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AS FUNÇÕES SINTÁTICAS DE NÓS E A GENTE NO PORTUGUÊS AFRO-BRASILEIRO

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Academic year: 2021

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AS FUNÇÕES SINTÁTICAS DE NÓS E A GENTE NO PORTUGUÊS AFRO-BRASILEIRO

Manuele Bandeira de Menezes/ PIBIC- UFBA Dante Lucchesi/UFBA - CNPq Introdução

Nos eventos de fala, ao se referir às pessoas do discurso, o falante utiliza formas do singular ou plural, incluindo entre elas o pronome nós e a forma a gente.

No português falado, a forma a gente, do substantivo feminino latino gens, gentis, pode tanto ser usada como substantivo, para nomear de forma coletiva, indeterminadora, mais ou menos geral, um agrupamento de seres humanos, como também ser usada para fazer referência à primeira pessoa do plural.

A forma inovadora, mesmo sendo muito freqüente no português brasileiro, não encontra consenso quanto a sua classificação junto à gramática tradicional. Said Ali (1966, p.116) a classifica como pronome indefinido, originário "de um substantivo", usado "principalmente na linguagem familiar da atualidade"; Cunha e Cintra (1985, p. 288) a chama de "fórmula de representação da primeira pessoa", empregada no uso coloquial normal por nós e, também, por eu. Já na obra O linguajar carioca (1953), essa forma é vista ora por pronome indefinido-"Usa-se muito o indefinido a gente em lugar de nós" (p. 89), ora como substantivo coletivo- "Na classe inculta, os coletivos a gente, pessoal levam o verbo ao plural: A gente vamos hoje... (p. 170). Percebe-se, na indecisão da classificação, a penetração, no sistema de pronomes, de uma nova forma que passa a alternar com as antigas, configurando-se dessa forma um quadro de variação linguística.

O presente estudo está situado no âmbito do Projeto Vertentes do Português Popular do Estado da Bahia, que se fundamenta na análise sociolígüística de comunidades de fala do interior baiano de caracteres diversos a fim de estabelecer um panorama atual da realidade lingüística nesta área, assim como ampliar o conhecimento de sua formação sócio-histórica. Assim, busca-se definir particularmente o papel desempenhado pelo contato da língua portuguesa com as línguas indígenas e africanas na formação das variedades atuais do português do interior do Estado, visando à identificação dos reflexos das mudanças induzidas não só pelo contato, como também pela Transmissão Lingüística Irregular (LUCCHESI; BAXTER, 2006), ou seja, a nativização de um modelo defectivo de segunda língua, o português, nessas variedades do português brasileiro.

A atual pesquisa busca uma análise empírica do uso da forma do pronome da primeira pessoa do plural, segundo a função sintática, em quatro comunidades afro-brasileiras isoladas do Estado da Bahia, a fim de analisar quais contextos, lingüísticos e extra-lingüísticos, favorecem uma forma em detrimento da outra e em que funções sintáticas o nós e o a gente mais ocorrem.

O estudo acerca da forma da primeira pessoa do plural nas diversas funções sintáticas é de grande importância para ampliação do conhecimento sobre como está ocorrendo a reestruturação no sistema pronominal, haja vista que as divergências na freqüência do uso de a gente (em oposição a nós), no contexto sintático, podem refletir os diferentes estágios da implementação da variante inovadora nas comunidades isoladas. Dessa maneira, buscou-se confirmar ou não a hipótese inicial de que a penetração do a gente estaria mais avançada no português afro-brasileiro do que nas variedades urbanas do PB, em função do contato entre línguas. Além disso, as formas bem desviantes em que o nós não apresenta flexão de caso (ex.: terra de nós) reforçam também a hipótese dos efeitos da transmissão lingüística irregular.

2. Metodologia

Para fins de análise e com base nos princípios teórico-metodológicos da Sociolingüística Variocionista, a presente pesquisa utilizou o Acervo do Português Afro-Brasileiro do Estado da Bahia, composto por amostras de fala espontânea, coletadas nas comunidades de Helvécia, Cinzento, Rio de Contas e Sapé, comunidades rurais que se mantiveram isoladas geograficamente e que são marcadas etnicamente pela presença maciça de descendentes de escravos africanos.

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aproximadamente a duração de uma hora e os quais foram organizados de acordo com as seguintes variáveis sociais: sexo (masculino ou feminino), escolaridade (analfabeto ou semi-analfabeto), estada fora da comunidade (presença ininterrupta na comunidade ou saída dela por pelo menos seis meses) e a faixa etária (I - 20 a 40 anos/ II - 41 a 60 anos / III- 61 a 80 anos/ IV- acima de 80 anos).

Inicialmente, houve o levantamento exaustivo de todas as ocorrências da forma da 1º pessoa do plural nas diversas funções sintáticas nas vinte e oito entrevistas das comunidades rurais afro-brasileiras, sendo oito inquéritos de Helvécia, oito de Cinzento, seis de Sapé e seis de Rio de Contas.

No processo do levantamento, foram excluídos da análise casos de expressões cristalizadas, como:

É de no... é do nome do nosso senhô Jesus Cristo... (INF09 CZ) Nossa Senhora, num casô ainda? (INF09 SP)

Aqui pra nós, é dífícil, viu? (INF13 RC).

Ocorrências que não são passíveis de variacão da forma da 1º pessoa do plural também foram excluídas como por exemplo: nenhum de nós (INF20 HV) ou dentro de nós dois aqui (INF12 HV), haja vista não ser possível substituir o nós por a gente.

Após o levantamento, foi feita a audição para a comprovação da veracidade dos dados levantados, evitando, dessa forma, que um possível erro de transcrição fosse considerado.

A partir das variáveis lingüísticas, sociais e discursivas que hipoteticamente pudessem figurar como fatores condicionantes do processo variável estudado, foi constituida uma chave de codificação. Posteriormente, conforme a chave, as ocorrência levantadas foram também codificadas, sendo submetidas, em seguida, à quantificação, tendo como suporte o pacote de programas VARBRUL. 3. Forma do Pronome de Primeira Pessoa do Plural no Português Afro-Brasileiro

Segundo Lucchesi (2007), no Brasil, o a gente tem superado o nós em freqüência de uso na língua falada, em todas as variedades do PB, embora o nós ainda predomine na escrita, sobretudo nos textos formais. Na fala, ainda que seja na norma urbana culta, o a gente já predomina.

Percebe-se que esta predominância da forma inovadora não acontece apenas na norma urbana, atingindo também, em larga escala, o português afro-brasileiro como se pode ver na tabela 1:

TABELA 1 - Nós e a gente no português afro-brasileiro

Forma do pro da 1ª pessoa do pl Nº de Ocor./TOTAL Freqüência

A gente e correlatos 1.180/1.778 66%

Nós e correlatos 598/1.778 34%

Omena (1986 apud LUCCHESI, 2007), ao fazer um estudo da forma de primeira pessoa do plural no corpus do PEUL, que reúne entrevistas do tipo sociolingüístico com 48 falantes adultos do Rio de Janeiro com um a doze anos de escolaridade, encontrou predomínio de a gente na ordem de 65% do total de ocorrências. Semelhante ao resultado encontrado por Omena, o a gente obteve 66% de freqüência no português afro-brasileiro, revelando o amplo domínio da variante inovadora, que já alcança todas as normas do Português Brasileiro.

Dessa maneira, seguem abaixo os resultados das variáveis, lingüísticas e extralingüísticas, que estariam condicionando a implementação do a gente na gramática das comunidades aqui analisadas. 3.1. Variáveis Lingüísticas Explanatórias

Na análise do encaixamento lingüístico da variação da forma da primeira pessoa do plural sob o aspecto sintático no português afro-brasileiro, baseada na quantificação dos dados através do pacote de programas de regras variáveis, VARBRUL, as variáveis lingüísticas selecionadas foram as seguintes: 1) função sintática; 2) nível de referencialidade; 3) paralelismo discursivo; 4) tipo de texto; e 5) discurso. Os resultados das variáveis função sintática, paralelismo discursivo, e discurso serão comentados nas subseções a seguir.

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A variável função sintática é importante para o estudo da implementação da forma a gente na gramática do português afro-brasileiro, pois, ao analisar em que posições sintáticas o a gente mais ocorre, torna-se possível estudar também o grau de avanço desta forma nas variedades atuais do Português do interior do Estado. Dessa maneira, esta variável foi estruturada de acordo com as seguintes funções sintáticas:

(1) Sujeito

Ex.: Antes a gente tentô, pra tirá ele pra fora (INF01 HV) nós vamo em ano em ano (INF04 HV)

(2) Objeto direto

Ex.: Quand’os médico pega a gente que…que… bota em riba daquela cama alí, qualqué um se assusta. (INF04 HV)

Quando ele morreu, largô nós tudo pequeno...(INF07 HV) (3) Objeto indireto/ Oblíquo

Ex.: quando...quando o governo manda, manda pa nós tudo (INF08 CZ) nem meu pai também ligava pa contá essas estória pra gente. (INF12 SP) (4) Adjunto Adverbial

Ex.: ele ficava mei’ brabo com a gente (INF03 CZ)

ele é nascido e criado no...mais nós [aí] no Cinzento..(INF08 CZ) (5) Possessivo

Ex.: Nossa vida tem que sê perdida. (INF22 HV)

alguma pessoas de Planalto que num é conhecido da gente, né? (INF 01 CZ) (6) Tópico

Ex.: nós tudo pequeno, juntava aquelas coisinha... (INF12 CZ)

a gente tamém, quand'estudava tamém é... já começava... já tinha namorada, (INF05 RC)

(7) Constituinte solto

Ex.: Ah, tirando daquela saúva de... de córo que a gente... de formiga tainjura, né? Graças a Deus. Mas nós sempre... (INF12 HV)

Os resultados foram os seguintes:

TABELA 2 - Forma do pronome da primeira pessoa do plural segundo a função sintática (nível de significância: .022) a gente nós Pronome realização / posição Nº de oc. / Total Freq. P.R. Nº de oc. / Total Freq. P.R. OBJETO DIRETO 59/81 73% .56 22/81 27% .44 SUJEITO 970/1420 68% .53 450/1420 32% .47 OBJETO INDIRETO 26/40 65% .53 14/40 35% .47 CONSTITUINTE SOLTO 26/41 63% .46 15/41 37% .54 ADVERBIAL 19/39 49% .41 20/39 51% .59 TÓPICO 24/37 65% .36 13/37 35% .64 POSSESSIVO 56/120 47% .23 64/120 53% .77 TOTAL 1180/1778 66% --- 598/1778 34% ---

A partir da análise da tabela 2, pode-se depreender dos resultados obtidos um ligeiro favorecimento da forma a gente nas posições argumentais da oração. Pode-se perceber que a posição de objeto direto (doravante OD), com a freqüência de 73% e peso relativo .56, favorece um pouco mais o a gente do que o sujeito (doravante SU), com 68% e peso relativo .53, e o objeto indireto (doravante OI), com 65% e peso relativo .53. Tal fato pode ser explicado pela ausência do pronome oblíquo átono nos no português afro-brasileiro e também pela falta de prestígio fora da comunidade de

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estruturas como "ele viu nós", que ocorriam apenas no passado dentro da comunidade. Dessa maneira, os falantes dessas comunidades rurais afro-brasileiras isoladas, por não possuírem uma estrutura consolidada como o pronome oblíquo nos, utilizam mais a forma a gente na função de OD.

Ao fazer uma paralelo com a Norma Urbana, tem-se percebido uma presença maior da forma a gente na posição de SU, por essa não exigir uma flexão verbal própria, ao passo que o pronome canônico nós é mais oneroso nesse aspecto. Tal fator tem favorecido uma maior incidência do a gente, em detrimento do nós, na posição de sujeito nos centros urbanos. Essa situação não acontece nas comunidades isoladas. Lucchesi (2007) mostra que a concordância verbal não é muito freqüente no português afro-brasileiro, haja vista que os informantes utilizam pouco o morfema verbal de primeira pessoa do plural -mos (e alomorfes -mo e -emo), com uma freqüência de apenas 17,5%. Sendo assim, a vantagem da não-flexão verbal oferecida pela expressão a gente não tem a mesma influência nas comunidades aqui analisadas, por isso não há um grande favorecimento para o uso do a gente na posição de SU, pois o verbo permanece da mesma forma, tanto com o pronome canônico, quanto com a expressão inovadora.

Referente à posição de OI, a qual abrange também o complemento relativo, nota-se que a forma a gente teve uma presença significativa nessa função, entretanto, teve freqüência e peso relativo menores em relação ao OD, mesmo sendo também um complemento verbal. Este fato pode ser explicado em virtude de estruturas como "pensou em nós" não serem tão marcadas negativamente como "encontrou nós"; o que pode explicar essa maior vitalidade do nós na função de OI.

A respeito do constituinte solto, em princípio o resultado deveria ser indiferente pelo fato de não haver motivo de qualquer natureza para o informante usar o a gente ou o nós e, em seguida, construir outras frases sem qualquer ligação com o pronome dito anteriormente. Desse modo, tal posição contitui uma situação imprevisível por não ter encaixamento sintático.

No âmbito da Norma Urbana, com base no estudo feito por Omena (1986), foi constatado que a função sintática mais favorável à expressão a gente é a de adjunto adverbial (doravante ADV), pois os falantes cariocas majoritariamente pareciam rejeitar o pronome oblíquo tônico conosco. E mais uma vez, as comunidades isoladas demonstram, em dados, seguir uma linha diferente das áreas urbanas em geral. O ADV é mais receptivo ao pronome nós, ao invés do a gente com a freqüência de 51% e peso relativo .59 para a variante conservadora nesse contexto. No português afro-brasileiro, não há uma ocorrência sequer do pronome tônico conosco, o que nos leva até mesmo a colocar em questão a sua existência nessas comunidades. Pode-se observar que, para os informantes dessa região, usar construções como "ele saiu com nós" não apresenta problemas como no caso do OD, embora o número de ocorrências do ADV não seja sufuciente para se fazer afirmativas categóricas a respeito dessa posição sintática.

No caso do tópico, trata-se de um resultado inusitado, pois foi a única função que não obteve correspondência entre a freqüência e o peso relativo, necessitando assim de uma análise posterior.

Semelhante ao comportamento lingüístico das populações urbanas, o pronome nós é mais favorecido na função sintática de Adjunto Adnominal com uma freqüência de 53% e peso relativo de .77, o que revela a vitalidade dos pronomes possessivos no aspecto estrutural. No português afro-brasileiro, estruturas como "nosso pai pegava" ou até mesmo sem flexão como "verdadêra terra de nós é esse lá" são as preferências dessas comunidades rurais ao invés da expressão de posse da gente.

Como se pode perceber, a implementação do a gente na gramática das comunidades analisadas ainda não está muito bem definida, há posições sintáticas em que o a gente está em equilíbrio com o pronome nós, como na posição de sujeito e objeto indireto, na função de objeto direto, a forma inovadora já predomina, sendo, por sua vez, desfavorecida na função de possessivo. Por conseguinte, com relação ao pronome nós, o possessivo é a posição mais receptiva a sua realização e objeto direto a que menos favorece.

3.1.2 Paralelismo Discursivo

O paralelismo discursivo, conceito desenvolvido por Scherre e Naro (1993, p. 2), refere-se a "uma tendência de formas gramaticais semelhantes ocorrerem juntas". Assim, sob esta perspectiva, o falante tenderia a repetir sua escolha ao longo de sua fala. Dessa maneira, foi esperado que o nós fosse mais aplicado nas cirscunstâncias em que o mesmo pronome antecedesse esta aplicação na oração anterior, esperando-se a mesma lógica no que diz respeito à forma a gente. Essa variável é aqui

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constituída pelos seguintes fatores:

a) primeira referência: sem citação anterior ao referente do nós ou a gente; b) referência anterior feita por a gente na função de sujeito realizado ou não;

Ôtra hora, a gente vai na safra assim, quando inicia a safra, a gente vem embora. (INF26 RC)

a gente num precisa deslocá daqui que... na copa do mundo mesmo que teve que o Brasil foi... teta campeão, nós saiu daqui... foi assisti jogo no Inácio.. (INF03 CZ)

c) referência anterior feita por a gente nas demais funções;

Meu pai... pa criá a gente... foi um bando de filho que ele teve... deu um duro que num foi fácil... a gente passô muita necessidade... (INF12 SP)

num... dêxava a gente solto como... como é hoje as criança. Então, fala: ó, você num vai em tal lugá assim, aí nós obedecia (INF07 HV)

d) referência anterior feita por nós na função de sujeito realizado ou não;

assim que nem nós mora aqui, num lugazinho isolado... ninguém vê nada, a gente num [dê] um vortinha pel’aí... tamém (INF26 RC)

nós apanhava que num deveria fazê isso com o mais velho. A nossa criação foi essa. (INF07 HV)

e) referência anterior feita por nós nas demais funções.

Só que a nossa tá parada, porque nós não utilizô mais ela (INF06 CZ)

É... é [patriço] nosso mesmo, pruque a gente mora perto uns aos ôtro (INF26 RC) Assim constituída, a variável apresentou os seguintes resultados na análise quantitativa: TABELA 3 - Forma do pronome da primeira pessoa do plural segundo a variável paralelismo discursivo (nível de significância: .022)

a gente nós

Pronome

Antecedente Nº de oc. / Total Freq. P.R. Nº de oc. / Total

Freq. P.R.

A gente na função de sujeito realizado ou não

270/299 90% .79 29/299 10% .21

A gente nas demais funções 91/103 88% .72 12/103 12% .28

Primeira referência 780/1156 67% .47 376/1156 33% .53

Nós na função de sujeito realizado ou não

35/173 20% .21 138/173 80% .79

Nós nas demais funções 4/47 09% .08 43/47 91% .92

TOTAL 1.180/1.778 66% --- 598/1.778 34% ---

Através da tabela 3, pode-se notar que o a gente na função de sujeito da oração anterior fez com que o uso dessa forma aumentasse de 66% para 90% (peso relativo de .79). Nas demais funções, o a gente também exerce uma força condicionadora, pois sua freqüência se eleva de 66% para 88% (peso relativo .72). Comparado ao a gente, o condicionamento exercido pelo nós é maior: na função de sujeito da oração anterior, o uso passa de 34% para 80% (com peso relativo de .79); já na demais funções, o aumento é ainda maior, elevando-se de 34% para 91% (peso relativo de .92). Segundo Lucchesi (2007, p. 8), "essa correlação mais forte pode ser explicada pelo fato de o nós ser a forma mais marcada, atuando mais fortemente no plano do paralelismo discursivo."

3.1.3 Discurso

O tipo de discurso não foi considerado inicialmente como uma variável explanatória para a presente pesquisa, contudo, no período de levantamento das ocorrência, surgiu a hipótese de que, em contextos em que falante abordasse um tema religioso, ele tenderia a usar uma lingagem mais formal e

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conservadora, favorecendo o emprego do nós. Assim sendo, a variável foi constituída, pelos sequintes fatores:

1) laico:

Ex.: A gente não vai dizê que você, mais ou meno, mais ou meno deve entendê, que não todo lugar que a mulhé pode ir. (INF06 SP)

2) religioso:

Ex.: Mas de vez em quando e inda quando tá essa arage assim é perigoso... é. Mas que tem os bicho, tem. É, tem o bicho, é. Mas quem nos guarda é Deus.

Abaixo, os resultados obtidos:

TABELA 4: Forma do pronome da primeira pessoa do plural segundo a variável tipo de discurso (nível de significância: .022)

a gente nós Pronome Tipo de discurso Nº de oc. / Total Freq. P.R. Nº de oc. / Total Freq. P.R. Laico 1102/1613 68% .51 511/1613 32% .49 Religioso 78/164 48% .38 86/164 52% .62 TOTAL 1180/1778 66% --- 597/1778 34% ---

Como se pode ver na tabela 4, os resultados da análise quantitativa confirmam a hipótese inicial. No discurso laico, houve um certo equilíbrio entre a forma inovadora, com freqüência de 68% e peso relativo .51, e o nós, com freqüência de 32% e peso relativo de .49, demonstrando que, no contexto leigo, não há uma preferência substancial por uma variante em detrimento da outra. Diferentemente do discurso laico, o discurso religioso favorece o uso do nós, com uma freqüência de 52% e peso relativo .62. Tal resultado pode ser explicado devido ao próprio perfil das Instituições que fazem uso desse discurso, pois essas têm como instrumento de doutrina a Bíblia, constituída de textos mais formais e conservadores, o que se reflete, por sua vez, no maior uso do pronome canônico pelos falantes que tiveram ou têm algum contato com a esfera religiosa.

3.2. Variáveis Sociais

Para análise variacionista, mais especificamente, no âmbito do encaixamento social, foram propostas as seguintes variáveis: (i) sexo; (ii) escolaridade; (iii) faixa etária; (iv) estada fora da comunidade; e (v) comunidade. Deste conjunto, foram consideradas estatisticamente relevantes pelo VARBRUL as variáveis faixa etária, escolaridade e comunidade. Os resultados e análise serão apresentados a seguir.

3.2.1. Faixa Etária

A variável social faixa etária é importante para o estudo sociolingüístico no que diz respeito à variação e mudança sob a perspectiva do tempo aparente. Essa perspectiva se baseia no pressuposto de que as diferenças no comportamento lingüístico de gerações diferentes de falantes num determinado momento refletiriam diferentes estágios do desenvolvimento da língua (LUCCHESI, 2001). Dessa maneira, segundo Chambers e Trudgill (1980 apud LUCCHESI, 2001), haveria a hipótese, por exemplo, de que a fala das pessoas de 40 anos refletiria diretamente a fala das pessoas de 20 anos há 20 anos atrás, podendo, assim, ser comparada com a fala das pessoas de 20 anos de hoje a fim de analisar a difusão da mudança lingüística. Assim, os informantes das comunidades analisadas foram distribuidos em quatro faixas etárias e os resultados foram os seguintes:

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segundo a faixa etária do falante (nível de significância: .022)

a gente nós

Pronome

Faixa etária

Nº de oc. / Total Freq. P.R. Nº de oc. / Total Freq. P.R. Faixa I: 20 a 40 608/731 83% .70 123/731 17% .30 Faixa II:40 a 60 324/524 62% .39 200/524 38% .61 Faixa III: 60 a 80 201/346 58% .37 145/346 42% .63 Faixa IV: + de 80 47/176 27% .26 129/176 73% .74 TOTAL 1.180/1.778 66% --- 597/1.778 34% ---

Nesta análise quantitativa, pode-se perceber que o a gente é mais utilizado pela faixa I, ou seja, pelos mais jovens. Este uso é reduzido progressivamente a medida em que se vai para as faixas de falantes mais velhos. Através da projeção do tempo aparente, acredita-se que o a gente começou a ser implantado na década de 30 nas comunidades afro, este uso se manteve crescente até 1950, quando estagnou, ficando estável até o final da década de 60. A partir de 1970, o uso do a gente volta a crescer, sendo mais perceptível a partir da década de 90.

Dessa maneira, este resultado nos leva a supor que, no português afro-brasileiro, está ocorrendo um processo de mudança em curso, em que o nós, o pronome canônico, logo conservador, estaria sendo substituido pela forma inovadora, a gente.

3.2.2. Escolaridade

A variável escolaridade foi constituída, nesta pesquisa, por dois perfis de falantes: analfabeto e semi-analfabeto. Importante dizer que foram considerados semi-analfabetos, não só os que, efetivamente, sabem ler e escrever, situação não muito comum nas comunidade afro-brasileiras, como também aqueles que apenas assinam o nome.

Os resultados foram os seguintes:

TABELA 6 - Forma do pronome da primeira pessoa do plural segundo a variável escolaridade (nível de significância: .022) a gente nós Pronome Nível de escolaridade Nº de oc. / Total Freq. P.R. Nº de oc. / Total Freq. P.R. Semi-analfabeto 638/842 76% .59 204/842 24% .41 Analfabeto 542/935 58% .42 393/935 42% .58 TOTAL 1.180/1.778 66% --- 597/1.778 34% ---

Através da tabela 6, pode-se perceber o papel significativo do mínimo contato com o letramento nestas comunidades para o uso da forma inovadora ou do pronome canônico. Assim, nota-se que os nota-semi-analfabetos utilizam mais o a gente, com freqüência de 76% e peso relativo .59. O maior uso da variante inovadora pode ser explicado pelo fato de os semi-analfabetos sairem mais da sua comunidade em direção aos centros para trabalhar, assim, eles não só se integram ao processo produtivo, como também à vida social do lugar, implicando uma situação de exposição aos padrões lingüísticos adventícios, favorecendo também sua assimilação (LUCCHESI, 2007).

Em posição complementar, por sairem menos da comunidade ou, até mesmo, nunca terem saído dela, os analfabetos fazem maior uso da forma conservadora, com freqüência de 42% e peso relativo .58.

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Tal resultado nos leva a identificar a influência para o uso da forma inovadora exercida de fora para dentro da comunidade de fala, por meio da difusão dos padões lingüísticos das grandes cidades para o interior.

3.2.3. Comunidade

A variável comunidade é de fundamental importância para o estudo da forma da primeira pessoa do plural, pois através dela, pode-se ter uma idéia de como está acontecendo a implementantação da forma inovadora sob a perspectiva regional, por se tratar de comunidades localizadas em diferentes pontos da Bahia. Os resultados foram os seguintes:

TABELA 7: Forma do pronome da primeira pessoa do plural segundo a comunidade (nível de significância: .022) a gente nós Pronome COMUNIDADE Nº de oc. / Total Freq. P.R. Nº de oc. / Total Freq. P.R. Sapé (Valença -Recôncavo) 310/313 99% .97 03/313 01% .03 Helvécia

(Nova Viçosa - Extremo Sul)

341/528 65% .48 187/528 35% .52

Barra e Bananal

(Rio de contas - Chapada)

216/299 72% .37 83/299 28% .63

Cinzento

(Planalto - Semi-Árido)

313/637 49% .21 324/637 51% .79

TOTAL 1180/1778 66% --- 597/1778 34% -

Ao analisar a tabela 7, nota-se que, em Sapé, o processo de implementação do a gente está quase finalizado, com freqüência de 99% e peso relativo .97. Já em Helvécia, a entrada do a gente se encontra em um plano intermediário, com frequência de 65% e peso relativo .48. Barra e Bananal e Cinzento estão mais atrás na penetração da forma inovadora, com freqüências de 72% , 49% e peso relativo .37, .21 respectivamente.

Através desse resultado, tem-se a hipótese de que o Reconcâvo seria o centro irradiador de inovações lingüísticas para o interior da Bahia. Assim, a comunidade Sapé estaria mais avançada na implementação do a gente, por estar próxima a Santo Antônio de Jesus, o principal município do Reconcâvo, localizado a 187 km de Salvador.

Segundo Lucchesi (2007), o processo de substituição do nós pela forma inovadora parece ter se iniciado no Reconcâvo Baiano, sendo difundido paralelamente pelo litoral, e pela rota pecuária e da mineração para o interior do estado.

Conclusão

O resultado da pesquisa demonstra que a forma a gente, com 66%, já atingiu mais da metade da freqüência nas comunidades afro-brasileiras, em prejuízo do pronome nós. O predomínio da variante inovadora é bastante similar ao que ocorre na norma urbana, contudo, devido à análise das funções sintáticas, percebe-se que a implementação do a gente tem acontecido de maneira diferente nas comunidades afro-brasileiras comparado às demais normas, reforçando a influência do contato entre línguas nessas variedades do português brasileiro.

Quanto à posicão sintática, o objeto direto é o mais receptivo ao a gente, diferentemente do que ocorre na norma urbana, na qual a posição mais favorecedora dessa variante é a de sujeito. Ao contrário do que acontece no vernáculo urbano, o adjunto adverbial não favorece o a gente no

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português afro-brasileiro, permanecendo construções como ele saiu com nós. O possessivo é a função mais favorecedora do pronome canônico, tanto na norma urbana, quanto no português afro, revelando a vitalidade do nós nessa posição.

O paralelismo formal revelou ser um grande fator condicionante para a realização de uma forma em detrimento da outra. A variável tipo de discurso também demonstrou influenciar a escolha do falante principalmente quando se tratou do dicurso religioso em que o pronome canônico foi o mais utilizado.

A respeito das variáveis sociais, quanto à escolaridade, os semi-analfabetos utilizam mais o a gente. Na comunidade de Sapé, o processo de implementação da forma inovadora está quase completo, com 99% de freqüência. Devido ao maior uso do a gente feito pelos mais jovens, caindo à medida em que se vai para as faixas etárias com mais idade, pode-se considerar a variação das formas aqui analisadas como uma mudança em curso.

Está prevista a continuidade desta pesquisa, utilizando o corpus do português popular de um município do interior da Bahia. O cotejo dos padrões lingüísticos das comunidades afro-brasileiras com comunidades populares não marcadas etnicamente trará novas luzes sobre o efeito do contato com as línguas africanas na formação das variedades populares do português. Por outro lado, será ampliado o panorama sociolingüístico da forma do pronome de 1ª pessoa do plural no interior do Estado da Bahia.

Referências

ALI, M. Said. Gramática histórica. 6. ed. São Paulo, Edições Melhoramentos, 1966.

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