ONDE ESTÁ O AMOR DE NOSSOS PAIS? A ADOLESCÊNCIA E SEUS CONFLITOS
Iúri Yrving Müller Silva∗ Drª Inês Amosso Dolci∗∗
Resumo: Como veríamos o caso Katharina e o caso Dora sob a luz de novos conhecimentos que foram elaborados com o desenvolvimento da ciência psicanalítica? Partindo desta indagação, este trabalho de Iniciação Científica teve como proposta tecer uma análise reflexiva sobre tais casos, que são referência na obra de Freud, e que tratam de adolescentes que sofriam de histeria de conversão (somatização), relacionando-os a conceitos desenvolvidos por autores contemporâneos que utilizam a psicanálise para compreender essa fase tão conflituosa do desenvolvimento humano, que pode ser acompanhada de somatizações.Trata-se de um estudo teórico, realizado a partir de levantamento bibliográfico e observações assistematicas dentro dos estágios oferecidos dentro de uma graduação de psicologia. Por intermédio destes procedimentos, foi possível diferenciar quatro momentos distintos considerando as temáticas adolescência e somatização dentro do percurso histórico da psicanálise. No primeiro momento tecemos a concepção de adolescência para Freud a partir da análise dos casos Dora e Katharina e de textos em que o autor aborda a adolescência e adolescentes. Para Freud, a somatização neste período pode advir da impossibilidade do adolescente aceitar que possui um corpo adulto capaz de concretizar as fantasias incestuosas da infância, assim como Dora e Katharina. O segundo momento é marcado pela construção da concepção de adolescência para Melanie Klein a partir de reflexão de sua obra. Para Klein a erupção da doença somática nesta fase, pode ser representante da dificuldade do adolescente transpor objetos e desenvolver novas relações que permitam reparar conflitos primitivos de amor e ódio. O terceiro momento definiu-se pelo novo olhar que autores contemporâneos lançam sobre a adolescência hoje. Para os autores atuais utilizados, a somatização pode ocorrer nesse período devido à impossibilidade do adolescente lidar com as transformações que ocorrem em seu corpo e ego. Finalmente, o quarto e último momento foi definido pela apresentação de hipóteses levantadas através das idéias que Freud, Klein e autores atuais tem sobre a somatização na adolescência e principalmente por uma aproximação entre os Casos Dora, Katharina, a conversão e a adolescência hoje. Sob este olhar, Dora e Katharina, hoje, seriam adolescentes enfrentando essa empreitada que é aceitar dentro de sua onipotência que necessitam do outro para crescerem emocionalmente, e que aceitar ou não essa verdade pode fazer com que eles somatizem-adoeçam.
∗ iurimuller@bol.com.br
ONDE ESTÁ O AMOR DE NOSSOS PAIS? A ADOLESCÊNCIA E SEUS CONFLITOS
Freud (1905), na parte III de seu texto “Três Ensaios sobre a Teoria da Sexualidade (1905)”, nos contempla com “As Transformações da Puberdade” e nos mostra como a chegada da puberdade opera mudanças destinadas a dar à vida sexual infantil sua forma final normal, que consiste basicamente na passagem do auto-erotismo à procura de um objeto real. O instinto, que antes era depositado no próprio corpo infantil, deve passar a ser investido em outro objeto e, junto com todos os outros instintos parciais, está subordinado ao primado da zona genital. O objetivo do instinto agora é altruístico, passando do desejo de conseguir prazer à reprodução. A impossibilidade de deslocar o instinto do próprio corpo para outro objeto externo pode trazer sérias conseqüências, pois leva o indivíduo a fazer uso de mecanismos patológicos.
Em outras palavras, Freud nos diz que a adolescência nada mais é que uma reedição do complexo de Édipo, complexo este que Freud denomina como o núcleo das neuroses. A criança, com a chegada da puberdade, pode cometer o incesto que tanto almejou, pois agora está dotada para concretizá-lo, graças ao primado da zona genital. Percebe-se o quanto é difícil para o infante, esta nova fase, pois terá que renunciar à concretização de suas fantasias incestuosas com as imagos parentais e terá que redirecionar sua libido e fantasias para outro objeto, outra pessoa, reeditando o Édipo. Mas, agora, com as características que a puberdade lhe conferiu.
Esses conflitos centrais que definem a puberdade para Freud podem ser vistos na análise de casos clínicos que são referência na obra deste autor: Caso
Através destes dois casos e da interpretação que Freud dá a cada um deles, observamos que o autor postula que a incapacidade das jovens de enfrentar uma exigência erótica era um dos aspectos mais essenciais de suas neuroses. Pois para ele, os neuróticos são dominados por uma oposição entre suas fantasias e a realidade: se aquilo que desejam com mais intensidade em suas fantasias se apresenta na realidade, eles evitam e abandonam suas fantasias para que não as vejam realizadas. Apesar disso, a barreira da repressão pode falhar devido uma situação emocional violenta produzida por uma causa real, podendo levar à ansiedade, acionada devido ao conflito real e à incapacidade do individuo lidar com ela, e ao recorrer à via somática, como a histeria de Dora e Katharina fez.
Na época de Freud, o conceito de adolescência era outro, diferente do de hoje. Com o decorrer do tempo, os estudos em Psicanálise foram se desenvolvendo; outros autores criaram novos conceitos e tomaram caminhos diferentes dentro dela. Entre esses autores, podemos citar Melanie Klein. Em decorrência, mudou, também, a forma de estudar a adolescência. Hoje, tem-se uma nova visão mais complexa de adolescência, do que aquela proposta por Freud. Na atualidade, há autores que estão mais próximos de nossa realidade dedicando-se ao estudo da adolescência. São os autores latino-americanos, como Abérastury, Lévisky, Knobel e Outeiral.
Abérastury e Knobel, (1981), dizem que a adolescência é uma crise normal a qual eles denominam "síndrome da adolescência normal".
Estes autores propõem um tênue limite entre a normalidade e a patologia nessa fase, pois, para eles, o adolescente está passando pela elaboração de lutos:
Luto pelo corpo infantil: o adolescente se vê frente à um novo corpo, com transformações incontroláveis que o assustam e o impulsionam para a redescoberta do mesmo;
Luto pelos pais infantis; os pais internalizados na infância são diferentes dos pais reais da adolescência que precisam impor limites e regras na educação dos filhos em sua nova condição. Da mesma maneira que o adolescente não é igual a quando era criança, seus pais também não o são.
Luto pela identidade infantil: o adolescente se vê frente à exigência de uma nova identidade diferente daquela que vinha exibindo desde a infância; agora tem que ir a busca de sua nova identidade e autonomia.
A elaboração desses três lutos forma o cume central da síndrome normal da adolescência.
Lévisky (1998), ainda vai além. Preconiza que o adolescente não acompanha seu desenvolvimento físico tendo dificuldade em expressar o conflito de ver seu ego e seu corpo se transformando, assim como o mundo externo e os objetos que lá estão, pois a imagem corporal que possuí de si mesmo é subjetiva e atravessada pelos condicionantes sociais. Isso acaba resultando em duas imagens que o jovem tem de si mesmo: uma imagem idealizada e uma imagem real. O interjogo dessas duas imagens, resulta em fantasias que interferem na percepção do jovem. Assim, o adolescente usa de mecanismos maníacos para defender-se das transformações incontroláveis em seu corpo e da ansiedade persecutória. Apesar de Lévisky dar ênfase maior aos determinantes sociais que influem na adolescência, do que Abérastury e Knobel, concorda com esses autores quanto às formas pelas quais o adolescente enfrenta as mudanças em seu corpo e ego: maníaca, persecutória e fóbica. Na primeira, nega-se onipotentemente toda a dor psíquica que inevitavelmente acompanha o processo. Na forma persecutória, o adolescente utiliza seu corpo como depositário de intensas ansiedades paranóides e confusionais e na fóbica, evita a constatação de suas transformações corporais, sendo
Algo que também é consenso entre Abérastury, Knobel e Lévisky, é que neste período podem ocorrer queixas de somatização.
Outeiral (2002), confirma este fato, descrevendo, que, com freqüência podem ocorrer queixas de somatização na adolescência, tais como cefaléia, dores abdominais. Para o autor, as transformações no corpo do adolescente são vividas como invasoras e ameaçadoras, determinando intensas ansiedades e fantasias persecutórias que são localizadas defensivamente em uma parte ou um órgão do corpo.
Os autores contemporâneos citados nessa pesquisa seguem de perto a teoria kleiniana, embora com ampliações. Por isso, julgamos necessário fazer um adendo expondo a concepção que Melanie Klein tem sobre adolescência, e que acabou influenciando estudos e obras posteriores na abordagem desse tema.
Klein em seu texto “Inibições e Dificuldades na Puberdade (1922)” acredita que é possível explicar as dificuldades desse período pela ausência do equipamento psíquico necessário para que o púbere lide com sua maturação sexual e as enormes transformações físicas que a acompanham. Para ela, o jovem, bombardeado por sua sexualidade, se sente à mercê de desejos que não consegue e não pode satisfazer. É obvio, portanto, que se vê obrigado a suportar um grande fardo psicológico. Mas, para Klein, não basta afirmar isso para entender satisfatoriamente os profundos e variados problemas com que nos deparamos com tanta freqüência nessa idade.
É nesse período e nessas condições que Klein sugere que podem surgir manifestações extremas, como o suicídio, a psicopatia ou até as somatizações, decorrentes da impossibilidade do púbere em redirecionar seus impulsos e sentimentos a um novo objeto.
criar os pressupostos da posição depressiva, dá mais ênfase a interação entre o amor e o ódio na vida emocional do bebê e consecutivamente na vida do adulto.
Em alguns tópicos como a escolha do parceiro e relacionamentos na adolescência fica claro sua nova definição de adolescência. Klein preconiza agora que há profundos motivos inconscientes que contribuem para a escolha do parceiro e que tornam duas pessoas atraentes e sexualmente satisfatórias uma para outra. Os sentimentos do homem pela sua mulher são sempre influenciados pela sua ligação inicial com a mãe. A escolha do parceiro na adolescência é atravessada pela impressão que a criança teve da pessoa amada na época de sua tenra infância, e as fantasias que criou a seu respeito, que ela deseja reencontrar no seu relacionamento amoroso posterior.
Podemos, então, concluir que, para a autora, a adolescência é uma fase de transposição de objetos: o adolescente tem pela frente a tarefa de substituir objetos amorosos infantis por objetos amorosos adultos. Se fracassar nessa tarefa, a somatização pode ser uma das maneiras de expressar essa impossibilidade.
A somatização como impossibilidade do adolescente aceitar que tem um corpo adulto capaz de procriar e amar serve como um escudo protetor atrás do qual se refugiam e se ocultam suas possibilidades de ser atrativo e interessante para outras pessoas. Desta maneira, eventuais parceiros são mantidos a distância, dando ao adolescente mais um tempo para aceitar e descobrir sua sexualidade madura. O outro, principalmente o do sexo oposto, gera grande ansiedade no jovem, pois, como vimos a momentos atrás, o adolescente revive intensamente as ansiedades edípicas da infância arcaica, mas com as novas características que a puberdade lhe conferiu. Evitar o sexo oposto para o adolescente tem o mesmo significado inconsciente que evitar a concretização das fantasias incestuosas da infância.
empreitada que é aceitar dentro de sua onipotência que necessitam do outro para crescerem emocionalmente, e que aceitar ou não essa verdade pode fazer com que eles somatizem-adoeçam.
Se fizermos uma relação entre os sintomas de Dora e Katharina com os sintomas observados em adolescentes por Outeiral em seu trabalho, veremos uma grande semelhança. Katharina tinha fortes dores de cabeça – marteladas na cabeça -. Dora tinha fortes dores abdominais. O depositar do psíquico no orgânico, nos leva a hipótese do corpo como depositário das principais ansiedades na adolescência causadas devido o conflito inerente a esta fase.
A partir das observações assistemáticas no campo de estágios da universidade, podemos observar alguns sintomas comuns nos adolescentes com os quais trabalhamos, como gripes, dores de garganta, catarro, tosse e dores de coluna. Caso fossemos analisar tais casos a fundo, provavelmente chegaríamos aos mesmos dados que Freud no estudo desses dois casos. Portanto, podemos levantar a hipótese de que as histéricas de Freud, continuam no mesmo lugar, nos adolescentes com dificuldade em aceitar a interdição da lei de seus desejos condenáveis surgidos na infância.
Melanie Klein (1937), aponta em seu texto “Amor, Culpa e Reparação”, que as formas de amor que desenvolvemos na vida adulta são a representação do amor que vivemos com nossos pais na tenra infância. Este fato pode levar o adolescente a seguinte questão: onde está o amor de nossos pais?
Não queremos com isso fadar o adolescente somatização como única forma de expressão de sua impossibilidade em aceitar o outro para se relacionar.
Em suma, o que parece certo, é que os adolescentes hoje ou os púberes de ontem, como Dora e Katharina, têm encontrado dificuldades na resolução dessa fase tão conflituosa do desenvolvimento humano.
Referências Bibliográficas
ABERASTURY, Arminda; KNOBEL, Maurício. Adolescência Normal: um enfoque psicanalítico. Tradução de Suzana Maria Garagoray Ballve. 10° ed. Porto Alegre: Artes Médicas, 1981.
FREUD, Sigmund. Casos Clínicos: Katharina. In: Sigmund Freud. Estudos sobre a Histeria. 2° ed. Rio de Janeiro: Imago, 1972. v. lI, capo II p. 143-151.
--- Fragmento da Análise de um caso de Histeria. In: Sigmund Freud. Fragmento Da Análise de um caso de Histeria, Três Ensaios sobre a Teoria da Sexualidade e outros trabalhos. 2° ed. Rio de Janeiro: Imago, 1972. v. VII, p. 1-119. --- Três Ensaios sobre a Teoria da Sexualidade. In: Sigmund Freud. Fragmento da Análise de um caso de Histeria, Três Ensaios sobre a Teoria da Sexualidade e outros trabalhos. 2ª ed. Rio de Janeiro: Imago, 1972. v. VII, p. 121-252.
KLEIN, Melanie. Amor Culpa e Reparação. In: Melanie Klein. Amor Culpa e Reparação e outros trabalhos. Rio de Janeiro: Imago, 1997. v. I, p. 346 – 384. --- Inibições e Dificuldades na Puberdade. In: Melanie Klein. Amor Culpa e Reparação e outros trabalhos. Rio de Janeiro: Imago, 1997. v. I, p. 76 – 80.
LÉVISKY, David Léo. Adolescência: reflexões psicanalíticas. 2° ed. São Paulo: Casa do Psicólogo, 1998.
OUTEIRAL, José O. Adolescer: estudos revisados sobre a adolescência. 1ª ed. Porto Alegre RS: Revinter, 2002.