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O Processo De Produção Dos Saberes Escolares No Âmbito Da Disciplina De História:

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Academic year: 2021

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Carmen Teresa Gabriel*

RESUMO1

A discussão, no campo educacional, em torno das questões que envolvem a produção dos saberes escolares tem permitido dar visibilidade e problematizar esse elemento crucial do processo de ensino-aprendizagem que paradoxalmente durante longo tempo, não mereceu a atenção devida dos pesquisadores. Considerando as contribuições vindas de campos disciplinares e/ou horizontes teóricos distintos para pensar a produção do conhecimento na sua forma escolarizada, neste texto, proponho refletir sobre em que medida a incorporação dessas contribuições tem permitido uma melhor compreensão das práticas escolares curriculares cotidianas ou dos mecanismos políticos-culturais e pedagógicos inerentes aos processos de ensino-aprendizagem na História.

Palavras-chave: Saberes escolares. Conhecimento histórico escolar. Currículo.

ABSTRACT

The discussion in the educational field around the issues involved in the production of school knowledge has allowed to give visibility and to problematize this crucial element of the teaching-learning process that paradoxically for a long time did not deserve the attention of the researchers. Considering the contributions coming from different disciplinary fields and/or theoretical horizons to think about the production of knowledge in its schooling form, in this text I propose to reflect on the extent to which the incorporation of these contributions has allowed a better understanding of daily school curricular practices or political-cultural and pedagogical mechanisms, aspects inherent to the teaching-learning processes in History.

keywords: School knowledge. Historical school knowledge. Curriculum.

*Doutora em Educação pela PUC/RJ. Professora Titular de Currículo da Faculdade de Educação da Universidade Federal do Rio de Janeiro e coordenadora do Grupo de Estudos Currículo, Cultura e Ensino de História (GECCEH/NEC/FE/UFRJ). E-mail: carmenteresagabriel@gmail.com.

1Trata-se de um texto adaptado de apresentação oral realizada no XIII Encontro Nacional de Didática e Prática

de Ensino - ENDIPE, 2006, Recife. Mesmo após dez anos, mobiliza discussões caras ao debate sobre o ensino

O Processo De Produção Dos

Saberes Escolares No Âmbito

Da Disciplina De História:

Tensões E Perspectivas

THE PRODUCTION PROCESS OF SCHOOL

KNOWLEDGE IN THE SCOPE OF HISTORY

DISCIPLINE: TENSIONS AND PERSPECTIVES

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SIÊ

Introdução

Nos últimos anos, a discussão, no campo educacional, em torno das questões que envolvem a produção dos saberes escolares tem permitido dar visibilidade e problematizar esse elemento crucial do processo de ensino-aprendizagem que, paradoxalmente, durante longo tempo, não mereceu a atenção devida dos pesquisadores.

A proliferação e diversidade da terminologia presente nos debates acadêmicos desde então – “cultura escolar” (Forquin, 1993), “saber escolar” (Forquin, 1992; Perrenoud, 1993, 1998; Develay, 1991,1995), “conhecimento escolar” (Lopes, 1997, 1999), “disciplina escolar” (Chervel,1990; Goodson, 1995), “conteúdos curricularizados” (Gimeno Sacristán, 1995, 1996), “saber a ensinar”, “saber ensinado”, (Chevallard, 1991), “saberes aprendidos” (Develay, 1995) são sintomas tanto da presença dessas questões bem como de contribuições vindas de campos disciplinares e/ou horizontes teóricos distintos para pensar a produção do conhecimento na sua forma escolarizada.

Neste texto, proponho refletir sobre as implicações do enfrentamento dessas questões para o avanço da discussão no campo educacional. Em que medida a incorporação dessas contribuições tem permitido uma melhor compreensão das práticas escolares curriculares cotidianas ou dos mecanismos políticos-culturais e pedagógicos inerentes aos processos de ensino-aprendizagem em uma área disciplinar específica? O que estamos querendo nomear quando utilizamos uma ou outra dessas expressões? Que potencialidades e limites cada um desses termos carrega, ou melhor, de que sentidos eles podem ser “investidos” para a compreensão das práticas curriculares? Que relações são possíveis de serem estabelecidas entre os sentidos atribuídos a esses termos?

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Para além das especificidades relativas às tradições teóricas, ao enfoque e às ênfases que cada um desses termos tende a traduzir, minha argumentação central se baseia na aposta da potencialidade latente do que eles têm em comum, das pistas de reflexão que eles assinalam, das suas tentativas em nomear o que até recentemente não se incluía no campo do pensável como objeto de investigação central: o elemento “saber” que orienta o olhar para o que é ensinado, para os conteúdos que justificam a própria existência dos sujeitos sociais – professor e aluno – e que articulados configuram o chamado triângulo didático.

Trata-se aqui, nos limites deste texto, menos de reforçar diferenças e especificidades do que sublinhar as semelhanças entre categorias analíticas que têm como um dos seus objetivos principais nomear e explicar a natureza, estrutura, função e/ou funcionamento dos objetos de ensino e aprendizagem específicos das instituições escolares. Importa, pois, sublinhar esse lugar específico, isto é, o da epistemologia social escolar , como locus privilegiado da discussão que aqui me proponho.

Materializados através de diferentes suportes como documentos ou propostas curriculares oficiais, livros didáticos, textos produzidos previamente ou no decorrer das aulas pelo professor, os saberes escolares podem ser vistos – como procurarei demonstrar ao longo da minha argumentação – como novas categorias analíticas potencialmente férteis para pensar objetos de investigação que emergem e ganham corpo no âmbito de antigas e novas discussões específicas ao campo educacional. Dito de outra forma, fazer uso dessas categorias, enveredar-se pelas trilhas da epistemologia social escolar significa partir de bases novas para a compreensão dos conteúdos escolares.

A inovação não consiste em apenas assumir a centralidade dos conteúdos escolares nas análises desses processos. Esse tipo de enfoque já estava parcialmente presente, por exemplo, na teoria crítica-social dos conteúdos, ocupando, inclusive, uma das posições hegemônicas no campo pedagógico brasileiro, na década de 1980. A dimensão inovadora consiste no reconhecimento da necessidade de problematizar esses conteúdos escolares tanto quanto no que diz respeito ao seu grau de comprometimento com as questões políticas, ideológicas e culturais do seu tempo

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SIÊ servem de referência. Fabricação social e epistemológica, os saberes escolares são

percebidos como resultante de processos complexos de seleção cultural e de reelaborações didáticas estreitamente articuladas com as trajetórias históricas de construção das diferentes áreas disciplinares. É justamente nesta dupla dimensão configuradora — seletividade cultural e autonomia epistemológica (Forquin, 1992) — que reside a fertilidade teórico-metodológica dessa categoria.

Estruturei esse texto em duas partes. Na primeira procuro identificar e analisar algumas das potencialidades dessa categoria para enfrentar os desafios contemporâneos presentes no cotidiano escolar. Na segunda parte, articulo essas considerações gerais com questões específicas do campo da História-ensinada, sublinhando algumas tensões e perspectivas que a abordagem pela epistemologia escolar permite evidenciar.

Considerações gerais sobre a potencialidade heurística da categoria

analítica “saberes escolares”

Não se trata aqui de considerar a categoria “saber escolar” ou os outros termos acima citados como sendo a panaceia para todos os males que afligem o campo educacional no que tange às questões de ensino-aprendizagem. Em primeiro lugar, porque essa fertilidade não pode ser vista de forma isolada e autorreferenciada. Ela mostra toda a sua potencialidade quando acionada com outras questões, categorias, pressupostos teóricos e escolhas políticas. Em seguida, nunca é demais lembrar que a maior ou menor fertilidade analítica de um conceito ou categoria não se encontra apenas no termo em si, mas no olhar de quem a utiliza para explicar e interpretar as práticas sociais observadas. Nesse sentido, o que se segue pode ser lido como considerações que justificam uma aposta na potencialidade heurística desse campo semântico, para pensar questões que emergem na atualidade no campo da Didática e do Currículo. A exploração de uma ou outra das potencialidades listadas dependerá dos recortes e da natureza dos objetos de investigação privilegiados e consequentemente das ênfases dadas aos campos teóricos e/ou tradições teóricas diferentes.

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Primeira potencialidade: Uma “porta de entrada” no debate político sobre o papel da escola na nossa contemporaneidade

Ao contrário de representar um distanciamento das questões mais gerais suscitadas pelas criticas pós-modernas no contexto sócio-político cultural da atualidade, a categoria em foco pode ser vista como uma forma possível de entrada e de posicionamento no debate contemporâneo. Discutir hoje sobre o processo de construção dos saberes escolares no âmbito de uma disciplina específica significa, logo de saída, se colocar contra a corrente de ideias que tendem a esvaziar e/ou negar o papel desempenhado pela escola na construção de um projeto de sociedade menos dogmático e mais igualitário.

Um primeiro argumento, de ordem mais geral, diz respeito à defesa da pertinência da manutenção da instituição escolar no cenário político cultural da atualidade. Se o desenvolvimento das novas tecnologias fez com que a escola perdesse o monopólio do saber reconhecido socialmente, transformando-se em um lugar, dentre outros, onde circulam saberes, a discussão sobre saberes escolares permite argumentar que ela continua, contudo, sendo um espaço onde se estabelecem relações privilegiadas com os mesmos, podendo ser considerada como o único locus onde é possível, de um lado, estruturar e sistematizar os saberes fragmentados, criados em outros lugares e, de outro, socializar os saberes considerados e legitimados como dominantes.

Um segundo argumento diz respeito ao reconhecimento da potencialidade emancipatória que se encontra na própria identidade atribuída e assumida por essa instituição. Trabalhar na pauta da epistemologia social escolar permite pensar na estreita articulação entre a capacidade de intervenção social da escola na construção de um projeto de sociedade e a forma pela qual essa instituição lida com os saberes que nela circulam e/ou são produzidos. “Local de instrução”, “transmissora de elementos de cultura” (Forquin, 1993), espaço de “criações cognitivas próprias” (Chervel, 1990), “arena cultural” (Silva, 1995), espaço de “transposição didática interna” (Chevallard, 1991), não importam as expressões utilizadas, as funções atribuídas e/ou as influências paradigmáticas que orientam e animam os debates, as relações escola-saber, escola-conhecimento ou escola-cultura estão sempre presentes

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SIÊ na reflexão sobre o(s) significado(s) e a(s) função(ões) da instituição escolar, a

despeito dos diferentes papéis políticos, sociais e ideológicos que lhe são atribuídos e por ela são assumidos.

Uma terceira ordem de argumentação gira em torno do posicionamento frente às críticas pós-modernas que incidem sobre a problemática das identidades e suas implicações políticas e epistemológicas para o campo educacional interferindo diretamente na reflexão sobre a função e o funcionamento da instituição escolar.

Um dos grandes trunfos da legitimação da escola têm sido as sua contribuições na formação de identidades, sejam estas individuais, sociais e/ou culturais. Mesmo no seio das teorias educacionais mais recentes, o alvo das críticas incide mais sobre os pressupostos da construção da identidade do que sobre a importância atribuída à escola neste processo. O que está em questão é mais a concepção de escola e de identidade do que a relação estabelecida entre as duas. Em um momento em que a concepção de identidades monolíticas e estáveis - central no pensamento moderno - começa a ceder lugar à concepção de identidades plurais, dinâmicas, híbridas (Canclini, 1997), percebidas como verdadeiras “celebrações móveis” (Hall, 1997) , nem a escola, nem o ensino de história, sob pena de negarem alguns de seus fundamentos e finalidades principais, podem deixar de enfrentar essa discussão.

Ao incorporar as discussões oriundas do campo curricular tendo como base as contribuições das teorias críticas e pós-críticas, o universo semântico em foco pode oferecer chaves de interpretação e de explicação do papel da instituição escolar na construção das diferentes marcas identitárias em disputa na atualidade.

Segunda potencialidade: Oferece pistas para lidar com a tensão entre epistemologia e poder.

Enfrentar os desafios suscitados pelas críticas pós-modernas através da problemática dos saberes escolares permite igualmente posicionar-se para além das questões relativas ao papel da escola no mundo contemporâneo. Refletir sobre a produção desse tipo de saber implica travar necessariamente um diálogo com o terreno da epistemologia. Diálogo esse que, todavia, na atualidade, está longe de se apresentar como uma questão tranquila, em torno da qual convergem posições

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consensuais. Ao contrário, frente à crise paradigmática que caracteriza o mundo atual, esse diálogo tende mais a uma tomada de posição em relação a conflitos que se manifestam no campo da produção do conhecimento através de tensões como universalismo e relativismo, verdade e sentido, objetividade e subjetividade.

Nesse cenário, a epistemologia tem tido sua existência questionada no seu próprio terreno de reflexão e argumentação. A crítica à hegemonia da razão iluminista, considerada, até época recente, como única e legítima fonte de inteligibilidade do mundo, confunde-se com a crítica à própria pertinência do campo epistemológico.

As implicações pedagógicas da incorporação desse tipo de crítica levam alguns representantes do campo educacional, em especial no campo do Currículo, adeptos às perspectivas mais radicais do pós–estrutralismos e pós-modernismos, a negar a dimensão epistemológica e supervalorizar as dimensões política e cultural na compreensão das práticas curriculares. O que está em jogo é a possibilidade de afirmar a existência de conhecimentos verdadeiros, considerados válidos para serem ensinados, em uma determinada área disciplinar e para um determinado grupo de alunos/as.

Tendo como foco de discussão o ensino de conteúdos disciplinares específicos, torna-se difícil sustentar que no processo de produção de conhecimento escolar não entrem em linha de conta critérios também de ordem epistemológica. No campo pedagógico, a questão dos valores é intrínseca à seleção dos conteúdos escolares e, entre esses valores, não é possível descartar o valor de verdade que se formula também no terreno da epistemologia. A verdade e validade de um saber se, por um lado, não são mais vistas como definitivas e absolutas, por outro, continuam a ter sua pertinência baseada em regimes de verdades construídos e legitimados também no seio da comunidade científica produtora dos saberes acadêmicos, que servem, entre outros, de referência para os saberes escolares.

O fato de admitir que o currículo não apenas reproduz, mas também, e principalmente, produz significados não autoriza pensar como excludentes questões de ordem epistemológica, política e/ou cultural. Dependendo da concepção de epistemologia privilegiada, essas diferentes ordens aparecem imbricadas, sem,

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SIÊ Torna-se, pois, um desafio para o campo pedagógico procurar compreender

como as questões de ordem epistemológica se manifestam no processo de seleção dos saberes escolares, uma vez redimensionadas e articuladas com outras, de dimensões diversas, incorporadas através do debate. Entre o niilismo epistemológico que nega a possibilidade de estabelecimento de qualquer regime de verdade e a crença na existência de verdades absolutas, definitivas universais – independentesdos interesses em disputa presentes nos campos científicos onde elas são formuladas – nãoexistiriam possibilidades de assumir posições intermediárias?

Operar com a categoria de saber escolar, tal como aqui defendida, implica em nos situarmos entre as correntes de pensamento que preferem ressignificar a concepção de epistemologia a negar a especificidade do seu território e do seu potencial para o desenvolvimento da argumentação sobre a problemática dos saberes escolares.

Nesse movimento de ressignificação do conceito de epistemologia, emergem dois caminhos distintos, mas complementares. Um primeiro, traçado por autores que podem ser identificados como adeptos do que ficou conhecida como a Nova Sociologia do Currículo (Young, 1971, 2000; Apple, 1982, 1989, 1994) ou seus desdobramentos posteriores e cujas linhas de pesquisa tendem a se pautarem em uma epistemologia social e/ou histórica (Popkewitz, 1992; Lopes, 1999; Goodson, 1995). Para esses autores, trata-se de problematizar os pressupostos da epistemologia tradicional realista e de propor análises que incorporem à reflexão epistemológica a problemática do poder, como deixa transparecer a citação abaixo:

Uso o conceito de epistemologia para me referir à forma como o conhecimento, no processo de escolarização, organiza as percepções, as formas de responder ao mundo e as concepções do eu. O “social” que qualifica “epistemologia” enfatiza a implicação relacional e social do conhecimento, em contraste com as preocupações filosóficas americanas com epistemologia como busca de asserções de conhecimentos universais sobre a natureza, as origens e os limites do conhecimento. (Popkewitz, 1992, p.173)

Ao reconhecer as especificidades dos saberes escolares, isto é, ao afirmá-lo como um saber distinto dos diferentes saberes – saber acadêmico, saber do senso comum, saber da mídia, saber social do aluno, saber docente, etc – quepotencialmente podem lhe servir de fonte, de referência, as linhas de pesquisa que operam com essa

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categoria contribuem tanto para problematizar tanto o processo de naturalização dos conteúdos escolares, como a estratificação hierárquica dos saberes. Longe de conceber os saberes como universais, impessoais, sem proprietários, sem traços de sua gênese, a epistemologia social escolar tende a reconhecer a dimensão histórica e política como elemento constituinte da própria noção de saber, afastando-se das perspectivas representacionais do conhecimento/saber e oferecendo a possibilidade de diálogo com as perspectivas construcionistas. Ter ou não ter saber — ou a definição de algo como sendo ou não um saber, nunca pode ser completa e definitivamente assegurada. O saber, assim entendido, é fonte de conflito e de disputa, verdadeiro objeto de desejo gerando uma dinâmica própria no seio das sociedades modernas.

Entrar no debate pelas portas da epistemologia social escolar significa ainda colocar em questão a hierarquização dos saberes, sem, no entanto, desqualificar ou negar o papel de referência dos saberes científicos no processo de construção dos saberes escolares.

O segundo caminho, inaugurado por Chevallard (1991), e, no meu entender, ainda pouco trilhado, consiste em ampliar o próprio terreno da epistemologia tradicional e incluir, além da problemática da produção dos saberes e suas imbricações com as questões de poder, outras problemáticas que estão diretamente relacionadas com a dinâmica dos saberes.

A ideia defendida por esse autor é que os saberes estão localizados em diferentes espaços (habitats) institucionais e, dessa forma, englobam ou estão relacionados a diferentes problemáticas: da utilização, do ensino, da produção e da transposição. Essa “multilocalidade” dos saberes imprime outra característica a esse tipo de objeto que os distingue de outras formas de conhecimento. Nessa perspectiva, o que também define um saber é o fato de poder ser utilizado, ensinado e produzido, e, como acrescenta Chevallard (1991), “transposto”.

Essas diferentes esferas, apesar de possuírem certo grau de autonomia, estão estreitamente articuladas. A compreensão do ensino de um saber não é “possível se ignorarmos as suas utilizações e produções”. Cumpre ainda sublinhar que se essa articulação assume uma forma hierarquizada não é em função de alguma característica

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SIÊ [A formação do sistema de saberes] não se explica pelo que seriam

as características intrínsecas dos saberes. Ela decorre da estrutura de produção, de utilização de ensino dos diferentes saberes, e também, claro, de toda a rede de transposição – as noosferas – sem a qual os saberes não poderiam viver. (Chevallard,1991 p.215)

A crítica à concepção de epistemologia, elaborada por Chevallard, se singulariza pelo alvo buscado. Enquanto os estudos anteriormente mencionados tendem a centrar suas críticas em uma concepção de Razão, de Ciência, de Método, consolidada no século XIX, e responsável pelo estabelecimento e imposição das regras da produção do saber científico que passou a ser considerada como a única forma possível de inteligibilidade do mundo, Chevallard desloca o foco da discussão.

A originalidade de sua argumentação consiste no fato de escolher como alvo não as questões suscitadas pela esfera da produção do saber científico (objetividade, subjetividade, legitimidade, verdade, etc), mas sim a hegemonia dessa esfera para se pensar as questões de ordem epistemológica. Hegemonia essa, cabe sublinhar, explicada por questões de ordem histórica e cultural:

Devemos ver, creio, o efeito de certa maneira que tem a cultura de tratar os saberes. Sua produção é destacada e valorizada. Sua utilização permanece opaca, ignorada. Seu ensino, mais visível culturalmente que a sua utilização, é, contudo diminuído, olhado como uma tarefa contingente, um mal necessário. (Chevallard, 1991, p.212)

Ao propor uma reavaliação dos lugares ocupados socialmente pelas diferentes problemáticas de saberes (produção, ensino, utilização e transposição) no mundo contemporâneo, Chevallard justifica a necessidade da introdução no campo educacional de uma reflexão epistemológica que leve em conta não apenas a pluralidade de saberes, mas principalmente as diferentes problemáticas com as quais eles se relacionam. Ao contrário de restringir sua reflexão à problemática da produção das Ciências ou da Ciência, Chevallard centra sua reflexão na discussão sobre a problemática dos saberes em geral, reconhecendo a pertinência e necessidade, para a vida social, do enfrentamento com esses diferentes níveis de problematização.

Esse tipo de abordagem sugere pistas de investigação interessantes. Trata-se, assim, de pensar menos em termos de mudanças do estatuto epistemológico do saber escolar do que em termos de mudança na abordagem do seu nível de problemática. A

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problemáticas (produção, transposição, ensino) em que estão envolvidos do que na natureza de sua base epistemológica, capaz de lhes atribuir ou não legitimidade científica.

Nessa perspectiva, a tendência em negar a esfera da transposição didática ou esquecer os seus efeitos, no contexto da escola, pode ser visto como uma das estratégias utilizadas pelo sistema de ensino para garantir a reprodução dos mecanismos de reprodução engendrados no e pelo funcionamento didático escolar. Em contrapartida, dar visibilidade a essa esfera, problematizá-la, passa ser condição indispensável para desmascarar esses mesmos mecanismos, oferecendo a possibilidade de criar ou reforçar outros papéis passíveis de serem desempenhados pela escola.

Nesse segundo caminho estão igualmente presentes a preocupação de desnaturalização dos saberes escolares e a possibilidade de problematizar a hierarquização arbitrária dos saberes pela qual se tende a considerar a esfera de problematização do ensino como menor, “menos nobre” quando comparado com a esfera de produção, percebida e legitimada socialmente como propriedade exclusiva da comunidade acadêmica.

Terceira potencialidade: Contribui para romper com fronteiras disciplinares

A reflexão sobre o processo de produção de saberes escolares, no viés da epistemologia social escolar, implica igualmente na assunção de uma postura epistemológica favorável ao diálogo entre diferentes áreas disciplinares. Essa abertura à interlocução interdisciplinar, potencialmente presente no campo semântico em foco, pode ser percebida no que se refere tanto as diferentes posições internas ao campo educacional, como as articulações com outros campos científicos.

No plano interno do campo pedagógico, a aposta no diálogo se manifesta na possibilidade de oferecer pistas para o trabalho na pauta da convergência entre os campos da Didática e do Currículo. A discussão sobre saberes escolares permite, quando não exige, que o olhar se centre nas zonas de convergência, de intersecção dessas duas posições. Tanto um como outro campo se preocupam, ainda que com referenciais teóricos e recortes muitas vezes distintos, com aspectos que envolvem o

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SIÊ processo de ensino-aprendizagem, eixo articulador dos problemas de pesquisa

compartilhados pelos agentes de ambas as posições.

Dessa forma, operar com a categoria saber escolar é se situar na intersecção dessas duas áreas de pesquisa na medida em que a problemática em questão corresponde a uma dessas temáticas comuns que emergem na década de 1990 explicitadas claramente por diferentes estudiosos do campo, como por exemplo Oliveira (1998) que destaca a construção do conhecimento escolar a partir da reelaboração do saber científico como sendo o objetivo central trabalhado em ambas as áreas.

A opção por esse tipo de recorte implica na possibilidade de superação de visões dicotômicas que tendem a reforçar um distanciamento radical entre essas duas posições. Reconhecer ênfases diferenciadas na análise que envolve os diferentes aspectos desse processo não impede que se considere igualmente a necessidade de se refletir sobre os mesmos de forma articulada.

A articulação com outros campos como o da Sociologia, História, Antropologia, Lingüística, se faz necessária na medida em que o sentido investido no termo saber escolar, na perspectiva da epistemologia social escolar incorpora o reconhecimento da imbricação das questões educativas com questões de poder, dominação, resistência, ideologia, identidades, e classe social, reafirmando a necessidade de pensá-las a partir de suas dimensões relacionais.

Fabricação social, os saberes escolares são vistos como sendo “uma prática social historicamente determinada, capaz de ser compreendida com o auxílio de diferentes ciências” (Moreira, 1998). Este olhar permite pensar as questões relativas à produção desses saberes de forma articulada com as demais práticas sociais historicamente contextualizadas nas quais elas estão inseridas, evitando assim o risco de se cair em um reducionismo pedagógico. É nesse ponto que o diálogo com outras ciências sociais torna-se fundamental, ampliando o leque de combinações e articulações entre as diferentes explicações passíveis de tornar as práticas escolares inteligíveis.

Práticas sociais despidas de neutralidade, o processo de construção dos saberes escolares, ao invés de se pautarem em uma cultura homogênea de pretensão universal,

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de uma política cultural através da qual se expressam as diferentes tensões e interesses presentes na sociedade.

No entanto, assumir a não–neutralidade e não-unilateralidade do campo pedagógico em geral, e dos saberes escolares em particular, reconhecer a natureza móvel, fluida, “capilar” das relações estreitas entre saber e poder, não implica em negar especificidades desse campo enquanto espaço de reflexão e de intervenção social, política e cultural. Essa reflexão nos leva à quarta potencialidade.

Quarta potencialidade: Assegura o olhar de dentro do campo educacional

Saber, cultura, conhecimento, disciplina o que os articula ao mesmo campo semântico é o adjetivo escolar que os acompanha e indica os locus privilegiados de onde esses termos são pensados e problematizados. É a escola, isto é, as discussões que envolvem a natureza, funções e papéis desse espaço específico que orientam o recorte, a escolha do foco da discussão. As diferentes apropriações políticas e epistemológicas desses diferentes termos, por mais divergentes e contraditórias que possam ser, não podem evitar que a discussão seja feita a partir do terreno da escola.

Nesse sentido, embora as discussões e análises que procuram desvelar o grau de imbricação das questões educativas com os contextos político, econômico e sócio-cultural tenham trazido uma irrecusável contribuição, elas não são suficientes para dar conta das diferentes variáveis que entram em jogo no processo de produção dos saberes escolares. Torna-se também necessário lançar mão da “razão pedagógica” vista como um processo permanente de articulação entre diferentes razões cujo eixo central de argumentação consiste nas questões suscitadas pelos desafios cotidianos do contexto escolar. Esta opção tem como mérito permitir evitar por sua vez, reducionismos de diferentes ordens – sociológico, psicológico, antropológico, histórico ou filosófico – naanálise dos fenômenos educativos.

Quinta potencialidade: Novos olhares para abordar temas clássicos e/ou, antigas discussões

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SIÊ Outro potencial dessa categoria consiste em abrir pistas de investigação que

possibilitam novas abordagens sobre temas antigos ou clássicos no campo educacional. Temas como, por exemplo, o impacto das reformas curriculares no cotidiano das salas de aula, podem ser redimensionados quando se opera com a categoria saber escolar na perspectiva aqui trabalhada. Mudar e/ou atualizar conteúdos escolares é intervir diretamente no processo de produção de saberes escolares. Não se trata apenas de introduzir novos conteúdos ou novos enfoques de conteúdos já presentes nas grades curriculares das disciplinas escolares. Mudança curricular é também colocar em marcha a engrenagem complexa da transposição didática. A abordagem pelas lentes da epistemologia social escolar contribui para evidenciar as especificidades das diferentes esferas de problematização de saberes envolvidas nesse processo e as implicações políticas e pedagógicas que precisam ser consideradas quando se trata de avaliar o sucesso ou fracasso de uma reforma curricular. O desconhecimento dessa dinâmica interna tende a superestimar a autonomia dos professores no processo, fazendo com que a avaliação dessas reformas, fique dependente quase que exclusivamente da boa vontade e/ou de sua capacidade no momento de sua implementação. Dar visibilidade a esse processo representa um passo importante para entender porque alguns dos mais “belos achados” das reformas curriculares não resistem ao jogo da transposição didática interna, isto é na sala de aula. Essa constatação nos remete a construção de novos olhares sobre a temática da formação docente.

Com efeito, as pesquisas que incorporam as contribuições da epistemologia social escolar abrem pistas para pensar igualmente a formação inicial e continuada dos professores sob bases que muito valorizam o papel desempenhado pelos docentes, sem, no entanto, atribuírem à figura do professor a responsabilidade exclusiva em relação às soluções dadas aos desafios enfrentados no dia a dia da sala de aula.

Essas contribuições, ao favorecerem a desconstrução do “mito da conformidade” entre saberes, ainda bastante presente nas representações do professor sobre os conteúdos escolares, fazem com que o saber escolar se torne uma problemática em torno da qual é passível de se formular questões sobre, por exemplo, sua origem, sua filiação, sua legitimidade e seu papel no processo de

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ensino-Por um lado, essas contribuições apontam a centralidade da ação docente no decorrer de uma das fases do processo de construção de saberes, do outro lado, elas indicam os limites da autonomia do professor nesse processo, na medida em que reconhecem a presença de outras variáveis inerentes à dinâmica própria do sistema dos saberes que extrapolam o campo de possibilidades de intervenção por parte desse ator social.

A apropriação desses mecanismos de ordem político-epistemológica específicos à dinâmica interna dos saberes é fundamental para que o professor possa entender melhor os alcances e limites de sua capacidade de intervenção no processo de produção dos saberes escolares.

Outra pista de investigação aberta pela epistemologia social escolar consiste na possibilidade de apreensão dos livros didáticos a partir de enfoques inovadores. Por essa abordagem os livros didáticos podem ser considerados como suportes dos saberes escolares, uma das instâncias da cadeia didática na qual os saberes de referência são interpelados em sua dimensão epistemológica. (Forquin, 1995), ou ainda como um “artefato cultural”, resultado de uma construção específica historicamente contextualizada. Este enfoque oferece possibilidades de repensar ou redimensionar os critérios utilizados para avaliar a qualidade de tal suporte tendo como base as condições de produção desses textos didáticos.

Para finalizar essas considerações gerais sobre a potencialidade heurística da categoria saber escolar, gostaria de sublinhar as contribuições para pensar as questões e desafios que se colocam para o campo das didáticas específicas. A análise dos mecanismos de didatização dos saberes permite compreender que estudar o que é específico do conhecimento não corresponde a fazer uso somente de instrumentos “específicos” desse conhecimento. Nesse sentido, a abordagem pela epistemologia social escolar, permite perceber que o interesse pelo que é específico dos conteúdos disciplinares pressupõe necessariamente a compreensão da estrutura epistemológica desses saberes específicos que em, última instância, garante que a sua inteligibilidade – aquilo que representa a própria “razão de ser” desses saberes – nãose perca no decorrer do processo de produção dos saberes escolares. Importa assim sublinhar que a apropriação pelas diferentes áreas disciplinares dessas contribuições não pode

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SIÊ epistemológicas. A segunda parte deste texto procurará demonstrar a pertinência

dessas afirmações a partir da análise do campo da História.

A incorporação do debate no campo da História ensinada: tensões e

perspectivas

As reflexões que se seguem devem ser entendidas como um exercício intelectual sobre as potencialidades heurísticas do universo semântico que configura o campo da epistemologia social escolar aplicado à disciplina de História. Para tal, procurarei sublinhar as tensões e perspectivas que essa abordagem permite respectivamente evidenciar e vislumbrar como caminhos possíveis de enfrentamento dos desafios atuais presentes neste campo disciplinar específico. Em um primeiro momento, contextualizo rapidamente a incorporação recente nesse campo disciplinar, do debate em torno do processo de produção dos saberes escolares. Em seguida, identifico algumas das tensões que o perpassam tanto do ponto de vista epistemológico como político. Finalizo minhas argumentações apontando algumas perspectivas de análise que emergem para o campo decorrente da utilização da categoria em foco.

O debate no campo do ensino de História

A discussão no campo do ensino de história no Brasil tendo como base o referencial da epistemologia social escolar é ainda bastante recente, contrariamente a países como a França onde, desde o final dos anos 1980, a ideia de uma história ensinada com especificidades próprias tornou-se objeto de investigação para os pesquisadores da área.

A presença deste enfoque pode ser evidenciada em estudos que utilizam expressões como “saber histórico escolar” (Bittencourt, 1993; Monteiro, 2002; Gabriel, 2003), “tramas de didatização” (Gabriel, 2003), “história-ensinada” (Gabriel, 2003, Tutiaux-Guillon, 1988), “história escolar” e “historiografia escolar” (Ailleu, 1995), “criações didática”, “recomposição didática” (Guyon & Mousseau &

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Tutiaux-Guillon, 1993), ao se referirem aos conteúdos históricos ensinados nos contextos escolares. De uma maneira geral, esses estudos dialogam, em graus e modalidades diferenciados, com e contra as contribuições da epistemologia social escolar, teoria da transposição didática, das teorias curriculares críticas e pós-criticas.

Entre os defensores da epistemologia social escolar que abrem pistas para esse tipo de reflexão no âmbito do ensino de história, destaca-se Develay (1995) cuja reflexão tem permitido evidenciar e aprofundar certos aspectos da teoria da transposição didática, contribuindo para o avanço do debate nesse campo. Esse autor propõe reformular esse conceito de forma a estendê-lo e complementá-lo: “(...) a noção de transposição didática merece, no nosso entender, duas extensões e um complemento em relação à definição de Yves Chevallard sobre a passagem do saber acadêmico ao saber a ensinar” (Develay, 1995).

Dessa forma, no plano dos saberes que servem de referência, ele argumenta a favor do reconhecimento de uma “dupla origem” dos saberes escolares, acrescentando a noção de “práticas sociais de referência”, elaborada por Martinand (1986) , para dar conta das disciplinas escolares — como, por exemplo, é o caso da Educação Física ou da Informática — cujos saberes não provêm diretamente da transposição de um saber acadêmico social e historicamente legitimado.

A noção de “prática social de referência” tem sido utilizada por alguns pesquisadores do campo da epistemologia social escolar (Develay, 1991, 1995a, 1995b, 1999, Audiger, 1994, Aillieu, 1995), no sentido de suprir o que eles estimam como ausência na teoria da transposição didática. Essa noção tem como objetivo alargar, completar as referências dos saberes escolares. Ela inclui outras atividades que correspondem a um determinado campo de saber de referência e que devem ser igualmente levadas em consideração no processo de produção dos saberes escolares. Cumpre observar, no entanto, que ela emerge para dar conta de saberes que eram passíveis de serem didatizados, mas que não se constituíam ainda como disciplinas escolares, nem tampouco se articulavam com um saber acadêmico já legitimado, o que não é o caso do conhecimento histórico. Ao contrário, no campo da história, a questão pode ser colocada em termos praticamente inversos. A dificuldade de transposição se encontraria menos na ausência de um saber acadêmico

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SIÊ suficientemente consolidado e culturalmente legitimado, do que na possibilidade de

didatizá-lo devido a sua natureza epistemológica complexa.

Outra extensão sugerida por Develay (1995) diz respeito à incorporação, no processo de transposição didática, da dimensão dos "saberes aprendidos" como saberes diferentes dos saberes a ensinar e/ou ensinados. Com efeito, a ênfase da discussão de Chevallard não está colocada nas problemáticas relativas à aprendizagem desses saberes, seu olhar está centrado na dinâmica da vida dos saberes quando transpostos e ensinados.

Quanto ao complemento proposto por Develay (1995b), trata-se de realizar uma “remodelagem do conceito de transposição didática” que corresponde à introdução — paralelamente ao processo de didatização — da dimensão axiológica que permeia a reelaboração dos saberes:

Quanto ao processo de remodelagem do saber ao longo dessa cadeia, ele corresponde, por um lado, a um trabalho de didatização (que visa a tornar operacionais as situações de aprendizagem através de escolhas feitas na lógica dos conteúdos, nos materiais propostos, nas tarefas a serem efetuadas, nas consignações dadas, nos critérios de avaliação) e, por outro, a um trabalho de axiologização (que escolhe os conteúdos que contêm em si certos valores em jogo na relação do aluno com o saber, dos alunos entre eles, dos alunos com o ensino, dos saberes com o projeto da sociedade...). (Develay, 1995b, p.26)

Esse complemento abre pistas para se pensar a apreensão da dinâmica da vida dos saberes, no âmbito do ensino de história, na medida em que ela permite dar visibilidade a um aspecto inerente à especificidade do saber histórico pela qual pertinência e legitimidade cultural e epistemológica são pensadas de forma articulada.

Com efeito, se o processo de axiologização é inerente a todo processo de produção dos saberes escolares, correspondendo, como afirma Develay (1995), a uma “ética implícita”, importa observar que, no caso dos saberes em História, esse processo se apresenta de maneira sistemática, muitas vezes, de forma explícita, estando presente tanto no seio do próprio saber histórico acadêmico como em todas as instâncias onde se opera a sua reelaboração. Na Academia, seja no nível do que Chevallard (1991) chama de “transposição externa” (noosfera) ou no nível da “transposição interna” (sala de aula), o saber histórico é encenado a partir de escolhas que diferem e se orientam em função da afinidade dos atores envolvidos

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(pesquisadores, autores de propostas curriculares, de livros didáticos, professores) com as diversas matrizes teóricas e axiológicas privilegiadas pelos mesmos. A compreensão dessa estrutura epistemológica específica do saber histórico é importante para a reflexão sobre o processo de produção responsável pela elaboração da história de objeto de pesquisa a objeto de ensino.

Em contrapartida, a ausência desse tipo de reflexão dificulta a superação de algumas posições bastante enraizadas no campo do ensino de história como aponta, de uma maneira geral, a revisão da literatura especializada dessa área, no Brasil, nos últimos vinte anos . Essa revisão tende a mostrar a presença ainda forte, de posições que operam com o mito da identidade entre saberes denunciado pelo referencial da epistemologia social escolar, dificultando assim a compreensão do processo de construção da história-ensinada. Esse mito pode ser evidenciado na presença de duas afirmações recorrentes no discurso dos pesquisadores desta área. A primeira diz respeito à constatação, a partir da década de 1980, da intensificação de um movimento de mudança no seio da disciplina de história que se traduziria tanto nas propostas curriculares que começaram a circular nas esferas municipal, estadual e federal (os PCNs) como na configuração dos livros didáticos de história que procuraram acompanhar as transformações propostas. A segunda refere-se à persistência de um descompasso entre a história que se quer ensinar (presente nas propostas curriculares e nos livros didáticos) e a história efetivamente ensinada nas salas de aula. Apesar dos esforços que teriam sido realizados no plano do currículo formal, permanece no plano do currículo real a prática de uma história dita "tradicional".

O diálogo com a epistemologia social escolar aponta para a necessidade de se repensar tais afirmações e procurar pistas que ajudem a responder algumas questões como, por exemplo: Como explicar as permanências de certas configurações disciplinares identificadas pelos pesquisadores da área e por muitos professores(as) como arcaicas, obsoletas, reacionárias, conservadoras e/ou tradicionais? Onde estariam os obstáculos que impediriam que essas configurações cedessem e permitissem a efetivação de um novo ensino de história despido de arcaísmos, sintonizado com as demandas sócio-políticas e culturais da sociedade brasileira atual,

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SIÊ propostas curriculares? Como explicar essa distância entre a intencionalidade das

propostas e a sua efetivação em sala de aula sem cair em visões dicotômicas?

Se por um lado, os anos 80 podem ser considerados como um marco cronológico na trajetória de construção deste campo disciplinar no Brasil, por outro lado, torna-se necessário questionar certas ideias comumente admitidas entre os pesquisadores bem como os critérios utilizados para avaliar o grau de inovação e de tradicionalismo, de ruptura e de permanência tanto nas propostas curriculares como na prática de ensino dessa disciplina.

Entre essas ideias, destacam-se pelo menos duas que estão diretamente relacionada a temática em foco. Uma primeira, de cunho epistemológico, corresponde a uma visão hierarquizada do saber pela qual o saber científico, produzido e legitimado pela academia permanece como o único referencial válido para avaliar as mudanças que ocorrem no campo da história-ensinada nas escolas da Educação Básica. O descompasso mencionado é visto como handicap do saber histórico ensinado ou da formação dos professores. Nessa perspectiva, trata-se de aproximar a história ensinada o mais perto possível das "novas historiografias" de forma a torná-la capaz de incorporar os novos objetos, os novos enfoques e os novos problemas colocados pelas historiografias contemporâneas. O mesmo ocorrendo no plano do currículo real: quanto mais o professor for capaz de introduzir nas suas aulas essas mesmas contribuições, mais ele tem chances de evitar o adjetivo pejorativo "tradicional". Uma relação de simetria se estabelece de forma mecânica como se novos objetos de pesquisa histórica deveriam se desdobrar automaticamente em novos objetos de ensino de história; novos métodos de pesquisa histórica em novos métodos de pesquisa em sala de aula. Como uma boneca russa, os saberes escolares (tanto aquele "a ser ensinado" como o "ensinado") devem se adaptar, se encaixar no "saber maior" (o saber acadêmico).

A ideia subjacente a ser criticada, consiste na ausência nessas análises, da "razão pedagógica" vista como referencial indispensável para pensar as questões relativas ao ensino em geral, e o processo de ensino-aprendizagem de história em particular.

As diferentes análises dos textos curriculares e didáticos da área de história (propostas curriculares municipais, estaduais e federais) que se propõem a resgatar as

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permanências e rupturas, ou a identificar as matrizes teóricas que lhe serviram de inspiração, ou pesquisas sobre formação de professores, livros didáticos desta disciplina que se propõem a analisar os conteúdos, a partir do exame da relação que estes estabelecem com o saber acadêmico e destacar as representações veiculadas se pautam, de uma maneira geral, nos pressupostos acima mencionados.

A incorporação das contribuições oriundas da epistemologia social escolar pode oferecer subsídios de ordem conceitual e metodológica para combater essas ideias pressupostas que estão na base da tese do descompasso. Em primeiro lugar, elas abrem caminhos para situar a pesquisa de Didática da História no universo mais amplo, relativo às diferentes instituições (de produção, utilização, de ensino e de transposição) que operam com as necessidades em saberes em história na nossa sociedade e uma vez assim redimensionada, focalizar a discussão na relação estabelecida entre as instituições no âmbito dessa disciplina. Em seguida elas permitem introduzir novas variáveis para a reflexão já acumulada no campo do ensino de história, sobre temas como reformas curriculares, formação de professores, livros didáticos, e outros.

Trata-se assim de apostar na possibilidade de pensar a história-ensinada não mais como uma versão necessariamente simplificada e reduzida do conhecimento histórico produzido pelas pesquisas acadêmicas, mas sim como uma configuração de ordem epistemológica e axiológica (ética-político-cultural) com um grau de especificidade e autonomia suficientes para que ela possa ser percebida e legitimada como um saber diferenciado e estratégico nas disputas pelas interpretações construtoras de sentido do mundo.

Tensões presentes no campo do ensino de história

Refletir sobre o processo de produção dos saberes escolares no âmbito da disciplina de história implica em enfrentar desafios teórico-metodológicos decorrentes das diferentes tensões que perpassam o campo da história-ensinada na atualidade, tanto do ponto de vista político como epistemológico. Limitar-me-ei a destacar dois exemplos dessas tensões distintas, mas complementares, evidenciadas no

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SIÊ estreitamento do diálogo com a epistemologia social escolar. Uma primeira tensão é

de ordem epistemológica e refere-se às potencialidades e limites do processo de reelaboração didática em função das especificidades epistemológicas do conhecimento histórico. A segunda tensão é decorrente do enfrentamento com as questões políticas-culturais de nosso tempo que incidem na problematização da função social e política do ensino dessa disciplina.

Tensões de ordem epistemológica

Espera-se que, ao longo do ensino fundamental, os alunos gradativamente possam ampliar a compreensão de sua realidade, especialmente confrontando-a e relacionando-a com outras realidades históricas, e assim possam fazer suas escolhas e estabelecer critérios para orientar suas ações. (MEC, 1998, p.43) (grifo meu)

Uma das dificuldades enfrentadas pelos estudiosos da área diz respeito à própria complexidade da natureza epistemológica do saber histórico e suas implicações para o processo de transposição entre as diferentes esferas de problematização desse saber.

Para alguns especialistas da área, como Moniot (1993), a complexidade da natureza epistemológica do saber histórico pode chegar a levantar suspeitas sobre a viabilidade de falarmos em "aprendizagens históricas". Essa complexidade vem à tona quando se trata de transformar o saber histórico em objeto de "saber a ser ensinado" ou de "saber ensinado". Ao contrário dos saberes da maioria das disciplinas escolares, descritíveis em programas através de exercícios que se propõem a verificar a aquisição de conhecimentos e de procedimentos, o saber histórico não se apresenta como objeto de fácil transposição. A possibilidade de "dessincretização" do saber — uma das condições sine qua non, na perspectiva chevallardiana, para um saber ser considerado "ensinável" — é um dos aspectos mais problemáticos da disciplina de História. Moniot expressa da seguinte forma a questão, deixando transparecer a fragilidade dessa área disciplinar em termos de definição de objetos de saber de ensino e/ou de aprendizagens.

A História acadêmica comporta simplesmente todo o passado humano, ela tem ofícios e metodologias, ela conflui em permanência com outras ciências do homem, e com outras figuras de conhecimento... A história escolar é uma enorme e polivalente lição

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das coisas sociais, morais e intelectuais. Ela veicula ao mesmo tempo a conformidade e a tomada de distanciamento, a continuidade e a reapreciação. Parco terreno para a definição simples de aprendizagens específicas. (Moniot, 1993, p.36) (grifo meu)

A tendência presente entre alguns profissionais da área (autores de propostas curriculares, de livros didáticos, professores) em caracterizar a História como uma disciplina cujos conteúdos específicos se “prestariam mal ao raciocínio” (idem, p.214) tende a estar relacionado ao papel central que lhe é atribuído — pelos textos oficiais, pelo próprio discurso dos agentes do campo —, no processo de formação mais ampla, de natureza axiológica (transmissão de valores morais, cívicos, políticos e culturais), visando a inserção do aluno na vida social.

Nele [refere-se ao diálogo entre saber histórico e a realidade social e educacional], fundamentalmente têm sido recriadas as relações professor e aluno, conhecimento histórico e realidade social, em benefício do fortalecimento do papel da História na formação social e intelectual de indivíduos para que, de modo consciente e reflexivo, desenvolvam a compreensão de si mesmos, dos outros, da sua inserção em uma sociedade histórica e da responsabilidade de todos atuarem na construção de sociedades mais igualitárias e democráticas. (MEC, 1998, p.29) (grifo meu)

O duplo registro — ciência/consciência, explicação/compreensão — sobre o qual se justifica e se constrói tal saber torna bem mais complexa a apreensão dos mecanismos de didatização mobilizados. Confrontada com o ensino, a disciplina de História vê-se obrigada a lidar com a dimensão axiológica que lhe é inerente com muito mais acuidade. Tornam-se mais prementes e difíceis de serem negadas, escondidas ou adiadas as questões relativas aos sentimentos, vontades, virtudes, consciência de deveres, cuja explicitação em termos de finalidades de ensino e aprendizagem é, todavia, muito mais difícil de ser estabelecida. Um dos maiores desafios para os agentes do ensino de História consiste em não compensar a dificuldade de “programabilidade” e “dessincretização” (Chevallard, 1991) da disciplina no plano racional e/ou intelectual pela sua função cultural política. Ainda que essa compensação não se faça de forma abertamente assumida, é possível detectá-la com certa frequência nos diferentes níveis de didatização.

Por exemplo, os debates acirrados em torno da pertinência ou não da adoção dos eixos temáticos como critério de seleção e organização do saber histórico escolar,

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SIÊ bem como as rejeições de sua utilização pelos agentes responsáveis pela sua

transposição interna deixam entrever as dificuldades de dessincretização específica deste saber. O que está em jogo, não é apenas a possibilidade de tornar o ensino de história ensinável, mas igualmente a necessidade de garantir a sua função formadora no plano cultural e político.

Propostos como alternativa da tradicional dessincretização dos conteúdos pelo viés cronológico, sem estarem, contudo, na maioria das vezes, articulados às exigências da configuração epistemológica do conhecimento histórico, os eixos temáticos, tornam a organização e ordenação desse conhecimento igualmente problemáticas. A crítica a uma concepção linear, de direção pré-determinada de tempo, até então, predominante se faz deixando em seu rastro uma situação pouco confortável para os professores dessa disciplina. A negação de uma forma consolidada entre os professores de história de garantir um sentido à história ensinada implica, muitas vezes, na ausência de qualquer outra possibilidade de construção de sentido, quebrando a lógica interna de inteligibilidade do conhecimento histórico.

A resistência em repensar a questão do tempo no ensino de história não é uma questão apenas de voluntarismo, mas de dificuldade epistemológica que essa reelaboração didática pressupõe. Não basta querer mudar, é preciso ter os meios que garantam a transposição didática dessa intencionalidade, sem quebrar o fio da meada da estrutura narrativa da história que está sendo narrada.

O desafio da dessincretização do saber nesse nível consiste em solucionar a seguinte questão: Como quebrar a linearidade concebida no seio da historiografia tradicional e ao mesmo tempo garantir a inteligibilidade da história-ensinada? Essa preocupação em não quebrar ou não perder o fio da meada traduz a permanente busca de sentido da qual o professor de história não pode abrir mão.

Tensões de ordem política-cultural:

As tensões dessa ordem se manifestam com mais acuidade quando a reflexão se orienta para a questão das finalidades, da razão de ser do ensino dessa disciplina. Desenvolver o espírito patriótico, o civismo, construir a memória nacional ou recuperar memórias esquecidas são objetivos que permeiam e tensionam o ensino

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dessa disciplina a despeito das concepções de história sobre as quais eles se baseiam, nos remetendo direta ou indiretamente à problemática da construção da(s) identidade(s).

A análise da trajetória da construção do campo disciplinar da história permite perceber o quanto ela está estreita e explicitamente imbricada com questões axiológicas, relativas à construção da identidade coletiva em geral e mais precisamente à da identidade nacional.

Com efeito, e apesar de não se constituir como objeto de ensino propriamente dito, a disputa pela hegemonia do sentido a ser atribuído à identidade nacional continua sendo uma das intrigas centrais, em torno da qual se organiza o saber dessa disciplina. Desde a emergência da História Nacional como disciplina acadêmica no século XIX, esta temática tem assumido o papel de fio condutor de grande parte das tramas tecidas. Além disso, tendo em vista o investimento simbólico, político, ético e ideológico que a construção da narrativa nacional requer, esta temática favorece o enfrentamento da tensão entre a busca da verdade (o que “realmente” aconteceu entre os elementos que hoje configuram nosso espaço de experiência e que contribuem para tecer a brasilidade?) e a construção de sentido (Qual a representação, ou representações, de brasilidade que prevalece, ou prevalecem, no nosso presente histórico?), exemplificando de forma clara o duplo registro epistemológico do conhecimento histórico.

Considerando assim, o papel central na formação de identidade(s) que é atribuído ao conhecimento histórico, em particular quando reelaborado em objeto de ensino, cabe perguntar: Como pensar um ensino de história que contribua para a formação de um cidadão crítico capaz de assumir e lidar com as suas múltiplas marcas identitárias e que muitas vezes se manifestam de forma contraditória? Como articular, no ensino desta disciplina, a necessidade de garantir tanto a transmissão de uma memória nacional academicamente legitimada como desenvolver a reflexão crítica sobre essa mesma memória, condição imprescindível para fazer emergir novas identidades e possibilidades de representação de brasilidade? Ou, dito de outro modo: Como dosar e articular esses dois registros, sem negar, nem exaltar a importância e o papel desempenhado por cada um? Como articular o ensino de uma forma de pensar

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SIÊ precedentes? Como reelaborar didaticamente capacidade crítica e necessidade de

memória? Em um mundo de proporções globais, onde se assiste a novas configurações políticas que extrapolam as fronteiras dos Estados Nacionais e no qual não é possível negar a desigualdade social e a diversidade cultural no seio das sociedades, teria ainda sentido para o ensino de história se preocupar com a construção de uma identidade nacional?

O que está em jogo aqui, não é apenas a possibilidade de tornar o ensino de história ensinável, mas igualmente a necessidade de garantir a sua função formadora no plano cultural e político. Argumento que o primeiro passo para o enfrentamento com essas questões consiste em buscar na própria estrutura epistemológica mista do conhecimento histórico os caminhos que possam ajudar a pensar a reelaboração dos mecanismos de didatização e axiologização que precisam ser acionados no ensino dessa disciplina.

Perspectivas abertas

O diálogo com a epistemologia social escolar permite abrir pistas inovadoras para enfrentar essas diferentes ordens de tensões acima explicitadas. Entre essas pistas importa sublinhar a necessidade de buscar no campo da Teoria da História elementos que possam contribuir para o entendimento da natureza específica desse saber. Essa busca fez emergir a centralidade da “estrutura narrativa”, responsável pela inteligibilidade desse conhecimento, como uma chave de leitura para os processos de produção dos saberes escolares a ser explorado no campo da história-ensinada.

Até época relativamente recente, as discussões no âmbito acadêmico em torno dessa noção, limitaram-se à condenação da história narrativa. Associada a tudo contra o qual se queria lutar, em prol da construção de uma história-problema, científica, a história narrativa, até então triunfante passa a ser proscrita pela comunidade científica de historiadores. Estudos recentes — Ricoeur (1983, 1985), Hartog (1995), — demonstram, todavia, que o termo “narrativa” é empregado, de fato, nesses debates, como uma metonímia pela qual um tipo particular de narrativa confunde-se com a própria estrutura narrativa inerente ao saber histórico. Trata-se, pois, de desfazer a

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confusão semântica entre história narrativa e narrativa histórica, apostando na fertilidade teórico-metodológica da última.

Tal posicionamento implica em apreender a noção de narrativa de forma estreitamente articulada às noções de intriga e de tempo histórico. Trata-se de explorar a potencialidade analítica tanto do conceito de intriga ou enredo que permite resgatar a especificidade e complexidade do objeto da História, como do tempo histórico na sua função de mediação (tempo narrado), e na sua tarefa de totalização (visto como um “singular coletivo”), que serve de pano de fundo para esta mediação.

Importa observar que alguns pesquisadores da área, como Le Pellec, Marcos-Alvarez (1991), Audiger (1994), Aillieu (1995) já acenam para a potencialidade heurística da ideia de narrativa operam com a noção de variáveis e intriga, introduzindo as noções de “ingredientes” e/ou de “encenação” em suas reflexões sobre o saber histórico escolar. Para esses autores, o conhecimento histórico traduz-se pela encenação de verdadeiras intrigas onde entram em jogo as condições objetivas e subjetivas dos diferentes atores que nelas participam tanto como produtores/autores/leitores quanto como atores/leitores/produtores. Allieu (1995, p.153) define o saber histórico escolar como um “objeto complexo, encenado em diferentes atos” afirmando que o mesmo é cada vez reinventado nas situações específicas de aprendizagem. Le Pellec, Marcos-Alvarez (1991, p.48) por sua vez, identificam os seguintes ingredientes que estão presentes “diferentemente dosados, diferentemente visíveis segundo os apresentadores, mas sempre lá” os fatos, as palavras, os conceitos, o saber-fazer (exercícios próprios à disciplina), as interrogações, os problemas, uma maneira de raciocinar, uma lógica de pensamento dedutivo, indutivo ou dialético. Quanto a Audiger (1994), ele afirma igualmente que qualquer enunciado identificado como objeto de saber histórico é constituído por três ingredientes: as referências factuais, as palavras ou o discurso (conceitos, noções), que lhe dão sentido, e a concepção de tempo, que contribui igualmente para sua compreensão, estabelecendo relações de causalidade, simultaneidade, continuidade e ruptura. O significado e o peso dado a cada um desses ingredientes, bem como a forma de articulá-los, variam em função da própria concepção de História privilegiada no seio das diferentes vertentes ou escolas históricas que se sucedem ou disputam

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SIÊ A fertilidade teórica do conceito de "narrativa histórica" pode ser avaliada

quando se trata de enfrentar as tensões acima mencionadas. No que diz respeito à tensão de cunho epistemológico, operar com a noção de estrutura narrativa permite abrir pistas para superar a dificuldade de delimitação (“dessincretização”) desse saber, imprescindível, quando reelaborado em objeto de ensino. As “necessidades em saber” (Chevallard, 1991), definidas em História, em linhas gerais, pela preocupação de oferecer uma inteligibilidade ao mundo, implica que os seus “objetos de saber” sejam apreendidos com algum grau de totalidade, isto é, como configurações narrativas que se constroem em torno de intrigas tecidas nas mediações entre passado, presente e futuro.

Não basta, dessa forma, somente acompanhar a construção e as possíveis reelaborações de um conceito específico e/ou de seu campo semântico para compreender o processo de transposição no âmbito da disciplina de História. Torna-se indispensável, no meu entender, inTorna-serir essa variável (os conceitos, de uma maneira geral) em uma rede discursiva mais ampla, a partir da qual são elaboradas as estruturas narrativas históricas, e cuja compreensão implica a identificação de suas outras variáveis, bem como as relações estabelecidas entre as mesmas.

Essa categoria pode servir, assim, de instrumental analítico para a apreensão da dinâmica da vida dos saberes históricos, na medida em que oferece elementos para identificar se o que está sendo transposto e/ou ensinado corresponde a novas matrizes de narrativa ou/e a uma ou mais de suas variáveis de maneira independente.

A complexidade que pressupõe a construção e/ou apreensão de uma proposta de inteligibilidade de mundo passado e presente, razão de ser dessa disciplina, torna-se, assim, viável sob a forma das diferentes variáveis articuladas em intrigas e sub-intrigas no âmbito desse objeto de saber. Refletir sobre o ensino desta disciplina exige que não nos limitemos apenas a pensar na seleção de tramas a narrar, mas também como transpor a estrutura narrativa inerente a esse tipo de saber para a esfera do seu ensino de forma a garantir a sua aprendizagem.

No que diz respeito à segunda ordem de tensão mencionada, a noção de narrativa permite as seguintes interrogações: Que estratégias discursivas o ensino dessa disciplina mobiliza, contribuindo para que nos tornemos brasileiros? Que

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interagem na narrativa histórica nacional da atualidade, possibilitando entrever o significado de "estar sendo" brasileiro nas diferentes práticas discursivas observadas, em particular nas construções narrativas dos estudantes?

Operar com o conceito de estrutura narrativa autoriza que a construção da brasilidade possa ser vista como um processo aberto, dinâmico e inacabado. Diferentes presentes históricos constroem diferentes narrativas de Historia nacional e do “povo” brasileiro.

Em cada uma delas, diferentes passados são lembrados e ou esquecidos e diferentes futuros são sonhados. Caberá a cada professor de história selecionar os conteúdos a serem ensinados, ingredientes de uma intriga possível – acontecimentos, sujeitos, acontecimentos, concepção de tempo, conceitos, etc - de forma a permitir a emergência de uma diversidade de narrativas da brasilidade contribuindo para a construção de um Brasil mais plural e inclusivo. O desafio é, pois, saber como usar essas armas da narratividade histórica a favor da inclusão das diferenças (de posições, de perspectivas, de identidades) na interpretação histórica. Algumas trilhas já começam a serem desbravadas. É apenas um começo.

Referências

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