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Medicalização da vida e direitos humanos

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Academic year: 2021

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Medicalização da vida e direitos humanos

Enquanto organização médica humanitária internacional, Médicos Sem Fronteiras certamente contribuiu para a medicalização da vida. Fundada e criada por médicos nos anos 70, ela se preocupou antes de tudo, desde a sua criação, em salvar vidas em perigo iminente, ou seja, a parte biológica de indivíduos ameaçados de mortes por vários tipos de circunstâncias e que precisavam urgentemente de ajuda para sobreviver à crise em que estava inseridos. Até hoje, existe uma tendência natural da organização em enfatizar uma visão biomédica do ser humano, valorizando muito mais o estado de “paciente objeto de cuidado” em vez do “paciente sujeito ativo”, responsável por seus atos e agente social capaz de transformar seu próprio destino. Nas crises humanitárias, isso é perfeitamente compreensível pois o risco de vida é grande e a prioridade é a sobrevida enquanto a crise perdura. No entanto, cada vez mais, as crises humanitárias são associadas não apenas a catástrofes naturais como também a genocídios, extermínios localizados, eliminação de um grupo étnico por outro, muitas vezes em associação com praticas violentas como estupro, por exemplo. Para superar os traumas psicológicos associados a essas práticas medonhas, existe hoje na organização uma multidisciplinaridade e o envio de psicólogos para atender a uma nova forma de crise médico-humanitária. É interessante avaliar até que ponto os conceitos do direito humanitário e a prática dos direitos humanos se cruzam. Os direitos humanos sempre aparecem como uma meta de longo prazo que países e instituições tentam alcançar, sabendo que provavelmente nunca poderão atingir as metas sugeridas. Eles têm uma origem histórica bem localizada e pressupostos de igualdade e individualidade claros, mas não são contextualizados no tempo e no espaço contemporâneo. Eles acabam sendo referências supranacionais que países deveriam atingir e respeitar mas não o fazem porque a igualdade e individualidade não são princípios universalmente aceitos no mundo. Por outro lado o direito humanitário tem um lado prático imediato, contextualizado no campo das crises e visando o benefício imediato para a pessoa, e sobretudo o grupo em risco de vida. Este risco muitas vezes também é imediato e tenta oferecer regras para administrar a segurança de grupos populacionais inteiros em situações de conflitos onde os cíveis são vulneráveis a ações oriundas dos dois (ou mais)

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campos beligerantes. Os direitos humanos têm um componente individual muito forte com a valorização de uma pessoa antes de tudo, enquanto o direito humanitário tem uma ênfase mais social e grupal envolvida, apesar de regras de proteções individuais muito presente também.

Mas quero aproveitar desta oportunidade para falar de uma outra coisa, aparentemente mais distante do cotidiano de vocês e da questão da medicalização da vida, mas que pode servir de reflexão para muitos sobre o impacto das leis e regras coletivas nacionais e internacionais sobre a vida individual. Não se pode negar que a medicalização da vida passa pela mercantilização da saúde. Nos anos 80, organizações como o Banco Mundial e o Fundo Monetário Internacional encontraram soluções pragmáticas ao endividamento crescente dos países em desenvolvimento; Reduzir o déficit público, cortando as despesas com educação e saúde, e substituindo os gastos públicos por gastos privados, fazendo da saúde e da educação uma mercadoria qualquer. Este sistema de privatização teve uma repercussão dramática nas taxas de cobertura da maioria dos países em desenvolvimento mais pobres onde a população já muito pobre teve que contribuir para pagar suas próprias despesas de saúde. 25 anos depois, os mesmos organismos internacionais reconhecem que a co-participação financeira das populações dos países em desenvolvimento não é favorável à saúde pública e tem gerado iniqüidades e discrepâncias dramáticas na cobertura sanitária. A pandemia da Aids foi o retrato mais assustador da mercantilização da vida. Quem tem dinheiro para pagar os medicamentos anti-retrovirais pode viver, quem não tem, morre. Das três milhões de mortes estimadas por AIDS em 2005 no mundo, a maior parte é oriunda da África e é pobre.

Na contramão desta tendência mundial, o Brasil desenvolveu nos anos 80 uma constituição particularmente progressista que instituiu o Sistema Único de Saúde como direito amplo para toda a população. O SUS prevê também o fornecimento gratuito de medicamentos, o que vai totalmente na contramão das tendências da época. Mesmo que falho na sua implementação, o SUS pode ser assimilado à incorporação da Declaração dos Direitos Humanos para a saúde dentro da Constituição Brasileira. Por ter um respaldo constitucional, o SUS permite que os pacientes busquem seus direitos, nem que seja por via de ações judiciárias, fazendo dos pacientes agente de transformação de seu destino. Historicamente, é interessante notar que ao mesmo tempo que a nova

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constituição promovia a saúde como direito do cidadão Brasileiro, o governo negociava a rodada do Uruguai que resultou na criação da Organização Mundial do Comércio em 1994. Pela primeira vez, uma instância internacional com Sede em Genebra tinha poder de julgar controvérsias comerciais no mundo cada vez mais globalizado de bens e serviços. Também, pela primeira vez, a questão da propriedade intelectual foi colocada dentro de tratados comerciais, dando assim um “status” privilegiado a um direito privado que é o direito de patente. Até então, as questões de propriedade intelectual eram confinadas á Organização Mundial de Propriedade Intelectual – OMPI – WIPO que é um órgão das Nações Unidas baseado em Genebra e que promove altos padrões de Propriedade Intelectual no mundo. O que aconteceu com a criação da OMC foi um golpe de mestre por parte do lobby farmacêutico transnacional. De fato, para ingressar na OMC, os países em desenvolvimento tiveram que se comprometer a assinar, entre outros acordos, o acordo TRIPS (Acordo de Direitos de Propriedade Intelectual Relacionado ao Comércio). Este acordo obriga entre, outras coisas, os países a ter um nível mínimo de reconhecimento de patentes por 20 anos tanto para produtos farmacêuticos como para seus processos de produção. As patentes permitem de impedir que a concorrência de genéricos possa exercer seu papel favorável ao consumidor, que é de baixar os preços. Sem a concorrência, os preços não caem pois o monopólio não tem medo de perder mercado e pode fixar o preço que quer. Quando se trata de uma cerveja ou de um jogo de computador, isso pode não ser tão importante, até mesmo porque existe um nível de substituição grande entre produtos, o que acaba relativizando o monopólio, mas se tratando de medicamentos que podem significar a diferença entre a vida e a morte de uma pessoa, a perspectiva é diferente e o direito de patente invade a esfera do direito humano, do direito humanitário, do direito fundamental à vida.

Mais uma vez o exemplo da Aids e do Brasil são interessantes para entender melhor o impacto do Acordo TRIPS na vida de cada um. Até 1999, os preços para uma terapia anti-retroviral girava em torno de 10.000 US$ por paciente-ano. Isso porque apenas as multinacionais fabricavam esses medicamentos em países em desenvolvimento onde patentes já criam monopólios locais e onde preços altos eram impostos para recuperar as despesas de Pesquisa e Desenvolvimento alegadas pelas empresas. Nesta época, nem a Índia nem o Brasil reconheciam ainda patentes de produtos. Com a produção genérica

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nesses dois países, os preços baixaram drasticamente através da concorrência. Hoje, a mesma terapia custa menos de 130 US$, o que representa uma redução de mais de 98 % em relação ao preço original.

Gráfico 1.

Concorrência dos ARV Genéricos

de 1a linha antes do TRIPS –

redução de preço de 98 %

Infelizmente, as patentes começaram a surtir efeito e os medicamentos para AIDS mais novos são quase todos sujeitos a patentes. Vale lembrar no entanto que ser sujeito a patente não significa ter automaticamente a patente concedida. A concessão de patente ainda é um processo nacionalmente decidido e é baseado em requisitos de patentabilidade que podem variar em cada país. Até meado dos anos 80, a concessão de patente era um instrumento de política industrial e os critérios utilizados podiam variar conforme o desejo de cada país em desenvolver um indústria local ou de proteger suas multinacionais. Hoje, há uma corrente bastante forte que recomenda a não concessão de patentes consideradas frívolas, ou seja, patentes para produtos que não são realmente inventivos (novas moléculas por exemplo). Há uma tendência a conceder patentes para novas indicações terapêuticas ou novas formulações, o que é realmente questionável. Se a aspirina um dia recebeu uma patente de 20 anos por seus efeitos analgésicos, será que precisa de mais 20 anos de proteção de patente quando se descobriu que quem tomava aspirina tinha menos problemas coronarianos? Mas isso é outro debate bastante interessante onde lutas de poder estão acontecendo e os lobbies são muito poderosos.

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Por agora, é importante notar que os únicos efeitos das patentes no Brasil foram de impedir a produção nacional de versões genéricas e de aumentar exponencialmente o preço dos medicamentos novos sujeitos a patentes. No campo da Aids, por exemplo, o resultado é um aumento dramático do preço dos medicamentos de segunda linha cujo preço se aproxima novamente dos preços pré-2000.

Como sustentar o desenvolvimento de medicamentos novos sem patentes ?

Uma das grande questão que está em debate atualmente diz respeito aos incentivos necessários para conseguir desenvolver os medicamentos necessários para atender as necessidades de saúde da maior parte da população dos países em desenvolvimento. Mais uma vez a crise da Aids mostrou que o sistema atual, baseado em patentes, monopólios e preços altos, não alcance os objetivos de acesso. Estudos de Médicos Sem Fronteiras mostraram no início deste século que apenas 1% do novos medicamentos tinham sido desenvolvidos para doenças atingindo especificamente os países em desenvolvimento, sendo que das 13 moléculas novas que isso representa, algumas foram descobertas para uso veterinário antes do uso humano e algumas foram resultado de pesquisas militares Norte Americanos para melhorar a saúde dos militares em guerra no Vietnã e outras regiões endêmicas para malária. Com um mercado farmacêutico mundial que vende 90 % do total das suas vendas nos países ricos, fica difícil achar que algum medicamento foi, é ou será desenvolvido para os países em desenvolvimento, se não houver, no mínimo, um mercado inicial nos países ricos.

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Rest of Europe $9bn (1.8%)

Japan $58bn

(11.1%) Latin America $19bn (3.8%) Asia, Africa and

Australia $40bn (7.7%) North America $248bn (47.8%) EU $144bn (27.8%)

Source: IMS Health

mercado mundial de medicamentos – 90 % em países ricos

Será que existiria um só anti-retroviral se a Aids tivesse sido uma pandemia meramente dos países em desenvolvimento ? Olhem só para a Dengue, que não afeta os países ricos. Até hoje, nunca se pesquisou de forma ampla um medicamento ou vacina para lutar contra esta doença da América Latina. Não existe um medicamento eficaz contra a doença de Chagas em fase crônica. O único medicamento para esta doença foi desenvolvido há mais de 30 anos e a produção está sendo transferida para um laboratório público brasileiro pois não é rentável para uma multinacional produzir o tal de Benznidazol. Mesmo no campo da Aids onde 18 medicamentos anti-retrovirais existem hoje, as necessidades específicas de regiões mais pobres e com menos infra-estruturas nunca são consideradas quando se trata de pesquisa e desenvolvimento. Não há formulações pediátricas suficientes para atender às centenas de milhares de crianças com Aids nos países Africanos, por exemplo, simplesmente porque quase não existe a Aids em crianças nos países ricos. Os teste de laboratório para diagnosticar e monitorar a doença requerem laboratórios sofisticados, pessoal altamente qualificado e maquinário refinado enquanto testes e ferramentas de monitoramento simples e de tipo rápido não são desenvolvidos com a mesma rapidez pela indústria de P&D pois são apenas úteis nos países mais pobres onde o poder aquisitivo é baixo, apesar de representar 90 % da pandemia de Aids. Incentivar uma P&D adaptada para as necessidades de saúde dos países em desenvolvimento não passa por um sistema de patente muito rígido e sim por políticas industriais contundentes e incentivos não patentários tais como garantias de

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compras pelo governo por exemplo. Os medicamentos que existem estão cada vez mais caros e o orçamento do SUS está em situação insustentável pois medicamentos novos não estão sendo produzidos em ambiente de concorrência e os preços impostos são incompatíveis com o poder aquisitivo do país.

Estamos apenas no décimo aniversário do TRIPS no Brasil e a OMC existe apenas há 12 anos. Avaliações recentes de uma comissão independente da Organização Mundial de Saúde tem mostrado este ano que os incentivos patentários não solucionam as necessidades de saúde dos países em desenvolvimento. Isso é um enorme avanço e abre o caminho para a busca de soluções alternativas. O relatório da Comissão Internacional chamada CIPIH provocou a criação de um grupo intergovernamental que está neste momento estudando as alternativas que podem melhorar a situação de P&D baseada em evidência e não apenas em lucro. Não precisamos mais de uma sexta ou sétima versão do viagra, precisamos de um medicamento eficaz para a doença de Chagas. Mudar este paradigma será uma tarefa árdua mas fundamental para o futuro de toda a população dos países em desenvolvimento.

A situação pos-2005: O fim da concorrência dos genéricos.

Situa

ção após 2005 – acabou a

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O acordo TRIPS associado aos acordos da OMC foi criado em 1994. A maioria dos países em desenvolvimento assinou os acordos da OMC por volta de 1995 e os países como Índia e Brasil receberam 10 anos de transição para poder reconhecer patentes de produtos de medicamentos. No entanto, apenas a Índia aproveitou plenamente dessas medidas de transição, já que o Brasil reconhece patentes de produtos farmacêuticos desde 1996, apenas para agradar aos Estados Unidos. No entanto, em 2005, o período de transição acabou, e a Índia, maior produtor de medicamentos genéricos para Aids no mundo, também está no processo de reconhecer patentes de produtos farmacêuticos. Isso significa o esgotamento das fontes baratas de medicamentos genéricos para as

populações dos países em desenvolvimento. Neste contexto, fica cada vez mais evidente que os países precisam utilizar as flexibilidades contidas no acordo TRIPS.

O que os governos podem fazer para evitar preços incompatíveis de medicamentos que ameaçam a sustentabilidade dos programas de saúde pública?

O Acordo TRIPS prevê mecanismos para evitar os abusos dos monopólios gerados pelo sistema internacional de patente. Infelizmente, as chamadas “flexibilidades” do acordo Trips tais como a licença compulsória (quebra de patente) não são utilizadas por nenhum governo, e nem pelo Governo Brasileiro por medo de retaliações comerciais dos Estados Unidos, que querem proteger os interesses das suas multinacionais. A licença compulsória tem sido utilizada neste país apenas como instrumento para pressionar baixas de preços mas sem provocar a produção local de versões genéricas do medicamentos em situação de monopólio. Por isso, este mecanismo não surta mais o efeito desejado pois ficou evidente que o Governo não vai emitir nenhuma licença compulsória.

Além do mais, os Estados Unidos negociam acordos de comércio bilaterais e regionais nos quais eles incluem capítulos restritivos de Propriedade Intelectual visando impedir o uso das flexibilidades permitidas no acordo TRIPS. Exemplos como o acordo bi-lateral EUA-Chile, o acordo regional de livre comércio da América Central – CAFTA mostram a tendência cada vez maior de impor a supremacia dos direitos de comércio sobre os direitos de saúde.

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A mercantilização da saúde vai muito além da mercantilização dos medicamentos, porém o exemplo dos medicamentos permite uma análise de causa a efeito dos acordos de comércios assinados por nossos políticos praticamente sem o conhecimento da população, sobre o quotidiano dos pacientes. Incorporaram dentro de acordos de comércio um direito a propriedade intelectual enquanto a questão do direito à vida e à saúde se restringe às declarações das Nações Unidas que tem pouca resolutividade. A medicalização da saúde é um tema muito maior do que o tema da mercantilização da saúde, mas o processo de mercantilização certamente contribuiu, e muito para uma medicalização crescente da saúde.

Rio de Janeiro, 10 de novembro de 2006 Michel Lotrowska

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