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Sobre o ensino de psicoterapia de orientação analítica

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Academic year: 2021

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Sobre o ensino de psicoterapia

de orientação analítica

Antonio Carlos J. Pires*

* Psiquiatra, professor responsável pela disciplina de Técnica de Psicoterapia de Orientação Analítica para os Residentes do 3º ano em Psiquiatria do HCPA, professor e supervisor do Curso de Especialização em Psicoterapia de Orientação Analítica do CELG, membro efetivo e analista didata da Sociedade Psicanalítica de Porto Alegre, RS, Brasil.

Instituição: Centro de Estudos Luís Guedes (CELG), Hospital de Clínicas

de Porto Alegre, RS, Brasil.

Resumo

O autor apresenta, de forma sucinta, sua experiência como professor de Psicoterapia de Orientação Analítica junto aos alunos do terceiro ano de resi-dência em psiquiatria do Hospital de Clínicas de Porto Alegre. O programa de ensino da disciplina é discutido, bem como a forma de avaliação dos alunos. São feitas considerações sobre algumas das dificuldades próprias dessa ativi-dade.

Palavras-chave: psicoterapia, ensino, internato e residência, psicoterapia de

orientação analítica, avaliação e vicissitudes.

Introdução

O ensino da Psicoterapia de Orientação Analítica (POA) é uma tarefa de significativa responsabilidade, uma vez que o treinamento do psicoterapeuta em formação terá sempre algum tipo de repercussão no mundo interno de seus futuros pacientes (ampliando ou não a compreensão destes a respeito do seu funcionamento mental), além de exercer, ainda que de forma indireta, algum tipo de influência, facilitadora ou não, na vida daquelas pessoas que com eles convivem intimamente. No entanto, como assinalam Watters e cols.1,

pouco se publica sobre os objetivos e métodos de ensino de POA. Talvez esse fato possa estar relacionado à falta de consenso entre os professores dessa

www.rbp.celg.org.br

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disciplina sobre o que precisa ser ensinado e como esse conhecimento deve ser transmitido ou, quem sabe, esteja vinculado à dificuldade dos educado-res nessa área em pôr à mostra seu trabalho. Ademais, parece não haver con-senso até mesmo sobre o conceito de POA, uma vez que, como destacam Eizirik e cols.2, esse tipo de tratamento chega a aparecer em inúmeras

publi-cações sob diferentes títulos como, por exemplo, “psicoterapia compreensi-va”, “psicoterapia dinâmica”, “psicoterapia expressiva” ou “psicoterapia dirigida ao insight”. Como a discussão sobre a questão da vagueza desse con-ceito é bastante ampla, não cabendo nos limites deste trabalho, fica aqui ape-nas o registro de que entendo a POA como um método de investigação do inconsciente construído pela dupla paciente/terapeuta, que se ampara basi-camente nas associações livres fornecidas pelo primeiro, permitindo ao se-gundo a apreensão dos conflitos intrapsíquicos e dos mecanismos de defesa inconscientes do paciente e possibilitando ao psicoterapeuta a formulação de interpretações, tanto transferenciais quanto extratransferenciais, que têm como objetivo possibilitar ao paciente um melhor conhecimento de si mes-mo, assim como obter alívio do seu sofrimento através da elaboração, em algum grau, de seus conflitos internos.

O presente artigo tem por finalidade apresentar, de forma bastante sucinta, minha experiência como professor de POA desde o ano de 1996 até o momento atual, junto aos grupos de alunos do 3º ano de residência em psi-quiatria do Hospital de Clínicas de Porto Alegre (HCPA) com os quais tenho tido a satisfação de ter contato, a cada ano letivo que se renova.

O programa de ensino

O atual programa de ensino de POA para os residentes do HCPA foi estruturado, inicialmente, com base em minhas próprias vivências como alu-no do 3º aalu-no do Curso de Especialização em Psiquiatria da UFRGS. Assim, para elaborar esse projeto, levei em conta os conteúdos a que tive acesso ao longo dos seminários que frequentei enquanto em formação, acrescidos das noções que, em função da experiência acumulada, percebi serem fundamen-tais para quem está se iniciando no exercício dessa disciplina. Com isso em mente, foi organizado um programa anual composto de 33 seminários, cada um com duração mínima de uma hora, cujos temas são discutidos livremente pelos 12 alunos que fazem parte do grupo, sendo todos estimulados a desen-volver uma leitura crítica dos textos previamente selecionados pelo coorde-nador. No primeiro encontro, o roteiro de estudos e a metodologia de traba-lho são apresentados e discutidos em grupo. Seguem-se, então, 16 seminári-os por semestre de cunho predominantemente teórico (com textseminári-os que, na medida do possível, incluam exemplos práticos dos aspectos teóricos

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estuda-dos) e/ou essencialmente clínico (com discussão de material apresentado por alunos e professores). Ao final de cada semestre há um seminário de avalia-ção, onde é feita, em grupo, uma apreciação do desempenho dos alunos e do professor, assim como uma análise crítica dos textos estudados, na busca do constante aperfeiçoamento do programa.

Basicamente, o referido plano de trabalho inclui os seguintes temas e referências bibliográficas: o exercício ético da psicoterapia3,4, a estruturação

do setting psicoterápico [discussão livre], a importância da neutralidade5, o

processo de avaliação de pacientes6, o contrato psicoterápico7,

transferên-cia8,9,10, contratransferência11,12,13, identificação projetiva14,15,16, função

conti-nente17, tipos de interpretação18, atividade interpretativa19,20, a avaliação da

interpretação21, insight22, insight, elaboração e mudança psíquica23, acting out24,25, reação terapêutica negativa e impasse26, transtornos de caráter27,28,

sonhos29 e término do tratamento30.

Além dos seminários teórico-clínicos, os residentes têm também a opor-tunidade de supervisionar um caso de POA oriundo de consultório particular, contando para essa atividade com a colaboração de supervisores experientes que fazem parte do corpo docente do Curso de Especialização em Psicoterapia de Orientação Analítica da UFRGS. Tal atividade estende-se ao longo do ano letivo por, pelo menos, 30 horas.

Claro está que o objetivo desse programa não é o de formar psicoterapeutas em tão pouco tempo de trabalho, mas sim apresentar aos alunos alguns dos conceitos básicos que estruturam essa disciplina e motivá-los ao estudo mais aprofundado da POA. Tal aprofundamento ocorre a posteriori, por aqueles que assim o desejarem, no anteriormente citado Cur-so de Especialização em POA. Ademais, cabe salientar que a disciplina de psicoterapia de orientação analítica está inserida num programa de residên-cia em psiquiatria, em que, desde o início, são ensinadas noções de psicanáli-se, em especial no segundo ano, onde há supervisão sistemática dos casos de psicoterapia de ambulatório, além de um seminário semanal, no terceiro ano, sobre as contribuições técnicas de Freud, Klein e outros autores. Em suma, essa disciplina está situada no contexto geral da residência, que almeja uma formação pluralista, onde outras modalidades de psicoterapia sejam ensina-das ao mesmo tempo.

No primeiro seminário propriamente dito, que versa sobre o exercício ético da psicoterapia, procuram-se discutir as seguintes questões:

· Como se estrutura, na mente do psicoterapeuta, o código ético

que norteia sua conduta pessoal e profissional? Neste sentido, é dada ênfase à ideia de que a ética de cada indivíduo emana de suas próprias relações objetais internas e que, em função disso,

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trata-mos nossos semelhantes, incluindo nossos pacientes, de acordo com as normas segundo as quais nos relacionamos com nossos objetos internos.

· O que significa ser ético em POA? Aqui é dado destaque à concep-ção de que cabe ao psicoterapeuta auxiliar o paciente na busca da sua verdade, construindo e preservando um enquadre adequado para que isso ocorra.

· O que leva um terapeuta a infringir o código de ética de sua profis-são? Em relação a isso, discute-se um caso fictício de infração ética encontrado no filme Vestida para matar, de Brian De Palma. Nessa obra, fica evidente que a violação encenada foi construída a partir de um padrão primitivo de relação objetal que norteava a conduta do personagem/terapeuta e que fazia com que a figura do persona-gem/paciente fosse percebida como uma parte do mundo interno do próprio terapeuta personificado na tela, como se o paciente do filme existisse apenas com a finalidade de lhe propiciar satisfação. Sublinha-se, nesse contexto, a necessidade de uma formação psicoterápica criteriosa e de uma análise pessoal adequada para aqueles que pleiteiam trabalhar nessa área.

No encontro sobre a estruturação do setting psicoterápico, enfatiza-se a necessidade de um setting bem estruturado, estável, o mais neutro possí-vel, que propicie privacidade e preserve o sigilo para o adequado exercício da POA. Fala-se também sobre os limites adequados para dar suporte à relação terapêutica, como a regra da abstinência, bem como sobre as funções de cada participante da dupla paciente/terapeuta. Qualquer dúvida sobre os aspec-tos formais do setting (como, por exemplo, o isolamento acústico da sala de atendimento, a decoração do consultório, o posicionamento dos móveis na sala de atendimento, o zelo do psicoterapeuta com sua apresentação pessoal etc.) é sempre bem-vinda no seminário e debatida pelo grupo. Na intimida-de, denominamos esse seminário “tudo o que você gostaria de saber sobre os aspectos formais que constituem o setting e teve receio de perguntar”.

Quando se discute a questão da neutralidade, procura-se examinar a evolução desse conceito até a atualidade. O principal enfoque é o de enten-der a neutralidade não como uma condição absoluta, mas como um estado mental variável do terapeuta que lhe permite, em maior ou menor grau, ob-servar e compreender o material trazido pelo paciente com um mínimo de interferência possível decorrente do impacto emocional que esse material gera na contratransferência.

No seminário sobre o processo de avaliação, a ênfase recai sobre a ne-cessidade de ouvir o paciente de forma empática, de modo a facilitar sua

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comunicação. Ademais, fica em destaque o fato de que o terapeuta precisa ter em mente que a indicação do tipo de tratamento a ser ministrado (que pode ser, ou não, uma POA) emana da necessidade trazida pelo próprio paci-ente. Assim, a motivação genuína do paciente em compreender seu funcio-namento mental, a origem de seus conflitos e a dor psíquica daí decorrente é vista como fator central na indicação de POA. Sem motivação, sem sofrimen-to psíquico, sem a curiosidade e o desejo de entender sua dor, a indicação de uma POA não se sustenta. Num segundo seminário sobre esse tema, um alu-no apresenta a avaliação de um caso para POA, sendo discutidos em detalhes os elementos que fazem parte desse procedimento: motivação, diagnóstico psicodinâmico inicial, conflito atual, recursos do ego, critérios de indicação e contraindicação de POA.

Quando se debate a questão do contrato psicoterápico, é ressaltada sua função estruturante no setting. Ao mesmo tempo, é assinalado que as tentativas de ruptura do contrato constituem importantes elementos de com-preensão do funcionamento mental do paciente, devendo assim ser percebi-das como a forma de comunicação de uma fantasia inconsciente à qual o paciente ainda não pôde ter acesso. Num segundo momento, um aluno apre-senta material clínico relacionado ao tema, e se esmiúçam os distintos ele-mentos, conscientes e inconscientes, que compõem o contrato.

Dos quatro seminários sobre transferência, três são teóricos e o quar-to, clínico. No primeiro, estuda-se o conceito de transferência vinculado à sua evolução histórica. No segundo, este fenômeno é visto como uma situação total, uma estrutura viva e mutante na qual algo está sempre acontecendo, onde há sempre movimento e atividade. Sob este ângulo, a transferência se expressa não só através do que o paciente diz, mas também pela forma como o faz (modulações na entonação da voz, expressões faciais e corporais), assim como pelos sentimentos e fantasias espertados no terapeuta. No terceiro, é examinado o impacto da transferência na mente do psicoterapeuta, que pode, em alguns momentos, percebê-la como se fosse uma carga potencialmente perigosa e da qual passa a se proteger através de racionalizações teóricas e outras operações defensivas. O quarto seminário é eminentemente clínico, com material apresentado por um aluno, onde são integrados os aspectos teóricos previamente discutidos.

O estudo da contratransferência também engloba quatro seminários, sendo três teóricos e um, clínico. No primeiro, examina-se o conceito de contratransferência, assim como seu desenvolvimento histórico. No segun-do, estuda-se a contratransferência por assim dizer “normal” e alguns de seus “desvios”. Aqui a ênfase recai sobre os momentos de não compreensão em uma sessão psicoterápica, onde se manifesta algum aspecto do psiquismo do paciente que mobiliza, no terapeuta, ansiedades que ele ainda não está apto

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a compreender. No terceiro, discutem-se as controvérsias atuais sobre o tema. Nesse encontro, o professor também apresenta material clínico ilustrativo de um distúrbio contratransferencial e a consequente elaboração dessa vivência, bem como as repercussões desse episódio em um caso de POA. No quarto, a ideia central é mostrar que, se não levarmos em conta nossas próprias rea-ções conflitivas ao longo das sessões, corremos o risco de “atuar” com nossos pacientes ao invés de compreendê-los.

O tema da identificação projetiva é examinado em três seminários. A discussão é introduzida a partir do filme Janela indiscreta, de Alfred Hitchcock, onde esse conceito fica bem exemplificado através da ação dos personagens, que utilizam a identificação projetiva como um recurso primitivo de comuni-cação não verbal, de caráter inconsciente e que, entre outras funções, tam-bém atua como um poderoso instrumento para livrar o indivíduo do contato com seus conflitos internos. No segundo seminário, aborda-se o uso da iden-tificação projetiva na prática clínica, bem como sua vital importância para a compreensão da relação transferencial/contratransferencial própria do tra-tamento psicoterápico. Enfatiza-se a necessidade do terapeuta em conter ati-vamente o que é projetado pelo paciente, além de outras considerações téc-nicas de manejo desse fenômeno. No terceiro, estudam-se as múltiplas fun-ções da identificação projetiva: uma forma primitiva de comunicação de um estado mental de um indivíduo para outro, um recurso que visa a cindir e se livrar de aspectos indesejáveis do self, um instrumento de domínio e controle de um objeto, uma tentativa de apropriar-se das capacidades de outro indiví-duo ou uma forma de buscar invadir e danificar outra mente.

No encontro sobre a função continente, é ressaltada a capacidade empática do terapeuta que necessita ficar sintonizado com as vivências emo-cionais do paciente, com sua própria contratransferência, assim como com o interjogo de identificações projetivas que ocorre durante as seções, até que possa transformar todo esse material em algo compreensível para si mesmo e para o paciente.

Quando se estudam os tipos de interpretação, são examinadas em de-talhe a interpretação histórica (genética) e a atual (transferencial e extratransferencial), além das táticas e estratégias interpretativas. É ressalta-do que, ainda que a POA inclua certa ressalta-dose de apoio e sugestão, esses são apenas recursos técnicos, mas não necessariamente terapêuticos. Assinala-se que a principal estratégia da POA é a de privilegiar, na medida do possível, a interpretação do conflito atual.

Nos dois seminários sobre a atividade interpretativa, a tônica recai so-bre o estudo do assim chamado timing da interpretação, o momento em que se torna possível e adequado interpretar. Discute-se sobre como, após um período de turbulência emocional, de não entendimento, vai se formando

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aos poucos na mente do terapeuta uma compreensão do material fornecido pelo paciente. Ressalta-se que, nestes momentos, é de importância vital a capacidade do terapeuta de tolerar esse estado de incerteza, sem precisar agir impulsivamente, interpretando, por exemplo, para obter alívio da angús-tia decorrente desse estado. É examinada também a questão de “o que, onde e quando interpretar”, em que se evidencia a necessidade do uso da interpre-tação transferencial “centrada no terapeuta”, ao invés de “centrada no paci-ente”, para melhor fazer frente a estados eminentemente projetivos que, às vezes, tomam conta de uma sessão.

Durante o debate sobre a avaliação da interpretação, estuda-se como avaliar o aspecto operativo de uma linha interpretativa, em vez de se apreci-arem apenas interpretações isoladas, explorando-se os elementos necessári-os para atingir esse fim. Nesse sentido, é dada ênfase ao valor das associa-ções livres comprobatórias posteriores, surgimento de memórias, fantasias e sonhos com significado de confirmação, bem como à modificação da fantasia inconsciente e diminuição da ansiedade que permeiam as sessões em que houve progressos.

O estudo do insight inicia-se com a discussão sobre a origem e as dife-rentes versões desse conceito, desde Freud até os tempos atuais. Ressalta-se que esse fenômeno implica a aquisição, por parte do paciente, de um novo conhecimento relacionado ao seu funcionamento mental, como uma visão nova, distinta da percepção habitual que o indivíduo tem de si mesmo.

O encontro sobre insight, elaboração e mudança psíquica visa a inte-grar esses três conceitos num continuum. Assim, a elaboração é vista como um processo do mundo interno do paciente, que tem como precondição uma série de insights, cujo mecanismo central é o luto pela perda dos aspectos narcisistas e onipotentes do self, e que pode culminar com algum grau de mudança psíquica no paciente. Sublinha-se o fato de que o alcance dessa mudança depende, basicamente, das condições próprias de cada dupla paci-ente/terapeuta: de um lado, está relacionada ao nível de funcionamento mental do paciente e, de outro, ao grau de experiência e ao tipo de formação do terapeuta.

O tema do acting out é tratado em três seminários, sendo dois deles teóricos e um terceiro, clínico. Começa-se pelo estudo da evolução desse con-ceito, passando-se pelas controvérsias que esse fenômeno desperta entre seus estudiosos – como, por exemplo, o acting out comunica algo sobre o paciente ou é apenas uma forma complexa de resistência? – até chegar-se à discussão de um caso clínico ilustrativo do assunto em questão.

Durante o debate sobre reação terapêutica negativa e impasse, além de discutir-se a evolução desses conceitos, seus respectivos quadros clínicos e diagnóstico diferencial com outras formas de resistência (como a

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resistên-cia incoercível e a reversão da perspectiva), enfatiza-se a possibilidade de quadros resistenciais virem a se transformar em impasses, se tais ocorrências não forem adequadamente detectadas e manejadas pelo terapeuta. De outra parte, é sublinhada a base narcisista, de parte da dupla paciente/terapeuta, que subjaz a um impasse.

No que se refere aos transtornos de caráter, analisam-se alguns aspec-tos da estruturação dos diferentes tipos de caráter, discutem-se algumas nuanças técnicas peculiares à POA com pacientes portadores de caracteropatia, assim como se trocam ideias sobre o alcance da POA em indi-víduos com esse tipo de distúrbio.

O seminário sobre sonhos propõe-se examinar os mecanismos impli-cados na elaboração onírica, suas funções – entre as quais se destacam a função traumatolítica, a de organização e síntese, a de comunicação, a de satisfação de desejos e a adaptativa – assim como a possibilidade de o sonho funcionar como um ótimo balizador da evolução de uma POA.

Durante o estudo do término do tratamento, discorre-se sobre o con-ceito de término em POA, sobre os tipos de resistências que habitualmente fazem parte dessa etapa do tratamento, assim como sobre seu manejo ade-quado. Aqui a tônica recai sobre o processo de luto que a dupla paciente/ terapeuta precisa enfrentar.

Sobre a avaliação

Como foi dito anteriormente, ao final de cada semestre há um seminá-rio de avaliação, onde é feito um balanço do desempenho dos alunos e do professor, assim como uma análise crítica dos textos estudados, na busca do constante aperfeiçoamento do programa. Esta parece ser a parte de mais fácil execução. A tarefa mais complexa está relacionada à avaliação do pro-cesso supervisório que, mais do que exame do desempenho apresentado pelo aluno em seminário, serve como fiel balizador do aproveitamento do aluno. Tal apreciação pode ser feita através do olhar do supervisor, ora voltado para a mente do supervisionando, ora para a mente do paciente do caso em su-pervisão e ora para sua própria mente.

No que se refere à mente do supervisionando, o supervisor precisa in-dagar-se sobre que capacidades seu supervisionando está desenvolvendo. Ele já se permite distinguir, no discurso do paciente, o conteúdo latente do mani-festo? Ele já pode, em algum momento, identificar a fantasia inconsciente predominante em uma sessão? Ele já consegue articular espontaneamente alguma forma de compreensão a respeito do funcionamento mental de seu paciente?

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De outra parte, cabe também ao supervisor perguntar-se, enquanto olha para o supervisionando, qual o grau de dificuldade apresentado pelo aluno para entrar em contato com o mundo interno de seu paciente. Ele se assusta com essa tarefa, retrai-se ou se permite conviver com a turbulência emocional que o material clínico provoca e, ainda assim, pode pensar sobre o fato clínico? De que forma as comunicações do paciente mobilizam o supervi-sionando? Ele pode contê-las e pensá-las, ou se vê pressionado a interpretar imediatamente? Ele revela ter capacidade negativa?

À medida que se desenrola o processo supervisório, é também oportu-no que o supervisor observe se as dificuldades que o supervisionando apre-senta são as mesmas do início da supervisão. Se houve alguma mudança, quais foram elas? A técnica do supervisionando ficou mais refinada? As inter-venções são mais sucintas, vinculadas à fantasia inconsciente da sessão e no timing adequado? O supervisionando trabalha num modelo apenas imitativo do supervisor ou está desenvolvendo um estilo próprio? A relação com o supervisor é permeada por ansiedades persecutórias ou o supervisor, aos poucos, está podendo ser visto como um colaborador do aluno?

Ao mirar a mente do paciente do caso em supervisão, é importante que o supervisor perceba se o processo psicoterápico apresenta sinais de vi-talidade, o que pode ser constatado pela produção simbólica do paciente (so-nhos, associações livres etc.), pela existência de insights e, em algum grau, pela expansão progressiva das capacidades psíquicas do paciente.

Quando o supervisor contempla sua própria mente, algumas questões se impõem: a hora de supervisão lhe desperta satisfação, desânimo, indife-rença ou pressa de que acabe logo? O supervisor consegue manter o setting supervisório? Ele se sente livre para dizer o que pensa ao supervisionando ou precisa agradá-lo? Como na supervisão o aprendizado é, em princípio, recí-proco, o supervisor precisa também avaliar se está aprendendo algo no con-tato com seu supervisionando e o caso em supervisão.

O ensino de POA é uma tarefa complexa, uma vez que o instrumento de trabalho do psicoterapeuta é o próprio indivíduo. Lembrando Sakinofsky31,

é possível dizer que “o treinamento pode apenas aprimorar mas não dotar o futuro terapeuta com aqueles atributos pessoais que ele não tem”. Assim, creio que a maior dificuldade nessa área de ensino está relacionada ao trato com o aluno que apresenta limitações pessoais para o exercício da POA. Refi-ro-me àqueles com certa dificuldade para o pensamento abstrato, para quem não é fácil lidar com conceitos como, por exemplo, inconsciente dinâmico, conteúdo latente e manifesto, fantasias inconscientes, mecanismos de defe-sa, conflito intrapsíquico etc. Em casos como esses, tanto o professor quanto o supervisor têm pouco a fazer, uma vez que tais limitações só terão alguma chance de serem resolvidas ao longo da análise do próprio aluno.

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Parafrase-ando Fleming32, assim como o paciente não pode adquirir insight por

sim-plesmente estar na presença do seu terapeuta, o supervisionando também não pode aprender apenas por permanecer diante de seu supervisor. O aprendizado em supervisão é um processo ativo e criativo, em que a dupla supervisor/supervisionando precisa ser qualificada para que ele ocorra.

Considerações finais

Como assinala Halgin33, uma das principais dificuldades encontradas

no ensino da POA reside na dissociação habitualmente existente entre o que se transmite na teoria e o que se orienta na prática supervisória. A falta de uma filosofia de ensino coerente, bem estruturada, parece estar no cerne dessa dissociação. Talvez uma forma de enfrentar tal circunstância seja a pro-cura incessante da integração entre professores e supervisores dos progra-mas de ensino dessa área, preservando-se sempre as naturais diferenças exis-tentes de indivíduo para indivíduo, mas sem que isso represente maior preju-ízo na busca de certa sinergia em torno dos pressupostos básicos que dão suporte à POA. Ademais, é possível imaginar que tal estado de dissociação possa funcionar também como um mecanismo grupal de defesa, de parte de quem transita nessa área, contra as ansiedades que permeiam o estudo da POA. Quanto mais sabemos a respeito de nossos pacientes, mais aprende-mos a respeito de nós mesaprende-mos, e mais nos daaprende-mos conta de que, como eles, também temos um mundo interno sujeito às mesmas condições de funciona-mento, com apenas algumas pequenas variantes, e com vicissitudes seme-lhantes. A dor psíquica faz parte da condição humana, não sendo apanágio exclusivo dos pacientes.

Outro desafio associado ao ensino da POA é o do seu cotejo com as terapias medicamentosas. Talvez por questões de ordem narcísica, nem sem-pre psicoterapeutas e psiquiatras biológicos se permitem um diálogo cons-trutivo. Nesse sentido, creio que discussões estéreis sobre qual das duas téc-nicas é a melhor acabam sempre caindo num vácuo de ideias que não se sustentam. Todos sabemos que a indicação terapêutica de cada caso emana das necessidades apresentadas pelo paciente e não do desejo do terapeuta em provar que sua corrente teórica tem resposta para tudo. Nesse sentido, é sempre útil lembrar Widlöcher34 quando afirma que

é necessário renunciar à visão simplista segundo a qual a medicação opera-ria pela via única de um determinismo biológico, e a psicoterapia por aque-la da liberação de potencialidades psíquicas aque-latentes. Nos dois casos, há uma pressão necessária exercida sobre um modo de funcionamento atual, que pode ser neuronal ou psíquico, para permitir um exercício mais flexível e livre de outras modalidades de funcionamento (p.181).

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Como bem sugere Aguiar35, ter uma visão pluralista nessa área do

ensi-no é fundamental para que a disciplina se mantenha em constante reensi-novação e crescimento, uma vez que a “verdade científica única” estreita sobremanei-ra o pensamento e leva à estagnação.

Para finalizar, penso ser oportuno lembrar Freud36 quando afirma que

“o futuro pode ensinar-nos a exercer influência direta, através de substâncias químicas específicas, nas quantidades de energia e na sua distribuição no aparelho mental. Pode ser que existam outras possibilidades ainda não ima-ginadas de terapia. De momento, porém, nada temos de melhor à nossa dis-posição.” (p.210)

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Correspondência:

Antonio Carlos J. Pires Av. Taquara, 110, sala 404 Porto Alegre, RS, Brasil CEP 90460-210

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