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Dança, Cinema e Educação: representações de Corpo, Gênero e Sexualidade. Dance, Film and Education: representations of the body, gender and sexuality

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Dança, Cinema e Educação: representações de Corpo, Gênero e

Sexualidade

Dance, Film and Education: representations of the body, gender and sexuality

Gustavo Duarte1 Licenciatura em Dança

UFPel/RS

Resumo

O presente trabalho objetiva refletir e problematizar as representações de corpo, gênero e sexualidade a partir da linguagem audiovisual do cinema e suas relações com a área da Educação. O caminho metodológico, de abordagem qualitativa, foi construído a partir da seleção e análise dos filmes “Billy Elliot” (Inglaterra, 2000) e “Madame Satã” (Brasil, 2002). A partir dos referenciais Pós-estruturalistas na Educação e dos Estudos de Gênero e Sexualidade foram selecionadas algumas cenas dos respectivos filmes e analisadas suas interfaces com as categorias gênero, sexualidade, raça/etnia e classe social. Destacamos o cinema como veiculador de representações hegemônicas e padronizadas ao invés de outras mais democráticas e plurais. Neste sentido, os filmes podem ser lidos e interpretados como textos que podem ser compreendidos como veiculadores de pedagogias culturais, sobretudo pedagogias da sexualidade (LOURO, 2000).

Palavras-chave: Corpo, Cinema, Gênero, Sexualidade.

Abstract

The present work aims to reflect and question the representations of the body, gender and sexuality from the visual language of cinema and its relations with the area of Education. The methodological approach of qualitative approach, was built by the selection and analysis of the films "Billy Elliot" (England, 2000) and "Madame Sata"(Brazil, 2002). From the benchmarks Poststructuralists on Education and Gender Studies and Sexuality were selected scenes from their films and analyzed their interfaces with the categories of gender, sexuality, race / ethnicity and social class. Featuring the film as a disseminator of hegemonic representations and standardized rather than more democratic and pluralistic. In this sense, the films can be read and interpreted as texts that can be understood as backers of cultural pedagogies, especially pedagogies of sexuality (LOURO, 2000).

Keywords: Body, Cinema, Gender, Sexuality.

1

Professor do Curso de Dança do Centro de Artes da Universidade Federal de Pelotas - UFPel/RS. Áreas: Pedagogias da Dança, Estágio Profissional, coordenador do GEEDAC (Grupo de Estudos em Educação, Dança e Cultura). Doutorando em Educação UFRGS/RS.

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Introdução

Ao problematizarmos a questão do corpo hoje, e tudo àquilo que pode lhe dizer respeito como a sua materialidade biológica, sua aparência, seus usos e prazeres, os padrões de comportamento adotados, negados e/ou corrigidos, nos remetem às influências européias dos séculos XVIII e XIX como constituintes e constituidoras de saberes-sabores que se encontram presentes principalmente nos debates da área da educação, das ciências sociais e “humanas”. Do planejamento e constituição das grandes cidades, das crescentes novidades rumo à modernidade, destacou-se a significativa colaboração de médicos, engenheiros e arquitetos na gestação de uma nova corporeidade onde, por exemplo, a representação de uma capital modernizada, higiênica e republicana no Brasil ilustrou um período de proliferação de manuaisde civilidade, de etiqueta e de infinitas normas de controle e posturas corporais.

Este trabalho busca problematizar as representações de corpo, gênero e sexualidade tomando como foco de análise dois filmes, de contextos e épocas diferentes, que abordam a temática da dança/arte. A intenção é chamar a atenção para as pedagogias que circulam nos espaços não-formais e/ou informais, isto é, fora das Escolas e que também (des)educam e promovem a socialização de posturas, modos de ser, de ver o mundo e de atuar. Nesse sentido, acreditamos que os/as futuros/as profissionais da dança, educadores/as, portanto, podem ampliar sua visão crítica no sentido de problematizar a linguagem do cinema trazendo-o para discussões e reflexões dentrtrazendo-o das salas de aula, gruptrazendo-os e ctrazendo-ompanhias, prtrazendo-ojettrazendo-os strazendo-ociais, entre outros. Ao abordarmos um tema que se mostra instigante e na maioria das vezes complexo, lançamos algumas questões iniciais para orientar nossa escrita e despertar um futuro debate: onde, como e para quem se fala/discute sobre a sexualidade? Onde se aprende? Quais espaços? Com quem? Quem está autorizado/a? Tais questionamentos podem permitir, ao mesmo tempo, uma ampliação e um aprofundamento do olhar acerca do tema, sobretudo na área da Educação e no campo das Artes. É reconhecida, a partir das transformações advindas do movimento feminista e sua crescente visibilidade, as inúmeras denúncias dos movimentos sociais, sobretudo dos estudos gays e lésbicos, na luta pelos direitos humanos e em defesa da livre expressão e da “dignidade da pessoa humana”. Ao relacionarmos as compreensões de corpo e de sexualidade faz-se necessário articular os conceitos de identidades, práticas sexuais e de gênero. As diferentes formas de viver prazeres e desejos

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contribuíram para os chamados processos de afirmação e diferenciação (Stuart Hall, 1997) denominados de políticas de identidade. Como essa discussão troca-joga-provoca-perturba-contribui com o processo de formação de professores na dança como área de conhecimento?

Corpo(s), Gênero e Sexualidade(s)...

O conceito de gênero, vinculado à perspectiva teórica Pós-estruturalista, a partir das contribuições de Foucault e Derrida, nos chama atenção às construções de significado, às relações de poder e ao argumento desconstrutivo, anti-essencialista, que perturba os conceitos lógicos, dicotômicos e dualistas do discurso convencional da história da humanidade. Ao problematizar as relações sociais entre os sexos, a linguagem e o discurso configuram especial destaque, onde o que é considerado masculino ou feminino depende de utilizações e usos contextuais. Isso significa dizer que as categorias “homem” ou “mulher” não dá conta de inúmeras combinações e arranjos subjetivos e identitários: ser mulher, negra e empregada doméstica é muito diferente que ser mulher, branca e médica, por exemplo. Isso nos faz pensar em mulheres e homens no plural, isto é, em diferentes feminilidades e masculinidades. Joan Scott (1995) propõe uma historização e desconstrução genuínas dos termos da diferença sexual para reverter e deslocar a construção hierárquica, evitar o significado das

coisas tidas como naturais, seria uma mudança do paradigma científico para o literário.

Segundo a autora, ela pretende “buscar uma explicação baseada no significado e não uma causalidade geral e universal” (1995: 86). A noção de poder também é substituída: ao invés de um poder unificado, coerente e centralizado, do tipo: “ela é uma mulher poderosa” ou “o empoderamento das mulheres...” seria mais produtivo compreendê-lo como “constelações dispersas de relações desiguais, discursivamente constituídas em campos de força sociais”, (FOUCAULT, 1988).

De acordo com Guacira Louro (1999) a compreensão da sexualidade envolve rituais, linguagens, fantasias, representações, símbolos, convenções, ou seja, está envolvida em processos culturais e plurais. No texto O corpo e a Sexualidade Jeffrey Weeks propõe explorar as significações de corpo e da sexualidade a partir de suas marcas, seus atravessamentos de gênero, classe e raça/etnia. O referido autor destaca que a sexualidade configura-se como um fenômeno social e histórico que ultrapassa a dimensão biológica, envolvendo um conjunto de crenças, ideologias e imaginações e, logo no início do texto, em

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relação ao processo de regulação social dos corpos, tanto nos ambientes público e privado, nos questiona sobre qual o futuro da sexualidade e do corpo? Ao admitir que a sexualidade tem uma história e que foi/é construída pela linguagem por meio de significados e sentidos atribuídos ao termo sexo, Jeffrey Weeks deixa claro sua posição contrária a idéia de uma ‘evolução’ das práticas sexuais. As construções acerca da sexualidade, neste sentido, são moldadas no interior de redes - relações de poder. As identidades de gênero e sexuais são construídas e definidas por relações sociais, são moldadas pelas redes de poder de uma sociedade (LOURO, 1999).

Michel Foucault, em seu livro A Vontade de Saber, o primeiro volume de sua História

da Sexualidade, propõe uma rejeição à chamada hipótese repressiva

(interdição-censura-negação) e, pelo contrário: denomina uma verdadeira ‘explosão discursiva’ sobre o sexo em relação aos pudores do puritanismo vitoriano na transição dos séculos XVII e XVIII. Na articulação entre poder e saber relacionado à sexualidade, a compreensão de poder torna-se fundamental. Assim, o poder configura-se como “uma multiplicidade de relações de força, um jogo de lutas e afrontamentos, é uma situação estratégica complexa numa sociedade determinada” (FOUCAULT, 1988, p.89). E é no discurso, ou seja, na multiplicidade de elementos discursivos que poder e saber se articulam. A sexualidade, desta forma, constitui-se num ponto de passagem, denso, pelas correlações de força: desequilibradas, instáveis, tensas. A resistência é constitutiva do poder e não há poder sem resistência. Em sua célebre contribuição nos esclarece que a

sexualidade é o nome que se pode dar a um dispositivo histórico: não à realidade subterrânea que se apreende com dificuldade, mas à grande rede da superfície em que a estimulação dos corpos, a intensificação dos prazeres, a incitação ao discurso, a formação dos conhecimentos, o reforço dos controles e das resistências, encadeiam-se uns aos outros, segundo algumas grandes estratégias de saber e poder (FOUCAULT, 1988: 100).

A sexualidade é, neste sentido, uma invenção social a partir dos discursos que são instauradores de saberes e que por sua vez produzem verdades. Tais verdades interpelam os sujeitos a partir de diferentes situações sociais onde as identidades podem apresentar um caráter fragmentado, instável, transitório. A partir da centralidade da sexualidade nas sociedades modernas, ganharam destaque os movimentos de fixação de identidade: pela aparência e referência dos corpos que acabam por ancorar certa identidade. Jeffrey Weeks apresenta um referencial crítico ao essencialismo sexual e, ao questionar a fixidez do

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masculino e do feminino, prefere explorar a natureza cambiante de certas categorias sociais como a infância, a prostituição e a homossexualidade, por exemplo. No que se refere à sexualidade e as normas sociais entram em cena as tradições sexuais via a hegemonia de um sistema classificatório entre a clássica divisão, reducionista, do normal e o anormal referenciado pelos discursos médico, judiciário, político e religioso, sem contar a grande influência dos saberes pedagógicos.

Ao analisar as dimensões sociais da sexualidade e as estratégias de controle e disciplina sobre os indivíduos o corpo ganha destaque principal. A criação de diferentes posições de sujeito (a mulher histérica, a criança masturbadora, o modelo de casal e a figura do ‘invertido’) foi inventada a partir dos discursos dos campos da moral, da medicina e da saúde. Sistemas classificatórios e quadros de referência dos chamados especialistas no assunto moldaram e categorizaram os padrões aceitáveis das relações entre homens e mulheres. Determinados comportamentos sexuais foram rotulados de desviantes. Em nome de um discurso moralizante referente aos padrões familiares do século XIX a sexualidade feminina e as diferenças entre os corpos masculinos e femininos, a partir de uma perspectiva hierárquica e vertical, constituíram um produto do poder masculino e de suas práticas científicas. Tais implicações do discurso moderno instauraram, por sua vez, premissas de radical oposição entre os dois sexos ancorados em bases da diferença e da divisão, ao invés da similaridade e complementaridade. A dominação masculina a partir da institucionalização da heterossexualidade inaugurou, por um lado, um novo esforço de uma linguagem descritiva de caráter médico e moral baseada em classificações normalizantes e por outro, criou a figura do anormal, do transgressivo, da estigmatização de determinados comportamentos e práticas sexuais. A identidade uma vez localizada, fixa, necessita da diferença para existir, ou seja, a diferença é que precisa ser nomeada (LOURO, 1999).

Jeffrey Weeks ao discorrer sobre as complexas transformações da homossexualidade (diferenças entre comportamento e identidade homossexual) e a ‘invenção’ da figura do homossexual aponta para um repensar das identidades sexuais pautado na premissa de que o termo identidade remete a uma idéia ambígua. Ao apontar diferentes ênfases sobre a construção da identidade como destino, resistência e/ou possibilidade de escolha, ele destaca que esta própria escolha muitas vezes é direcionada pela contingência, ao invés de guiada pela vontade. Este processo de negociação social está expresso nas palavras do autor: “ as identidades, entretanto, e no mundo moderno, com sua preocupação com a sexualidade verdadeira, a escolha é muitas vezes altamente política” (WEEKS, 1999: 73). Os processos

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identitários denotam conflitos, negociações e riscos da vida diária em momentos de crise onde as tradições e as verdades absolutas são colocadas em cheque pela crescente complexidade social. Esta, por sua vez, acaba por gerar agudas ansiedades. A discussão da sexualidade ganhou terreno de luta política. O autor ao finalizar o texto pontua inúmeras mudanças e transformações nos âmbitos público e privado das sociedades a partir da centralidade das relações corpo – sexualidade nas relações sociais entre os gêneros.

Corpo, Dança e Cinema

Nossa intenção não se trata em ‘entender’ ou ‘traduzir’ as mensagens veiculadas em cada filme a partir da linearidade de suas narrativas, pois apostamos que o cinema configura-se para além disso, destacamos a produtividade das questões por ele suscitadas, sugeridas, incitadas. Esse ‘entender’, portanto, não busca respostas, mas articula novos movimentos de relações e outras perguntas, sempre contingentes. Vivemos em um mundo de imagens. Na época atual, contemporânea e/ou pós-moderna a mídia exerce na população em geral uma vigorosa ação pedagógica. De acordo com Eli Fabris

na contemporaneidade, imersos numa cultura da imagem, alguns desses aprendizados ocorrem com naturalidade. No entanto, assistir a um filme, seja para entreter-se com ele, seja para analisá-lo, pressupõe aprendizagens específicas. Os filmes são produções em que a imagem em movimento, aliada às múltiplas técnicas de filmagem e montagem e ao próprio processo de produção e ao elenco selecionado, cria um sistema de significações. São histórias que nos interpelam de um modo avassalador porque não dispensam o prazer, o sonho e a imaginação. Elas mexem com nosso inconsciente, embaralham as fronteiras do que entendemos por realidade e ficção. Quando dizemos que o cinema cria um mundo ficcional, precisamos entendê-lo como uma forma de a realidade apresentar-se (FABRIS, 2008: 118)

Neste sentido, intencionalmente, escolhi os filmes Billy Elliot (Inglaterra, 2000) e

Madame Satã (Brasil, 2002) que, embora de contextos e indústrias cinematográficas

diferentes, abordam a complexidade do cotidiano dos homens que se ‘atrevem’ a expressar-se de uma maneira diferente, ‘estranha’ e que permitem, portanto, uma aproximação e discussão pedagógica. Questões de gênero, sexualidade, etnia e classe social são abordadas nos filmes e nos mostram a complexidade no trato das emoções e do mundo afetivo-sensível entre os próprios homens e com as mulheres. As obras foram assistidas várias vezes, individualmente

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e na presença de alunos/as em sala de aula, em férteis e acalorados debates, o que permitiu uma ampliação do olhar e suas possibilidades críticas. Algumas recortes foram destacados e analisadas a partir do(s) significado(s) específico(s) das cenas e, a partir delas, em relação à (re)produção e circulação de discursos e representações.

As relações entre pai e filhos são o pano-de-fundo de Billy Elliot, onde em uma família pertencente ao contexto de classe baixa, o pai matricula o filho em aulas de boxe. O menino na faixa dos 11 anos questiona tamanha violência deste ‘esporte’ – naturalizada pelo pai, o irmão mais velho e pelos demais personagens do filme e do bairro onde mora -, foge das aulas e é atraído pelo som de um piano das aulas de ballet clássico ministrada por uma professora a uma turma exclusivamente de meninas. Em casa, ele já fora proibido pelo pai de tocar piano. Billy participa das aulas de ballet, escondido do pai e do restante da família, e é levado pela alegria e a descoberta que a dança proporciona, destacando-se entre as meninas e recebendo elogios da professora. Uma das cenas destacadas refere-se à conversa que Billy tem com seu pai em casa, logo após ter sido ‘descoberto’ nas aulas de ballet. Exemplifico resumidamente o diálogo, Billy: “O que há de errado com o ballet”? Pai: “É para meninas, meninos fazem

boxe, futebol! Você sabe muito bem o que há de errado!”. Billy: “Não, homens que dançam não são bixas, são como atletas!”

O pai, operário, em greve, apresenta dificuldades em dialogar com os filhos e não abre espaço para uma convivência mais próxima e afetiva com Billy, o qual se sente sozinho em função da morte da mãe. A professora de ballet torna-se sua confidente e incentivadora. Ao vivenciar o confronto entre a tradição de uma família de operários e o desejo e felicidade de dançar ballet junto à classe burguesa, Billy vai, literalmente, ‘dançando’ suas emoções. Percebemos que as cobranças e expectativas sociais em relação ao mundo masculino, reforçada por homens e mulheres, acaba por sufocar manifestações de sensibilidade e de auto-expressão dos homens em momentos de sociabilização, seja no âmbito público ou privado. Quando perguntado sobre o que sentia quando dançava, Billy foi único: “Esqueço-me de

tudo, parece que desapareço. É como se houvesse um fogo dentro de mim, como um pássaro no céu, uma eletricidade, pego fogo...”

Se em Billy a desconfiança e a estranheza em torno de uma suposta homossexualidade é tematizada por conflitos, em Madame Satã ela é escancarada e cruel. Podemos nos questionar acerca de como foi/é o cotidiano, a educação, a luta pela sobrevivência de um homossexual no Brasil (ontem e hoje): negro, pobre, afeminado... Radicalizando me pergunto: como as bixas iriam/irão estudar se a própria escola e alguns professores as discriminam?

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Historicamente a força e a circulação dos discursos médico e religioso instituíram a figura do ‘homossexual’ e o aprisionaram no paradigma da anormalidade, da doença e do crime. A primeira cena do filme e o áudio/texto narrado no ambiente de uma delegacia ilustram a política do enquadramento e as punições necessárias para combater tamanho mal caudado à sociedade: “ (...) desordeiro, pederasta passivo, não tem religião, instrução rudimentar, uso

de gírias, pouca inteligência, baixo nível social (...) praticante de atos criminosos, propenso ao crime e nocivo à sociedade”. Mas será que, na época do filme, teria Madame Satã outra

saída?

Madame Satã – “personagem” da bairro da Lapa do Rio de Janeiro na década de 30,

João Francisco (Lázaro Ramos) fez várias tentativas de “endireitar” na vida buscando trabalhos honestos em bares e boates, freqüentando clubes. Mas o corpo traz consigo ‘marcas’ que ora podem sinalizar ou impedir oportunidades e trocas sociais específicas em contextos distintos. Os efeitos do poder de uma norma hegemônica acabam por naturalizar e internalizar pensamentos derrotistas, comodistas e de culpabilização diante dos conflitos instaurados nos enfrentamentos sociais: “Eu só faço besteira, eu quero me endireitar, nasci pra ter a vida de

malandro” (João); “Não confia nesse preto, esse negro tá maluco” (artista do clube onde João

trabalhava); “Aqui não entra nem puta nem vagabundo” (segurança de um clube social); “É

por pessoas como você que esse lugar tá uma droga!” (freqüentador do bar Danúbio Azul).

Tais proposições ilustram a posição de Guacira Louro quando afirma que

os significados que se atribuem a identidades, jogos e parcerias sexuais são situados e disputados historicamente e, ao longo dos tempos, nos filmes, posições-de-sujeitos e práticas sexuais e de gênero vêm sendo representadas como legítimas, modernas, patológicas, normais, desviantes, sadias, impróprias, perigosas, fatais, etc. Ainda que tais marcações sociais sejam transitórias ou, eventualmente, contraditórias, seus resíduos e vestígios persistem, algumas vezes por muito tempo. Reiteradas e ampliadas por outras instâncias, tais marcações podem assumir significativos efeitos de verdade (LOURO, 2008: 82)

A mesma autora destaca que representações mais comuns associadas à homossexualidade remetem a um “final não feliz”, com potencial trágico ou à ridicularização, associada a tons de comédia e caricatura, embora não sejam as únicas na cinematografia configuram-se como as mais recorrentes. Percebemos que a ‘norma’ vigente, que circula e

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heterossexual, católico, classe média, alto, magro, católico. Guacira Louro ao rejeitar a noção de rótulos advindos da compreensão de uma identidade fixa, portanto, que aprisiona, contribui com a ideia do viver exatamente na fronteira, em trânsito, sem definição ou enquadramento identitário. Obviamente que não estamos acostumados com estas “novas” configurações e possibilidades de expressão que desacomodam, desestabilizam e provocam. Por outro lado, podem apontar para a flexibilização dos julgamentos, dos diagnósticos, dos castigos e das receitas tão comuns à área da educação e ao cotidiano de professores. Esta ideia de “travessia” e de transitoriedade, da ordem do ambíguo, pode ser caracterizada com outra forte cena entre João (Madame Satã) e um freqüentador do bar onde ele trabalhava, o Danúbio Azul onde provocado pelo homem ele grita: “Eu sou bixa por que eu quero e não deixo de ser homem

por causa disso!”.

Ao problematizar o gênero no campo da Educação, é preciso enfatizar o corpo, as vivências da qual participa, a que ou a quem serve e, sobretudo às relações de poder, submissão, hierarquia e desigualdade que estabelece com outros corpos. A própria história denota e, não raras vezes, reforça alguns binarismos e dicotomias em relação às características tipicamente masculinas: virilidade, força física, espaço público, atividade, razão; em oposição ao universo feminino: sensibilidade, delicadeza, espaço privado, passividade, emoção. Tais valores e papéis sociais acabam por alastrar-se em diferentes espaços de práticas corporais como o clube, a escola, quadras e parques além de interferir em um contexto social mais amplo como a família, Igrejas, empresas, as profissões, etc.

Neste jogo de relações de poder e de negociações sociais, muitas vezes nem tão provisórias quanto parecem, qualquer tentativa de problematização de situações e de desconstrução de modelos ou padrões vigentes realmente não é considerada uma tarefa fácil. Há um único modelo de masculinidade a ser conquistado, conforme aponta Deborah Sayão (2002). Nesta perspectiva, Robert Connell ao analisar a transformação do papel masculino às masculinidades observa que o conceito do “masculino” que contempla um conjunto de atributos e expectativas que sempre definiram a masculinidade apropriada apresenta vários pontos fracos, uma vez que não nos permite compreender as complexidades no interior da masculinidade e as múltiplas formas de masculinidade. O autor destaca dois aspectos relevantes:

Em primeiro lugar, diferentes masculinidades são produzidas no mesmo contexto social; as relações de gênero incluem relações entre homens, relações de dominação, marginalização e cumplicidade. Uma determinada forma

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hegemônica de masculinidade tem outras masculinidades agrupadas em torno dela (CONNELL, 1995: 89).

O processo educativo de homens e mulheres supõe uma construção social e corporal dos sujeitos. Além da aprendizagem formal, são internalizadas posturas, gestos e até mesmo comportamentos apropriados para cada sexo. Pesquisas afirmam que em alguns cursos de formação de educadores/as, os/as próprios/as professores/as acabam por reforçar estereótipos de homens e de mulheres e sua reprodução às futuras gerações. Neste sentido, a escola “fabrica” diferenças que se desenvolvem na e a partir das práticas educativas por meio de manifestações de sexismo e homofobia. Uma vez que os significados destas representações não são fixos nem estáveis, é apontada a possibilidade de desconstrução de verdades instituídas a partir de desestabilizações no currículo, nos debates e conflitos de modo a ampliar a consciência das relações de gênero na formação docente. Neste sentido, em relação ao jogo que se estabelece em sala de aula a autora destaca que

Professoras/es e estudantes carregam de sentido aquilo que lêem, o que dizem, ouvem e fazem (...) é preciso questionar sempre não apenas o que ensinamos, mas o modo como ensinamos e os sentidos que os/as nossos/as aluno/as dão ao que aprendem (LOURO, 1997: 137).

As relações estabelecidas e construídas hierarquicamente entre o desenvolvimento da heterossexualidade e da homossexualidade ainda são vistas como tabus pela pesquisa oficial. A fragmentação dos diferentes aspectos identitários advindos do patriarcado, do capital cultural e da dominação racial, é causada pela ausência da visão de negociação social, política e histórica das identidades. O resultante deste processo é a repressão da expressão da idéia de identidade como sendo polimórfica e polifônica (BRITZMAN, 1996).

Em relação às nuances que compõe a sexualidade Guacira Louro destaca que

Tal como o gênero, a raça ou a classe, a sexualidade também precisa ser compreendida no âmbito da história e da cultura. Nessa ótica, as identidades sexuais deixam de ser concebidas como meros resultantes de ‘imperativos biológicos’ e passam a ser entendidas como construídas nas relações sociais de poder, em complexas articulações e em múltiplas instâncias sociais. Isso aponta para o fato de que as identidades precisam ser compreendidas sob uma ótica política. Nomeadas no contexto da cultura, experimentam as oscilações e os

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embates da cultura: algumas gozam de privilégios, legitimidade, autoridade; outras são representadas como desviantes, ilegítimas, alternativas. Enfim, algumas identidades são tão ‘normais’ que não precisam dizer de si; enquanto outras se tornam ‘marcadas’ e, geralmente, não podem falar por si (LOURO, 2000: 66).

Ao admitir a provisoriedade e a travessia das relações que nos constituem, ao exercitarmos diferentes posições-de-sujeito, só podemos “finalizar” este texto não concluindo com um ‘final feliz’. Ao contrário, ao apontarmos as relações possíveis entre corpo, dança e cinema, sob a ótica da educação, nos permitimos a considerar a proliferação de outras possibilidades de interpretações e negociações sociais, contingenciais e provisórias. Assim, “a Educação” também se faz para além do espaço da escola, em artefatos culturais através de outros modos de ser, de outras pedagogias. Que os/as educadores em dança estejam mais abertos e sensíveis a esta construção do olhar estético-crítico, competência cada vez mais necessária na atual, excludente, contraditória e complexa realidade em que vivemos.

Bibliografia

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