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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO CAMILA DE OLIVEIRA RAUBER

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CAMILA DE OLIVEIRA RAUBER

A UNIDADE DAS VIRTUDES NO PROTÁGORAS DE PLATÃO

RIO DE JANEIRO 2018

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CAMILA DE OLIVEIRA RAUBER

A UNIDADE DAS VIRTUDES NO PROTÁGORAS DE PLATÃO

Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de Pós-Graduação Lógica e Metafísica, PPGLM, da Universidade Federal do Rio de Janeiro, como parte dos requisitos necessários à obtenção de Mestre em Filosofia.

Orientadora: Carolina de Melo Bomfim Araújo

RIO DE JANEIRO 2018

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CIP - Catalogação na Publicação

Elaborado pelo Sistema de Geração Automática da UFRJ com os dados fornecidos pelo(a) autor(a).

Rauber, Camila de Oliveira

R239u A unidade das virtudes no Protágoras de Platão / Camila de Oliveira Rauber. -- Rio de Janeiro, 2018.

98 f.

Orientador: Carolina de Melo Bomfim Araújo. Dissertação (mestrado) - Universidade Federal do Rio de Janeiro, Instituto de Filosofia e Ciências Sociais, Programa de Pós-Graduação em Lógica e Metafísica, 2018.

1. Virtude. 2. Relação todo-partes. 3.

Conhecimento. 4. Protágoras. 5. Platão. I. Araújo, Carolina de Melo Bomfim, orient. II. Título.

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A Unidade das Virtudes no Protágoras de Platão

Dissertação de Mestrado submetida ao Programa de Pós-Graduação Lógica e Metafísica do Departamento de Filosofia do Instituto de Filosofia e Ciências Sociais, da Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ, como parte dos requisitos necessários à obtenção do título de Mestre em Filosofia.

Rio de Janeiro, 27 de Junho de 2018

______________________________________________________________________ Prof.ª Dr.ª Carolina de Melo Bomfim Araújo, Orientadora (UFRJ)

______________________________________________________________________ Prof. Dr. Anderson de Paula Borges (UFG)

______________________________________________________________________ Prof. Dr. Fernando Muniz (UFF)

Rio de Janeiro 2018

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À CAPES, pela bolsa de estudos de fundamental importância para o prosseguimento desta pesquisa;

À Carolina Araújo, por todos esses anos de orientação, ensino e incentivos concedidos; Aos professores Rodrigo Guerizoli e Daniel Lopes, por terem feito parte da banca da qualificação;

Aos professores Anderson Borges e Fernando Muniz pela disponibilidade em fazerem parte da banca da defesa;

À minha família, em especial, minha mãe Leila, por todos os momentos de amor, paciência e motivação para concluir esta dissertação;

Aos meus amigos que foram, dentre outras coisas, de fundamental importância para o progresso desta pesquisa: Gerarda, Camilla Magalhães, Jéssica Koncimal, Luciana Chachá, Pamela Leguizámon, Felipe Ayres, Juliana Joyce, Kelly Teixeira, Paulo Teixeira, Alcino Júnior;

Ao Gutierres Fernandes Siqueira, meu maior incentivador que, com seu amor, sempre acreditou e me incentivou na conclusão deste presente trabalho;

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RAUBER, Camila de Oliveira. A unidade das virtudes no Protágoras de Platão. Rio de Janeiro, 2018. Dissertação (Mestrado em Filosofia (Lógica e Metafísica)) – Instituto de Filosofia e Ciências Sociais, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2018

Esta dissertação tem por objetivo defender uma interpretação da unidade das virtudes tal como ela aparece no Protágoras de Platão. Esta interpretação difere das duas leituras comumente aceitas da questão: a tese da identidade e a tese da bi-condionalidade / equivalência. Nossa proposta é pensar que Platão trata da unidade da virtude como um problema que envolve a relação entre o todo e suas partes. Nesse sentido, o todo e as partes não serão idênticos entre si, nem as partes entre elas mesmas. Ao invés, elas formariam uma espécie de estrutura unitária, onde cada parte ocupa uma função específica no todo.

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RAUBER, Camila de Oliveira. A unidade das virtudes no Protágoras de Platão. Rio de Janeiro, 2018. Dissertação (Mestrado em Filosofia (Lógica e Metafísica)) – Instituto de Filosofia e Ciências Sociais, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2018

This dissertation aims to argue for an interpretation of the unity of virtues, as it appears in Plato’s Protagoras. This interpretation differs from the two commonly accepted readings of the question: the identity thesis and the bicondicionality / equivalence thesis. Our proposal is to think that Plato deal with the unity of virtues as a problem that involves the relation between the whole and its parts. In this sense, neither the whole and the parts will be identical with each other, nor the parts between themselves. They would rather form a kind of unitary structure, in which each part occupies a specific function in the whole.

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Sumário

1. Introdução ... 7

2. Estado da Questão ... 15

2.1. A unidade da virtude a partir da tese da bi-condicionalidade ... 15

2.1.1. Releitura das teses da unidade e da semelhança a partir da tese da bi- condicionalidade ... 19

2.1.2 Vlastos e a Predicação Paulina ... 22

2.2. A unidade da virtude como Tese da identidade ... 24

2.2.1 Tendências versus “estados de alma” ou “força-motriz” ... 26

2.2.2 Aplicação da tese da força-motriz ao Protágoras ... 28

2.2.3 Conhecimento como dynamis ... 31

3. Hipótese ... 36

4. Os modelos do Ouro e da Face ... 37

4.1 O modelo do ouro ... 39

4.2 O modelo da face ... 42

4.3 Platão e a noção de ὅλον ... 43

4.4 O modelo da face como uma estrutura ἕν-ὅλον ... 49

4.5 A contradição de Protágoras e a inserção de σοφία como parte da virtude ... 52

5. Σοφία como virtude-ὅλον: análise dos argumentos da Coragem e da Temperança ... 58

5.1 Σοφία e Coragem ... 58

5.2 Σοφία e Temperança ... 67

6. Análise dos argumentos da Justiça e Piedade e da Justiça e Temperança .... 73

6.1 Justiça e Piedade ... 73

6.2 Justiça e Temperança ... 76

7. A relação entre as partes e a relação entre as partes e o todo da virtude ... 79

8. O argumento da negação da acrasia ... 83

8.1 Descrição do argumento sobre a força da ἐπιστήμη e a negação da acrasia ... 84

8.2 A relação entre virtude ἕν-ὅλον e conhecimento (ἐπιστήμη ) ... 87

9. Conclusão ... 91

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1. Introdução “ἀνάγκη πρὸς τὴν ἐπιζητουμένην ἐπιστήμην ἐπελθεῖν ἡμᾶς πρῶτον περὶ ὧν ἀπορῆσαι δεῖ πρῶτον (...).ἔστι δὲ τοῖς εὐπορῆσαι βουλομένοις προὔργου τὸ διαπορῆσαι καλῶς: ἡ γὰρ ὕστερον εὐπορία λύσις τῶν πρότερον ἀπορουμένων ἐστί, λύειν δ᾽ οὐκ ἔστιν ἀγνοοῦντας τὸν δεσμόν, ἀλλ᾽ ἡ τῆς διανοίας ἀπορία δηλοῖ τοῦτο περὶ τοῦ πράγματος: ᾗ γὰρ ἀπορεῖ, ταύτῃ παραπλήσιον πέπονθε τοῖς δεδεμένοις: ἀδύνατον γὰρ ἀμφοτέρως προελθεῖν εἰς τὸ πρόσθεν. διὸ δεῖ τὰς δυσχερείας τεθεωρηκέναι πάσας πρότερον, τούτων τε χάριν καὶ διὰ τὸ τοὺς ζητοῦντας ἄνευ τοῦ διαπορῆσαι πρῶτον ὁμοίους εἶναι τοῖς ποῖ δεῖ βαδίζειν ἀγνοοῦσι, καὶ πρὸς τούτοις οὐδ᾽ εἴ ποτε τὸ ζητούμενον εὕρηκεν ἢ μὴ γιγνώσκειν:τὸ γὰρ τέλος τούτῳ μὲν οὐ δῆλον τῷ δὲ προηπορηκότι δῆλον.”

“Com relação à ciência que estamos procurando, é necessário examinar os problemas, dos quais, em primeiro lugar, deve-se perceber a dificuldade, (...). Ora, para quem pretende resolver bem um problema, é útil perceber adequadamente a dificuldade que ele comporta: a boa solução final consiste na resolução das dificuldades previamente estabelecidas. Quem ignora um nó não poderá desatá-lo; e a dificuldade encontrada pelo pensamento manifesta a dificuldade existente na coisa. De fato, enquanto duvidamos, estamos numa condição semelhante a quem está amarrado; em ambos os casos, é impossível ir adiante. Por isso é preciso que, primeiro, sejam examinadas todas as dificuldades tanto por estas razões, como porque os que pesquisam sem primeiro ter examinado as dificuldades assemelham-se aos que não sabem aonde devem ir. Ademais estes não são capazes de saber se encontraram ou não o que buscam; pois não lhes é claro o fim que devem alcançar, enquanto isso é claro para quem antes compreendeu as dificuldades”1.

O contexto dialógico do Protágoras de Platão, elaborado a partir de diversas nuances, tem como ponto chave aquilo que veio a ser conhecido como a unidade das virtudes. Após Sócrates concordar em contar o relato de seu encontro com Protágoras a um amigo anônimo2, o diálogo abre com uma conversa entre Sócrates3 e Hipócrates, um jovem desejoso de ser aluno de Protágoras. Devido à sua falta de coragem, Hipócrates pede a Sócrates que este intervenha a seu favor junto a Protágoras para saber se o sofista aceita Hipócrates como aluno4. O núcleo da conversa inicial entre essas duas personagens é expresso na seguinte passagem:

1 ARISTÓTELES, Metafísica, B 1, 995a 24-995b. Tradução: Giovanni Reale. São Paulo: Edições Loyola,

2005, p. 85.

2 PLATÃO, Protágoras, 310a.

3 A presente dissertação não se compromete em apresentar o Sócrates histórico, mas apenas Sócrates como

personagem de Platão.

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SOC. – ἆρ᾽ οὖν, ὦ Ἱππόκρατες, ὁ σοφιστὴς τυγχάνει ὢν ἔμπορός τις ἢ κάπηλος τῶν ἀγωγίμων, ἀφ᾽ ὧν ψυχὴ τρέφεται; φαίνεται γὰρ ἔμοιγε τοιοῦτός τις. HIP. – τρέφεται δέ, ὦ Σώκρατες, ψυχὴ τίνι; SOC. – μαθήμασιν δήπου, ἦν δ᾽ ἐγώ. καὶ ὅπως γε μή, ὦ ἑταῖρε, ὁ σοφιστὴς ἐπαινῶν ἃ πωλεῖ ἐξαπατήσῃ ἡμᾶς, ὥσπερ οἱ περὶ τὴν τοῦ σώματος τροφήν, ὁ ἔμπορός τε καὶ κάπηλος. καὶ γὰρ οὗτοί που ὧν ἄγουσιν ἀγωγίμων οὔτε αὐτοὶ ἴσασιν ὅτι χρηστὸν ἢ πονηρὸν περὶ τὸ σῶμα, ἐπαινοῦσιν δὲ πάντα πωλοῦντες, οὔτε οἱ ὠνούμενοι παρ᾽ αὐτῶν, ἐὰν μή τις τύχῃ γυμναστικὸς ἢ ἰατρὸς ὤν. οὕτω δὲ καὶ οἱ τὰ μαθήματα περιάγοντες κατὰ τὰς πόλεις καὶ πωλοῦντες καὶ καπηλεύοντες τῷ ἀεὶ ἐπιθυμοῦντι ἐπαινοῦσιν μὲν πάντα ἃ πωλοῦσιν, τάχα δ᾽ ἄν τινες, ὦ ἄριστε, καὶ τούτων ἀγνοοῖεν ὧν πωλοῦσιν ὅτι χρηστὸν ἢ πονηρὸν πρὸς τὴν ψυχήν: ὡς δ᾽ αὕτως καὶ οἱ ὠνούμενοι παρ᾽ αὐτῶν, ἐὰν μή τις τύχῃ περὶ τὴν ψυχὴν αὖ ἰατρικὸς ὤν. εἰ μὲν οὖν σὺ τυγχάνεις ἐπιστήμων τούτων τί χρηστὸν καὶ πονηρόν, ἀσφαλές σοι ὠνεῖσθαι μαθήματα καὶ παρὰ Πρωταγόρου καὶ παρ᾽ ἄλλου ὁτουοῦν: εἰ δὲ μή, ὅρα, ὦ μακάριε, μὴ περὶ τοῖς φιλτάτοις κυβεύῃς τε καὶ κινδυνεύῃς. καὶ γὰρ δὴ καὶ πολὺ μείζων κίνδυνος ἐν τῇ τῶν μαθημάτων ὠνῇ ἢ ἐν τῇ τῶν σιτίων. σιτία μὲν γὰρ καὶ ποτὰ πριάμενον παρὰ τοῦ καπήλου καὶ ἐμπόρου ἔξεστιν ἐν ἄλλοις ἀγγείοις ἀποφέρειν, καὶ πρὶν δέξασθαι αὐτὰ εἰς τὸ σῶμα πιόντα ἢ φαγόντα, καταθέμενον οἴκαδε ἔξεστιν συμβουλεύσασθαι, παρακαλέσαντα τὸν ἐπαΐοντα, ὅτι τε ἐδεστέον ἢ ποτέον καὶ ὅτι μή, καὶ ὁπόσον καὶ ὁπότε: ὥστε ἐν τῇ ὠνῇ οὐ μέγας ὁ κίνδυνος. μαθήματα δὲ οὐκ ἔστιν ἐν ἄλλῳ ἀγγείῳ ἀπενεγκεῖν, ἀλλ᾽ ἀνάγκη καταθέντα τὴν τιμὴν τὸ μάθημα ἐν αὐτῇ τῇ ψυχῇ λαβόντα καὶ μαθόντα ἀπιέναι ἢ βεβλαμμένον ἢ ὠφελημένον.

SOC. – Porventura, Hipócrates, o sofista não seria certo negociante e vendedor de mercadorias, com as quais a alma se nutre? Pois, para mim, é claro que ele é algo desse tipo.

HIP. – Mas a alma, Sócrates, nutre-se de quê?

SOC. – De ensinamentos, decerto – respondi. E cuidado, meu amigo, para que o sofista, ao elogiar o que vende, não nos engane, assim como fazem as pessoas envolvidas com a nutrição do corpo, o negociante e o vendedor. Com efeito, das mercadorias que portam, eles próprios não sabem o que é útil ou nocivo para o corpo, mas elogiam todas elas quando estão à venda; tampouco sabem disso seus clientes, a não ser que seja ele casualmente um professor de ginástica ou um médico. Da mesma forma, aqueles que rondam pelas cidades negociando e vendendo ensinamentos a todos que almejam por eles, elogiam tudo quanto vendem, mas, talvez, haja também em meio a eles, excelente homem, quem ignore, dentre as coisas que vende, o que é útil ou nocivo para a alma; e o mesmo sucede aos seus clientes, a não ser que seja ele eventualmente um médico da alma. Se você, por acaso, conhece o que é útil ou nocivo dentre os ensinamentos à venda, então é seguro que os compre de Protágoras ou de quem quer que seja; caso contrário, homem afortunado, veja se não está lançando à sorte e pondo em risco o que lhe há de mais caro! Com efeito, há um risco muito maior na compra de ensinamentos do que na de alimentos. Pois, quando se compra comidas e bebidas do vendedor ou negociante, é possível transportá-las em recipientes; antes de comer ou beber e então acomodá-las no corpo, pode-se estocá-las em casa e, convidando quem conhece o assunto, aconpode-selhar- aconselhar-se com ele sobre o que aconselhar-se deve ou não comer e beber, em que quantidade e

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em que ocasião. Por conseguinte, não há grande risco nessa compra. Todavia, no caso dos ensinamentos, não é possível transportá-los em outro recipiente, mas é necessário, uma vez pago o preço, que se carregue na alma o que se aprende e se saia daí ou prejudicada ou beneficiada.5

O interessante nesta passagem é notar a ideia central desenvolvida na conversa entre Hipócrates e Sócrates, a saber, que existe um certo perigo em querer tomar aulas com um sofista. O perigo surge devido a pelo menos três fatores: o primeiro, ao fato de o próprio Hipócrates não saber se, de fato, Protágoras é especialista naquilo que diz ensinar; segundo, a aparência de sabedoria que envolve a imagem de Protágoras, bem como o tipo de

mercadoria – usada como analogia ao ensino do sofista - que ele pretende fornecer; e, por

fim, o maior de todos os perigos, que é Hipócrates vir a ter sua alma6 prejudicada por um mal ensino, o que afetaria não somente seu intelecto, mas também seu caráter e suas futuras ações.

Lopes7 destaca que o propósito de Sócrates nessa passagem, e na sequência do diálogo, é o de dissuadir Hipócrates a não querer tomar aulas com Protágoras. Nesse sentido, a função do argumento sobre a unidade das virtudes, que surge mais adiante, é testar Protágoras, de modo a expor o tipo de mercadoria que o sofista se propõe vender e, acima de tudo, se ele, de fato, é um especialista no que se propõe a ensinar. No decorrer de sua elaboração sobre o que consiste a unidade das virtudes, a incoerência de Protágoras funcionará como motivo para “desencantar o fascínio de Hipócrates pelo sofista”8 e, assim, fazê-lo desistir de ter aulas com o sofista. Sócrates, então, empreende uma investigação comprometida em desvendar que tipo de coisa Protágoras diz ensinar e se, de fato, ele conhece a matéria do seu ensino9.

Assim, Sócrates e Hipócrates se dirigem até a casa de Cálias, a maior e mais “suntuosa” casa da cidade, segundo Hípias10. E em 314d, após baterem na porta de Cálias, se deparam com o porteiro, um eunuco cuja reação ao vê-los denuncia mais uma nuance presente no diálogo, a saber, a de confundir a figura de Sócrates com a de um sofista. Segundo Lopes11,

5 PLATÃO, Protágoras, 313c-314b. Tradução: Daniel R. N. Lopes. São Paulo: Editora Perspectiva, 2017. p.

387-389.

6 De acordo com Taylor, “ ‘alma’ tem um sentido menos amplo que o Grego psuchē, que significa o eu em seus

aspectos não corpóreos, abrangendo intelecto, vontade, desejos e emoções.”.(TAYLOR, 1991, p. 66).

7 LOPES, 2017, p. 105, 151-152. 8 Ibid., p. 152.

9 PLATÃO, Protágoras, 318a. 10 PLATÃO, Protágoras, 337d.

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o que se tem aqui é não só uma crítica a esta “visão comum” de Sócrates como um sofista, mas, também, uma tentativa por parte de Platão em distinguir o sofista do filósofo.

Sócrates e Hipócrates, portanto, são inseridos nesse cenário cuja casa está repleta de pessoas ilustres. De um lado, observam Protágoras acompanhado por Párolo, Cármides, Xantipo, Filípide, Antímines, além do próprio Cálias. E, do outro lado da casa, Hípias, Fedro e os demais estrangeiros, conversando sobre fenômenos naturais e astronômicos12. Quando Sócrates, enfim, consegue se dirigir a Protágoras, questiona-o acerca do tipo de mercadoria que ele propõe vender. Sócrates obtém dele a informação de que o tema do seu ensino consiste na arte política e na boa formação dos homens como cidadãos (“δοκεῖς γάρ μοι λέγειν τὴν πολιτικὴν τέχνην καὶ ὑπισχνεῖσθαι ποιεῖν ἄνδρας ἀγαθοὺς πολίτας.13”).

Desse modo, Protágoras inicia um longo discurso para explicar de que modo ele pode ser considerado o mais capacitado para o ensino dos temas acima, que podem ser resumidos no ensino de uma única coisa: virtude14. Contando uma versão do mito de Prometeu, Zeus – ele diz – após observar que os homens careciam da arte política15 e que isto os impossibilitava de conviverem uns com os outros, decide enviar aos homens a justiça (δίκη) e o pudor (αἰδώς). Eles foram distribuídos de modo a não serem exclusivos a único homem – como ocorre com o médico que, em sendo um, tem que tratar de muitos16. A distribuição entre todos permite que mantenham a sobrevivência da cidade17.

Se, por um lado, o mito dá a entender que Zeus, ao distribuir tais atributos para todos os homens, dá a todos, igualmente, condições de deliberarem acerca de assuntos políticos e internos, por outro lado, Protágoras sustentará a seguinte afirmação: pelo fato destes atributos não serem algo intrínseco aos seres humanos, devem ser adquiridos pelo ensino18. Protágoras demonstra, a partir do argumento da punição em 323d-324c como esses atributos são ensináveis. Ele explica que, ainda que todos os seres humanos possam ter acesso a tais atributos, existem pessoas que não os têm. Por isso, sendo esses incapazes de deliberar acerca

12 PLATÃO, Protágoras, 314e-315c. 13 PLATÃO, Protágoras, 319a. 14 PLATÃO, Protágoras, 319e-320a. 15 PLATÃO, Protágoras, 322b. 16 PLATÃO, Protágoras, 322c. 17 PLATÃO, Protágoras, 322d. 18 PLATÃO, Protágoras, 323c.

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de assuntos políticos e de manter um bom convívio com seus concidadãos, a cidade constata a necessidade de possuir uma pessoa qualificada e capacitada para ensinar tais atributos19.

Segundo Protágoras, essa constatação ocorre no seguinte caso: alguns homens, que possuem, por exemplo, um caráter contrário à virtude – e, por conseguinte, acabam por praticar ações não virtuosas – devem ser submetidos a repreensões em forma de castigo, cuja finalidade será a de ensiná-los a serem virtuosos. Para Protágoras, isto constitui uma evidência de que a virtude pode ser ensinada por meio da coação de tais homens pelo castigo tornando-os, assim, virtuosos20.

Protágoras está lidando com dois tipos de raciocínio: 1) Os homens apenas conseguem conviver em grupo se possuírem a virtude (justiça e pudor). Se os atenienses, por exemplo, conseguem conviver em grupo, isto prova que eles possuem virtude. 2) Todavia, existem alguns homens que agem de modo contrário à virtude e estes devem ser castigados. Se todo castigo é uma forma de tornar alguém virtuoso, a virtude pode ser considerada como algo que pode ser aprendido por outrem. A ideia que perpassa esses dois raciocínios é que a virtude não é algo que alguém naturalmente tem, mas que pode ser adquirida. Tendo em vista que, apesar de ser algo disponível a todos os homens, algumas pessoas não a possuem, isso leva a possibilidade de pensar que, segundo Protágoras, a virtude pode ser considerada um objeto de ensino.

Apesar de existir certo conflito entre o mito de Protágoras e o ensino da virtude – já que, segundo ele, os atributos seriam distribuídos não através de um único homem, tal como o médico que curaria muitos, mas estaria acessível a todas as pessoas – Protágoras, em 324e-325a, amplia a noção de virtude ao dizer que uma cidade, para que possa subsistir através da convivência conjunta dos homens entre si, necessita da presença não só da justiça – denotada não mais pela palavra ‘δική’, mas por ‘δικαιοσύνη’21 – mas também necessita da temperança

19 PLATÃO, Protágoras, 323c-324c. 20 PLATÃO, Protágoras, 323e-324b.

21 Sobre a distinção δίκη/ δικαιοσύνη, vemos que, na maior parte do discurso inicial de Protágoras, até este

ponto, em 324e-325a, a ‘justiça’ aparece como ‘δίκη’ e tal termo, de acordo com Havelock, toma como referência aquilo que é externo ao indivíduo, uma vez que sua função é a de ser aplicada às “regras do poder político e seu exercício” caracterizando, assim, uma virtude política (HAVELOCK, 1978, p. 311). Porém Protágoras não parece fazer tal distinção ao utilizar um termo ou outro. Quando Sócrates coloca o argumento da unidade da virtude, a referência à ‘justiça’ muda, pois Sócrates aplica o outro termo que Protágoras vai adotar no final da sua explanação, a saber, ‘δικαιοσύνη’. Nesse sentido, a virtude passa a “identificar algo pessoal”, isto é, a virtude passa a ser compreendida como um aspecto moral na alma do indivíduo. Logo, a referência para a justiça, principalmente a partir da passagem em 329c, é essa justiça entendida como um aspecto moral e interno do indivíduo. (HAVELOCK, 1978 p. 311-312).

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(σωφροσύνη) e da piedade (τὸ ὅσιον), as quais, nas palavras de Protágoras, consistem numa única coisa: virtude (ἀρετή). A partir do momento que Protágoras relaciona a virtude com um conjunto de atributos antes não mencionados, afirmando serem eles uma única coisa, a virtude, Sócrates então avança sobre a questão da possibilidade de alguém ensinar a virtude, passando a analisar de que modo Protágoras está concebendo essa noção de virtude como unidade. A questão é abordada em dois momentos distintos do diálogo:

ἔλεγες γὰρ ὅτι ὁ Ζεὺς τὴν δικαιοσύνην καὶ τὴν αἰδῶ πέμψειε τοῖς ἀνθρώποις, καὶ αὖ πολλαχοῦ ἐν τοῖς λόγοις ἐλέγετο ὑπὸ σοῦ ἡ δικαιοσύνη καὶ σωφροσύνη καὶ ὁσιότης καὶ πάντα ταῦτα ὡς ἕν τι εἴη συλλήβδην, ἀρετή: ταῦτ᾽ οὖν αὐτὰ δίελθέ μοι ἀκριβῶς τῷ λόγῳ, πότερον ἓν μέν τί ἐστιν ἡ ἀρετή, μόρια δὲ αὐτῆς ἐστιν ἡ δικαιοσύνη καὶ σωφροσύνη καὶ ὁσιότης, ἢ ταῦτ᾽ ἐστὶν ἃ νυνδὴ ἐγὼ ἔλεγον πάντα ὀνόματα τοῦ αὐτοῦ ἑνὸς ὄντος. τοῦτ᾽ ἐστὶν ὃ ἔτι ἐπιποθῶ.22

Você dizia que Zeus havia enviado aos homens a justiça e o pudor, e, em vários momentos de sua fala, por sua vez, você se referia à justiça, sensatez23, piedade e todas elas como se fossem, em suma, uma única coisa: virtude. Explique-me então este ponto com um argumento preciso: se a virtude é uma única coisa e são partes dela a justiça, a sensatez e a piedade; ou se essas coisas, às quais há pouco me referia, são todas elas nomes de uma única e mesma coisa. Eis o que ainda desejo.24

A recolocação da questão surge se encontra em 349b:

ἦν δέ, ὡς ἐγᾦμαι, τὸ ἐρώτημα τόδε: σοφία καὶ σωφροσύνη καὶ ἀνδρεία καὶ δικαιοσύνη καὶ ὁσιότης, πότερον ταῦτα, πέντε ὄντα ὀνόματα, ἐπὶ ἑνὶ πράγματί ἐστιν, ἢ ἑκάστῳ τῶν ὀνομάτων τούτων ὑπόκειταί τις ἴδιος οὐσία καὶ πρᾶγμα ἔχον ἑαυτοῦ δύναμιν ἕκαστον, οὐκ ὂν οἷον τὸ ἕτερον αὐτῶν τὸ ἕτερον;

A questão era a seguinte, creio eu: se sabedoria, temperança, coragem, justiça e piedade, embora sejam cinco nomes, concernem a uma única coisa, ou, se para cada um desses nomes, há uma substância particular, ou seja, uma coisa dotada de uma capacidade que lhe é própria, sendo cada uma delas diferente da outra.25

22 PLATÃO, Protágoras, 329c-d.

23 Nesse ponto da tradução é importante ressalvar que, diferente de Lopes, iremos traduzir “σωφροσύνη” por

“temperança” e utilizar esta palavra como referência ao longo deste trabalho, e não a palavra “sensatez”, como faz o autor.

24 PLATÃO, Protágoras, 329 c-d. Tradução: Daniel R. N. Lopes. São Paulo: Editora Perspectiva, 2017, p.

437-439.

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Admitindo, portanto, que a virtude pode ser ensinada – afirmação esta que será retomada e analisada por Sócrates em 361a-c –, o próximo passo consiste em evidenciar como Protágoras, de fato, entende a relação entre virtude, de um lado, e justiça, piedade e temperança, de outro lado. Ou ainda, em que sentido estes objetos são denominados ‘virtude’: no sentido em que a virtude é uma unidade e os demais objetos são como partes dessa unidade, ou no sentido de que todas são apenas nomes distintos para uma mesma coisa, não havendo distinção entre elas? Assim, a virtude é colocada em outra perspectiva, que não se dissocia da questão sobre ela poder ser ensinada, mas que apresenta um outro caminho para se responder a essa pergunta. Trata-se de mostrar, por outra vertente, se Protágoras, que julga ser o melhor professor em matéria de virtude26, conhece, de fato, este objeto.

Recordando o contexto do Mênon27, que abre com a indagação sobre a possibilidade de

a virtude ser ensinada, Sócrates, de um modo semelhante ao que faz naquele diálogo, redireciona a pergunta sobre o ensino da virtude no Protágoras para um ponto mais fundamental. À diferença de Mênon, no entanto, onde esse ponto consistia na busca por uma definição da virtude, o Protágoras redireciona a questão para a relação da virtude com outros objetos também conhecidos como virtudes.

Nesse contexto, a questão elaborada por Sócrates acerca da unidade das virtudes coloca o Protágoras em um terreno comum a outros diálogos, que consiste no tópico da unidade e da multiplicidade. Segundo Centrone, Platão, ao abordar o tema que ficou conhecido como ‘unidade das virtudes’, estabelece uma “relação dialética entre unidade e multiplicidade, identidade e diversidade28”. Isto pode ser observado a partir das perguntas que a própria abordagem da questão da unidade suscita, dentre elas:

1. Se cada parte corresponde a um objeto diferente do outro, como eles se relacionam entre si?

2. Se, por outro lado, essas virtudes forem idênticas, qual a razão da distinção entre os nomes? Seriam idênticas em todos os aspectos?

26 PLATÃO, Protágoras, 328b. 27 PLATÃO, Mênon, 71d.

28 CENTRONE, Bruno. “A virtude platônica como ὅλον das Leis ao Protágoras”. In: Migliori, Maurizio (org.)

e Valditara, Linda M. Napolitano (org.). Plato Ethicus: A filosofia é vida. São Paulo: Edições Loyola, 2015. p. 103.

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3. Se elas não são idênticas, o que explica o fato de elas serem também denominadas como ‘virtude’?

4. Sendo idênticas, por que teríamos a impressão de que uma ação justa não é idêntica a uma ação corajosa?

Existem duas interpretações principais que lidam de forma distinta com a pergunta de Sócrates:

1. Tese da Bi-condicionalidade: Segundo Vlastos29, precursor desta posição, Sócrates estaria se posicionando a favor de uma abordagem em que as virtudes seriam tomadas como distintas umas das outras. Apesar de, na retomada da questão em 349b, Sócrates parecer comprometido com uma identificação, e não distinção, das virtudes entre si, Vlastos elabora outro modo em que esta pode vir a ser compreendida e assim reforça a alegação de sua distinção. A explicação seria mediante uma noção de co-implicação entre elas, em que a virtude seria uma espécie de classe co-extensiva, uma vez que todas elas seriam aplicadas a um mesmo indivíduo. Assim, quando Sócrates faz referência à semelhança ou identidade entre as virtudes, não está identificando as virtudes entre si, como sendo iguais, mas apontando para uma classe co-extensiva aplicada a um mesmo indivíduo, o qual, por sua vez, teria todas as virtudes.

2. Tese da Identidade: Esta posição, que tem Penner30 como principal precursor, assume, diferentemente de Vlastos, que Sócrates, ao falar sobre identidade entre as virtudes, o faz no sentido forte do termo ‘identidade’, ou seja, no sentido em que as virtudes são todas iguais. No caso de Penner, a explicação para essa identificação das virtudes é que Sócrates estaria se referindo a unidade da virtude como sendo um mesmo “estado de alma” ou “força-motriz”, que faria as virtudes idênticas entre si, na medida em que elas possuiriam a mesma justificação causal e, por isso, seriam todas denominadas como ‘virtude’. Hartman31, por sua vez, irá tomar um caminho diverso

29 VLASTOS, 1971, p. 221-265. 30 PENNER, 1973 p. 35-68.

31 HARTMAN, Margareth. “How the Inadequate Models for Virtue in the “Protagoras” Illuminate

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ao de Penner ao afirmar que a identificação das virtudes entre si não se justificaria a partir de uma explicação baseada no estado psicológico ou força-motriz do indivíduo, mas, antes, no entendimento de que a virtude, tomada como conhecimento, seria uma única δύναμις, o que permitiria afirmar a virtude como unidade.

Segue-se a exposição de ambas as interpretações.

2. Estado da Questão

2.1. A Unidade da Virtude a partir da Tese da Bi-condicionalidade

Em seu artigo intitulado The Unity of the Virtues in the Protágoras32, Vlastos destaca que Sócrates estaria “empregando três fórmulas distintas”33 para a compreensão da teoria da unidade da virtude. Estas fórmulas seriam a tese da unidade, a tese da similaridade e a tese

da bi-condicionalidade. Tais teses, contudo, estariam sendo percebidas por Protágoras não

como etapas distintas, mas como “momentos sucessivos” de uma “única doutrina”.

A começar pela tese da unidade, Sócrates, ao optar pela posição de que as virtudes se aplicam a uma mesma coisa, estaria definindo-a em 349b como sendo a da identidade das virtudes entre si. Isso parece contradizer o fato de que, em 329c-d, Sócrates, tal como Protágoras, estaria admitindo que se trata de uma questão entre o todo e suas partes distintas34. Isso porque, em geral, assumir a posição expressa em 349b levaria ao entendimento de que se trata de uma tese da unidade em, ao menos, dois sentidos: a) “as cinco virtudes são a mesma virtude”, e (ii) seus nomes são sinônimos”35.

Vlastos observa que ambas as noções não correspondem, de fato, à real posição de Sócrates. As razões seriam estas: se o tratamento da questão diz respeito à identidade entre os termos, isso significa dizer, por exemplo, que “o definiens de Coragem”36 (1971, p. 227)

32 VLASTOS, Gregory. “The Unity of the Virtues in the Protagoras”. Platonic Studies. Princeton: Princeton

University Press, 1971, p. 221-265.

33 Ibid., p. 224. 34 Ibid., p. 226.

35 Ibid., p. 227, tradução nossa.

36 Observa-se que o uso de maiúsculas para as virtudes ocorre somente nas citações do autor na medida em que

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pode ser usado como padrão para os outros termos, tais como piedade, justiça e demais virtudes; por outro lado, se alguém afirma que os cinco termos são sinônimos, “isto implicaria que qualquer destas cinco palavras poderiam ser livremente intercambiáveis em qualquer sentença (...) sem alterar seu sentido ou verdade.”37

Com respeito à primeira implicação decorrente da identidade entre as virtudes, Vlastos diz não poder afirmar que elas são idênticas umas às outras. Para sustentar esse ponto de vista, ele se utiliza dos argumentos encontrados nos passos 5d e 6c do Êutifron. Segundo tais passagens Sócrates, ao falar sobre a definição de ‘piedade’, vai dizer que esta se trata de “uma única ἰδέα38 (...) auto-identificável em todas as ações pias”, funcionando como padrão para identificar um ato como sendo pio ou não39. Nesse sentido, não seria possível definir a piedade ou as ações como sendo pias por meio de outra virtude, como a coragem, uma vez que esta última funcionaria como padrão apenas para questões concernentes a ações corajosas ou covardes.

A segunda implicação recai sobre a relação de sinonímia entre as virtudes. Por exemplo, em certas frases, tais como as que aparecem no Êutifron: i) “A piedade é esta forma em virtude da qual todas as ações pias são pias” 40, e ii) “A piedade é esta parte da justiça que envolve o serviço aos deuses” 41, a substituição de ‘piedade’ por ‘coragem’ e de ‘piedade’ por ‘justiça’, nos respectivos casos, teria estas consequências: na primeira frase, haveria uma falsificação, dado que a ἰδέα seria responsável por uma determinada característica e ação no indivíduo, e não outra; e, na segunda frase, esta perderia sentido, pois, sendo a piedade uma parte, e não a totalidade, da justiça, o definiens de uma não serviria para a outra.

A tese da semelhança surge como um segundo modo de interpretar a questão. Tendo como referência as passagens 329d e 330a-b, em que Sócrates diz serem as virtudes semelhantes, Vlastos observa que um dos problemas para esta interpretação é que Sócrates não diz em que sentido as virtudes seriam semelhantes. Segundo Vlastos, Sócrates oferece uma analogia cuja imagem não esclarece o que ele estaria entendendo por ‘semelhança’.

37 VLASTOS, 1971, p. 227.

38 De acordo com Chantraine, o termo ‘ἰδέα’ surge como uma “derivação nominal” do verbo ἰδεῖν, do aoristo

do verbo ὁράω que significa “ver como sensação percebida”. Quando passamos para o termo no substantivo, a palavra ganha outras conotações, como no contexto platônico que passa a conceber ἰδέα/, juntamente com εἶδος, como a algo com referência a objetos metafísicos. (CHANTRAINE, 1968, p. 455.).

39VLASTOS, 1971, p. 227.

40 PLATÃO, Êutifron, 6d: “ἀλλ᾽ ἐκεῖνο αὐτὸ τὸ εἶδος ᾧ πάντα τὰ ὅσια ὅσιά ἐστιν”.

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Essa analogia aparece em 329d, que compara as virtudes e suas partes com a barra de ouro e suas partes, as quais não difeririam uma das outras, senão em “grandeza e pequenez” 42 (ἢ μεγέθει καὶ σμικρότητι).

Se a semelhança está sendo entendida no mesmo sentido em que as partes do ouro, cujas partes apenas se diferem quanto ao tamanho, Sócrates estaria dizendo que “as virtudes são semelhantes no que diz respeito a todas as suas qualidades”43, ou seja, “que elas são disposições qualitativamente indistinguíveis”44. Esta afirmação não seria diferente daquela proposta pela tese da unidade, pois ambas acabam por eliminar a distinção entre as virtudes. Uma das consequências é que isto impossibilita “classificar ações particulares como instâncias dessa ou daquela virtude”45. Além disso, a busca por definições de cada virtude, que ocorre em diferentes diálogos, perde o sentido, pois não haveria nenhum elemento qualitativo para distingui-las umas das outras. Um outro ponto que Vlastos observa é que, ainda que haja situações em que mais de uma virtude se faça presente, “as diferentes disposições morais são expressamente reconhecíveis”46, ou seja, não se pode deixar de perceber a distinção qualitativa entre elas47.

Vlastos, por sua vez, visa solucionar os problemas derivados das duas teses anteriores através do que ele chama de tese da bi-condicionalidade. A tese se baseia, sobretudo, na passagem 329e, em que Sócrates, diferente de Protágoras, assume a seguinte posição: se um indivíduo participa de uma parte da virtude, ele necessariamente deve participar de todas as demais. Vlastos expressa essa afirmação por meio de duas fórmulas equivalentes:

(1) N [(x) (Cx↔Jx↔Px↔Tx↔Wx)]48 42 Tradução nossa. 43 VLASTOS, 1971, p. 330. 44 VLASTOS, 1971, p. 330. 45 VLASTOS, 1971, p. 330. 46 VLASTOS, 1971, p. 331.

47 De acordo com Taylor, Vlastos estaria afirmando que Platão rejeita ambas as teses, a unidade e a semelhança,

porque elas implicariam “que os nomes das virtudes são sinônimos”. Contudo, Taylor observa que se as duas são as mesmas, designadas por nomes distintos, não existe problema em considerar que o definiens de uma cabe na outra. Ainda em relação aos casos em que os nomes não são sinônimos, ele vai dizer que “é perfeitamente apropriado usar o definiens de a para determinar se um ato recai sob uma descrição apropriada para b.” Além disso, Vlastos não considera a possibilidade de pensar a tese da unidade como uma tese que descreva a virtude como um mesmo estado de caráter – posição esta defendida por Taylor. (TAYLOR, 1984, p. 104-105).

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(2) N (C ≡ J ≡ P ≡ T ≡ W).49

Na primeira fórmula, a variável x está sendo aplicada a pessoas, e não a ações, podendo ser lida do seguinte modo: “Necessariamente, para todo x, se x é corajoso então x é justo, se x é justo x é pio, se x é pio x é temperante, se x é temperante x é sábio”50. Sendo esta aplicada a pessoas, e não a ações, ela não tem – como as teses anteriores – por pressuposto dizer que, quando uma pessoa realiza determinada ação, esta ação, necessariamente, deve ser caracterizada por todas as virtudes. De modo contrário, o que a fórmula diz é que um indivíduo possui todas as virtudes, e suas ações podem ser caracterizadas por meio de uma virtude ou mais de uma, guardadas as devidas distinções qualitativas entre elas.

A segunda fórmula pode ser lida assim: “Necessariamente, a classe do corajoso é co-extensiva com a classe do justo, a classe do justo é co-co-extensiva com a classe do piedoso, a classe do piedoso é extensiva com a classe do temperante, a classe do temperante é co-extensiva com a classe do sábio”51. No que concerne à noção de co-extensão necessária, sendo ela aplicada ao mesmo objeto – neste caso a uma pessoa – disso não resulta haver uma identidade entre as virtudes, mas sim que elas partilham algo em comum e que faz com que todas estejam no mesmo indivíduo. De modo geral, o que ambas as fórmulas postulam é que as cinco partes da virtude estariam necessariamente presentes num mesmo indivíduo, mas não necessariamente numa mesma ação particular.

A respeito do operador modal ‘necessidade’, Vlastos explica que seu uso vai além da co-extensibilidade entre as virtudes: traz também a ideia de que somente por meio da sabedoria é que um indivíduo possui todas as demais virtudes. Ou seja, a sabedoria é colocada por Vlastos como a condição necessária, e também suficiente, para um indivíduo possuir as demais virtudes52. Esse papel atribuído à sabedoria, considerada como uma das partes da

49 VLASTOS, 1971, p. 232.

50 VLASTOS, 1971, p. 232, nota 26. 51 VLASTOS, 1971, p. 232, nota 27.

52 Brickhouse e Smith fazem uma objeção a esta interpretação de Vlastos. Ao considerar a sabedoria como a virtude necessária e suficiente para a aquisição das demais virtudes, dois pontos são colocados pelos autores: 1) Se a sabedoria é uma condição necessária e suficiente para aquisição das outras virtudes, basta que o indivíduo tenha uma das virtudes mais a sabedoria para ser considerado virtuoso; 2) se cada virtude é considerada um tipo de conhecimento específico em relação ao conhecimento geral, não haveria motivo para considerar a sabedoria como algo necessário e suficiente na aquisição das demais, já que cada parte seria uma parte do conhecimento, aquela necessária para realizar uma ação específica. (BRICKHOUSE, T.C.; SMITH, N. D., 1997, p. 315). Também Devereux observa que esta posição que Vlastos toma em relação ao papel da sabedoria no Protágoras não se mostra coerente com outras afirmações encontradas, por exemplo, no Laques.

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virtude, é justificado por Vlastos como sendo uma posição coerente com o princípio socrático de que a sabedoria seria aquela que torna melhores os homens. Além disso, Vlastos entende que Sócrates estaria afirmando no próprio Protágoras que a sabedoria é “suficiente para as ações virtuosas”53.

2.1.1. Releitura das teses da unidade e da semelhança a partir da tese da bi-condicionalidade

Partindo da tese da bi-condicionalidade, Vlastos sugere uma releitura da tese da

unidade e da semelhança a partir de uma proposição L – em que ‘L’ significa link, na medida

em que visa ligar as três teses54:

L Virtude, Sabedoria, Temperança, Coragem, Justiça, Piedade são

inter-predicáveis: se “B” é um substituto de um dos substantivos anteriores e “A” de um dos adjetivos cognatos, então B é A (i.e., A é predicado de B)”, onde A deve ser “entendido como aplicado não a uma entidade abstrata nomeada por B, mas [aplicado]55 a cada uma de suas instâncias. 56

Com isso, dada a tese da bi-condicionalidade, “Justiça é sábia; Justiça é temperante; Justiça é corajosa; Justiça é pia; Justiça é justa; Justiça é virtude.”57

Vlastos explica que o termo predicado não deve ser entendido como estando atribuído a um nome abstrato, mas aplicado ao indivíduo que é, nesse caso, justo. Com isso, ao dizer que, por exemplo, a justiça é temperante, deve-se compreender por esta afirmação que o indivíduo justo é também um indivíduo temperante. Ainda sobre os aspectos dessa tese de Vlastos, o termo predicado também pode ser colocado na forma substantivada como “Justiça

Neste diálogo, em 198a, bem como no Mênon (78d-79a), Platão não insere a sabedoria na lista daquilo que ele considera como partes da virtude. Iremos, mais a frente, sustentar que, de fato, a sabedoria, tal como utilizada por Platão no Protágoras, não será por ele identificada como parte, mas com o todo da virtude. (DEVEREUX, 1993. p. 773. Nota 13).

53 VLASTOS, 1971, p. 233, nota 29. 54 VLASTOS, 1971, p. 234, tradução nossa. 55 Inserção da autora.

56 VLASTOS, 1971, p. 234-235, tradução nossa. 57 VLASTOS, 1971, p. 235, tradução nossa.

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é Sabedoria”, “Temperança é Justiça”, entre outros. Estes seriam entendidos como inter-predicáveis do seguinte modo “Justiça é sabia e Sabedoria é justa”58. Em resumo, o que a tese da bi-condicionalidade diz é que, se uma pessoa tem uma das virtudes, ela

necessariamente terá todas as demais. Com isso, se N é justo, N é sábio, N é temperante, etc. logo, a justiça de N será sábia, temperante e assim por diante59.

Partindo desse ponto, ele dá início a uma releitura da tese da unidade. Lembrando que ela parte da afirmação de que “os nomes de todas as virtudes devem ser aplicados a uma mesma coisa”60, Vlastos chama a atenção para o fato de que ‘nome’ (ὄνομα) pode ser utilizado de dois modos: a) com o sentido de nome próprio, e b) com o sentido de uma “expressão descritiva61”. Por exemplo, analisando uma passagem do Fédon62, é possível ver que o número três é nomeado de duas formas distintas: como ‘três’, em que o nome tem a função de ser uma referência do objeto, ou seja, aponta para o próprio objeto; e também como ‘ímpar’ e, nesse caso, este nome estaria descrevendo uma qualidade ou atributo do objeto em questão.

Além da distinção entre as funções desempenhadas pelo ‘nome’, tem-se o caso que, enquanto o nome, aplicado como referência ou como nome próprio do objeto, estabelece uma identidade entre a coisa e o nome, o segundo caso não estabelece uma identidade entre o três e o ímpar, ou seja, eles não são sinônimos, pois “o fato de que eles nomeiam a mesma coisa não implica que eles sejam” sinônimos ou idênticos63.

Vlastos sustenta que, no caso do Protágoras, quando é dito que, por exemplo, ‘a temperança é sabedoria’, esta e demais frases de mesmo estilo podem ser traduzidas como “Temperança é nomeada [descritivamente] Sabedoria”, e assim também para os outros casos64. Situando esta explicação no Protágoras, Vlastos faz uso de duas passagens: uma, que se encontra no final do diálogo, em 361b-c, em que Sócrates vai dizer que todas as virtudes são sabedoria, e a segunda, em 332a-333b, em que ele irá dizer que, pelo fato de a sabedoria e a temperança terem o mesmo oposto, elas seriam uma única coisa.

58 VLASTOS, 1971, p. 236. 59 VLASTOS, 1971, p. 237. 60 VLASTOS, 1971, p. 238. 61 VLASTOS, 1971, p. 238. 62 PLATÃO, Fédon, 103e-104b. 63 VLASTOS, 1971, p. 240. 64 VLASTOS, 1971, p. 241-242.

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Na primeira passagem, Sócrates, ao falar que todas as virtudes são sabedoria, estaria, na realidade, dizendo que a justiça é sabedoria, bem como a temperança é sabedoria, e assim por diante. Isso poderia ser traduzido da seguinte forma: “Justiça é nomeada [descritivamente] por sabedoria”65, o mesmo valendo para as demais virtudes, com excessão da própria sabedoria, cuja aplicação seria entendida como nome próprio. Nesse sentido, não seria o caso de uma identificação entre as virtudes e a sabedoria, mas de uma relação bi-condicional entre elas66.

Com relação à segunda passagem acima, o termo ‘oposto’ estaria sendo aplicado no mesmo sentido em que ‘complemento’ é aplicado na teoria dos conjuntos. Sendo assim, dizer que a sabedoria e a temperança possuem o mesmo oposto é dizer que ambas são complemento, neste caso, da insensatez. Isso quer dizer que, se ambas as virtudes têm o mesmo complemento, elas são classes co-extensivas. Segundo Vlastos, isso demonstra que a tese da unidade pode ser re-interpretada a partir da leitura dada pela tese da

bi-condicionalidade, quando a unidade da virtude passa a ser entendida como “atributos

instanciados necessariamente em uma e mesma classe de pessoas”67.

Já na releitura da tese da semelhança, Vlastos sugere que a busca de Sócrates pela semelhança entre as virtudes deve ser vista a partir da “bi-condicionalidade das classes de suas instâncias68”. A fim de assegurar tal releitura, Vlastos examina as seguintes premissas presentes no Protágoras: “i) A Justiça é justa (330c) e a Piedade é pia (330d); e ii) A Justiça é pia e a Piedade é justa (331b)”69. Dada esta releitura, pode-se observar, a partir dessas premissas, que Sócrates estaria chamando a atenção para o fato de que a semelhança entre essas virtudes estaria em que ambas são pias e justas.

Então, segundo a proposição L, se ter uma virtude é ter todas as demais, e se isso significa que um indivíduo justo é, necessariamente, pio, temperante, etc., a justiça, que nele está instanciada pode ser dita como pia, temperante, etc. Assim, “cada uma é como o resto em todos os cinco aspectos”70, mas cada virtude possui sua própria caraterística que as distinguem entre si.

65 VLASTOS, 1971, p. 242. 66 VLASTOS, 1971, p. 243. 67 VLASTOS, 1971, p. 246. 68 VLASTOS, 1971, p. 247. 69 VLASTOS, 1971, p. 249. 70 VLASTOS, 1971, p. 247.

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Ao fazer a releitura das duas teses acima, Vlastos entende que as três acabam por “se tornar expressões complementares da mesma afirmação básica71”, qual seja, a de que possuir uma virtude leva, necessariamente, à obtenção de todas as demais. Entretanto, não fica claro o entendimento por detrás das afirmações tais como ‘a justiça é temperante’. Isso porque, se, por um lado, a ‘temperança’ é um nome descritivo para ‘justiça’, por outro, Vlastos diz que a ‘temperança’ é aplicável ao indivíduo que é justo, e não ao ente abstrato ‘justiça’. De que modo ele visa solucionar esse problema?

2.1.2. Vlastos e a Predicação Paulina

A justificativa de Vlastos para esta leitura começa por assumir que as sentenças predicativas estão sendo entendidas pelo o que ele chama de predicação paulina72, que irá se diferenciar do tipo de predicação conhecida como predicação ordinária. Por predicação paulina entende-se, por exemplo, que, dada a frase do tipo “A Caridade é gentil73”, o que está sendo qualificado como gentil não é a caridade em si, porque não se está atribuindo “propriedades morais a entidades abstratas”74, mas ao indivíduo que, possuindo tal caridade, é também gentil. Ao contrário, a predicação ordinária estaria assumindo que, na frase “A Caridade é gentil”75, a propriedade ‘gentil’ estaria sendo aplicada ao ente caridade. Portanto, a distinção entre esses dois modos de compreender uma predicação é que, enquanto a predicação ordinária entende que o predicado está sendo aplicado ao próprio ente abstrato, a predicação paulina interpreta que tais predicados são aplicados às instâncias desses entes nos indivíduos, e não aos próprios entes.

É por meio dessa interpretação que, segundo Vlastos, as sentenças no Protágoras devem ser compreendidas. Para finalizar, Vlastos propõe considerar a seguinte reflexão: se

71 VLASTOS, 1971, p, 252.

72 A predicação paulina tem como referência afirmações do apóstolo Paulo, tal como “O amor é sofredor e é

benigno” (I Cor. 13:4). Seguindo essa e outras afirmações semelhantes encontradas nas cartas de Paulo, a predicação paulina seria o entendimento de que o ‘ser sofredor’ e o ‘ser benigno’ estão se referindo não ao ente abstrato ‘amor’, mas ao indivíduo que possui este tipo de amor.

73 VLASTOS, 1971, p. 233. 74 VLASTOS, 1971, p. 253. 75 VLASTOS, 1971, p. 233.

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Sócrates pensava a justiça como um universal76, como é possível sustentar esta leitura no Protágoras? Nas palavras de Vlastos:

Lida como predicação Paulina (...) “Justiça é justa e pia” implica diretamente que qualquer um que instancie Justiça será justo e pio; e exatamente o mesmo é verdadeiro para a leitura Paulina de “Piedade é pia e justa.”” (...) Lida como predicação ordinária, “(...) tudo o que nós podemos obter de “Justiça é justa e pia” é que o universal, Justiça, tem essas duas propriedades. E do fato de que um universal possui certas propriedades, não se segue que as instâncias tenham tais propriedades.77

Em outras palavras, se tais sentenças forem lidas por uma perspectiva baseada na ideia de predicação ordinária, não se segue a afirmação de que o indivíduo, no qual a justiça se instancia, venha também a ser justo e pio. Isto acaba por não se mostrar coerente com o que está sendo exposto no Protágoras, o que justificaria, no entender de Vlastos, que se trata do tipo de entendimento sugerido pelas predicações paulinas no Protágoras. Resta, por fim, saber como a proposição L e a predicação paulina, que constituem a Tese da Bi-condicionalidade, afetarão a tese da unidade da virtude e a tese da semelhança78.

Sob a ótica da bi-condicionalidade, a tese da unidade (sinonímia) não se aplicaria a nomes como referentes, mas como descrições. Aplicada à tese da semelhança, a bi-condicionalidade resulta em que as virtudes são como as outras nos cinco aspectos, porque um indivíduo não pode participar de uma sem participar das demais, ainda que cada uma guarde sua distinção específica. Portanto, afirmações do tipo “x é semelhante a y”, de acordo com a predicação paulina, podem ser ditas na medida em que têm como referência as instanciações no indivíduo e não na medida em que, indistintamente, as virtudes, que Vlastos chama de Universais, sejam semelhantes.

76 VLASTOS, 1971, p. 252.

77 VLASTOS, 1971, p. 255-256, tradução nossa.

78 Do ponto de vista da tese da bi-condicionalidade, Sócrates estaria compreendendo as predicações do tipo

“justiça é pia” e “piedade é justa” (Prot. 330a -331b) como predicações paulinas, querendo dizer, com isso, que “a justiça é tal que suas instâncias serão justas e pias” e assim também com as demais virtudes. Contudo, para Devereux, após afirmar aquelas sentenças, Sócrates não vai inferir algo parecido com o que Vlastos quer defender, mas sim que elas são apenas semelhantes. (DEVEREUX, 1992, p. 769).

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2.2 Α Unidade da Virtude como Tese da Identidade

(a) Terry Penner

Em seu artigo, intitulado “The Unity of Virtue”79, Terry Penner tem como propósito demonstrar que, ao colocar em discussão o tema da unidade da virtude no Protágoras, Sócrates está fortemente comprometido com o que ele vai chamar de Tese da Identidade. Esta tese se fundamenta na seguinte ideia: Coragem = Sabedoria = Temperança = Justiça = Piedade80, em que o sinal ‘=’ denota o sentido forte do termo ‘identidade’.

Penner inicia sua análise observando as dificuldades que alguns intérpretes possuem e que os levam a rejeitar esta posição. Referindo-se àqueles que sustentam uma tese da

equivalência – similar em muitos pontos a tese da bi-condicionalidade – em contraposição à

tese da identificação das virtudes entre si, Penner ressalta que a causa de tal rejeição começa numa interpretação equivocada da questão “O que é X”. Segundo Penner, este tipo de questão deve ser pensada e reformulada do modo seguinte: “o que é esta única coisa, a mesma em todos os casos, em virtude da qual homens corajosos são corajosos?”81. Contudo, os que negam a tese da identidade assim o fazem por entender a questão como que tratando, em geral, de uma busca por significados82. Por exemplo, no caso de uma pergunta do tipo ‘o que é a coragem’, estariam raciocinando da seguinte maneira:

i) “Em adição aos homens corajosos, deve existir uma tal coisa como a coragem – isto é, o significado de ‘coragem’ – em virtude da qual homens corajosos são corajosos; e

ii) O significado de ‘coragem’ é diferente do significado de ‘sabedoria’”83

A partir dessas duas proposições, segue-se que, uma vez que os significados são diferentes, apenas a coragem, e não outra virtude, pode fazer com que homens sejam

79 PENNER, Terry. “The Unity of Virtue”. The philosophical Review. Vol. 82, No. 1 (1973), p. 35-68. 80 Ibid., p. 36.

81 Ibid., p. 38. 82 Ibid., p. 38. 83 Ibid., p. 38.

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corajosos e, portanto, não se pode considerar a doutrina da unidade da virtude como uma tese da identidade – apesar de ser possível ainda falar de uma semelhança entre as virtudes e, por conseguinte, de uma tese da equivalência entre elas.

O mesmo pensamento é expresso quando, ao invés de significado, o X da questão é tomado como referência a essências ou a universais. Nesse caso, dizer que as virtudes são idênticas umas às outras, seria o mesmo que afirmar:

iii) “A essência da coragem = essência da sabedoria sse “coragem” e “sabedoria” são sinônimos – isto é, se o significado de coragem = significado de sabedoria.”84

Ao chegarem ao mesmo resultado, estas perspectivas acabam por negar a possibilidade de tomar a unidade da virtude como uma tese da identidade. Estas posições, tanto a que toma como referente o significado, quanto aquela cuja referência é a essência ou o universal, fazem parte do grupo que Penner vai denominar the meaning view85 - ou “os proponentes do significado”. Com o objetivo de combater a posição deste grupo, Penner retorna para a questão “o que é X” e observa a necessidade de tal questão ser compreendida por outro foco, ou seja, não como uma busca por significados, mas uma busca por um tipo de estado psicológico que explique não só como os homens se tornam corajosos, mas se este mesmo estado psicológico também torna tais homens sábios ou não86.

Se o resultado dessa investigação for afirmativo, então o estado psicológico que torna os homens corajosos será idêntico ao que torna os homens sábios. A distinção, portanto, entre os proponentes do ponto de vista do significado e Penner é que os primeiros irão tomar como referente da coragem o significado, a essência, ou o universal da coragem; enquanto Penner irá tomar como referência da coragem o que ele chama de “entidade teórica”, isto é, o “estado psicológico que explica o fato de que certos homens praticam

84 PENNER, 1973, p. 38. 85 PENNER, 1973, p. 39.

86 Segundo Devereux a posição que adota a explicação de um mesmo estado para denotar a virtude e eliminar

qualquer possibilidade de distinção entre elas, levando à negação de que as virtudes são partes distintas do todo parece “inconsistente com a posição de Sócrates [no Protágoras] e com a visão que ele endossa no Laques e no Mênon”. (DEVEREUX, 1992, p. 767).

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atos corajosos”87. E, uma vez que, explica o autor, “as condições de identidade para estados psicológicos são presumivelmente mais amplas que a sinonímia, podemos supor que dois termos-virtudes não-sinônimos se referem a um mesmo estado psicológico.”88

2.2.1. Tendências versus “estados de alma” ou “força - motriz”

Pelo fato de Penner construir seu argumento a partir da noção de estados psicológicos, ele precisa lidar com uma objeção à sua posição. Esta objeção considera que as referências para “coragem”, “sabedoria” e demais virtudes devem ser entendidas como disposições: “de um lado, disposição para comportamento corajoso e, de outro, disposição para comportamento sábio”89. Isso significa que, se existem dois tipos de comportamentos distintos, de igual modo existem dois tipos distintos de disposições, causando uma dificuldade para o estabelecimento da ideia de que duas virtudes possam se referir a uma mesma e única coisa.

Surge assim a seguinte objeção a Penner: “as disposições são numericamente distintas

sse elas conduzem a diferentes tipos de comportamentos”90. Para defender sua posição, Penner apresenta dois modos em que se pode conceber as noções de coragem e sabedoria, por exemplo: 1) a que compreende disposições como tendências91, consideradas “numericamente distintas sse elas conduzirem a diferentes tipos de comportamento”92; e 2) a que concebe disposições como “coragem” e “sabedoria” como força-motriz ou

estados de alma, onde “a mesma força-motriz ou estado de alma pode resultar em

diferentes tipos de comportamento”93. A partir dessas duas concepções, Penner elabora uma possibilidade descritiva da unidade da virtude:

Sócrates pensava que todos e somente aqueles homens com tendências a ações corajosas, teriam tendências para ações sábias (estas ações sendo em geral diferentes das primeiras ações). Mas ele pode ter acreditado que todas estas tendências surgiam da mesma força-motriz ou estado psicológico (por 87 PENNER, 1973, p. 41. 88 PENNER, 1973, p. 42. 89 PENNER, 1973, p. 44. 90 PENNER, 1973, p. 44. 91 PENNER, 1973, p. 44. 92 PENNER, 1973, p. 44. 93 PENNER, 1973, p. 45.

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exemplo, um certo tipo de conhecimento). (PENNER, 1973, p. 45, tradução nossa.)

O que se tem aqui é a descrição dos dois tipos de disposição, tendências e

forças-motrizes, cujas diferenças poderiam ser superadas. Entretanto, há um problema em conceber

a noção de disposição como tendência. Isso se deve ao fato de que esta identificação corre o risco de cair, com muita frequência, no mesmo problema que o dos proponentes do significado, qual seja, o de distinguir algo a partir de seu significado. O resultado seria, então, alcançado em função da não-sinonímia entre elas. Isto, por sua vez, não ocorreria com a noção de força-motriz.

Outra ocorrência que demonstra a distinção entre ‘tendência’ e ‘força-motriz’ pode ser encontrada em um raciocínio semelhante ao dos filósofos da ciência. Segundo estes, independente do significado linguístico dessas disposições, o fato é que todo comportamento possui uma explicação física94. É esse sentido de explicação que Penner vai associar à noção de força-motriz, entendida, por sua vez, como uma entidade única que explica as diferentes ações dos indivíduos.

Penner ainda observa que não há nada de econômico em considerar que exista uma “tendência ao comportamento corajoso” para além da força-motriz ou estado de alma que leva a comportamentos tais como de coragem, de sabedoria, de temperança, porque a noção de ‘tendência’ se faz apenas em “referência a um comportamento ou estado específico”95. Por exemplo, se os homens são considerados corajosos, estes não são corajosos segundo suas tendências a atos corajosos, mas sim “se eles possuem a qualidade requerida para realizar ações corajosas em circunstâncias apropriadas”96. Nesse sentido, essa qualidade requerida estaria sendo identificada com a força-motriz ou estado de alma. Assim é que Penner rejeita a possibilidade de que Sócrates estaria compreendendo as disposições também como tendências.

94 PENNER, 1973, p. 47. 95 PENNER, 1973, p. 47. 96 PENNER, 1973, p. 48.

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2.2.2 Aplicação da tese da força-motriz ao Protágoras

Segundo Penner, na passagem 329c-d do Protágoras, Sócrates, em oposição a Protágoras, parte da ideia de que as virtudes não são distintas, mas são nomes diferentes para uma única e mesma coisa. Esta formulação, juntamente com os demais argumentos do diálogo, formariam uma defesa da tese da identidade da virtude97.

O primeiro desses argumentos, identificado como argumento dos contrários, se encontra a partir do passo 332a. Nesta passagem Sócrates explica a Protágoras que, se cada coisa possui um único contrário, então, a temperança e a sabedoria correspondem a uma única coisa, pois ambas possuem o mesmo contrário: a insensatez98. Aplicando a tese da identidade a este caso, Penner sustenta que Sócrates está, na verdade, lidando especificamente com apenas dois contrários: a virtude e o vício. Assim se tem, de um lado, a virtude, que se refere tanto à temperança, quanto à sabedoria; e de outro, o vício, que se refere tanto à insensatez, quanto à intemperança. Logo, quando Sócrates diz que é pela temperança que os homens se tornam temperantes, e pela insensatez que os homens se tornam insensatos99, ele está, em realidade, opondo virtude e vício. Dessa forma, Sócrates estaria afirmando que é por meio da virtude que um indivíduo irá agir de modo temperante, corajoso, sábio, e, de modo contrário, por meio do vício que irá agir covardemente, injustamente, e assim por diante. O que Penner propõe é que, ao lermos desse modo, possamos vir a entender que se trata de “um argumento que parte do modo como os homens agem e leva às forças- motrizes ou estados de alma que causam tais ações”100.

O argumento da confiança101 surge como segunda justificativa para a leitura de Penner. Aqui Sócrates estaria se colocando em oposição a uma afirmação feita por Protágoras de que a coragem é diferente das demais virtudes e, por isso, pode ser encontrada, inclusive, em indivíduos ignorantes e injustos102. Por sua vez, Sócrates afirma que só é possível agir com coragem à medida que o indivíduo também for sábio103. Penner interpreta esta

97 PENNER, 1973, p. 50.

98 PLATÃO, Protágoras, 332a-333b. 99 PLATÃO, Protágoras, 332b. 100 PENNER, 1973, p. 52.

101 PLATÃO, Protágoras, 349d-351b. 102 PLATÃO, Protágoras, 349d. 103 PLATÃO, Protágoras, 350c.

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declaração como uma identificação entre coragem e sabedoria, entendendo que “aquilo que torna um homem corajoso é idêntico àquilo que o torna sábio”104. Dessa forma, o que Sócrates está querendo dizer é expresso por Penner do seguinte modo:

Certos homens, mergulhadores, são confiantes em mergulhar dentro de poços porque eles sabem [o que eles estão fazendo]; e algo similar se dá com os cavaleiros habilidosos, que lutam a cavalo com confiança, e com a habilidade dos guerreiros que lutam confiantemente com um escudo protetor. E de modo geral: Aqueles que sabem o que estão fazendo são mais confiantes do que aqueles que não sabem. (PENNER, 1973, p. 53-54, tradução nossa)

Assim, o que explica o fato dos homens expressarem confiança em suas respectivas ações é o conhecimento da habilidade desempenhada. Em outras palavras, é por causa do conhecimento que um indivíduo demonstra confiança na hora de agir. Portanto, tais homens são corajosos porque conhecem. Por outro lado, pode-se afirmar que homens ignorantes dessas mesmas habilidades demonstram uma espécie de confiança ignorante e, portanto, não podem ser considerados, de fato, confiantes. Então, nesse sentido, o que Sócrates faz é assumir que “todos os homens corajosos são confiantes”105 e, sendo confiantes devido ao conhecimento que possuem, a coragem é colocada na mesma classe daquilo que faz com que homens sejam corajosos, ou seja, a sabedoria.

O terceiro argumento parte da expressão “aquilo em virtude de quê”106, presente no passo 360c. A proposta de Penner é demonstrar que se trata de uma expressão “causal ou explicativa, ao invés de epistêmica ou semântica”107. A mesma demonstração visa a ser aplicada à questão “o que é X”. O intuito é o de sustentar que a questão tem por objetivo buscar “um relato psicológico (explicação) sobre o que é isto que, nas almas dos homens, torna-os corajosos”108. Em ambos os casos, a questão é compreender que alguém que “age por meio de F”109, não age devido ao “significado de F estar instanciado em um ato que alguém vê como um ato que está sendo realizado F-mente”110. Isso significa que, quando

104 PENNER, 1973, p. 53. 105 PENNER, 1973, p. 55. 106 PENNER, 1973, p. 56. 107 PENNER, 1973, p. 56. 108 PENNER, 1973, p. 56-57. 109 PENNER, 1973, p. 57. 110 PENNER, 1973, p. 57.

Referências

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