto, questionamos: seria o analista o agente da ação específica (FREUD, 1950 [1895]) atualizada, como aquele que antecipa e traduz o não representado no psiquismo do analisando, entregando-lhe sentidos possíveis?

Em síntese, a contratransferência na neurose se acena como caminhos aber-tos porque a passagem pelo Édipo possibilitou ao sujeito, enquanto sujeito da Lei, desejos possíveis. Já na perversão, se apresenta como um lago de bordas incomu-nicáveis, fruto da cisão do Eu, já que a submissão à castração se dá na medida em que a condição seja transgredi-la continuamente. Na psicose, é vivenciada como uma desesperançosa certeza por conta da fragmentação do Eu: “[...] não chegou a haver a formação de das Ding, nem da Vorstellung Phantasie” (ROCHA, 2012, p. 113). Nos casos fronteiriços, ela é invadida pela escuridão de um espaço que não contrasta luz e sombra, não demarca dentro-fora, presença-ausência. Assim como

a banda de Möbius, na qual o lado de dentro passa todo para o lado de fora, não

assinala começo ou fim, positivo ou negativo, antes ou depois, e isso tem impacto na função analítica, como, por exemplo, a dificuldade de o analista se perceber ocupando qualquer lugar enquanto objeto da transferência.

2 OS ESTADOS FRONTEIRIÇOS

Os acontecimentos que mais tendem a se reproduzir são os acontecimentos mais precoces [...] acontecimentos relativos ao período anterior à linguagem [...] acontecimentos dos dois primeiros anos de vida (A DESTRUTIVIDADE..., 2017).

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Considerando que a literatura psicanalítica existente acerca do conceito de estados fronteiriços, ainda que relativamente recente, é vasta, nos limitaremos a uma breve síntese daquilo que caracteriza essa organização psíquica. O objetivo nesta revisão é o de buscar referências norteadoras que nos remetam a portos seguros e nos deem pistas confiáveis acerca do que está implicado nesse quadro de limites psíquicos insuficientemente demarcados. Para garantir abertura, parti-remos de Freud e conversaparti-remos com outros autores contemporâneos.

Ressaltamos que os casos fronteiriços não são caracterizados por se encon-trarem nos limites da psicose, tampouco são constituições que se definem entre a neurose e a psicose. O fronteiriço é, antes de tudo, uma organização bastante singular marcada principalmente pela fragilidade dos limites intrapsíquicos e in-tersubjetivos (MENDES; GARCIA, 2012). Então, “não se trata simplesmente do problema dos limites do ego, mas também da desorganização dos limites no interior do aparelho psíquico [...] e da permeabilidade excessiva entre o ego, o id e o superego” (GREEN, 1990, p. 13).

Iniciamos com a Carta 52, de 1896, na qual Freud escreve a Fliess afirman-do que os registros no aparelho psíquico são sucessivos e é necessário que haja tradução do material psíquico para que a passagem de um registro para outro aconteça. Essas retranscrições produzem, a posteriori, novos nexos. Nessa mesma carta Freud diz que há algo que permanece sem tradução, o que impede a tra-mitação psíquica daquele conteúdo. Esse algo foi denominado de fueros. Essas marcas primordiais são sensações não traduzíveis, não representadas, não ligadas pela libido e que só podem deslocar-se de forma livre, desligada (FREUD, 1919). Nos casos fronteiriços, Mello (2012) propõe que existam dois fueros: um trata do recalcamento – falha na passagem do traço inconsciente para o pré-consciente – e o outro, da clivagem.

Freud, em 1937, referiu que aquilo que se repete é o que não foi integrado. Roussillon (2012b) postula que o trauma primário, por conta do estado de de-samparo e do sofrimento psíquico que o acompanham, “torna a experiência sub-jetiva traumática não integrável na subjetividade. Ela então é clivada [...]” (ROU-SSILLON, 2012b, p. 271). O retorno daquilo que não foi inscrito e apropriado pode encontrar no retorno do clivado a sua forma de expressão por meio do

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cor-po, que fica responsável por guardar em si uma inscrição sensorial do alucinató-rio, quando o reinvestimento é na percepção, não na representação (MINERBO, 2015). As vivências traumáticas não integradas ao Eu são vividas como um sonho traumático acordado. Nas atuações, o traumatizado atua a identificação com o agressor, como se este falasse por sua boca (GONÇALVES, 2017).

Green (1988) refere-se à clínica do vazio como o resultado de um dos com-ponentes do recalcamento primário e da perda sofrida no nível do narcisismo. Esta perda equivaleria a um desinvestimento massivo, radical e temporário, mas que deixa marcas no inconsciente, sob a forma de “buracos psíquicos que serão preenchidos por reinvestimentos, expressões da destrutividade assim liberada por este enfraquecimento do investimento libidinal erótico” (GREEN, 1988, p. 252). Um desinvestimento afetivo e representativo, um “assassinato psíquico do objeto realizado sem ódio”, este último interditado pela aflição materna (GREEN, 1988, p. 257).

Sigal (2009) igualmente chama a atenção para os elementos arcaicos implica-dos nos estaimplica-dos fronteiriços e para a falha no recalcamento originário, acarretando o surgimento desses elementos como “marcas primitivas escritas a ‘fogo’ na psi-que” (SIGAL, 2009, p. 209). Tais marcas permanecem inalteradas e impossibili-tadas de se associarem a outras por continuidade ou por contiguidade. A pulsão permanece fixada a elas, não integrada ao circuito representação-palavra.

Para Roussillon (2007), nesses casos há um fracasso da renúncia da identi-dade de percepção, o que impede que a identiidenti-dade de pensamento se confirme. Prevalece no funcionamento psíquico, o processo primário e a busca pela imagem do primeiro objeto de satisfação. Só um e o mesmo objeto serve, não há uma pluralidade de investimentos objetais e o que for contrário ou conflitivo é tomado pelo sujeito como paradoxo, uma inversão, que, por sua vez, também vai se tornar ao contrário, num ciclo contínuo de retorno. Esta é a centralidade da problemá-tica narcísico-identitária: o sujeito fica relativamente perdido, sem referências, desorganizado e desorientado em seu mundo (A DESTRUTIVIDADE..., 2017).

O conflito organiza, degenera, entra em dilema, oposição ou impasse, pro-duz formação de compromisso. O conflito comporta a presença simultânea de um contrainvestimento que o impeça de tomar todo o lugar, suporta a

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aceita-ção da coexistência de contrários que asseguram o limite de cada compromisso. Obriga o psiquismo “a buscar formações substitutivas, a realizar um trabalho de deslocamento e de metaforização, impelindo a psique para formações simbólicas e simbolígenas cada vez mais complexas e refinadas” (ROUSSILLON, 2007, p. 261). Nos estados fronteiriços, o conflito é substituído pelo paradoxo, uma busca fechada em si mesma, sem marcas de fronteira. Pela falha na representação, o processo de simbolização fica impedido e a veiculação pela palavra não se ancora no processo secundário que desta se origina. Torna-se ato.

Há uma confusão na qual ódio e amor são pouco ou mal diferenciados, o que gera como consequência o sujeito não saber se ama o objeto ou se quer destruí-lo. Essa confusão atinge o Eu, que busca defender-se de tudo que altera a economia psíquica, ou seja, busca expulsar de si essa paradoxalidade que o habita. Rous-sillon (2012a, p. 8) chama a atenção para a gama de “modos de funcionamento psíquico que tendem a produzir, quando em análise, as formas de transferência marcadas pelo paradoxo [...] e não pelo conflito [...]”.

O modelo de dualidade pulsional apresentado em 1920 por Freud inaugura a Segunda Tópica e abre espaço para questionamentos acerca de patologias mais graves, marcadas pela ação de uma violência psíquica, com efeito disruptivo. No entanto, desde a primeira tópica (1900), a fronteira entre realidade e fantasia re-vela uma exterioridade que habita o mundo interno e um limite interno-externo dentro do psiquismo. A impossibilidade de um trânsito comunicador entre rea-lidade e fantasia, entre corpo e psiquismo está presente nos estados fronteiriços, nos quais há um excesso de energia livre e o Eu muito frágil para ligar e elaborar psiquicamente as excitações.

A energia livre exige um trabalho que encontra na compulsão à repetição uma forma de defesa do Eu contra um pulsional mortífero que permanece den-tro, não possível de ser exteriorizado pelo sadismo, tampouco interiorizado pelo recalcamento. Como sabemos, desde Além do princípio do prazer (1920), a com-pulsão à repetição é uma tentativa de ligação tanto quanto serve como descarga. Segundo Cardoso (2007, p. 330), “isto se expressa, nesse contexto, numa notória complexificação da relação entre espaço externo e interno – um dos eixos centrais das reflexões de Freud acerca da psicose e das patologias traumáticas”. Conforme

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a autora, tais avanços teóricos se farão acompanhar, de maneira complementar e articulada, da complexificação da relação entre o Eu e o outro, portanto, das questões de fronteira.

Referimo-nos à relação entre a pulsão e o objeto, partindo do pressuposto de que o objeto é essencial, imprescindível no processo inaugural e vital de atar a pulsão que nasce não ligada. No texto de 1924b, encontramos o tema relativo à constituição de limites psíquicos e da relação com o objeto, possível precursor da alteridade.

Em O problema econômico do masoquismo (1924b), nos deparamos com um Eu passivo, incapaz de reagir ativamente ante a irrupção do excesso pulsional. A pulsão inexoravelmente intensa, labilmente ligada por Eros, tramita pelo psiquis-mo. Somada à carga pulsional, fruto do investimento do outro, que, independen-temente de sua qualidade, inicialmente será vivida como traumática, inaugura limites psíquicos, borrados na sua origem. É por conta da ligadura possível, pelo enlace que o objeto proporciona com sua libido, que o masoquismo erógeno primário ganha o status de guardião da vida psíquica: o masoquismo permite ao psiquismo suportar a dor da espera, sem impedir a capacidade de amar.

É esse núcleo masoquista do Eu que possibilitará a instauração do tempo, na medida em que tolera o adiamento da descarga imediata e total. A tolerância, filha gestada no tempo da espera, implanta a vida fantasmática, herdeira da sa-tisfação alucinatória do desejo. Veremos a seguir que o alucinatório encenado no analista servirá de via de acesso ao não representado no analisando.

Para Green (2008), essa experiência do tempo se dá pelos processos de reco-nhecimento. É por esses processos que a experiência do tempo se torna de fato efetiva e o Eu pode conhecer não apenas o que está para ser conhecido. Ele reco-nhece a existência de um objeto e, por consequência, torna-se capaz de coreco-nhecer a si mesmo. Quando não há sequência (pulsão, representação de coisa, repre-sentação de palavra, reprerepre-sentação de realidade), encontramo-nos sob a égide da compulsão à repetição.

Nesse sentido, o pensamento, além de um trabalho de busca e construção, serve também como representante de espaço e tempo, que permitirá a promessa de futuro, ou, nas palavras de Freud (1914), que se constitua o Ideal de Eu. Na

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clínica de casos-limite percebe-se que tais registros são falhos, prevalecendo o Eu Ideal.

No artigo “A negativa”, Freud (1925) traz à cena o par de opostos sim ou

não, mas no inconsciente apenas o sim existe. O não será produto do efeito do

recalcamento. Nos estados fronteiriços o que existe é “nem-Sim-nem-Não, que, com respeito à realidade, acha expressão no sentimento de que o objeto é e não é real, ou o objeto não é nem real nem irreal (fantasiado)” (GREEN, 1986, p. 71).

O objeto nos estados fronteiriços se caracteriza pela intrusão e pela ausência, de forma tal que esses sujeitos não puderam contar com objetos fundamental-mente eficazes e adequados para se tornarem, posteriorfundamental-mente, invisíveis e inaudí-veis. Quanto mais um objeto falhou em suas funções constitutivas, mais barulho ele faz. Quanto mais se ausenta, quando sua presença se fazia primordial, mais essa presença se torna necessária. Um objeto que cumpriu sua função de objeto absolutamente necessário é um objeto que, a seu tempo, se deixa apagar ao passo que mantém suas pegadas.

É impossível fazer o luto de um objeto ausente ou presente desde sempre e integrá-lo ao Eu, que se torna incapaz de fazer outras ligações. O luto primeiro é aquele “que tanto a mãe como o filho deverão fazer do corpo do outro, por meio da castração simbólica” (ROCHA, 2012, p. 125). É nesse movimento pulsional que o negativo deixa marcas, tanto na constituição do próprio objeto quanto na atenuação da sua presença para dar lugar à representação. O objeto para o fron-teiriço não pode cumprir sua função intrínseca e paradoxal de estimular e desper-tar a pulsão e, ao mesmo tempo, contê-la, ainda que, neste primeiro tempo, te-nha potencial traumatizante e suas qualidades sejam indistintas (AULAGNIER, 1975; ANZIEU, 1989; GREEN, 1993).

A impossibilidade de um intervalo suficiente entre o nascimento do desejo (necessidade) e a apresentação do objeto que o satisfaça impede que a representação seja buscada e, portanto, que uma variedade de objetos substitutos seja validada. A atividade simbólica, produto do processo de pensamento, é obstruída na sua ori-gem. A criança deve poder ter a ilusão de criar o objeto de sua necessidade, o que a mãe impede quando atende seu bebê de forma imediata ou demasiado absoluta (WINNICOTT, 1975; ANZIEU, 1989; CHASSEGUET-SMIRGEL, 1991).

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Segundo Rolland (2017), é pela língua e a forma como é transmitida que a identidade e a interioridade são construídas, antes mesmo de a língua servir como ferramenta à comunicação. É a separação do Eu e do objeto que permite que o Eu diga Tu ao objeto, instaurando uma interlocução entre ambos, que se tornará diálogo. Essa é a condição para a subjetividade. A palavra precisa do espaço in-terno do psiquismo como um lugar para gestar sentido e, posteriormente, nascer como via de acesso.

O que está em cena é o paradoxo no lugar do conflito. A intrusão torna-se par antitético e indissociável do abandono, não delimitando aproximação e dis-tanciamento. O amor é pleno assim como o ódio é mortal. No insuportável da falta, o objeto que não se apresenta é odiado, e o objeto que se apresenta é engol-fado, embora temido. Sem intervalo, sem pausa, não há experiência de falta, não se instaura o desejo. Onde estaria o sujeito?

3 A CONTRATRANSFERÊNCIA COMO ELEMENTO VIVO DO ANALISTA

Faimberg (2001, p. 82) define “a posição contratransferencial como toda a atividade psíquica do analista que pretende restaurar o que corresponde à história da transferência”. Desde Freud, a eficácia do tratamento psicanalítico tem como um de seus elementos propulsores a palavra, tanto como forma variada de pro-dução do inconsciente, quanto como forma representada do mundo dos afetos (MORAIS, 2015). Todavia, sabe-se que a palavra nos casos aqui tratados não tem a conotação simbólica, por isso variações na técnica se fazem necessárias. Green (2008) observa que essas variações se referem à adoção de medidas apropriadas e temporárias, sem modificar significativamente os princípios que dirigem a técnica analítica: transferência, resistência e interpretação. A contratransferência ganha, nesse contexto, um lugar privilegiado.

Para Faimberg (2001), considerar a contratransferência implica considerar a análise da dialética. Ou seja, não tomá-la apenas como dependente da transfe-rência do analisando ou como algo de sua criação, tampouco concebê-la somente como relacionada a conflitos neuróticos do analista. Diz que a posição

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contra-transferencial é uma atitude anímica ampla do analista, que se coloca à disposição para escutar seu analisando no que é dito e não dito, durante o trabalho analítico. Nesse sentido, um sintoma contratransferencial não pode ser explicado pos-tulando-se uma “correlação de um para um” (FAIMBERG, 2001, p. 87). Pode-mos considerá-la como uma exigência de trabalho psíquico do analista em prol do processo analítico. E como um elemento de simbolização no qual o analista pode, “ao perceber e sentir o que se passa com o analisando e isso colocar em palavras, nomeando as percepções, podemos fazer inscrições e marcar a tópica” (MORAIS, 2015, p. 171). Aquilo que o sujeito não tem condições de dizer por meio de “parapraxis, sonhos, silêncios e sintomas, pode ser ouvido a partir da posição contratransferencial do analista” (FAIMBERG, 2001, p. 89).

Green (1986) enfatiza que o trabalho analítico com tais pacientes obriga o analista a um grande esforço que o leva a formar no seu espírito uma imagem de funcionamento mental do analisando, a ponto de completar o que falta a este.

Ferenczi foi o precursor na ampliação de uma técnica capaz de tratar pacien-tes comprometidos em sua capacidade de fantasiar (FERENCZI, 1919), bem como foi o primeiro a se ocupar com os processos mentais do analista no interjo-go psíquico com os analisandos, colocando a vida mental do analista em ação. A natureza dos fenômenos contratransferenciais deixa de ser apenas um ponto cego ou resto não analisado. Faz parte da relação humana que se estabelece em análise, com analista e analisando. Assim, toda contratransferência deve ser examinada e compreendida analiticamente para poder ser utilizada em benefício do tratamen-to de pacientes graves. Para isso, depende de que o psiquismo do analista não esteja sob o efeito da pulsão de morte – nem da sua própria, tampouco, segundo Dallazen & Kupermann (2017, p. 79), “do pulsional desligado da representação -palavra que é atuado no campo transferencial pelo paciente”.

Em 1932, no texto que fala do tratamento de pessoas que desde cedo per-deram o gosto pela vida ou nas quais imperou a lógica da desesperança, Ferenczi (1929) ressalta a importância de o tratamento tolerar que o sujeito possa agir como uma criança e assim gozar, possivelmente pela primeira vez, de todos os direitos associados à infância, permitindo que o setting analítico possa ser expe-rimentado como um lugar acolhedor (FERENCZI, 1930), tornando possível a

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reprodução do que foi doloroso na sua história. E preconiza que, após cada rup-tura ocasionada pela intensidade da revivescência, o analisando possa reencontrar no analista uma atitude diferente daquela recebida em seu passado. Quer dizer, uma presença sensível, que não perpetue o abandono (KUPERMANN, 2008) nem permita que a clivagem do Eu se mantenha como forma defensiva, na qual ele seja em si mesmo o único cuidador para o que lhe foi negligenciado: o afeto ligado à experiência.

Nesse sentido, a posição e a intervenção do analista precisam considerar a escuta do sofrimento da criança traumatizada e falar com a criança-no-analisan-do. É via identificação projetiva que o analisando conta o que sofreu no vínculo primário, e é contratransferencialmente que o analista tem condições de trabalhar aquilo que viveu, primeiro, como se fosse conteúdo exclusivo de seu psiquismo (FERENCZI, 1931). Quais recursos psíquicos colaboram para o acesso, via con-tratransferência, do analista ao não representado no analisando?

Nos primórdios da constituição, psíquica e alucinatoriamente, o Eu se acre-dita contemplado pelo que há no mundo. No ano de 1900, Freud define o de-sejo como um esforço psíquico para reinvestir no traço mnêmico deixado pela percepção do objeto que causou a primeira experiência de satisfação. Essa forma de rememoração alucinatória é semelhante ao mecanismo presente na formação do sonho. Nos dois, está em vigência o processo primário do psiquismo e ambos servem como uma forma de comunicação.

No processo analítico, a alucinação pode ser produto da inter-relação entre a palavra do analista e o inconsciente sem palavras de seu analisando, na medida em que aquilo que não pode retornar como lembrança se apresenta como alucinação. Esta, sendo uma emissária do que está além do recalcado, comunica o que não tem palavras para ser dito. Dallazen & Kupermann (2017) atentam para o fato de que pacientes graves, com atuações e inibições da capacidade de fantasiar e com clivagens do Eu, funcionam sob a predominância da compulsão à repetição do que está aquém do princípio do prazer, portanto, da pulsão de morte que não se ligou a uma representação psíquica. Os autores aproximam os conceitos de contratransferência e perlaboração (percorrer ou atravessar uma tarefa do início ao fim [FREUD, 1914]) pelo sentido contido “de examinar profundamente algo,

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trabalhar sem interrupção, evocando uma noção de duração prolongada que de-manda dispêndio de esforço para superar dificuldades” (DALLAZEN; KUPER-MANN, 2017, p. 70).

Borges & Paim Filho (2006) propõem o conceito de contratransferência fi-gurativa, possibilitada pelo caráter regressivo do analisando e do analista, alberga-do sob as leis alberga-do setting analítico. Essa proposta de escuta que contempla os fenô-menos de contratransferência e alucinação é feita a partir da experiência, segundo os autores, frequente na prática clínica: “o surgimento de percepções imaginativas como produto de algo que é somente potencial no analisando e reflexo na mente do analista” (BORGES; PAIM FILHO, 2006, p. 115).

A partir do inconsciente concebido por Freud, como órgão receptor e com condições de captar o inconsciente do outro, estes autores propõem que, sen-do essa comunicação bilateral, o processo psíquico sen-do analisansen-do também tem potencialidade de criar alucinações no analista. Se, no sujeito não neurótico, a identidade de percepção não é renunciada em prol do juízo de realidade, o (iden-tidade de) pensamento não se institui como recurso para a busca de realização do desejo. O desejo é uma aquisição ainda por ser alcançada. O que o analisando tem à sua disposição é o material conservado como marca mnêmica, que permanece como imagens, cheiros, sensações e, dessa forma, não é transcrito psiquicamente. Com essa precariedade de recursos simbólicos, mostra (em ato) ao analista para comunicar seu sofrimento.

É pelo movimento regressivo da dupla analítica, devido às condições do

set-ting, que se pode chegar ao material que não se transformou em representações.

O contato se dá, a partir dessa hipótese, via contratransferência.

Tomar contato, sentir em si, aceitar-se depositário de algo não decifrado, traduzir e transformar para devolver ao analisando seria o que se propõe, neste artigo, elucidar como ação específica possível para o analista. Isso tudo no intuito de transformar em si impressões excluídas da dinâmica do recalcamento no ana-lisando para que elas adquiram condições de figurabilidade “encenadas com ima-gens em seu próprio palco psíquico” (BORGES; PAIM FILHO, 2006, p. 121). Para tanto, o aparelho mental e o enquadre interno precisam ser preservados no analista, o que poderá favorecer um espaço de representação para o analisando.

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Oferecer-se ao lugar de agente desta ação, suportando a desconfortável posição de objeto e de suposta fonte de sofrimento para o paciente, torna-se possível para o analista por conta do seu investimento. É imprescindível ao analista contrapor-se aos movimentos desorganizadores e traumáticos que favorecem o esgarçamento do tecido psíquico, por vezes, já rompido (VOLICH, 2016).

A contratransferência se apresenta como contorno, assim delimita e serve de instrumento analítico. Favorece a análise de psiquismos sem palavras, se o analista tiver condições de trabalhar sobre o material apresentado. Caso contrário, os atos do analisando provocarão interrupções das cadeias associativas que impedirão o trabalho de perlaboração da neurose de transferência (DALLAZEN; KUPER-MANN, 2017).

Na análise de casos fronteiriços, a neurose de transferência é potencialmen-te substituída pelo efeito da contratransferência como instrumento de análise, uma vez que o movimento transferencial dominante não obedece à lógica do deslocamento. A lógica nestes casos é o retorno da vivência não integrada e não introduzida na cadeia associativa do analisando (ROUSSILLON, 1999). Como “atualização projetiva” Green (1988, p. 267) define o processo pelo qual a proje-ção, nestes casos, não apenas livra o sujeito de suas tensões internas, projetando-as no objeto: trata-se de uma revivescência, não de uma reminiscência. É antes uma repetição traumática e dramática atual.

Na época da vigência do narcisismo primário, o Eu constrói seu mundo e dispõe do objeto interno à sua maneira. Situado como problemática narcísica, os analisandos fronteiriços permanecem prisioneiros da ilusão primária.

O sujeito busca pensar-se em função de si mesmo, unica-mente [ilude a si mesmo de que é exclusivaunica-mente formado]. Esse é o impasse: o indivíduo não engendrou a si próprio, seja como criatura de carne e osso, seja no que diz respei-to ao seu próprio aparelho mental (ROUSSILLON, 2012 apud MORAIS, 2015, p. 175).

Por isso, o objeto é tanto aquele que invade ou que se retira absolutamente, deixa de ser idealizado como pode ser descartado quando frustra, provocando

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ódio. Ao analista cabe conter e suportar o que é vivido como grande tensão, para poder transformar a experiência do analisando, de intensidade em qualidade.

A solução técnica clássica, o silêncio, traz consigo o risco da repetição da rela-ção com o objeto primordial que respondeu ao desespero do bebê, sem conectar-se com ele, o que fará com que os objetos substitutos estejam destinados a falhar e a desiludir. Como técnica analítica Green (1988, p. 271) propõe:

[...] prefiro é a que, utilizando o quadro como espaço tran-sicional, faz do analista um objeto sempre vivo, interessado, acordado pelo seu analisando e testemunhando sua vitalida-de pelos laços associativos que comunica ao analisando, sem nunca sair da neutralidade.

A capacidade de suportar a desilusão dependerá da forma com que o pacien-te se sentir narcisicamenpacien-te investido pelo analista.

É imprescindível saber como tratar a destrutividade inerente a essas orga-nizações não neuróticas. Pela via aberta da contratransferência, o analista toma contato com a sua própria destrutividade, bem como com a destrutividade ma-nifesta do analisando, a qual deve sobreviver, deixando-se afetar e atingir-se por ela, sem revidar. A neutralidade do psicanalista ganha uma nova roupagem nos casos em que sentimentos e fantasias clivadas no psiquismo do paciente são percebidos por meio da contratransferência e precisam ser tolerados até serem

descondensados e trabalhados na análise (DALLAZEN; KUPERMANN, 2017,

p. 77).

A diferença entre não devolver a destrutividade que lhe é endereçada e, seu oposto, mostrar-se inatingível ou indiferente é tênue. Do mesmo modo, sobrevi-ver não é o mesmo que submeter-se às investidas sádicas do analisando, tampouco é provar-se imortal. Contudo, por vezes, morre-se um pouco.

O lugar do analista seria então um lugar de limite, de trânsito sobre o “fio da navalha”, para um psiquismo que reclama por um território que ele próprio não conseguiu integrar em si mesmo. Essa integração, nos adverte Roussillon (A DESTRUTIVIDADE..., 2017), se faz aos poucos: é preciso não se retirar, não fazer represálias violentas. É preciso manter-se criativo.

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Green (1990, p. 21) enfatiza que o “analista não pode ficar passivo [...] ele é obrigado a estabelecer os vínculos que são atacados pelos processos de pensa-mento do paciente”. Este trabalho de pensar só poderá ser realizado quando o analista puder abolir os próprios limites de sua atividade racional e calcar seu fun-cionamento mental sobre o funfun-cionamento mental do paciente. O analista deverá saber perder-se e esquecer “a categorização do pensamento que lhe é própria em tempo normal” (GREEN, 1990, p. 21).

Na clínica de fronteiriços, tão elementares quanto a necessidade de sobrevivên-cia do analista são as tentativas do analisando de provocar nele um comportamen-to semelhante àquele exercido pelos seus objecomportamen-tos primordiais. O analisando então arma uma cena em que o analista o abandona, assim como seus objetos primeiros o abandonaram, negligenciaram, invadiram ou não o reconheceram em sua sub-jetividade. Faltas, atrasos e ausências muitas vezes são reações diretas, em ato, de frustrações geradas pelo analista, quando este não soube reconhecer e traduzir as manifestações do analisando. Essas pequenas interrupções podem ser, muitas vezes, expressão de ódio dirigida ao objeto que não atendeu as necessidades. É indispensá-vel que o analista permaneça sempre atento às proposições do paciente, sem cair na interpretação intrusiva. Para Green (1988, p. 271), se o analisando expõe o senti-mento de estar sendo invadido ou negligenciado, “é perfeitamente possível mostrar, sem traumas excessivos, o papel defensivo deste sentimento contra um prazer vivido como angustiante”: o prazer do encontro com o objeto vivo.

É preciso que entrem em jogo no processo a empatia e a capacidade de alu-cinar do analista, além da identificação projetiva, contraidentificação projetiva e figurabilidade, se o analista tiver preservado seu princípio de realidade. Somente a partir da preservação desse princípio, a contratransferência poderá ser acolhida e tolerada pelo tempo necessário no psiquismo do analista, e servir como via régia para a rememoração de sentimentos congelados no analisando.

Esse interjogo permitirá ao analista observar os conteúdos como um todo e não mais de forma cindida. Dessa maneira, é possível encontrar e criar vias de elaboração diante dos conteúdos. O analista primeiro apresenta sua presença por meio do seu afeto para que, posteriormente, o analisando possa lidar com a sua ausência (GREEN, 1986).

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4 CONSIDERAÇÕES FINAIS

O que será que faz alguém lançar-se numa viagem? O que será que faz duas pessoas acreditarem que serão capazes de compartilhá-la? Será que a decisão de se lançar nessa em-preitada ocorre ao sabor dos ventos? Haverá algum meio de se poder prever o sucesso ou insucesso desta aventura? Afi-nal, é possível se responder a tantos “o que será que será?” (ROCHA, 2012, p. 7).

Ao longo do tratamento de casos fronteiriços, torna-se inegável que a contra-transferência se imponha à contra-transferência, na medida em que a simbolização falha nos sujeitos em questão. Portanto, o analista não representa alguém que não está, ele é. O tempo é sempre agora. Segundo Lisondo (2006, p. 56), o desafio na clínica dos casos fronteiriços é que cabe “ao analista criar na mente ao invés de analisar os conteúdos”. Nessas patologias, a compulsão repetitiva não estaria, como no modelo freudiano, “no viés econômico, buscando a descarga e sim, a carga”. O analista não desvenda um sentido oculto, ele constrói um sentido nunca antes formado (GREEN, 1986).

O título deste escrito remete à ideia de que o analista precisa estar vivo. Ter capacidade e desejo de investir, com interesse, curiosidade, inquietações e espaço psíquico para emprestar enquanto for necessário. Vivo, como quem empresta seu corpo para doer enquanto a dor no analisando não tem história, porque a inten-sidade da intrusão e da ausência segue constante, como algo atual, presente que não se fez passado.

É preciso estar vivo para sobreviver aos ataques mortíferos do analisando que busca, sem âncora à sua disposição, um porto seguro para marcar as fronteiras em seu psiquismo ainda incipiente. O trabalho analítico exige a aposta de que um dia, onde não há demarcações, serão alicerçadas bases seguras, fundadas pela ligação propiciada pela libido das primeiras marcas psíquicas e transformadas em representações que se tornarão, em seu conjunto, construções simbólicas únicas de um sujeito (psíquico) recém-nascido.

Valer-se da contratransferência como recurso analítico é se deixar usar para servir como objeto da ação específica que, diferentemente dos objetos da

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pré-histó-ria do analisando, pode oferecer uma ação de qualidade ligadora, com um algo a

mais que alimenta a vida de libido.

Parafraseando García Márquez (2002), “a vida não é a que a gente viveu, e sim a que a gente recorda, e como recorda para contá-la”. Para recordar e contar, é preciso que o sujeito tenha estado lá onde sua vida aconteceu. É preciso um Eu suficientemente constituído que possa se aliar ao recalque primário para avan-çar ao narcisismo. Nos casos fronteiriços, isso não acontece satisfatoriamente. O vivido e o recordado não têm símbolos ou palavras que os traduzam, porque o trânsito psíquico acontece sem que se faça necessário passaporte ou identidade. Assim, de qualquer modo, o sujeito é estrangeiro em si mesmo, onde quer que es-teja. O Eu, aterrorizado pela aniquilação, desmente o trauma da morte, cria para si um duplo protetor (MARUCCO, 1998). O narcisismo primitivo descrito por Freud em 1914 determina a criação do Eu Ideal protetor do trauma, por privação libidinal que atua como investimento tanático para o Eu.

O analista, com seu psiquismo, é quem tem a possibilidade de articular co-nhecimento teórico com sua disponibilidade emocional para servir ora como pas-saporte, ora como alfândega. Para compreender o sofrimento do analisando e livrá-lo de sua dor, “é preciso sentir o outro em si, sentir o que o outro esqueceu” (NASIO, 2003, p. 15). Quem escuta, conta com todos os órgãos dos sentidos para estabelecer contato intenso e singular com aquele que fala, ambos inseridos em um contexto de recolhimento e regressão.

A proposta técnica com esses analisandos é, num primeiro tempo, editar, fazer nascer na relação transferencial em vez de reeditar a história. É preciso an-tes inscrever aquilo que ainda não pode ser constituído no psiquismo. É tarefa analítica representar psiquicamente conteúdos sem representação inconsciente (FREUD, 1915). O analista precisa ser um meio de passagem por dentro de si, um fiel depositário para o não representado, um meio provedor temporário, para que o analisando possa vir a constituir o Eu integrado, porque suporta a falta e tem condições de pensar e porque existe na temporalidade da sua histó-ria.

Para isso, a relação psicanalítica implica uma abertura e uma atenção especí-fica para dimensões eventualmente desconsideradas no enquadre clássico, como

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“a experiência sensorial, a gestualidade, o ritmo do paciente, bem como para as próprias experiências corporais do analista” (VOLICH, 2016, p. 308).

Talvez possamos nomear essa atitude analítica como ação específica do analista, sustentada pela percepção inconsciente e configurada2 no efeito contratransferen-cial. De todo modo, a posição e a escuta analítica de sujeitos que operam com falhas nas cadeias representacionais merecem ser diferenciadas. Para isso, nos implicamos.

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Para nacer, solo basta estar vivo: el trabajo de contratransferencia en el análisis de casos fronterizos

RESUMEN

El presente artículo aborda cuestiones relacionadas con la temática de la con-tratransferencia como recurso privilegiado en el tratamiento de casos fronteri-zos. En pos de ello, el artículo se divide en cuatro partes. En primer lugar, se describen sucintamente las manifestaciones contratransferenciales específicas en cada estructura clínica, para determinar lo que es sentido por el analista y lo que puede pasar a ser instrumentalizado en la relación analítica. Posteriormente, se realiza una breve revisión bibliográfica, poniendo especial énfasis en los impases encontrados en el tratamiento de las organizaciones psíquicas, con la intención de buscar referencias que ofrezcan pistas seguras acerca de lo que implica ese cuadro de límites psíquicos insuficientemente demarcados. En tercer lugar, se abordan específicamente las manifestaciones contratransferenciales, sus particularidades y los desafíos impuestos al analista en la práctica clínica de casos fronterizos. Final-mente, suscitada por la vivencia clínica y amparada por este estudio, se sugiere la proposición de una nueva actitud analítica, que denominamos acción específica

del analista, movilizada por la comunicación inconsciente y transportada por vía

contratransferencial. El título de este artículo remite a la idea de que el analista precisa tener capacidad y deseo de invertir, con interés, curiosidad, inquietudes y espacio psíquico para ofrecer cuando sea necesario. El analista debe ofrecer su psiquisimo, cuando sea necesario, para que el paciente pueda vivir su historia y tornarla pasado. Así, la contratransferencia se presta como brújula analítica para acompañar a un paciente que busca, sin mayores recursos, un lugar seguro para marcar las fronteras en su psiquismo todavía incipiente.

Palabras clave: Casos fronterizos. Contratransferencia. Acción específica del

Referências

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