Edição 25 | Novembro/2020
VACINAS
A IMPORTÂNCIA
DA IMUNIZAÇÃO
Febre Amarela
A doença que vem rompendo barreiras
art
.
02
Mestrado e doutorado em Microbiologia Médica
Responsável pela Microbiologia LabPasteur Dasa - CE Dra. Silviane Praciano Bandeira
Febre Amarela
A doença que vem rompendo barreiras
Dra. Silviane Praciano Bandeira
A febre amarela
(FA) é uma doença
infecciosa febril
aguda com grande
importância
epidemiológico
por seu risco
de disseminar
para locais
onde há vetores
competentes para
sua transmissão.
Além disso, os casos
graves apresentam
elevada taxa de
letalidade.
Atualmente a febre amarela consta na lista de notificação compulsória imediata do Ministério da Saúde, conforme a Portaria 204 de 17 de fevereiro de 2016.
A doença é uma arbovirose causada por um Flavivírus , da família Flaviviridae, que se transmite para o hospedeiro vertebrado através da picada de mosquitos vetores infectados. Apresenta dois ciclos de transmissão.
No ciclo silvestre, o vírus é transmitido principalmente por mosquitos dos gêneros Haemagogus ou Sabethes, sendo os primatas não humanos (símios) os seus primatas hospedeiros vertebrados. Neste ciclo, o homem pode funcionar como hospedeiro acidental quando, não imunizado, é inserido em ambiente selvagem por ocasião de trabalho ou turismo. Essa infecção do homem dentro do ambiente silvestre representa o elo potencial entre os ciclos. No ciclo urbano, a transmissão ocorre pela picada de Aedes aegypti e o homem representa
o hospedeiro de importância epidemiológica. Os ciclos da doença e
sua interseção estão demonstrados na Figura 01.
Os vetores da patologia apresentam diferenças em seus hábitos e ciclos de vida. No mosquito Aedes aegypti, por exemplo, a infecção viral persiste por toda a vida. Na manutenção do ciclo viral, também é relevante a transmissão transovariana para descendentes do mosquito.
As principais características dos vetores constam no quadro abaixo (Quadro 01).
Figura 1: Representação dos ciclos silvestre e urbano da febre amarela
Fonte: Ministério da Saúde
Haemagogus
Sabethes
Aedes aegypti
Habitat
Ambiente silvestre, como matas (copa das árvores ou na periferia
das florestas)
Ambiente silvestre, como matas
(copa das árvores)
Ambiente urbano e periurbano
(em torno das residências)
Aparência
Haemagogus
leucocelaenus:
castanho-escuro a preto, sem
listras brancas nas patas;
Haemagogus janthinomys:
corpo brilhoso e colorido
Colorido metalizado, com tons de violeta, roxo, azul e verde (dependendo da espécie)
Preto com listras brancas no tórax e nas patas
Hábito Diurno, com maior atividade para picadas entre meio-dia e o pôr do sol
Diurno, com maior atividade para picadas entre meio-dia e o pôr do sol
Diurno, com maior
atividade para picadas no começo da manhã e no final da tarde, mas também pode picar à noite
Distância de voo
A espécie Hg.
leucocelaenus pode voar
por cerca de 6 km
Não é conhecida
Voa usualmente num raio de 40 a 50 metros. Pode atingir até 800 metros, caso precise
Alvo preferencial Macacos, mas pode picar humanos Macacos, mas pode picar humanos Humanos
Transmissão do vírus da febre amarela
Somente a fêmea
transmite. Responsável pela transmissão no ciclo silvestre
Somente a fêmea
transmite. Responsável pela transmissão no ciclo silvestre
Somente a fêmea
transmite. Responsável pela transmissão no ciclo urbano
Criadouros e oviposição
Deposita os ovos na parede interna de ocos das árvores e bambus, próximo à lâmina d'água
Coloca os ovos diretamente sobre a superfície da água acumulada em ocos das árvores e bambus
Deposita os ovos na parede interna do criadouro,
próximo à lâmina d'água. Tem preferência por
ambientes artificiais, comuns no ambiente urbano: pneus, caixa d'água, bandeja de ar-condicionado, vaso de planta, ralos, dentre outros
Resistência dos ovos
Ficam viáveis para eclosão por cerca de 4 meses em ambientes secos
Precisam entrar em contato com a água logo após a postura. Não resistem em ambientes sem água
Ficam viáveis para eclosão por cerca de 1 ano em
ambientes secos
Ciclo de vida
(da eclosão do ovo à
fase adulta) 7 a 10 dias Cerca de 1 mês 7 a 10 dias
Tempo de vida
(na fase adulta) Cerca de 30 dias Ultrapassa meses após atingir a idade adulta Cerca de 30 dias
Quadro 1: Principais características dos mosquitos vetores da febre amarela.
Fonte: Fundação Instituto Oswaldo Cruz - www.fiocruz.br
Áreas da costa leste brasileira com bioma de mata atlântica passaram a apresentar casos de doença em homens e animais. Até o momento, apenas o ciclo silvestre da doença tem sido observado. Entretanto, dados atuais demonstram o avanço da patologia, atingindo proximidades de regiões densamente povoadas com indivíduos suscetíveis, onde circula o vetor do ciclo urbano da doença, demonstrando um risco para reurbanização da patologia, já que o último caso de FA urbana ocorreu no Acre em 1942.
O Gráfico 01 apresenta série histórica de casos de FA de 1980 até meados de 2018, evidenciando o incremento importante nos últimos anos e o avanço da doença no território nacional (Figura 02).
Até recentemente,
a doença se
limitava a áreas
restritas em nosso
país, consideradas
endêmicas.
Contudo, temos
observado, nos
últimos anos, uma
rápida expansão
para territórios que
até então eram
considerados de
baixo risco para a
doença, sobretudo
na região sudeste
do Brasil.
Gráfico 1: Série histórica dos casos de F.A. no Brasil de 1980 a meados de 2018.
Fonte: Sinan; GT-Arbo/CGDT/DEVIT/SVS/MS; COES-FA | Dados atualizados até a SE-26/2018 Ministério da Saúde Númer o de casos Taxa de letalidade (%) 1400 1200 1000 800 600 400 200 0 100,0 80,0 60,0 40,0 20,0 0,0 39,7 n = 3026
Casos humanos de F.A. Taxa de letalidade (%) Taxa de letalidade média (%)
198019811982198319841985198619871988198919901991199219931994199519961997199819992000200120022003200420052006200720082009201020112012201320142015201620172018
2015 | 2016
2016 | 2017
2017 | 2018
Área afetada Área ampliada
Área com recomendação de vacina (ACRV) Área sem recomendação de vacina (ASRV)
250 0 250 500 750 5000 km
Área afetada Área ampliada
Área com recomendação de vacina (ACRV) Área sem recomendação de vacina (ASRV) C. Áreas afetadas
Área afetada Área ampliada
Área com recomendação de vacina (ACRV) Área sem recomendação de vacina (ASRV)
Fonte: Ministério da Saúde
Figura 2: Avanço da F.A. no território brasileiro e expansão das áreas com recomendação de vacina entre
os anos 2015 e 2018. 250 250 250 250 750 750 5000 km 5000 km 500 500 0 0 7
Em uma pequena parcela dos pacientes sintomáticos (cerca de 15%), a doença pode assumir caráter bifásico, assumindo maior gravidade após período fugaz de melhora clínica e apirexia. Esta é a forma grave da doença, que carreia elevada letalidade e apresenta febre elevada, náuseas, vômitos, dor abdominal, icterícia, manifestações hemorrágicas como melena, epistaxe, hematêmese, além de falência de múltiplos órgãos, sobretudo hepática e renal. Esse quadro clínico pode ser agravado e evoluir para alterações neurológicas, meningite, rebaixamento de sensório, coma e morte. A letalidade, embora variável, costuma ser elevada e depende, dentre outros fatores, do diagnóstico adequado e de medidas terapêuticas eficazes.
O período de viremia ocorre cerca de 24 a 48 horas antes do início dos sintomas e permanece até cerca de 5 dias após. Essa é a fase em que o sangue humano é infectante para o inseto vetor.
O espectro de manifestações
clínicas da doença varia desde
quadros assintomáticos a casos
graves potencialmente letais.
Quando sintomática, a doença apresenta,
no início, quadro clínico bastante inespecífico, assemelhando-se ao de outras viroses, incluindo febre de início abrupto, calafrios, cefaleia, mialgia e adinamia. De forma
clássica, o achado de dissociação entre pulso e temperatura (sinal
de Faget) pode estar presente.
A febre amarela
apresenta período médio de incubação de
podendo ser até de
3 a 6 dias
15 dias
Após anamnese e exame físico detalhados, alguns exames são importantes para definição etiológica, já que a inespecificidade da sintomatologia permite amplo diagnóstico diferencial com outras arboviroses (como dengue e zika), malária, hepatites, sepse, leptospirose, entre outros, a depender do quadro clínico.
Os exames inespecíficos se assemelham a diversos outros quadros virais e fornecem apenas alguns subsídios para suspeita diagnóstica dentro de um contexto epidemiológico compatível.
Para o diagnóstico de FA, aspectos clínicos e epidemiológicos são de essencial importância.
Os quadros mais leves
apresentam evolução autolimitada e as
alterações laboratoriais são inespecíficas com leucopenia e elevação sutil ou moderada de transaminases.
As formas mais graves
cursam com leucopenia e neutrofilia, plaquetopenia, aumento de transaminases, fosfatase alcalina e gama-GT, hiperbilirrubinemia, disfunção renal com elevação de ureia e creatinina, além de alterações de provas de coagulação.
Alguns achados laboratoriais inespecíficos estão resumidos no Quadro 02.
Definir a procedência do paciente, sua exposição a áreas de risco, histórico de viagens a localidades afetadas pela doença e situação vacinal são informações valiosas para a suspeição diagnóstica adequada.
Fonte: Ministério da Saúde
Quadro 2: Manifestações clínicas e laboratoriais mais comuns da FA.
Sempre é desejável firmar
o diagnóstico de forma
assertiva. O suporte
laboratorial específico
para casos de FA inclui
exames que detectam
o vírus de forma direta,
como no isolamento viral
e reação em cadeia da
polimerase (PCR), além
de exames que detectam
sua presença de forma
indireta, mediante
produção de anticorpos,
como é o caso dos testes
sorológicos.
Formas
Sinais e sintomas
Alterações laboratoriais
Leve / moderada náuseas e icterícia ausente Febre, cefaleia, mialgia,
ou leve
Plaquetopenia
Elevação moderada de transaminases Bilirrubinas normais ou discretamente
elevadas (predomínio de direita)
Grave
Todos os anteriores, icterícia intensa, manifestações
hemorrágicas, oligúria e diminuição de consciência
Plaquetopenia intensa Aumento de creatinina
Elevação importante de transaminases
Maligna de forma grave intensificadosTodos os sintomas clássicos Coagulação intravascular disseminadaTodos os anteriores
O isolamento viral deve ser realizado no período de maior viremia, ou seja, nos primeiros cinco dias da doença. Essa abordagem é interessante do ponto de vista epidemiológico para estudos de subtipos virais e muitas vezes se limita a laboratórios de referência. A PCR emprega a técnica em tempo real (RT-PCR) e se aplica também até os primeiros cinco dias do início da sintomatologia. Pode ser realizada em diferentes materiais clínicos. É realizado mais frequentemente em amostras de sangue e detecta a presença do RNA viral em amostras do paciente.
A sorologia para pesquisa de
IgM
eIgG
pode ser realizada por diversas metodologias, entretanto, a mais frequentemente empregada na rotina diagnóstica é a imunofluorescência indireta (IFI). Com sensibilidade e especificidade em torno de95%
, a IFI pode ser realizada em plasma ou soro. Os títulos de IgM começam a ser detectados geralmente nos primeiros dias do início dos sintomas. Um pouco mais tarde começam a ser detectados anticorpos IgG. Em alguns casos, nos quais não ocorre a detecção de IgM, análise pareada de IgG pode também definir infecção recente, quando os títulos sofrem elevação progressiva nas amostras.As reações cruzadas por este método podem checar a 10%,
sofrendo interferência sobretudo com quadros causados por
outros Flavivírus.
Controle epidemiológico
da doença se dá
principalmente pela
vacinação da população
suscetível.
Não há tratamento específico para FA.
Tratamento sintomático com analgésicos
e antipiréticos, repouso e monitoramento
de sinais de agravamento são muitas
vezes suficientes.
Suporte hospitalar pode ser necessário e, em quadros mais graves, internação em Unidades de Terapia Intensiva é fundamental.
A vacina é constituída por vírus vivos atenuados, cultivados em embriões de galinha. A vacina apresenta elevada imunogenicidade (mais de 90% de proteção) e os anticorpos protetores surgem geralmente após sete a dez dias após a aplicação.
Esse prazo justifica a recomendação da vacinação no mínimo 10 dias antes de deslocamentos para áreas de risco da doença. Conforme o calendário vacinal da Sociedade Brasileira de Imunizações (SBIm), a vacina deve ser aplicada a partir de nove meses de idade. A primeira vacina nesta faixa etária pode não acarretar taxas satisfatórias de soroconversão. Por isso, há a recomendação de uma dose de reforço aos 4 anos de idade.
Para adultos, o esquema atualmente recomendado inclui uma única aplicação subcutânea para proteção para a vida inteira, em consonância com a Organização Mundial de Saúde. De forma progressiva, o Ministério da Saúde expandiu as áreas de recomendação de vacinação para todo o território nacional.
Por se tratar de
vacina de vírus vivo
atenuado, a aplicação
é contraindicada
para pacientes em
imunossupressão.
Casos especiais
como gestantes,
alérgicos a ovo e
maiores de 60 anos,
devem ser avaliados
individualmente
para analisar o
risco-benefício da
imunização.
Medidas de proteção como uso de
roupas de mangas compridas e
calças, aplicação de repelentes, uso
de telas nas janelas e evitar adentrar
áreas de mata são complementares
na estratégia de prevenção à doença
em áreas afetadas.
Para áreas rurais, em que o ciclo silvestre da
doença ocorre, a observação de mortandade de
primatas não humanos funciona como evento
sentinela para maior circulação do vírus.
Em áreas onde ocorrem epizootias, aumenta consideravelmente a chance de casos em humanos. A observação desse acometimento animal é muito importante para adoção de medidas mais efetivas de controle. O extermínio dos animais pela população, na realidade, reflete o desconhecimento sobre o ciclo da doença e dificulta a detecção deste importante marcador da intensidade de circulação viral.
Essas estratégias podem facilitar o enfrentamento de novos casos da doença, antevendo o acometimento de novas regiões geográficas e, eventualmente, o ressurgimento do ciclo urbano da doença, que não ocorre no Brasil desde 1942.
É preciso que haja
intensificação dos estudos
epidemiológicos sobre FA,
incluindo a definição de
seus corredores ecológicos,
considerando que grande
parcela da população do
país permanece suscetível e
que os vetores competentes
estão distribuídos por todo
o território nacional.
A reemergência do ciclo urbano da doença necessita de uma
tríade de fatores:
População
suscetível
competente
Vetor
Circulação
viral
V
Tendo em vista o processo de
deslocamento populacional, a
proximidade de áreas onde existe o
vírus e áreas onde se detecta o vetor
competente, além de cobertura
vacinal insuficiente, acreditamos
que esse risco deve ser seriamente
considerado.
Dessa forma, além de chikungunya,
zika e dengue, temos agora mais
um bom motivo para controlar a
proliferação do mosquito Aedes
aegypti: prevenir ou postergar o
ressurgimento de casos urbanos
da FA no Brasil.
Cancado B, Aranda C, Mallozi M, Weckx L, Sole D. Yellow fever vaccine and egg allergy. Infect Dis, 19(8), 813, 2019 doi: 10.1016/S1473-3099(19)30355-X
Doenças Infecciosas e Parasitárias: Guia de Bolso, 8ª edição revista. Ministério da Saúde Brasília-DF, 2010
Febre amarela: guia para profissionais de saúde. Ministério da Saúde, Secretaria de Atenção à Saúde. 1ª edição atualizada, Brasília, 2018
Febre amarela: Informativo para profissionais de saúde. Sociedade Brasileira de Infectologia. 2017
Goldani LZ. Yellow fever outbreak in Brazil, 2017. Braz J Infect Dis. 21 (2):123-124, 2017 doi: 10.1016/j.bjid.2017.02.004
Instituto Oswaldo Cruz. Febre amarela: sintomas, transmissão e prevenção. disponível em www.bio.fiocruz.br
Ministério da Saúde. Febre amarela: sintomas, transmissão e prevenção. Disponível em www.saude.gov.br
Ministério da Saúde do Brasil. Portaria n° 204, de 17 de fevereiro de 2016
Miranda LJC, Agena F, Sartori AMC, David-Neto E, Azevedo LS, Pierrotti LC. Awareness of inadvertent use of yellow fever vaccine among recipients of renal transplant. Transpl Proc, 52 (5), 2020 doi.org/10.1016/j.transproceed.2020.02.182 Sociedade Brasileira de Imunização (SBIm). Calendário de vacinação. Disponível
em www.sbim.org.br/calendarios-de-vacinacao
Sousa, M V, Zollner, R L., Stucchi, R S B., Boin, I F S F., Ataide, E C., Mazzali, M. Yellow fever disease in a renal transplant recipient: case report and a literature review. Transpl Infect Dis, 2019 doi: 10.1111/tid.13151.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS