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Efetivação dos direitos humanos segundo John Rawls

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Academic year: 2021

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Efetivação dos direitos humanos

segundo John Rawls

Neri Pies*

Resumo: O presente artigo faz uma abordagem da concepção política de justiça e a efetivação dos direitos humanos em Jonh Rawls. A tese central consiste em formular, à luz do pensador estudado, uma concepção polí-tica de justiça para um regime democrático constitucional onde a plura-lidade de doutrinas razoáveis possa endossar e efetivamente garantir os direitos humanos.

Palavras chave: John Rawls. Justiça. Razão pública. Direitos humanos.

Introdução

Pesquisar a teoria política de justiça de John Rawls é mergulhar numa teoria concreta de justiça, uma teoria inovadora com pretensão real de efetivação, tendo a liberdade e a igualdade como princípios nor-teadores para garantir conceitos universais e justos e a possibilidade de realização dos direitos humanos.

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Vastamente tem-se debatido e escrito a respeito da teoria da justiça de John Rawls após 1971, ano da publicação da obra Uma Teoria da

Justi-ça, tanto é que sua teoria tornou-se uma referência obrigatória na área de

filosofia política. Robert Nozick em Anarquia, Estado e Utopia salienta que “Os filósofos políticos precisam agora trabalhar dentro da teoria de Rawls ou explicar porque não o fazem” (NOZICK, 1974).

É imprescindível falar que essa teoria foi revista pelo próprio Rawls para reformular e corrigir alguns equívocos. Objetivando aperfeiçoar sua teoria, publicou a obra Liberalismo Político, em 1993, e, em 1999,

Direito dos Povos.

Nelas, a preocupação do autor sempre foi oferecer argumentos ra-zoáveis em defesa da democracia constitucional através de uma ideia de razão pública. É importante ressaltar que Rawls é o principal teórico da atual democracia liberal. O estudo que faz da teoria da justiça contribuiu com o desenvolvimento de ideias e programas políticos capazes de pro-por uma maior justiça social global articulada à liberdade e à igualdade. Ele discute questões inerentes e substancias da convivência, do relacio-namento e dos direitos humanos. Por isso, a teoria é atual e necessita ser estudada no meio filosófico, acadêmico e social, já que nestes espaços se deve procurar dar as bases para uma sociedade cada vez mais compro-metida com a vida dos cidadãos pertencentes ao Estado.

1. Rawls frente ao utilitarismo e ao contratualismo

John Rawls publicou a célebre obra Uma Teoria da Justiça, em 1971, como alternativa ao utilitarismo1 que se mostrava frágil para

fundamen-tar instituições democráticas e constitucionais. Segundo Rawls, o uti-litarismo não explica as liberdades básicas e os direitos dos cidadãos e

1 O termo utilitarismo quer designar de maneira genérica a teoria segunda a qual o valor

maior é a utilidade. Esse conceito é prefigurado por David Hume, mas fundado e fun-damentado verdadeiramente por Jeremy Bentham e por Stuart Mill. Para esses autores, uma ação é moralmente correta se tende a promover a felicidade e condenável se tende a produzir a infelicidade e, considerada não apenas a felicidade do agente da ação, mas de todos os afetados por ela.Para o utilitarismo a sociedade está bem ordenada e justa quando suas instituições estão planejadas de modo a conseguir o maior saldo de satis-fação, obtido a partir da soma das participações individuais das pessoas.

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peca profundamente por estar centrado na maximização do bem estar coletivo às expensas dos direitos de cada individuo, situação que faz com que exista uma injustiça.

Para ter realmente uma justiça efetiva é necessário ter uma distri-buição estritamente igual de certos bens primários. Os bens primários são as liberdades fundamentais e o princípio de igualdade eqüitativa de oportunidades, somente respeitando esses princípios “uma sociedade é mais justa que a outra” (VAN, 1997, p. 69).

O utilitarismo é, para Rawls, uma doutrina teleológica que lida com dois conceitos de ética, o justo e o bom, de modo que determinando um, o outro será apenas meio para alcançar o que foi definido por primeiro. Além do mais, cada ser humano é livre para realizar seus interesses e avaliar suas perdas e ganhos. As pessoas agem para conseguir a maximi-zação de seu bem-estar. No entanto, segundo Rawls, na doutrina teleo-lógica, o bem se define independentemente do justo e, então, o justo se define como aquilo que maximiza o bem.

O utilitarismo não leva em consideração os indivíduos menos favo-recidos da sociedade, sendo capaz de sacrificar a liberdade e os direitos humanos a fim de maximizar a média geral de bens materiais. Para Rawls:

A característica surpreendente da visão utilitarista da justiça re-side no fato de que não importa, exceto indiretamente, o modo como essa soma de satisfações se distribui entre os indivíduos assim como não importa, exceto indiretamente, o modo como o homem distribui suas satisfações ao longo do tempo. A distribui-ção correta nos dois casos é aquela que permite a máxima realiza-ção. A sociedade deve distribuir seus meios de satisfação, quais-quer que sejam, direitos e deveres, oportunidades e privilégios, e várias formas de riqueza, de modo a conseguir, se for possível, esse grau máximo (RAWLS, 2000a, p. 27-28).

Nessa ótica, se o homem realiza seu desejo racional, a sociedade também deve realizar e maximizar os desejos de seus membros colo-cando o justo como meio para alcançar a realização do bem. E, para que ocorra uma certa coerência, existe, o que Rawls chama de “observador imparcial”: “É de fato por meio da concepção do observador imparcial e do uso da identificação solidária na orientação de nossa imaginação que o princípio adequado para um único ser humano se aplique à sociedade” (RAWLS, 2000a, p. 28).

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Esse observador é encarregado de organizar os desejos de todos os indivíduos num único sistema de desejos, difundindo as pessoas numa só. Para Rawls:

Dotado de poderes ideais de solidariedade e imaginação, obser-vador imparcial é o individuo perfeitamente racional que se iden-tifica com os desejos dos outros e os experimenta como se fossem de fato seus. Desse modo ele avalia a intensidade desses desejos e lhes atribui seu peso apropriado no sistema único de desejos cuja satisfação o legislador ideal tenta então maximizar com o ajuste das regras do sistema social (RAWLS, 2000a, p. 29).

Dessa forma, o utilitarismo não leva em consideração as diferenças entre as pessoas, pois apenas uma ou algumas poucas pessoas decidem sobre todos, sem haver o mínimo de diálogo ou consultas mais amplas. “A natureza da decisão tomada pelo legislador ideal não é, portanto, subs-tancialmente diferente da de um empreendedor que decide como maxi-mizar seus lucros por meio da produção desta ou daquela mercadoria” (RAWLS, 2000a, p. 29).

Rawls aproxima-se do contratualismo2 que surgira com a

finalida-de finalida-de regular as relações entre os cidadãos. Mediante o contrato social, cada pessoa renuncia aos direitos e os transfere à comunidade ou corpo político de regime democrático.

Rawls pensa numa sociedade justa na qual liberdade e igualdade estejam na mesma plataforma. “Meu objetivo é apresentar uma concep-ção da justiça que generaliza e leva a um plano superior de abstraconcep-ção a conhecida teoria do contrato social como se lê, digamos, em Locke,3

Rousseau4 e Kant5” (RAWLS, 2000a, p. 12).6

2 O contratualismo “compreende todas aquelas teorias políticas que vêem a origem da

sociedade e o fundamento do poder político num contrato, isto é, num acordo tácito ou expresso entre a maioria dos indivíduos, acordo que assinalaria o fim do estado natural e o inicio do estado social e político” (BOBBIO, N. 1995:272)

3 Especialmente em LOCKE, J. Dois tratados sobre o Governo. São Paulo: Martins Fontes,

1998.

4 Especialmente em ROUSSEAU, Jean Jacques. O contrato social. 3. ed. Trad. Lourdes

Santos Machado. São Paulo: Abril Cultural, 1883. Os Pensadores.

5 Especialmente em KANT, I. Textos selecionados. Trad. Tânia Berkopf, Paulo Quintela e

Rubens Torres Filho. São Paulo: Abril Cultural, 1980. p. 103-162. Os Pensadores.

6 Ver ainda HOBBES, Thomas. Leviatã. Trad. João Paulo Monteiro e Maira Beatriz Nizza

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A justiça é a primeira virtude das instituições sociais, assim como a verdade o é dos sistemas de pensamento. Assim, com Uma Teoria da

Justiça, Rawls teve por objetivo a Justiça como Equidade, pretendendo

integrar essa ideia a um entendimento da igualdade democrática e apli-cá-la à estrutura básica da sociedade que designa as principais institui-ções políticas, sociais e econômicas num sistema de cooperação social.7

2. Princípios da justiça

A principal tarefa da Justiça como equidade no pensamento po-lítico é propiciar uma base mais segura e mais aceitável do que a base utilitarista para os princípios constitucionais e para os direitos e liberda-des fundamentais, pois basicamente nos dois últimos séculos houve um profundo desacordo sobre como os valores da liberdade e da igualdade são realizados. Em tese,

Podemos perceber esse desacordo como um conflito, no âmbito da própria tradição do pensamento democrático, entre a tradição associada a Locke que dá ênfase ao que Constant denominou ‘as liberdades dos modernos’ - a liberdade de pensamento e de cons-ciência, certos direitos básicos da pessoa e de propriedade, e o império da lei – e a tradição associada a Rousseau, que enfatiza o que Constant chamou ‘as liberdades dos antigos’, as liberdades políticas e os valores da vida pública (RAWLS, 1992, p. 29-30). A justiça como equidade procura resolver as pendências entre essas tradições em confronto propondo princípios de justiça para que as ins-tituições básicas possam realizar os valores da liberdade e da igualdade garantindo os direitos dos cidadãos.

Rawls prima efetivamente por uma justiça social. Essa concepção social de justiça consiste, num certo modo, numa reconstrução da teoria

7 Vale ressaltar que Rawls apresenta três ideias de cooperação: a) a cooperação é guiada

por normas e procedimentos publicamente reconhecidos e aceitos pelos que coope-ram; b) a equidade da cooperação social parte da ideia de reciprocidade, de maneira que os benefícios produzidos pelos esforços de todos sejam eqüitativamente adquiri-dos e dividiadquiri-dos de uma geração à subseqüente e c) a ideia de cooperação social requer a ideia da vantagem racional, ou bem, de cada participante.

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tradicional liberal direcionada para a igualdade. O autor não parte mais do estado de natureza para estabelecer um contrato, mas sim entre indi-víduos de uma sociedade já constituída em suas instituições.

A concepção de justiça que Rawls se propõe a dar destaque é a jus-tiça como equidade, uma noção pública de jusjus-tiça, própria de uma so-ciedade bem ordenada, onde a imparcialidade entre as pessoas consiga prevalecer. Para isso se efetivar são necessários princípios que realmente correspondam às necessidades reais dos cidadãos.

Por isso,

[...] os princípios da justiça contidos no acordo original devem ser gerais, universais, irrecorríveis e públicos. Gerais na forma [...]. Universais na aplicação [...]. É a questão da justiça formal, ou da justiça como método, que consiste em que as leis e institui-ções sejam aplicadas igualitariamente (isto é, sempre da mesma forma) aos que pertencem às classes por elas definidas. Irrecorrí-veis ou incondicionais: representam a instância final de apelo ao raciocínio prático [...]. Públicos: seu conhecimento deve ser aces-sível aos indivíduos de qualquer geração (NEDEL, 2000, p. 62). Para poder corresponder a isso tudo, o autor propõe dois princípios que nortearão todo o seu pensamento. São eles:

1. Toda pessoa tem direito igual a um sistema plenamente adequa-do de liberdades fundamentais iguais que seja compatível com um sistema similar de liberdades para todos.

2. As desigualdades sociais e econômicas devem satisfazer duas condições. A primeira é que devem estar vinculadas a cargos e posições abertos a todos em condições de igualdade eqüitativa de oportunidade; e a segunda, é que devem redundar no maior benefício possível para os membros menos privilegiados da so-ciedade (RAWLS, 2000b, p. 345).

O primeiro princípio se refere ao direito de igualdade entre as pes-soas que, por sua vez, permite assegurar as liberdades básicas na estrutu-ra social. Essas liberdades são: liberdade política, liberdade de expressão e de reunião pacífica, liberdade de consciência e de pensamento, liber-dade contra opressões psicológicas, a agressão física e a integriliber-dade, o

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direito de propriedade e a liberdade assecuratória de confisco e detenção não arbitrários (RAWLS, 2000a, p. 65).

O segundo princípio se refere à distribuiçãoda riqueza e da ren-da e à faculren-dade de formar organizações que façam uso ren-das diferenças de autoridade e responsabilidade em cadeias de comando. No primeiro princípio se asseguram liberdades iguais e básicas para todos e, no se-gundo, se reconhecem desigualdades econômicas e sociais procurando organizá-las de tal forma que redundem em benefício de todos.

Rawls considera que ambos os princípios, com suas distintas con-sequências, devem ser dispostos em uma ordem serial, dando prioridade ao primeiro princípio sobre o segundo. Esta ordem serial significa que os valores que tutelam o primeiro princípio são superiores aos do segundo, ainda que ambos estejam intimamente vinculados (RAWLS, 2000a, p. 65).

Através desses princípios e centralmente pelo segundo é possível fazer uma distribuição dos bens econômicos sem provocar uma perda de igual liberdade. Os bens deverão ser distribuídos de modo que os menos favorecidos da sociedade sejam beneficiados. Ou seja, a distribuição de riqueza, mesmo sendo diferente entre as pessoas, deve necessariamente ser vantajosa para todos. Rawls manifesta que não é possível ceder al-gumas das liberdades fundamentais para serem compensadas mediante garantias sociais e econômicas em virtude de que os princípios possuem uma ordenação serial.

Essa ordenação significa que as violações das liberdades básicas iguais protegidas pelo primeiro princípio não podem ser justifi-cadas nem compensadas por maiores vantagens econômicas e sociais [...] Finalmente, em relação ao segundo princípio, a distri-buição de renda e riqueza, e de posições de autoridade e respon-sabilidade, devem ser consistentes tanto com as liberdades bási-cas quanto com a igualdade de oportunidades (RAWLS, 2000a, p. 65-66).

Procedendo dessa forma é possível fazer justiça social, pois todos possuem igual liberdade e a distribuição de riqueza passa a ser essencial, pois nenhum cidadão poderá ficar em posição desvantajosa e a posição de todos deve ser melhorada. Para que algumas pessoas não obtenham vantagens sobre outras, Rawls introduz o conceito de posição original.

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3. A posição original

Rawls elabora o conceito de “posição originária8” por considerá-lo o mais adequado para ser ponto de partida para elaborar uma concepção política de justiça para a estrutura básica da sociedade. Na justiça como equidade a posição originária é entendida como uma situação puramen-te hipotética, responsável por conduzir a uma certa concepção de justiça. Na verdade,

[...] entre as características essenciais dessa situação está o fato de que ninguém conhece seu lugar na sociedade, a posição de sua clas-se ou status social e ninguém conhece sua sorte na distribuição de dotes e habilidades naturais, sua inteligência, força ou coisas seme-lhantes (RAWLS, 2000a, p. 13).

A posição originária é um artifício de representação que serve como um meio de reflexão pública para atingir maior acordo mútuo. Segundo Rawls

8 É importante frisar que a posição original modela uma característica básica do

cons-trutivismo kantiano, a saber, o racional e o razoável. Ou seja, a teoria da justiça de Rawls é fundada na razão. Os conceitos racional e razoável parecem ser opostos entre si, pois aquilo que por vezes nos parece racional, entendendo como justo, pode parecer nada razoável as vezes, mas Rawls dirá que os conceitos são complementares, sendo que o racional está mais voltado a concepção de verdade e unicidade e o razoável volta-do mais a ideia de poder ter várias soluções. “Como ideias complementares, nem o ra-zoável nem o racional podem ficar um sem o outro. Agentes puramente razoáveis não teriam fins próprios que quisessem realizar por meio da cooperação eqüitativa, agentes puramente racionais carecem de senso de justiça e não conseguem reconhecer a va-lidade independente das reivindicações de outros.” (RAWLS, 2000b, p. 96) Portanto, racional e razoável estão num mesmo patamar, ambos são elementos da racionalidade e não deduzidos um do outro. Os indivíduos devem ser racionais para concretizarem seus objetivos e razoáveis no agir, pois “é pelo razoável que entramos como iguais no mundo público dos outros e dispomo-nos a propor, ou aceitar, conforme o caso, ter-mos eqüitativos de cooperação com eles” (RAWLS, 2000b, p. 97) Portanto, esses dois conceitos ajudam a entender como através da razão Rawls elabora a concepção política de justiça partindo da posição original.

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[...] a posição original é uma situação puramente hipotética. Não é preciso que nada semelhante ocorra concretamente, embora possamos simular as reflexões das partes seguindo, de forma de-liberada, as restrições que ela representa. Não se pretende que a concepção da posição original explique a conduta humana, exce-to na medida em que ela tenta dar conta de nossos juízos morais e nos ajuda a explicarmos o fato de termos um senso de justiça (RAWLS, 2000a, p. 130).

A posição original é puramente hipotética, não sendo, portanto, con-cebida como uma situação real e ou concreta. É apenas uma maneira de conduzir a uma concepção de justiça. Assim, cabe salientar que se estará sempre operando com suposições e intuições baseadas nos princípios primeiros da justiça. Para Rawls, a ideia intuitiva da justiça como equi-dade considera os princípios primeiros constituintes do objeto do acor-do original de determinada situação.

Deve-se demonstrar, portanto, que os dois princípios da justiça são a solução para o problema de escolha apresentado pela posi-ção original. Com esse objetivo, deve-se estabelecer que, dadas as circunstâncias das partes, e o seu conhecimento, crenças e inte-resses, um acordo baseado nesses princípios é a melhor maneira para cada pessoa de assegurar seus objetivos, em vista das alter-nativas disponíveis (RAWLS, 2000a, p. 127-128).

Portanto, o cerne da posição original é estabelecer um processo equitativo para garantir aquilo que é justo para todos. No entanto, coti-dianamente estamos em posição de disputas devido às contingências e tentamos obter vantagens em nosso favor. Para que não ocorra de alguns terem maior beneficio do que os demais, Rawls fala que as partes situam--se atrás de um véu de ignorância, a pessoa não sabe sua posição social ou seu status.

Elas não sabem como as várias alternativas irão afetar o seu caso particular, e são obrigadas a avaliar os princípios unicamente com base nas condições gerais. [...] Mais ainda, admito que as partes não conhecem as circunstâncias particulares de sua pró-pria sociedade. Ou seja, elas não conhecem a posição econômica e política dessa sociedade, ou o nível de civilização e cultura que ela foi capaz de atingir. (RAWLS, 2000a, p. 147).

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Não conhecendo as particularidades, todas as pessoas são coloca-das sob o mesmo patamar de racionalidade para estabelecer o acordo para os princípios da justiça social. Esses princípios fornecem um modo de atribuir direitos e deveres nas instituições básicas da sociedade e ain-da definem a distribuição adequaain-da dos benefícios e encargos ain-da coope-ração social.

Consequentemente, o objeto da justiça passa a ser a estrutura bási-ca da sociedade e o modo pelo qual “[...] as instituições mais importantes distribuem direitos e deveres fundamentais e determinam a divisão de vantagens provenientes da cooperação social” (RAWLS, 2000a, p. 7).

4. A estrutura básica da sociedade

A estrutura básica da sociedade na concepção contratualista é o prin-cipal objeto da justiça. “A estrutura básica é entendida como a maneira pela qual as principais instituições sociais se encaixam num sistema, e a forma pela qual essas instituições distribuem os direitos e deveres funda-mentais e moldam a divisão dos beneficiários gerados pela cooperação social” (RAWLS, 2000b, p. 309).

Nesse sentido, a organização social, as formas políticas, a organi-zação da economia, são todas partes da estrutura básica da sociedade. Por isso, é de fundamental importância levar em conta os dois princípios primeiros elencados anteriormente para chegar a concepções e diretrizes razoáveis para o complexo da sociedade.

Uma vez que a concepção de justiça procura incorporar uma forma ideal para a estrutura básica, “Segundo que princípios pessoas morais livres e iguais podem aceitar o fato de que as desigualdades sociais e eco-nômicas são profundamente influenciadas pela boa ou má sorte social e pelas contingências naturais e históricas?” (RAWLS, 2000b, p. 355).

Rawls procura explicar isso através do principio da diferença.9 9 Segundo Rawls, “[...] os princípios de justiça, e, em particular, o princípio da

diferen-ça, aplicam-se aos princípios públicos e às políticas mais importantes que regulam as desigualdades sociais e econômicas. São empregados para ajustar o sistema de títulos de propriedade e rendimentos, e para equilibrar os critérios e preceitos familiares que esse sistema emprega. O princípio de diferença aplica-se, por exemplo, à tributação da

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Esse significa um adequado critério que permite aos legisladores e ins-tituições valorar e equilibrar as pretensões dos mais favorecidos com os menos afortunados. De maneira prática, terá de se examinar que leis e instituições contribuem para o alcance de uma maior justiça entre as distintas classes sociais. Por isso, as desigualdades sociais e econômicas haverão de dispor-se de tal modo que sejam tanto benéficas aos menos afortunados quanto ligadas a cargos e posições acessíveis a todos, em condições de justa igualdade de oportunidades.

Segundo o autor, “A estrutura básica deve permitir desigualdades organizacionais e econômicas, desde que estas melhorem a situação de todos, inclusive a dos menos privilegiados, e desde que essas desigual-dades sejam compatíveis com a liberdade igual e igualdade eqüitativa de oportunidade” (RAWLS. 2000b, p. 355).

Portanto, o princípio da diferença é um critério que opera vincu-lado à estrutura básica para obter, por intermédio das instituições, o al-cance de uma justiça ampla, tendo em vista a preservação das liberdades e correção das desigualdades.

Para Rawls, mesmo numa sociedade bem ordenada serão necessá-rios ajustes na estrutura básica. No entanto, os indivíduos e as associa-ções permanecem livres para realizar seus fins no interior das instituiassocia-ções básicas que levam a sério as operações necessárias para a manutenção de uma estrutura básica.

5. Concepção de liberdade e igualdade

John Rawls trabalha com os conceitos de liberdade e igualdade para defender uma proposta de justiça como equidade. Entretanto, a liberda-de é o primeiro objeto, pois os princípios elencados por Rawls obeliberda-decem a uma ordem hierárquica.

renda e da propriedade, à política fiscal e econômica. Aplica-se ao sistema proclamado de direito público e normas legais, e não a transações ou distribuições especificas, nem a decisões de indivíduos e associações, mas ao contexto institucional no qual essas transações e decisões acontecem. [...] Os títulos de propriedade soa conquistados e res-peitados em conformidade com o sistema público de normas” (RAWLS, 2000b, p. 355).

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A prioridade da liberdade significa que sempre que as liberdades básicas podem ser efetivamente estabelecidas, não é permitido trocar uma liberdade menor ou desigual por uma melhoria do bem-estar econômico. Só quando as circunstâncias sociais não permitem o estabelecimento efetivo desses direitos básicos é que podemos consentir com a sua limitação; e mesmo assim, essas restrições só podem ser aceitas na medida em que sejam neces-sárias a fim de preparar o caminho para o tempo em que elas deixem de se justificar (RAWLS, 2000a, p. 164).

Em outra passagem o autor é ainda mais enfático quanto à priori-dade da liberpriori-dade. “Cada pessoa possui uma inviolabilipriori-dade fundada na justiça que nem mesmo o bem estar da sociedade como um todo pode ignorar. Por essa razão, a justiça nega que a perda da liberdade de alguns se justifique por um bem maior partilhado por outros” (RAWLS, 2000a, p. 4). Portanto, a liberdade não pode ser suprimida e a justiça com seus princípios fornece a maneira de atribuir direitos e deveres aos cidadãos da sociedade.

Rawls também procura elencar as liberdades mais importantes, as consideradas em primeiro grau, a saber:

[...] liberdade política (o direito de votar e ocupar um cargo pú-blico) e a liberdade de expressão e reunião; a liberdade de cons-ciência e de pensamento; as liberdades de pessoa, que incluem a proteção conta a opressão psicológica e a agressão física (inte-gridade da pessoa); o direito a propriedade privada e a proteção contra a prisão e a detenção arbitrárias, de acordo com o conceito de estado de direito (RAWLS, 2000a, p. 65).

É importante enfatizar que é estabelecida uma igualdade de opor-tunidades. Isso significa dizer que, numa posição original, da mesma forma que as pessoas são livres, também são iguais. O princípio da igual-dade coloca todos num mesmo patamar, admitindo que todos têm direi-to igual, independentemente da posição social, sendo obrigados a seguir as mesmas regras estabelecidas pela justiça, uma vez que todos possuem um senso mínimo de justiça.

O conceito de igualdade não pressupõe uma homogeneidade de bens materiais ou imateriais. Pretende ser um princípio de igualdade na diferença. Para que os indivíduos não estejam inclinados a obter van-tagens de outrem em prol de seu benefício próprio, Rawls afirma que

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existe uma personalidade moral que garante a justiça.10 O princípio

uni-versalizável de proposições práticas do construtivismo kantiano constitui, segundo Rawls, um modelo normativo para a fundamentação de uma teoria da justiça hoje, desde que seja reformulado como um dispositivo político – e não metafísico, não transcendental – de regras formais capa-zes de estabelecer critérios normativos e de determinar resultados equi-tativos.

Nesse sentido, a justiça como equidade é a melhor forma para che-gar a uma sociedade bem ordenada, pois che-garante a realização dos indi-víduos pelos princípios da justiça. Ainda, a justiça como equidade pre-tende regular as relações entre as pessoas de maneira que todos sejam capazes de chegar à realização efetiva de uma sociedade democrática e equitativa.

6. O Conceito político de justiça

Pelo elencado acima podemos perceber que Rawls trabalha partin-do sempre de um acorpartin-do para estabelecer os princípios da justiça social. Esses princípios fornecem um modo de atribuir direitos e deveres nas instituições básicas da sociedade e ainda definem a distribuição adequa-da dos benefícios e encargos adequa-da cooperação social.

Consequentemente, o objeto da justiça passa a ser a estrutura bási-ca da sociedade e o modo pelo qual “[...] as instituições mais importantes distribuem direitos e deveres fundamentais e determinam a divisão de vantagens provenientes da cooperação social” (RAWLS, 2000a, p. 7-8).

No entanto, o problema central do liberalismo político consiste em formular uma concepção de justiça política para um regime democráti-co democráti-constitucional onde há pluralidade de doutrinas razoáveis.

O ponto central da teoria de Rawls é “[...] qual a concepção de jus-tiça mais apta a especificar os termos eqüitativos de cooperação social

10 A personalidade moral em Rawls foi desenvolvida no decorrer do texto, mas cabe

sa-lientar outra vez que ela é importante para garantir a justiça. A personalidade moral faz com que as pessoas não saibam seu lugar na sociedade, não saibam qual é seu

status quo, elas fazem as escolhas partindo da posição original, portanto, não sabem

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entre cidadãos considerados livres e iguais, e membros plenamente co-operativos da sociedade durante a vida toda, e de uma geração até a se-guinte” (RAWLS, 2000b, p. 45).

Para analisar isso mais profundamente Rawls enfatiza que a Justiça não detém um conceito metafísico/ontológico, mas um conceito políti-co, resultante de um acordo das diferenças sociais, culturais, religiosas e econômicas existentes numa sociedade de estrutura democrática.

Portanto, o pensador defende que a concepção pública de justiça deve realmente ser política, pois uma concepção da justiça é mais uma tarefa prática social do que um problema metafísico. “Tal concepção tem de dar espaço a uma diversidade de doutrinas e à pluralidade de concep-ções conflitantes e, na verdade, incomensuráveis, do bem tal como ado-tados pelos membros das sociedades democráticas existentes” (RAWLS, 1992, p. 28).

Consequentemente, a justiça política tem a função primordial de reduzir o desacordo político público para estabelecer as formas insti-tucionais mais apropriadas à liberdade e à igualdade. Uma concepção política de justiça deve estar de acordo com convicções refletidas. Ou seja, para estabelecer a base de um acordo público de uma concepção de justiça política, precisa-se articular e organizar as ideias intuitivamente, onde a “[...] ideia mais fundamental é a da sociedade como um sistema de cooperação social eqüitativo entre pessoas livres e iguais” (RAWLS, 1992, p. 29-30).

Quando encontramos uma concepção política de justiça, então to-dos os cidadãos podem examinar se suas instituições políticas são justas ou não. Portanto o objetivo da justiça como equidade é prático e não me-tafísico e quando o acordo é firmemente fundado em atitudes políticas-sociais-públicas, os bens de todas as pessoas são sustentados justamente. Assim, o objetivo da justiça como equidade como uma concepção política é prático, e não metafísico ou epistemológico. Ou seja, apresenta-se não como uma concepção da justiça que é verdadei-ra, mas como uma concepção que pode servir de base a um acor-do político informaacor-do e voluntário entre cidadãos vistos como pessoas livres e iguais. Quando firmemente fundado em atitudes políticas públicas e sociais, esse acordo sustenta os bens de todas as pessoas e associações num regime democrático justo (RAWLS, 1992, p. 33).

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Na verdade, para entender como a unidade social é possível, da-das as condições históricas de uma sociedade democrática, partimos de nossa ideia intuitiva básica de cooperação social. Segundo o autor, “[...] a justiça como equidade tenta apresentar uma concepção de justiça polí-tica fundada nas ideias intuitivas básicas encontradas na cultura pública de uma democracia constitucional” (RAWLS, 1992, p. 53).

A democracia constitucional liberal pressupõe a ideia de tolerân-cia e de pluralismo razoável, pois uma sociedade liberal deve respeitar as doutrinas abrangentes dos seus cidadãos, isto é, doutrinas religiosas, filosóficas e morais, desde que essas doutrinas sejam compatíveis com uma concepção política de justiça e de razão pública. Além do mais, se o liberalismo exigisse que todas as sociedades fossem liberais, então a ideia de liberalismo deixaria de expressar a tolerância por formas aceitáveis de ordenar a sociedade.

Para que as pessoas respeitem as concepções dos outros e preser-vem a estabilidade e a unidade sociais, Rawls introduz o conceito de con-senso sobreposto.

7. O consenso sobreposto

O consenso sobreposto é trabalhado na obra Liberalismo Político. Com esse conceito o autor pretende responder a questão que diz respeito à estabilidade das instituições democráticas diante das grandes diver-gências existentes na sociedade, a saber: “[...] como é realmente possível existir ao longo do tempo, uma sociedade estável e justa de cidadãos livres e iguais profundamente divididos por doutrinas religiosas, filosó-ficas e morais razoáveis, embora incompatíveis” (RAWLS, 2000b, p. 179). Para responder a isso é necessário identificar a estrutura básica da sociedade e propor a ideia de um consenso sobreposto em torno dos valores comuns de uma sociedade bem ordenada. Ou seja, uma doutrina abrangente não pode garantir a base da unidade social, nem oferecer o conteúdo da razão pública sobre questões fundamentais. Portanto, “[...] a unidade social baseia-se num consenso sobre a concepção política, e a estabilidade é possível quando as doutrinas que constituem o consenso são aceitas pelos cidadãos politicamente ativos da sociedade” (RAWLS, 2000b, p. 179).

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Assim, o consenso sobreposto na esfera política depende da redu-ção do conflito de valores. O autor entende que “[...] o consenso poderia estabelecer-se em torno dessas questões: igualdade política, igualdade de oportunidades, respeito mútuo e garantia de reciprocidade econômica” (RAWLS, 2000b, p. 7).

Neste sentido, é possível salientar que existe uma consistência na teoria rawlseana de justiça que permite enfatizar uma sociedade demo-crática capaz de garantir a efetivação dos direitos humanos. Essa consis-tência passa pela defesa e afirmação do contrato social ou pacto social, que os cidadãos sob a posição original elaboram e definem para encon-trarem efetivamente os princípios reguladores da estrutura básica da so-ciedade. Ou seja, a justiça e os direitos são garantidos porque o conteúdo é fruto de um acordo mútuo.

A estrutura básica de uma tal sociedade é efetivamente regula-da por uma concepção política de justiça, a qual é objeto de um consenso sobreposto pelo menos no tocante às doutrinas abran-gentes e razoáveis professadas por seus cidadãos. Isso possibilita que a concepção política compartilhada sirva de base à razão pú-blica nos debates sobre questões políticas, quando fundamentos constitucionais e problemas de justiça básica estiverem em jogo (RAWLS, 2000b, p. 91).

8. Razão pública

A razão pública em Rawls reforçará a ideia dos valores morais, das liberdades e das oportunidades numa sociedade de regime democrático. Além do mais, ela pretende também apontar critérios e diretrizes aos princípios fundamentais da estrutura social.

A ideia de razão pública, tal como compreendo, faz parte de uma concepção de sociedade democrática constitucional bem ordenada. A forma e o conteúdo dessa razão “[...] são parte da própria ideia de de-mocracia. Isto porque uma característica básica da democracia é o plu-ralismo razoável – o fato de que uma pluralidade de doutrinas abrangen-tes razoáveis e conflitanabrangen-tes, religiosas, filosóficas e morais, é o resultado normal da sua cultura de instituições livres” (RAWLS, 2001, p. 173-174).

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Continua o autor: “É central para a ideia de razão pública que ela não critica nem ataca nenhuma doutrina abrangente, religiosa ou não, exceto na medida em que essa doutrina seja incompatível com os ele-mentos essenciais da razão pública e de uma sociedade política demo-crática” (RAWLS, 2001, p. 174)

Na verdade, para o pensador, a razão pública, pretende ser um ver-dadeiro conjunto de raciocínios e inferências que dizem respeito às ques-tões políticas fundamentais. Os cidadãos, como livres, iguais e racionais, fazem uso dela para atingir o consenso entre si. “A ideia de razão pública explicita no nível mais profundo os valores morais e políticos que devem determinar a relação de um governo democrático constitucional com os seus cidadãos e a relação destes entre si” (RAWLS, 2001, p. 174-175).

O acordo político está garantido através de um equilíbrio reflexivo que Rawls chama de amplo, geral ou pleno, isto é, são levadas em conta cuidadosamente concepções de justiça antes de se sustentar uma posição fixa. Portanto, procura-se debater amplamente sobre o que é mais justo, o que garante a efetivação dos direitos e as oportunidades.

Esse ideal é concretizado, ou satisfeito, sempre que os juízes, le-gisladores, executivos principias e outros funcionários do gover-no, assim como candidatos a cargo público, atual a partir da ideia de razão pública, a seguem e explicam a outros cidadãos suas ra-zões para sustentar posições políticas fundamentais em função da concepção política de justiça que consideram como a mais razoá-vel (RAWLS, 2001, p. 178).

O debate orientado pelo acordo constitucional leva a que as po-sições sejam as mais razoáveis e abrangentes possíveis. Na verdade, é respeitado o critério de reciprocidade que os cidadãos aceitam as propo-sições “[...] como pessoas livres e iguais, não como dominados ou mani-pulados” (RAWLS, 2001, p. 19). E para “[...] aqueles que rejeitam a de-mocracia constitucional com o seu critério de reciprocidade rejeitarão, naturalmente a ideia de razão pública (RAWLS, 2001, p. 175).

É importante salientar que a razão pública precisa estar alicerçada em raciocínios do senso comum e em métodos científicos que não apre-sentam controvérsias. Assim sendo, as doutrinas religiosas e filosóficas não podem ser definidas como razão pública, mas podem ser debatidas na razão pública. Portanto, o que realmente orienta a razão pública é a concepção política de justiça.

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Passaremos agora a ver como a concepção de justiça de Rawls con-segue dar conta dos direitos humanos e como é possível garantir a auto-nomia da sociedade e os direitos dos cidadãos.

9. Efetivação dos direitos humanos

Rawls publicou uma obra intitulada O Direito dos Povos11, em 1999. Nela, a ideia fundamental é ampliar sua teoria da justiça através de uma razão pública que as comunidades devem exercer nas democracias libe-rais para efetivamente garantir os direitos humanos.

Para elaborar o conteúdo da razão pública Rawls elenca os seguin-tes princípios sobre os direitos dos cidadãos:

1. Os povos são livres e independentes, e a sua liberdade e inde-pendência devem ser respeitadas por outros povos.

2. Os povos devem observar tratados e compromissos

3. Os povos são iguais e são partes em acordos que os obrigam. 4. Os povos sujeitam-se ao dever de não-intervenção.

5. Os povos têm o direito de autodefesa, mas nenhum direito de instigar a guerra por outras razões que não a autodefesa.

6. Os povos devem honrar os direitos humanos

7. Os povos devem observar certas restrições especificadas na con-duta de guerra.

8. Os povos têm o dever de assistir a outros povos vivendo sob con-dições desfavoráveis que os impeçam de ter um regime político social justo ou decente (RAWLS, 2001, p. 47-48).

11 O objetivo dessa obra, segundo Rawls, é analisar o conceito de justiça como equidade

exposto na Teoria da Justiça e no Liberalismo Político para estendê-lo em um nível glo-bal, ou seja, as duas primeiras obras fazem um percurso interno da teoria e a terceira O Direito dos Povos vai para o nível externo. Portanto, o autor transpõe do plano interno de organização de cada sociedade considerada particularmente, para o plano superior da sociedade. Denis Silveira esclarece bem porque Rawls usou o termo povos e não o termo nações. “Povos podem ser sujeitos morais, enquanto os Estados, não. Os Esta-dos se caracterizam pela racionalidade forte (no sentido hobbesiano de buscar a satis-fação dos próprios interesses), que busca a hegemonia econômica, cultural, religiosa etc.; visando uma sobreposição sobre os outros (Estados). Os povos caracterizam-se por uma postura razoável que visa a efetivação da justiça razoável para todos os cida-dãos e para todos os povos, preservando a justiça e a paz” (SILVEIRA, 2000, p. 16-17).

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Estes princípios, juntamente com todo o pensamento rawlseano, tem como objetivo garantir a implantação de conceitos universais de direitos humanos. O sexto princípio é o mais incisivo no que se refere aos direi-tos humanos. Eles devem ser compreendidos como direidirei-tos universais intrínsecos aos direitos dos povos e o Estado que violar os direitos deve ser condenado e pode ser sujeitado a sanções e intervenções.

Para o autor, os direitos humanos são uma classe de direitos que têm a função de “[...] restringirem as razões justificadoras da guerra e põem limites à autonomia interna de um regime [...]”, isto é “[...] primeiro, a guerra não é mais um meio admissível de política governamental e só é justificada em autodefesa ou em casos graves de intervenção para prote-ger os direitos humanos. E, segundo, a autonomia interna de um gover-no agora é limitada [...]” (RAWLS, 2001, p. 104).

No Direito dos Povos o autor faz ênfase em três funções dos direitos humanos, a saber:

1. Seu cumprimento é condição necessária da decência das insti-tuições políticas de uma sociedade e da sua ordem jurídica. 2. Seu cumprimento é suficiente para excluir a intervenção justificada e coercitiva de outros povos, por exemplo, por meio de sanções diplomáticas e econômicas, ou em casos graves, de força militar. 3. Eles estabelecem um limite para o pluralismo entre os povos (RAWLS, 2001, p. 105).

Portanto, mesmo num estado fora da lei esses direitos devem ser obrigatórios e, na medida em que o Estado violar esses direitos, pode sofrer intervenções coercitivas, uma vez que os direitos são intrínsecos ao Direito dos Povos.

Para entender melhor a concepção de justiça e de direitos, Rawls usa outra vez a ideia de posição original, agora num segundo plano. As-sim “[...] tanto as partes como representantes e os povos que representam estão situados simetricamente e, portanto, imparcialmente” (RAWLS, 2001, p. 42).

Portanto, é possível chegar a concepções universais por meio do debate e por meio de um acordo. O universalismo é fruto de um acordo celebrado entre os povos. Dessa maneira, o pluralismo razoável e a razão pública têm um papel fundamental, pois a função dessas categorias é estabelecer uma base comum em uma sociedade dos povos onde sejam percebidas as diferenças de instituições, religiões e culturas.

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Podemos fazer o seguinte questionamento aqui, é possível, portan-to, estabelecer uma igualdade justa entre os povos? Rawls afirma que “[...] as desigualdades não são sempre injustas” (RAWLS, 2001, p. 149). Isto é, os povos reconhecem os outros povos como iguais, mas aceitam certas desigualdades porque isto é, num regime constitucional liberal, legítimo. Segue-se aqui a mesma lógica dos princípios de justiça verifica-dos num regime constitucional.

Rawls defende que “[...] o elemento crucial no desempenho de um país é a sua cultura política – virtudes políticas e cívicas dos seus mem-bros –, não o nível dos seus recursos”12 (RAWLS, 2001, p. 153).

Entretanto, o autor aponta três razões para se preocupar com a de-sigualdade na sociedade nacional e como aplicá-las à sociedade dos po-vos. A primeira

[...] razão para reduzir as desigualdades em uma sociedade nacio-nal é aliviar o sofrimento e as dificuldades dos pobres. Contudo, isso não requer que todas as pessoas sejam iguais na riqueza. Em si, não importa quão grande a distância entre ricos e pobres possa ser. O que importa são as conseqüências (RAWLS, 2001, p. 149). Deve-se nesse caso respeitar o princípio de reciprocidade de modo que os menos afortunados “tenham meios suficientes para fazer uso in-teligente e eficaz da sua liberdade e levar vidas razoáveis e dignas” (RA-WLS, 2001, p. 149).

A segunda razão para diminuir a distância entre ricos e pobres é que esta distância “[...] leva alguns cidadãos a serem estigmatizados, e

12 Rawls nos ilustra um caso para fundamentar sua concepção. Dois países liberais ou

decentes estão no mesmo nível de riqueza (estima, digamos, em bens primários) e têm a mesma população. O primeiro decide industrializar-se e aumentar sua a sua taxa de poupança (real), enquanto o segundo não o faz. Satisfeito com as coisas como elas são e preferindo uma sociedade mais pastoril e sossegada, o segundo reafirma os seus valores sociais. Algumas décadas depois, o primeiro país é duas vezes mais rico que o segundo. Supondo, como supomos, que ambas as sociedades são liberais ou decentes e que os seus povos são livres e responsáveis, capazes de tomar as suas próprias decisões, o país industrializado deve ser taxada para dar fundos ao segundo? Segundo o dever de assistência não haveria nenhuma taxa, e isso parece certo, ao passo que, com um princípio igualitário global sem alvo, sempre haveria um fluxo de taxas, contando que a riqueza de um povo fosse menor que a do outro. Isso parece inaceitável (RAWLS, 2001, p. 154).

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tratados como inferiores, e isso é injusto [...]. A terceira razão para con-siderar as desigualdades entre os povos diz respeito ao importante papel da equidade no processo político da estrutura básica da Sociedade dos Povos” (RAWLS, 2001, p. 150).

Portanto, os povos não podem ser inferiorizados por terem menos riqueza e a equidade é respeitada pelas oportunidades políticas de todos “[...] pelo fato de estarem representados igualmente na segunda posição original com o seu véu de ignorância” (RAWLS, 2001, p. 151).

Procedendo dessa maneira Rawls consegue estabelecer e afirmar os princípios dos povos. Refletindo sobre eles, os povos não teriam moti-vos para não reconhecê-los como razoáveis. Rawls enfatiza que os pomoti-vos continuam autônomos, ou seja, mantêm seus direitos, com possibilidade de poder ampliá-los, pois o que se quer, é que as sociedades alcancem instituições básicas liberais ou decentes e justas. Por isso, o ponto central “[...] é que o papel do dever de assistência é ajudar sociedades oneradas a tornarem-se membros plenos da Sociedade dos Povos e capazes de deter-minar o caminho do seu futuro por si mesmas” (RAWLS, 2001, p. 155).

Portanto, Rawls tem uma teoria e uma posição para garantir que os Estados e os indivíduos sejam respeitados, com diálogo e reciprocidade permanente entre os cidadãos e os povos, a fim de encontrar alternativas viáveis aos que necessitam dar um salto de qualidade.

Considerações finais

A preocupação de Rawls sempre foi oferecer argumentos razoáveis em defesa da democracia constitucional através de uma ideia de razão pú-blica. Entretanto, a sua teoria teve objeções, implicações filosóficas con-tundentes, principalmente pelos chamados comunitaristas, cujo princi-pal expoente é MacIntyre, que diz que a verdadeira ética e a justiça se dão em nível regional, ou seja, na comunidade e não de uma maneira universalista como pretende Rawls.

A teoria da ação comunicativa de Habermas também faz algumas críticas a Rawls, pois a filosofia habermasiana faz uso da razão na tenta-tiva de resolver as problemáticas sociais inerentes ao povo na forma con-creta, com pessoas reais, diferentemente da teoria rawlseliana que, atra-vés da posição originária, quer enunciar os princípios básicos da justiça.

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Segundo Habermas, dessa maneira pode ocorrer uma sobreposição dos direitos básicos liberais sobre o princípio democrático de legitimação e também poderia invalidar uma pretensão de validade cognitiva. Porém, o que Rawls quer realmente enunciar e afirmar na teoria da justiça é a reflexibilidade e a amplitude da concepção política de justiça sobre dou-trinas razoáveis.

Enrique Dussel, em Ética de la Liberación também tece críticas à teoria de Rawls pelo fato de não se importar com a ética material. Para Dussel, Rawls erra quando não parte da materialidade da ética para ela-borar os princípios fundamentais da justiça. Segundo Dussel, não é possí-vel por propósitos hipotéticos, ou seja, com posições puramente formais elencar princípios materiais. Além do mais, os dois princípios centrais da teoria de Rawls não contribuem para a verdadeira liberdade e igualdade entre os cidadãos.

En efecto, el primer principio podría resumir la posición liberal de Ralws; se trata de los derechos a las libertades; es entonces formal, o condición de possibilidad de todos los demás; tiene absoluta prio-ridad sobre el segundo principio ; es el horizonte de la igualdad de-mocrática (Democratic equality). El que nos interesa para nuestra lectura principalmente es el segundo principio. Dicho principio es propriamente material, Del nível social y económico. Aqui debe-mos proponer una primera concideación. Si en el primer principio se habla de igualdad, em segundo se admiten a priori (ya que se-ría fruto de la posición originaria) desigualdades (inequalities). El lector desprevenido se pregunta: ?Por qué se admiten iguladades políticas o formales y se proponen al mismo tiempo desigualdades sociales y económicas (economic)? (DUSSEL, 1998, p. 176) Portanto, para Dussel, é exatamente nessa desigualdade que reside a contradição da teoria rawlseana e é inconcebível fundamentar uma so-ciedade justa sem partir da igualdade social e econômica. É um equivoco falar que a distribuição das riquezas não necessita ser igual.

De qualquer forma, cabe ressaltar que Rawls não pretende desen-volver uma teoria econômica da justiça, mas sim uma teoria política da justiça. Ele pretende disponibilizar oportunidades para os cidadãos poderem desenvolver suas potencialidades. Levando em consideração os dois princípios, os cidadãos poderão promover tanto os direitos civis como os direitos econômicos e sociais, uma vez que ninguém poderá obter vantagem na escolha.

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Dessa maneira, fica evidentemente exposto que a teoria defendida por Rawls é profundamente atual e condizente em relação à temática dos direitos humanos pois, na sociedade contemporânea, um problema que ainda está sem solução definitiva é o da pluralidade nas interpretações que dizem respeito à questões morais, religiosas, políticas e filosóficas. E também é preciso pensar como a questão social se torna uma temáti-ca relevante para que todos tenham oportunidade de desenvolverem seu potencial. Sendo assim, podemos afirmar que o estudo da teoria de Rawls ajuda a encontrar alternativas razoáveis para a boa vivência em sociedade. É importante destacar também que em John Rawls identificamos basicamente três características do liberalismo: a primeira delas se aplica à estrutura básica da sociedade (sociedade democrática), considerando como estrutura as instituições políticas, econômicas e sociais, formando um sistema unificado de cooperação social; já a segunda pode ser formu-lada independentemente de qualquer doutrina compreensiva de caráter religioso, filosófico ou moral, estabelecendo uma relação, através do con-senso sobreposto, entre as diversas doutrinas compreensivas; e, por fim, a terceira, a ideia de liberalismo político está baseada fundamentalmente na sociedade política como um sistema eqüitativo de cooperação social, de cidadãos como razoáveis, racionais, livres e iguais.

Além disso, é importante destacar que Rawls supera a teoria do uti-litarismo clássico, considerada como sendo uma doutrina teleológica, pois o bem era definido independentemente do conceito de justo, onde o interessante era maximizar o bem para garantir a satisfação da maioria na sociedade.

Rawls consegue superar o utilitarismo clássico através de um con-tratualismo novo no qual os cidadãos de uma sociedade já constituída proclamarão os princípios da justiça a serem seguidos: o da liberdade e o da igualdade. Dessa maneira, fortalece-se a democracia constitucional garantindo uma concepção política de justiça e os direitos humanos.

A concepção política de justiça permite realmente edificar uma so-ciedade mais justa, respeitando a liberdade e a igualdade por meio do consenso e da opinião pública, isto é, pela efetiva participação das pesso-as no processo elaborativo dos princípios universais de justiça. Portanto, estamos no viés correto para a formação de uma sociedade justa, estrei-tando cada vez mais a desigualdade social e econômica e oportunizando que todos sejam cidadãos de fato numa sociedade democrática.

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