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ORGANIZAÇÕES NÃO-GOVERNAMENTAIS FEMINISTAS E A LUTA PELA LEGALIZAÇÃO DO ABORTO NO BRASIL

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ORGANIZAÇÕES NÃO-GOVERNAMENTAIS FEMINISTAS E A LUTA PELA LEGALIZAÇÃO DO ABORTO NO BRASIL

Ivan Augusto Baraldi1

Resumo: Este trabalho é parte de uma pesquisa doutoral em andamento, e se preocupa em estudar as estratégias feministas de mobilização frente à criminalização do aborto no Brasil. Foram identificados três tipos de estratégias de enfrentamento ao tema, utilizadas por diferentes Organizações não-governamentais feministas, e que seguem as seguintes orientações: i) orientação feminista jurídico-legal; ii) orientação feminista sob o enfoque médico e da saúde; iii) orientação feminista pedagógico-popular. Este artigo se concentrará na análise do primeiro item: estratégia utilizada por ONGs de orientação feminista jurídico-legal, sediadas em Brasília, com o intuito de afetar a legislação nacional que pune o aborto. O presente texto tem por objetivo discutir o trabalho de mobilização política feito por duas ONGs: Anis – Instituto de Bioética, Direitos Humanos e Gênero e CFEMEA, na articulação da estratégia de advocacy para legalização do aborto no Brasil. Palavras-chave: Aborto; Organizações Não-Governamentais Feministas; Legalização

Brasília: lutas e mobilizações políticas em meio a fundamentalismos religiosos

Brasília é a capital federal do Brasil e concentra as sedes dos Poderes Executivo, Legislativo e Judiciário. Visto que Brasília condensa os espaços institucionais de decisão política nacional, é comum que a cidade seja palco de mobilizações reivindicatórias dirigidas ao Estado, seja de movimentos sociais, de organizações não-governamentais ou do terceiro setor.

No campo dos direitos sexuais e reprodutivos, as mobilizações a que estão sujeitos os três poderes estatais podem ter por objetivo tanto a expansão e o fortalecimento destes direitos (reivindicando-se a revisão de legislações punitivas e a implementação de políticas públicas), quanto podem almejar o retrocesso do quadro de garantias já conquistadas.

O atual contexto político mundial tem mostrado o crescimento de uma mobilização

fundamentalista religiosa2, baseada numa visão restritiva da sexualidade e com foco num modelo de

1 Bacharel em Direito pela Universidade Estadual de Londrina (UEL), Mestre em Filosofia e Teoria do Direito pela

Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), e doutorando no Programa “Direito, Justiça e Cidadania no Séc. XXI” do Centro de Estudos Sociais (CES) – Universidade de Coimbra.

2 De acordo com uma pesquisa realizada pela Association for Women´s Rights in Development (AWID) com ativistas

pelos direitos das mulheres em âmbito global, divulgada em 2009, 76% das/dos entrevistadas/dos consideram que a força dos fundamentalismos religiosos cresceu em todo o mundo durante a primeira década do século XXI. “Fundamentalist movements are gaining the power to shape social norms, influence international institutions and national decision makers, and define laws and policies, especially in the areas of ‘morality’ and bodily autonomy” (AWID, 2009, p. 2).

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família natural3 (também chamada de família tradicional), que faz oposição às reivindicações feministas e do movimento LGBT (Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis, Transexuais e Transgêneros). Religiosos/as fundamentalistas têm como características comuns: seguem literalmente o texto sagrado de sua religião, sem permitirem o dissenso e a pluralidade de interpretações; fazem oposição a qualquer expressão da sexualidade que não seja heterossexual, monogâmica e dentro do casamento, e também se contrapõem ao avanço da autonomia feminina no âmbito da sexualidade (AWID, 2013, p. 12).

Este fenômeno, que se manifesta pelo crescimento do conservadorismo religioso, fazendo uso de ferramentas pertencentes a um secularismo estratégico, com o objetivo de defender os valores que seriam pertencentes à família natural, foi chamado por Juan Marco Vaggione de “politização reativa” (Vaggione, 2005a, 2005b):

La noción de politización reactiva se propone como una manera de entender el accionar de instituciones y grupos religiosos conservadores como parte de la sociedad civil movilizándo-se para impedir o revertir la liberalización de género y sexualidad. Son ‘reactivas’ en el sentido que su emergencia y funcionamento esta justificado como defensa de un orden tradicional amenazado por el feminismo y el movimiento de mínorias sexuales (VAGGIONE, 2005a, p. 61).

De acordo com Vaggione, tais grupos religiosos fundamentalistas agem como atores legítimos do jogo democrático, dentro das balizas do Estado laico, adaptando suas estratégias para a defesa da família natural através de argumentos embasados no discurso científico e também legal (Vaggione, 2005b, p. 243). Na esteira desta politização reativa com base numa argumentação legal, há inclusive um ativismo religioso que se apropria de mecanismos judiciais para conseguir travar batalhas no âmbito dos tribunais, na tentativa de resguardar os valores morais cristãos, como por exemplo a utilização do instituto jurídico habeas corpus com o objetivo de impedir que gestantes de fetos com anomalias gravíssimas consigam autorização legal para interromper a gravidez.

No âmbito de suas investigações no contexto latino-americano, Alba Ruibal utiliza o termo “contramobilização” para referir-se à mobilização conservadora e fundamentalista em torno dos direitos sexuais e reprodutivos existente na região:

A mobilização conservadora na América Latina é liderada principalmente pela Igreja Católica, assim como por organizações que, na sociedade civil, procuram implementar a agenda do Vaticano sobre temas de sexualidade e reprodução. Por outro lado, de maneira proeminente no Brasil, porém também crescentemente em outros casos, os processos de

3 World Congress of Families é uma ONG com sede nos Estados Unidos, formada por grupos religiosos conservadores

de diversos países, que apresenta o conceito de família natural nos seguintes termos: “The natural family is the fundamental social unit, inscribed in human nature, and centered on the voluntary union of a man and a woman in the lifelong covenant of marriage. The natural family is defined by marriage, procreation and, in some cultures, adoption”. Disponível em: «http://worldcongress.ge/content/11-world-congress-of-families». Acesso em: 02 de Julho de 2017.

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contramobilização são também liderados ou apoiados por igrejas evangélicas, principalmente neopentecostais (RUIBAL, 2014, pp. 116-117)

Verifica-se então que, além da atuação conservadora de católicos/as fundamentalistas na

sociedade brasileira4, a cruzada religiosa em nome do que se acredita serem os valores da família

cristã também encontra grande expressão e representatividade na chamada bancada evangélica ou Frente Parlamentar Evangélica, que articula processos de contramobilização em Brasília. Esta bancada é suprapartidária, promovendo a defesa de causas e interesses do grupo evangélico no Congresso Nacional. De acordo com o Departamento Intersindical de Assessoria Parlamentar (DIAP), durante a legislatura 2015-2019, a frente evangélica conta com 75 deputados/as (65 homens e 10 mulheres) e 03 senadores (DIAP, 2014, p. 106).

As igrejas evangélicas, principalmente as pentecostais e neopentecostais, têm apresentado

um crescimento no número de fiéis, totalizando 22,2% da população brasileira5. Este fato colabora

para que sejam eleitos seus representantes em posições legislativas e executivas. Já a igreja católica, apesar de ter sofrido uma diminuição no número de devotos, continua a ser a religião da maior parte da população, demarcando presença na política nacional, sobretudo através do escritório da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), com sede em Brasília (Ruibal, 2014, pp. 120-121).

A organização e articulação desta bancada religiosa no Parlamento brasileiro tem como consequência a proposição de Projetos de Lei (PL) e de Propostas de Emenda Constitucional (PEC) conservadores quanto ao tema dos direitos sexuais e reprodutivos. No que se refere especificamente ao aborto, buscam desde impedir a expansão dos permissivos legais, até tornar toda e qualquer

prática de aborto ilegal. Citam-se como exemplos de propostas em tramitação6: PL 4.703/1998 - que

4 Além da utilização de habeas corpus, cita-se também um caso envolvendo a igreja católica que repercutiu nacional e

internacionalmente, ocorrido na cidade de Alagoinha, estado de Pernambuco, em 2009. Uma criança de 09 anos de idade, após sofrer abusos sexuais pelo seu padrasto durante um longo período de tempo, encontrava-se grávida de gêmeos. O aborto legal era possível tanto pelo contexto da violência sexual, quanto pela gestação colocar em risco a vida da menina, que foi encaminhada para um centro médico de referência onde a gravidez seria interrompida. Devido à pressão feita pela Igreja Católica o aborto não pôde ser realizado neste centro de saúde. Foi preciso a mobilização de duas ONGs de Recife (Grupo Curumim e SOS Corpo) e do movimento de mulheres local, para que o direito ao aborto legal fosse garantido em outro hospital público. O arcebispo de Olinda e Recife excomungou os médicos responsáveis pelo aborto e também a mãe da menina grávida (Batista e Sardenberg, 2011, pp. 253-254).

5 “Os evangélicos foram o segmento religioso que mais cresceu no Brasil no período intercensitário. Em 2000, eles

representavam 15,4% da população. Em 2010, chegaram a 22,2%, um aumento de cerca de 16 milhões de pessoas (de 26,2 milhões para 42,3 milhões). Em 1991, este percentual era de 9,0% e em 1980, 6,6%. Já os católicos passaram de 73,6% em 2000 para 64,6% em 2010”. Vide: “Censo 2010: número de católicos cai e aumenta o de evangélicos, espíritas e sem religião”. Disponível em: http://censo2010.ibge.gov.br/noticias-censo.html. Informações mais detalhadas no Atlas do censo demográfico 2010, na tabela: “Distribuição percentual da população, por grupos de religião – Brasil – 2000/2010” (IBGE, 2013, p. 143).

6 É possível consultar o inteiro teor de Projetos de leis e de outras proposições legislativas na página da Câmara dos

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pretende transformar em crime hediondo o aborto provocado pela gestante, ou por terceiros, com seu consentimento (a este projeto foram apensos outros três de mesmo teor); PL 478/2007 – que propõe a criação de um Estatuto de proteção integral ao nascituro; PEC 164/2012 e PEC 29/2015 – que estabelecem a inviolabilidade do direito à vida desde a concepção, alterando a Constituição Federal brasileira; PL 5.069/2013 – que torna crime contra a vida o anúncio de meio abortivo e prevê penas específicas a quem induz gestante a praticar aborto.

Este contexto, em que há considerável influência de valores religiosos nas políticas públicas do Estado e na atuação dos/as legisladores/as, não representa um fenômeno isolado no Brasil, sendo comum na maioria dos países latino-americanos. Bonnie Shepard (2000), em estudo sobre o tema, analisa a existência de um “duplo discurso” que ocorre na região referente a questões na área da sexualidade e reprodução. A expressão “duplo discurso”, de acordo com a autora, “usually applied to individuals, is widely understood to signify the art of spousing traditional and repressive sociocultural norms publicly, while ignoring – or even participating in – the widespread flouting of these norms in private” (Shepard, 2000, p. 114).

O sistema cultural e político do duplo discurso é estruturado com base nas seguintes características: legislação influenciada por princípios religiosos; existência de mecanismos informais e/ou ilegais que alargam as escolhas privadas; as piores consequências de políticas restritivas recaem sobre grupos socialmente mais vulneráveis (como pessoas de baixa renda e minorias étnicas); falta de vontade política para modificação do sistema, causada pelos riscos que políticos correm ao associar sua imagem à mudança de uma norma quase sagrada (Shepard, 2000, p. 115).

O fato de o aborto ser criminalizado na grande maioria dos países da América Latina é um típico exemplo do sistema do duplo discurso: uma sociedade influenciada por valores religiosos em que a classe social mais abastada, formada por mulheres brancas, consegue ter acesso ao aborto através de mecanismos informais relativamente seguros, como clínicas clandestinas que cobram

altos valores pela interrupção da gravidez7. As mulheres mais prejudicadas pela criminalização do

aborto são, majoritariamente, as pobres e negras8, que se submetem a condições precárias de

7 Em seu estudo acerca do sistema do duplo discurso na Colômbia e Chile, no que tange ao aborto, Shepard afirma:

“Middle and upper-income women generally can pay for access to relatively safe clandestine abortion services, so that the clandestine mechanisms to expand reproductive choice discriminate against the poor. In UN forums and in Catholic countries, public health and equity arguments are gaining ground, but the double discourse system mandates that abortion cannot be officially made legal, even if it is widespread” (Shepard, 2000, pp. 121-122).

8 “No Brasil, quando se considera a taxa de mortalidade materna por gravidez que termina em aborto (por 100 mil

nascidos vivos), as mulheres negras estão expostas a um risco três vezes maior do que as brancas” (Freitas et al., 2011, p. 29).

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interrupção gestacional. Como os interesses das classes média e alta não aparentam estar em risco, partidos políticos não consideram vantajoso se envolver e tentar mudar o quadro. De acordo com Mala Htun:

Moreover, since the illegality of abortion poses little health risk to middle-class women, and abortion-related punishments are rarely enforced, most politicians see little to be gained by jumping onto an abortion rights bandwagon. And there are many costs involved in advocating abortion rights in light of opposition from the Vatican, antiabortion movements, and national bishops’ councils. In spite of the efforts of feminist reproductive rights movements and a growing international consensus that punitive abortion laws should be reconsidered, few parties or politicians in Latin America are willing to engage the issue (HTUN, 2003, p. 156).

Frente a este cenário de contramobilização conservadora e fundamentalista em Brasília, somado à falta de vontade política para o envolvimento com o tema da legalização do aborto, há uma mobilização em prol dos direitos sexuais e reprodutivos das mulheres, por parte de ONGs feministas, que têm utilizado a advocacy como estratégia de mobilização do direito, de modo a incidir sobre os poderes do Estado. Esta estratégia será analisada nos próximos tópicos e busca, resumidamente, no tocante ao tema do acesso ao aborto no Brasil, manter os direitos já conquistados, de modo a se evitar retrocessos, e também tentar fazer avanços na legislação.

Advocacy como estratégia feminista de mobilização

Dentre as estratégias feministas de mobilização do direito utilizadas para se confrontar o cenário brasileiro de criminalização do aborto, identificou-se em Brasília o recorrente uso da ação de advocacy. Ao se mobilizarem em prol dos direitos sexuais e reprodutivos das mulheres, dentro de uma geopolítica que concentra os espaços nacionais de poder e de decisão, as ONGs feministas têm lançado mão da advocacy, seja para defender direitos que correm risco de violação, seja buscando promover e ampliar o quadro de direitos ainda não conquistados.

A origem do termo advocacy, segundo Marlene Libardoni (2000) e Ana Cristina González Vélez (2000), remonta ao latim “advocare” e ao inglês “to advocate”. No primeiro caso tem o significado de ajudar uma pessoa que está em necessidade, e no segundo caso guarda ligação com defender, advogar. A apropriação e o uso feito da ação de advocacy no contexto latino-americano não restringe a sua operacionalização a aspectos legais e jurídicos, alargando-se a sua definição para a defesa e argumentação em favor de uma causa.

Mais importante que a tradução literal é o processo de tradução política da advocacy na América Latina, que não é uma questão simplesmente técnica ou jurídica, como seria nos países do

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Norte global, mas sim um fazer nitidamente político, que demanda conhecimento acerca das realidades sociais, econômicas, culturais e políticas da região. Nesse sentido, Marlene Libardoni esclarece:

[…] preferimos traduzir advocacy como defender e argumentar em favor de uma causa, uma demanda ou uma posição. Isso porque advocacy tem um significado mais amplo, denotando iniciativas de incidência ou pressão política, de promoção e defesa de uma causa e/ou interesse, e de articulações mobilizadas por organizações da sociedade civil com o objetivo de dar maior visibilidade a determinadas temáticas ou questões no debate público e influenciar políticas visando à transformação da sociedade (LIBARDONI, 2000, p. 208).

A ação de advocacy, em regra, é pensada e organizada como um processo estratégico, que geralmente conta com um prazo de duração longo, necessitando do estabelecimento e delimitação de objetivos (Kyte, 1999, p. 44). De acordo com Toni Reis e David Harrad (2007), uma etapa importante na estruturação de um processo de advocacy é a identificação do problema que afeta o grupo ou comunidade, a definição do tema e a produção de dados e informações. Acerca dos dados, eles podem ser obtidos através de pesquisa primária, realizada pela própria ONG, ou através de pesquisa secundária, sendo coletados por outros institutos ou outras ONGs (Reis e Harrad, 2007, p. 22).

O levantamento e sistematização de informações por meio do trabalho de investigação e pesquisa é de fundamental importância para embasar ações de advocacy. Na sequência, abordar-se-á o trabalho de pesquisa e investigação desenvolvido pela ONG Anis.

Anis: atividades de pesquisa e mobilização junto ao Supremo Tribunal Federal

A organização não-governamental feminista Anis – Instituto de Bioética, Gênero e Direitos Humanos é uma instituição de Brasília que trabalha com o tema da defesa dos direitos das mulheres e minorias. Tendo sido fundada em 1999, trata-se de uma ONG voltada para a pesquisa, assessoramento e capacitação em Bioética na América Latina, que tem como propósito promover direitos humanos desde uma perspectiva feminista, por meio de investigação, advocacy e monitoramento de políticas públicas.

A Anis foi criada com a motivação de realizar pesquisa acadêmica tendo por base os direitos humanos e as discussões de gênero com o intuito de disponibilizar informações e dados confiáveis para a intervenção social. O trabalho de pesquisa desenvolvido pela ONG é responsável pela produção de dados e informações relevantes no bom desenvolvimento de ações de advocacy, sobretudo na área da saúde sexual e reprodutiva.

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A ilegalidade do aborto no Brasil dificulta a verificação de números confiáveis que deem embasamento e subsídio para o trabalho de incidência política. Dessa forma, a falta de informação e dados sobre saúde da mulher, mortalidade materna e aborto pode-se mostrar um obstáculo ao desenvolvimento das ações em favor dos direitos das mulheres:

Outro campo onde ocorreram avanços significativos necessários inclusive para apoiar ações de advocacy, diz respeito à produção e sistematização de dados que permitam traçar um retrato e analisar tendências a partir de séries históricas. A insuficiência destas informações, fundamentais para responder a demandas e traçar políticas públicas, afeta historicamente a área de saúde reprodutiva, na qual a precariedade de dados sobre mortalidade materna vem sendo denunciada pelos movimentos de mulheres (PITANGUY, 2011a, p. 53).

No que se refere ao tema do aborto, o trabalho de pesquisa da Anis tem resultado na produção de livros, relatórios, artigos científicos e documentários que fornecem dados para poder embasar ações político-jurídicas e a discussão acerca da matéria no Brasil. Nesta área, a principal pesquisadora da Anis é a antropóloga Debora Diniz. Dentre o referido material, encontram-se a pesquisa “Aborto e Saúde Pública no Brasil: 20 anos” (2007), a Pesquisa Nacional de Aborto (PNA) realizada em dois anos – PNA 2010 e PNA 2016, e a pesquisa “Serviços de aborto legal no Brasil – um estudo nacional” (2015).

Outro tópico de intensa pesquisa e mobilização por parte da Anis refere-se ao direito à interrupção da gravidez em caso de anencefalia, uma anomalia fetal incompatível com a vida. O trabalho da ONG nesta área construiu-se entre 2004 e 2012, articulando e dando suporte à mobilização jurídica junto ao Supremo Tribunal Federal (STF) pela autorização do aborto de fetos anencéfalos (através da interposição da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental – ADPF 54), e também divulgando suas publicações e documentários sobre a questão.

A luta travada durante os oitos anos de tramitação9 da ADPF 54 indica que o trabalho de

mobilização construído pela ONG, no caso da anencefalia, foi feito dentro e fora do tribunal: ao mesmo tempo que prestou assessoria para que a questão fosse levada ao Supremo Tribunal Federal, a Anis também investiu em pesquisa sobre anencefalia, publicando livros/artigos e produzindo documentários. O trabalho realizado pela Anis, ao reivindicar o direito da gestante de feto anencéfalo poder decidir se interrompe ou não a gestação, mostra-se como uma forma de mobilização do direito, também denominada mobilização jurídica:

Para além do “uso” do direito, a mobilização jurídica pode referir-se, ainda, aos processos sociais e jurídicos de significação e conscientização dos direitos individuais e coletivos. [...] Os mobilizadores do direito, dentro ou fora dos tribunais, podem ter como objetivo a ressignificação dos direitos humanos, a

9 No dia 12 de abril de 2012 o STF declarou a não incidência do tipo penal aborto no caso da interrupção gestacional de

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constituição de “novos” sujeitos de direitos humanos e/ou a promoção mais ampla de transformações sociais, culturais, políticas, jurídicas e/ou económicas (SANTOS, 2012, p. 14)

Os trabalhos de investigação e mobilização jurídica feitos pela Anis refletiram na ampliação das hipóteses de abortos não criminalizados no país. Aos dois permissivos legais existentes no Código Penal Brasileiro (para salvar a vida gestante e se a gravidez resulta de estupro) soma-se a possibilidade de aborto em caso de anencefalia, sem a exigência de alvará judicial para a realização do procedimento. Pensando-se no conservadorismo do contexto político nacional para a discussão dos direitos sexuais e reprodutivos, este fato representa um avanço - mesmo que limitado - na construção de um processo amplo de enfrentamento à criminalização do aborto no Brasil.

CFEMEA: incidência política e advocacy junto ao Congresso Nacional

A outra ONG feminista de Brasília é o CFEMEA (Centro Feminista de Estudos e Assessoria), fundado em 1989, logo após o período da Assembleia Nacional Constituinte que elaborou a Constituição Federal Brasileira de 1988. Este período foi de muita efervescência e participação de mulheres militantes preocupadas com que os direitos das mulheres fossem

expressamente protegidos na nova Constituição que estava a ser escrita. Jacqueline Pitanguy10

participou neste processo reivindicatório e faz menção às conquistas alcançadas durante a Constituinte:

Visitávamos diariamente o Congresso, conversávamos com os líderes dos partidos, com deputados e senadores e com seus assessores. Organizações de mulheres as mais diversas nos acompanhavam nestas peregrinações ao Congresso. A maior parte das nossas reivindicações foi incluída na nova Constituição. Esta é uma vitória das mulheres brasileiras (PITANGUY, 2011b, p. 24).

Seguindo esta tônica de engajamento para com os direitos das mulheres no período da Assembleia Constituinte, a fundação do CFEMEA é feita por ativistas do “Lobby do batom” com o intuito de acompanhar a elaboração de leis que viessem regulamentar as conquistas constitucionais de 1988. O objetivo primeiro da criação desta ONG feminista é dar seguimento ao processo de luta e reivindicação pelos direitos das mulheres iniciado neste período, atuando frente ao Congresso Nacional para monitorar a efetivação destes direitos.

De modo a consolidar o seu compromisso em conquistar e garantir direitos como parte de um processo de luta, o CFEMEA desenvolve seus principais eixos metodológicos de atuação através de: ações de advocacy junto aos Poderes Legislativo e Executivo, articulação e comunicação

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política, produção de conhecimento, educação e formação política. O CFEMEA tem grande experiência no trabalho com ações de advocacy, que são dirigidas “essencialmente ao Estado, enquanto instância privilegiada na implementação da justiça e do bem estar social e na garantia da integridade física, psíquica e moral dos indivíduos” (Rodrigues, 2010, p. 4).

As ações de advocacy no Legislativo envolvem basicamente as seguintes atividades: identificar os/as parlamentares (deputados/as e senadores/as) não mobilizados/as, adversários/as e aliados/as às causas das mulheres, de modo a pautar os assuntos a elas sensíveis e monitorar as matérias legislativas em andamento no Congresso Nacional que afetam seus direitos e suas vidas. O trabalho de advocacy é resultado de uma sinergia com outros dois eixos metodológicos do CFEMEA: a articulação e a comunicação política. A partir das atividades de comunicação e articulação política é construído o posicionamento coletivo acerca dos diversos assuntos e temas de interesse dos movimentos feministas e de mulheres.

O advocacy nada mais é que a promoção ou defesa de uma causa. As ações de advocacy no Congresso Nacional buscam, contudo, não apenas incidir no processo decisório dos/das parlamentares, mas também usar essa arena como plataforma para se buscar introduzir (ou manter) temas na agenda política e lançar novos debates.

Estas ações podem ser de cunho propositivo ou reativo. Quando a ONG procura, através da campanha de advocacy, ampliar ou criar novos direitos para as mulheres, a sua ação é propositiva. Um bom exemplo de ação propositiva é o trabalho de advocacy feito pelo CFEMEA, juntamente com as ONGs feministas CEPIA e AGENDE, no engajamento por uma legislação específica de proteção à mulher vítima de violência doméstica e de punição ao agressor. Este trabalho conjunto teve como resultado a criação da Lei nº 11.340/06, conhecida como Lei “Maria da Penha”, decretada e sancionada em 2006:

A campanha da Lei Maria da Penha desenvolveu-se em dois ciclos de mobilização. O primeiro ciclo de mobilização, entre 2003 e 2006, teve como alvo a formulação da lei. O Executivo nacional, sob o governo Lula, tornou-se a via para o encaminhamento da proposta de lei ao Legislativo. O anteprojeto, elaborado pelo consórcio sob a coordenação do CFEMEA, foi entregue, no início de 2004, à Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres (SPM) que o apresentou como projeto de lei ao Legislativo [...] (MACIEL, 2011, p. 103).

Quando a instituição busca evitar retrocessos nas garantias e direitos já conquistados, o

advocacy é de cunho reativo. O contexto político conservador e fundamentalista do Congresso

Nacional tem impedido medidas propositivas no que se refere ao tema do aborto e dos direitos sexuais e reprodutivos. O trabalho de advocacy, neste caso, tem sido essencialmente reativo, para se conseguir a manutenção e consolidação das hipóteses de aborto legalmente existentes.

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Nesta arena de constante embate entre grupos conservadores e ativistas pelos direitos das mulheres, a politização reativa na Câmara dos Deputados e Senado Federal tem ganhado proeminência. O trabalho de advocacy do CFEMEA tem-se restringido cada vez mais a ações reativas, com o objetivo de “segurar” ou impedir que propostas retrógradas e de ameaça a direitos conquistados ganhem espaço. Todos os esforços e ações têm sido realizados, basicamente, com o intuito de se conseguir manter a legitimidade do aborto nos casos legalmente permitidos, a saber: risco de morte para a gestante, gravidez resultante de estupro e feto anencéfalo. Além disso, luta-se também contra iniciativas que buscam incluir na Constituição Federal Brasileira a inviolabilidade do direito à vida “desde a concepção”.

Considerações Finais

O artigo apresentado buscou mostrar o contexto local (e nacional) de conservadorismo político e fundamentalismo religioso em que a estratégia de advocacy para a legalização do aborto é construída. Analisou-se a atuação e o trabalho desenvolvido pelas ONGs Anis e CFEMEA, seja em atividades de pesquisa e investigação, ou de mobilização política junto ao Congresso Nacional e Supremo Tribunal Federal.

Toda a conjuntura estudada aponta-nos um delicado momento político para a discussão dos direitos sexuais e reprodutivos das mulheres, bem como para a realização de campanhas de

advocacy propositivo pela legalização do aborto no Brasil.

Será que existem hipóteses de ruptura ao contexto apresentado, que permitam às ONGs feministas empreender ações mais propositivas no que se refere às ampliações legais do acesso ao aborto no país? Ou o cenário de politização reativa, somada ao sistema cultural e político do duplo discurso na América Latina, tem restringido as estratégias feministas de mobilização pelo aborto apenas e somente ao trabalho de advocacy reativo para se “segurar” o que foi conquistado até o momento? Tem sido possível às ONGs feministas brasileiras valerem-se de suas práticas e saberes para pensar a respeito de novas alternativas de mobilização que desafiem o já enraizado modelo da criminalização do aborto?

A proeminência de um movimento fundamentalista religioso no Congresso Nacional, aliado à tomada do Poder Executivo Federal por um governo que demonstra ser ainda menos sensível às causas das mulheres e demais minorias, aparelhando o Estado de modo tradicional e conservador, indica um horizonte não muito propenso a mudanças no que tange ao enfrentamento à criminalização do aborto no Brasil. O foco parece mesmo continuar na resistência, na luta para se

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evitar retrocessos e se manter direitos conquistados, apostando-se no trabalho de fortalecimento do Estado laico para se conseguir avançar na discussão.

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Non-governmental feminist organizations and the struggle about the legalization of abortion in Brazil

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Referências

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