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PARA ALÉM DO MEDO: REPRESENTAÇÕES DE GÊNERO E SEXUALIDADES NO CINEMA DE HORROR

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PARA ALÉM DO MEDO: REPRESENTAÇÕES DE GÊNERO E SEXUALIDADES NO CINEMA DE HORROR

Gabriela Müller Larocca (Mestrado em História UFPR) Ana Paula Vosne Martins

História Cultural; Cinema de Horror; Gênero 1. Introdução

Vivemos atualmente em uma sociedade moldada e guiada pelos produtos da indústria cultural. Segundo Douglas Kellner, estes nos fornecem determinados modelos de identidade, ou seja, nos “ensinam” o que significa ser homem ou mulher, bem sucedido ou fracassado, poderoso ou impotente e etc. Estas narrativas e imagens nos fornecem símbolos, mitos e recursos que ajudam a constituir uma cultura em comum: uma cultura da imagem, que explora a visão e a audição, trabalhando com emoções, sentimentos e ideias (KELLNER, 2001). Os produtos da cultura da mídia, como o cinema e a TV, não são entretenimento puro e inocente, possuindo cunho ideológico e associando-se à lutas, programas e ações políticas das sociedades nos quais foram idealizados e lançados. O cinema de horror1, talvez mais do que qualquer outro gênero, exerce grande impacto na vida das pessoas, conseguindo captar sentimentos, ansiedades e temores culturais, de forma que os medos e inseguranças coletivas pareçam projetados na tela do cinema.Sendo assim, tal gênero cinematográfico se mostra interessado nas práticas culturais, políticas e sociais de sua época de produção.

É preciso compreender que algumas imagens podem se referir a formações discursivas e culturais bastante complexas. Desta forma, o objetivo deste trabalho é problematizar o cinema de horror enquanto fonte histórica e de como a partir de uma maneira perversa e violenta representa um ajustamento visível nos termos de representação de gênero e da figura feminina, em um contexto cultural estadunidense abertamente conservador. Portanto, dividimos este texto em dois momentos distintos.

1 Para este trabalho consideramos o gênero cinematográfico como sendo de Horror e não Terror. Para isso nos apoiamos na distinção feita por Rick Worland em seu livro The Horror Film (2007). Segundo o autor, o terror evolui de uma construção cuidadosa do suspense, perturbando ao criar apreensão de que alguma coisa horrível pode acontecer. Já o horror é uma forma emocional que não produz apenas ansiedade, mas também repulsa, se tratando de algo que literalmente aconteceu. Ou seja, se o terror faz o espectador se preocupar com o que pode vir a acontecer, o horror mostra efetivamente e concretiza este medo.

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Primeiramente, discutiremos o subgênero do cinema de horror denominado

slasher/stalker, procurando descrevê-lo e alinhá-lo a um determinado contexto

histórico. Em um segundo momento faremos um breve percurso por três filmes estadunidenses considerados precursores do subgênero, tendo em mente que entender sua popularidade pode elucidar o contexto de sua criação e circulação: Carrie, a Estranha (1978), Halloween (1978) e Sexta-Feira 13 (1980). Sendo assim, procuramos identificar e analisar suas representações de gênero e de sexualidade, bem como a abordagem específica em relação às mulheres, alvo preferencial da violência e da punição em tais produções.

2. Horror, Cultura e Sexualidade

O sentimento de horror é universal, aparecendo de diversas formas e retratado por inúmeras instâncias midiáticas em praticamente todas as culturas humanas. O que hoje consideramos histórias de horror destinadas a um entretenimento comercial foram por muitos séculos vistas como crenças e práticas religiosas. Ao final do século XIX a nova mídia cinematográfica se uniu a uma tradição em andamento de narrativas assustadoras que permeavam a mitologia, a pintura, o folclore, a literatura, o teatro popular e outras formas culturais. Apesar da experiência emocional do horror ser universal, a forma pela qual esta se assume, a natureza e definição do monstro, seu personagem central, é histórica e culturalmente moldada (WORLAND, 2007, P. 26).

Os monstros, categoria que engloba diversos tipos de antagonistas, são antinaturais e assustam porque não se encaixam ou violam um esquema de ordem cultural e natural, sendo ameaças ao saber comum e consequentemente excluídos da hierarquia social. O questionamento lançado é então como que o horror atrai e agrada tantos consumidores se o faz por meio de algo repulsivo que causa inquietação, medo e aflição. Os filmes de horror ganham cada vez mais poder atrativo tendo em vista que podem desenvolver e expressar tematicamente preocupações apropriadas e ligadas ao período em que foram produzidos.

Em sua trajetória cinematográfica, o gênero é marcado pela existência de ciclos, ou seja, em determinados períodos possui um grande público, dando ênfase a uma determinada temática ou enredo, enquanto em outros, seu público é mais seleto,

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trabalhando com temas dispersos. É possível identificarmos ciclos como os filmes clássicos da Universal Studios nos anos 19302, durante a Grande Depressão e o ciclo de ficção científica/horror dos anos 1950 que coincide com a primeira fase da Guerra Fria e com o medo estadunidense da ameaça comunista internacional. Segundo Noël Carroll:

Observa-se com frequência que os ciclos de horror surgem em épocas de tensão social e que o gênero é um meio pelo qual as angústias de uma era podem se expressar. Não é de surpreender que o gênero de horror seja útil nesse aspecto, pois sua especialidade é o medo e a angústia. O que provavelmente acontece em certas circunstâncias históricas é que o gênero é capaz de incorporar ou assimilar angústias sociais genéricas em sua iconografia de medo e aflição. (CARROLL, 1999, P. 277) Um dos ciclos ou subgênero mais famoso e economicamente próspero do horror é o denominado como ciclo de slasher ou stalker.3 Até meados do século XX a noção de filme de horror era caracterizada por cenários góticos, afastados da cidade, povoados por criaturas sobrenaturais como vampiros e lobisomens. Tal definição começa a ser reformulada com o sucesso estrondoso de Psicose (Alfred Hitchcock, 1960), que assinala uma mudança enorme nos filme do gênero. A partir da década de 1960 a definição popular do gênero passaria a ser a de um psicopata, predador sexual, que persegue a todos. Psicose mostrou nas telas uma quantidade de sangue e de violência direcionadas a mulher, como na clássica cena do chuveiro, que não possuía precedentes em Hollywood, equalizando cinema, sexo e violência assassina (WORLAND, 2007, PP. 86 – 87). Em 1968, o abandono da restrição de conteúdo e a adoção de um sistema de classificação de filmes mais leve possibilitou a exploração sem precedentes de uma violência mais gráfica, explícita e sexualizada nas telas.

No início da década de 1970, os filmes indicavam os conflitos, confusões e possibilidades de libertação da chamada revolução sexual estadunidense das décadas de 1960 e 1970 (WORLAND, 2007. P. 96). A influência temática e estilística de Psicose apareceu em inúmeras produções como Carrie, a Estranha e Halloween. É justamente

2 Influenciada pelo estilo chamado Expressionismo Alemão, que teve seu auge durante as décadas de 1920 e 1930, a Universal Studios investiu em monstros literários famosos como Drácula (1931) e Frankenstein (1931) adaptados dos romances homônimos de Bram Stoker e Mary Shelley. Durante a década seguinte, a companhia se estabelece na indústria do cinema trabalhando com atores famosos como Boris Karloff, Bela Lugosi e Claude Rains.

3 Slasher deriva da palavra inglesa slash que significa retalhar ou cortar, logo, slasher é aquele que corta ou usa algum instrumento afiado para atacar. Stalker vem do verbo inglês stalk, que significa seguir ou perseguir.

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com este último, em 1978, que podemos traçar o começo desse novo subgênero: o ciclo de slasher/stalker. Simultaneamente a seu sucesso comercial, o ciclo foi condenado pela imprensa midiática devido ao uso excessivo de violência. Alguns críticos cinematográficos, como o estadunidense Roger Ebert, consideravam tais tipos de filmes perigosos por incentivar a violência e a identificação do espectador com o assassino. Segundo Vera Dika, tal subgênero possui um recorte temporal muito específico, se iniciando em 1978 e se estendendo até 1981 (DIKA, 1987, P. 86).

Tais filmes contam com narrativas muito similares, geralmente a história de um psicopata que persegue e mata um grupo de adolescentes restando ao final apenas um único sobrevivente, comumente uma personagem feminina. O assassino é mantido mascarado ou fora da tela durante grande parte do filme e sua presença é indicada primeiramente pela trilha sonora e por uma série de tomadas distintivas, sendo a mais famosa a que toma seu ponto de vista (DIKA, 1987, PP. 88). As vítimas são em sua grande maioria adolescentes, transgressores sexuais, marcados para a destruição devido a seus comportamentos irresponsáveis e envolvimentos com bebidas, drogas ilícitas e sexo. Em tais produções o assassinato com requintes de crueldade direcionado a jovens ativos sexualmente é um imperativo. Tais personagens não realizam nenhuma ação significativa para a narrativa, sendo meramente transitórias e servindo apenas ao propósito de serem assassinadas. Entretanto, a morte feminina é sempre a mais violenta e associada a uma crueldade mais “racionalizada”, tanto do ponto de vista do roteiro quanto dos “métodos” dos assassinos. Algumas garotas morrem porque estavam fazendo sexo, porém independentemente do filme, o motivo maior é sempre o mesmo: elas morrem por serem mulheres (CLOVER, 1993).

O termo body-count movie4, se tornou um apelido para este tipo de horror, já que seus enredos aumentaram significativamente o número de vítimas e intensificaram a violência de suas mortes (WORLAND, 2007, P. 231). Sendo assim, com o sucesso comercial de Halloween, o ciclo logo virou uma fórmula repetitiva que reciclava alguns de seus elementos, como a perseguição implacável de adolescentes, a câmera subjetiva e a música. Depois do exemplo de Norman Bates em Psicose, os assassinos se tornaram,

4 A expressão usada por inúmeros críticos cinematográficos pode ser traduzida como “filme de contagem de corpos”.

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em grande parte, sexualmente confusos que encenavam alguma vingança psicótica por traumas sofridos no passado. A exploração interminável do corpo e da nudez feminina seguida de um assassinato sangrento e cruel levou esses filmes a serem descritos como “mostre seus seios e morra”5. É interessante notar que apesar da quantidade de sangue, o público que frequentava as salas de cinema para estes filmes era em sua grande maioria jovem, adolescentes entre 12 e 17 anos que asseguraram a popularidade do ciclo até meados dos anos 1980 (DIKA, 1987, P. 1987) Sendo assim, a grande questão que permeia este trabalho é por que esse subgênero fez tanto sucesso em determinada época e lugar? Por que as personagens femininas sofrem de uma violência mais gráfica e seus corpos são mais expostos e sexualizados perante a câmera?

Enquanto os monstros e assassinos dos enredos de horror são definitivamente irreais, as implicações das histórias narradas e atuadas por eles podem nos oferecer percepções acerca do mundo que vivemos (WORLAND, 2007, P. 13). De tal maneira, estas imagens assustadoras e complexas não apenas perturbam sua audiência, como também exploram e expõem profundas fissuras psicológicas e sociais. Podemos afirmar então que os filmes do subgênero slasher/stalker são produtos e também comentários acerca de seu tempo de produção, já que a fórmula empregada por tais audiovisuais atinge grande sucesso paralelamente a um período de transição na história estadunidense (DIKA, 1987, P. 97).

Ao final da década de 1970, de vários lugares e de diferentes pontos da produção cultural, se observa um movimento de retorno nostálgico às imagens e motivações dos anos 1950, vistos como anos mais puros, simples e como uma época associada à felicidade e à ordem social e moral que foram abaladas pela contracultura e pelos movimentos sociais dos anos 1960. Em meio à modificação dos valores e instituições tradicionais, muitos grupos sociais procuraram respaldo em um passado considerado como sendo portador de valores e de segurança. É importante ressaltar que nem todos apoiavam a expansão das liberdades, sendo estas compreendidas como uma ameaça ao patriarcado, à família heterossexual, à religião e aos bons costumes. Do ponto de vista

5 Tradução nossa do termo “show your tits and die”. Original pode ser encontrado em: WORLAND, Rick. The Horror Film: An Introduction. Australia: Blackwell Publishing, 2007. P. 105

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cultural, o retorno à uma estética dos anos 1950 correspondeu ao fortalecimento de filosofias e políticas conservadoras, reflexo de um senso comum de que a moral e os valores ocidentais estavam sendo corrompidos e seriamente ameaçados. Vemos surgir um novo projeto de reestabelecer a autoridade e a tradição que permeia a vida cultural, política, econômica e social e que encontra um canal de divulgação e ressonância nas mídias (KARNAL, 2007). Constituía-se um movimento conservador que se irradiou em diversos setores da sociedade e da cultura estadunidense, sendo um de seus alvos centrais de reação a sexualidade e a liberação feminina. Críticas ao feminismo, à homossexualidade, ao aborto e ao divórcio começaram a ser tornar mais articuladas e frequentes. As pretensões políticas da considerada segunda onda feminista foram rechaçadas pelo neoconservadorismo que contou com o apoio da produção cultural e encontrou no cinema um forte aliado.

Em 1980 a eleição de Ronald Reagan foi a culminação de um processo que pretendia reverter os ideais, aspirações e atitudes dos anos 1960, com um retorno aos valores e imagens tradicionais: família, lar e religião. O estilo dos hippies foi substituído por uma nova conduta pessoal e conservadora (DIKA, 1987, P. 98). Como um produto cultural do final dos anos 1970 e início dos 1980, o subgênero

slasher/stalker evidencia essa mudança de atitude e de humor nacional, sendo que a

configuração de seus elementos pode ser abordada como uma forma de explicar como antigas atitudes e comportamentos eram considerados ineficazes e até mesmo perigosos:

Para os jovens espectadores dos filmes de stalker, na iminência da vida adulta e prontos para formular ideias acerca de carreira, política e família, estes filmes demonstravam a ineficácia da liberdade sexual, de atitudes sem objetivos e da atitude passiva (DIKA, 1987, PP. 98-99)6

As jovens vítimas morrem então como um exemplo da ineficácia das antigas ideias e também como uma forma de punição, principalmente para as jovens mulheres. É justamente durante o período de auge desses filmes que é possível mapear o início de uma propagação de ideias que afirmavam que o movimento feminista teria sido o pior

6 Tradução nossa de “To the stalker film’s young audiences, on the brink of adulthood and ready to formulate ideas on careers, politics, and family, these films demonstrate the inefficacy of sexual freedom, of casual, nongoal-oriented activity and of a nonviolent attitude”

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inimigo das mulheres. No cinema e na televisão mulheres solteiras, independentes e feministas eram cada vez mais representadas de forma negativa, em uma tentativa de demonstrar que a revolução sexual não deu certo e que as mulheres tidas como livres tornaram-se desesperadas e infelizes. Ao longo dos anos 1970 e 1980 cunha-se um contra-ataque aos direitos das mulheres, ou seja, uma tentativa de reduzir as conquistas do movimento feminista, denominado como backlash.

O avanço mais recente do backlash veio à tona em meados dos anos 1970 entre as fileiras da direita evangélica (FALUDI, 2001). Uma vez que a resistência contra os direitos das mulheres tinha adquirido aceitação politica e social, passou-se decisiva e abertamente para a cultura popular. A partir de meados dos anos 1970 nota-se um aumento de políticos da Nova Direita condenando a independência das mulheres, manifestantes contra o aborto jogando bombas incendiárias em clínicas e pregadores fundamentalistas condenando as feministas como “prostitutas” ou “bruxas”. Outros sinais de brutalidade chegam à consciência do público com o repentino aumento dos casos de estupro ou o crescente sucesso da pornografia que exibe extrema violência em relação ao corpo feminino (FALUDI, 2001, P. 20). É importante ressaltar que o

backlash compõe-se de manifestações, códigos, ameaças e mitos que possuem pesos e

significados diferentes, mas que procuram adequar novamente as mulheres aos papéis tidos como aceitáveis e moralmente corretos pela sociedade patriarcal.

De tal maneira, o ciclo slasher/stalker pode funcionar como um bom exemplo de veiculador desse movimento. Podemos afirmar que encontramos em tais filmes manifestações de ansiedade em relação à puberdade feminina, sua sexualidade, emancipação e função reprodutora. Com apoio das imagens e dos sentidos produzidos pelo cinema, a prática social permeia a dimensão cultural. Sendo assim, podemos levantar a hipótese de que filmes, como Carrie: A Estranha, Halloween e Sexta-Feira 13 criaram representações de figuras femininas, principalmente adolescentes, muito ligadas a um movimento conservador estadunidense que ganhava cada vez mais força no âmbito social e político.

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Carrie, a Estranha foi lançado em 1976, adaptação do romance homônimo de Stephen King7, sendo dirigido pelo estadunidense Brian De Palma8, com um orçamento entre $1,8 milhões de dólares e rendendo posteriormente mais de $135 milhões. O filme conta a história da tímida adolescente Carrie White de 17 anos, que devido a suas roupas estranhas e criação religiosa, sofre todos os tipos de humilhações por parte de seus colegas da escola, sendo considerada a outsider social do colégio.

O grande diferencial é que Carrie possui poderes paranormais que são fortalecidos com a chegada de sua primeira menstruação. O filme envolve em seu enredo traumas da adolescência e da criação materna, pautando-se em uma sexualidade contida pela mãe repressora e psicótica. Com a menstruação, a personagem se “transforma” em mulher, podendo exercer a maternidade. Ignorando o que acontecia devido à educação repressora de sua mãe, em uma das primeiras cenas do filme, a jovem acredita que está morrendo devido a quantidade de sangue. Sua mãe, uma fanática religiosa, diz a ela que o sexo é algo sujo e que os homens são seres perversos. Ao pronunciar tais palavras a Sra. White reforça o medo e a ansiedade tão associados historicamente ao corpo e à sexualidade feminina. Ao ser convidada para o baile da escola e ser submetida a uma perversa “brincadeira” envolvendo um balde contendo sangue de porco jogado em cima de sua cabeça, Carrie dá início à morte e à destruição, matando praticamente todos os seus colegas com seus poderes paranormais. O filme é notadamente marcado por uma imagética menstrual, iniciando com a menarca da personagem e atingindo seu clímax com o sangue de animal que transforma Carrie em um ser demoníaco e destruidor. A imagem angelical e ingênua da personagem, que é construída ao longo do filme, é suplantada por uma figura demoníaca com poderes sem controle, iniciados pelo sangue menstrual, fonte de sua dor, mas também de seu estranho poder. No filme vemos a reatualização da associação da figura feminina como o Mal encarnado, bem como da maternidade anormal, ou seja, sua possibilidade como ritual de morte e não de vida (MARTINS, 2010). Ao mapear o sobrenatural em uma adolescente e engajando-se na

7 Acerca de seu livro, o autor afirma que a personagem é em grande parte uma representação de como as mulheres encontram seus próprios canais de poder e de como os homens temem as mulheres e suas sexualidades (CLOVER, 1993).

8 Além de Carrie, Brian De Palma dirigiu: Vestida para Matar (1980), Scarface (1983), Os Intocáveis (1987) e outros.

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linguagem do fantástico o filme apresenta uma visão masculina em que o feminino é constituído como monstruoso e anormal.

Dois anos após o lançamento de Carrie, John Carpenter9 dirige Halloween: A Noite do Terror. É um dos filmes mais imitados na história do cinema estadunidense e também um dos mais lucrativos10. A trama gira em torno de um assassino psicótico, Michael Myers, que persegue os moradores de uma pequena cidade fictícia do interior dos Estados Unidos durante o Dia das Bruxas, matando um grupo de amigos adolescentes, sendo que apenas uma garota, Laurie, interpretada por Jamie Lee Curtis, sobrevive. Na cena de abertura do filme dividimos o ponto de vista com alguém que rodeia uma casa e observa uma adolescente com seu namorado no sofá. O casal sobe para o andar superior e é seguido por esse intruso, que com uma máscara de palhaço, assassina os jovens com uma faca de açougue. Logo, descobrimos que o assassino é uma criança de cabelos loiros e olhar inocente, fantasiado de palhaço e com o nome de Michael. Quinze anos após os acontecimentos do início do filme, Michael escapa da clínica psiquiátrica em que estava internado e volta para sua cidade natal, Haddonfield, lugar do crime original e onde mora Laurie e seu grupo de amigos.

O assassino funciona como uma figura punitiva que impõe, mesmo de maneira absurdamente anticonvencional, a ordem em um mundo caótico, castigando comportamentos sexuais. Trata-se portanto de um retorno cultural aos valores mais conservadores. As figuras materna e paterna estão ausentes, facilitando, graças à sua negligência, os atos dos adolescentes, ou seja, a função do slasher é substituir os pais e sua disciplina, julgando e punindo severamente tais comportamentos considerados depravados ou imorais (PHILLIPS, 2007).

A única sobrevivente ao ataque descontrolado de Michael é Laurie11, um modelo ideal de adolescente dentro dos novos padrões conservadores: sem experiência sexual,

9 John Carpenter é um diretor estadunidense conhecido por seus filmes de horror e de ficção científica. Dirigiu também: O Nevoeiro (1980), Fuga de Nova York (1981), Christine, O Carro Assassino (1983) e diversos outros longas.

10 O filme deu origem a uma franquia com mais nove filmes, respectivamente: Halloween II – O Pesadelo Continua (1981); Halloween III – A Noite das Bruxas (1982); Halloween IV – O Retorno de Michael Myers (1988); Halloween V – A Vingança de Michael Myers (1989); Halloween VI – A Última Vingança (1995); Halloween H20 – Vinte Anos Depois (1998); Halloween – Ressurreição (2002); Halloween (2007) e Halloween II (2009), sendo os últimos dois refilmagens.

11 Na sequência, Halloween II (1981), o espectador fica sabendo que Laurie é na verdade a irmã mais nova de Michael, adotada por outra família.

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dedicada aos estudos e com qualidades maternas, atuando enquanto babá de duas crianças e priorizando sua segurança. Sua pureza é justamente o que a defende da ira do

slasher. Halloween surge então, como um conto de punição e imposição de valores

tradicionais em uma época associada à permissividade e ao declínio dos valores familiares. O filme usa elementos básicos e que serão utilizados por inúmeras outras produções: um assassino confuso e indeterminado sexualmente; uso de armas primitivas e fálicas; vítimas, em sua maioria jovens sexualmente ativos, em que as mulheres sofrem maior violência e por último, a existência da final girl12, ou seja, uma

personagem feminina que sobrevive a todos os ataques por se enquadrar no modelo conservador fortalecido nos Estados Unidos durante as décadas de 1970 e 1980.

É nesse ambiente que em 1980 um filme muito inspirado em Halloween chega às telas de cinema, dirigido por Sean S. Cunningham.13 A história de Sexta-Feira 13 se inicia em 1958 quando um casal de monitores do acampamento Crystal Lake, namora escondido ao invés de cuidar das crianças que estavam sob sua responsabilidade. Como resultado, um menino, Jason Voorhees, se afoga no lago, sendo que logo na sequência os adolescentes são mortos a facadas por um assassino desconhecido. Voltando para 1980, o acampamento está prestes a reabrir depois de 22 anos e dessa vez um novo grupo de jovens volta ao local para trabalhar, porém antes do verão começar os assassinatos recomeçam. Eles são perseguidos e mortos de forma brutal e violenta, com exceção de Alice Hardy, interpretada por Adrienne King, até que no clímax nos é revelado que o assassino é, na verdade, a bondosa Mrs. Voorhees, mãe do menino que se afogou em 1958.

O enredo apresenta personagens muito recorrentes no imaginário estadunidense: a garota mais experiente sexualmente; o atleta; o namorado em potencial; o palhaço da turma e a última sobrevivente, aquela adolescente caracterizada por sua sexualidade sob controle e adequada aos padrões mais conservadores. Os jovens, principalmente as meninas, sofrem mortes extremamente violentas, punidas por seu comportamento permissivo com seus corpos e se transformando nos principais alvos do assassino. O

12 Termo cunhado pela professora estadunidense de estudos cinematográficos Carol J. Clover em seu ensaio Her Body, Himself publicado originalmente em 1987.

13 Conhecido por criar a franquia de filmes Sexta-Feira 13, dirigiu poucos filmes, se concentrando na área de produção de filmes do gênero de horror como: Aniversário Macabro (1972) e House (1986).

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acampamento de férias, tão presente na cultura estadunidense, como um lugar idílico e pacífico, se transforma no caos e na violência. O que deveria ser o melhor momento de suas vidas acaba se tornando uma lição sangrenta de adequação e comportamento.

A personagem Mrs. Voorhees, interpretada por Betsy Palmer, evoca outra imagem feminina que é a da maternidade disfuncional e causadora do mal. Ao longo do filme, a personagem interage com os adolescentes, se revestindo com uma personalidade amorosa, bondosa e dedicada. Porém, ao alcançarmos o clímax, é desvendada sua verdadeira face: de mãe louca e violenta, ou seja, representante do estereótipo de que as mulheres são seres capazes de descambar para a loucura e para a violência quando não conseguem a realização plena de sua pretensa natureza feminina. A imagem da mulher enquanto mãe representa uma norma e quando esse papel lhe é negado, esta pode ser impelida a extremos psicóticos e perversos (KELLNER, 2001). A psicopatia da personagem é tanta que Jason, seu filho, vive dentro da sua mente, a incitando a cometer os crimes. É fato que mulheres assassinas são raras em filmes de horror, sendo que suas razões para tal ato são significantemente diferentes dos homens, ou seja, Mrs. Voorhees atua como uma figura punitiva, mas diferentemente de Michael Myers, encarna a figura familiar, mais notadamente a materna. O filme deu origem a 12 sequências14, sendo que somente a primeira possui um personagem assassino feminino. A partir de Sexta-Feira 13 – Parte II, lançado em 1981, o slasher se torna o próprio Jason Voorhees, que inexplicavelmente ganha vida novamente e assume uma fisionomia adulta.

4. Considerações Finais

A história dos filmes de horror está essencialmente ligada à história da ansiedade no século XX, sendo que por meio da retrospectiva e da distância crítica é possível examinarmos a complexa relação entre filme e cultura, medo ficcional e ansiedade cultural, familiaridade e choque. São justamente suas relações com determinados

14 Sexta-Feira 13 – Parte II (1981); Sexta-Feira 13 – Parte III (1982); Sexta-Feira 13 – O Capítulo Final (1984); Sexta-Feira 13 – Parte V: Um Novo Começo (1985); Sexta-Feira 13 – Parte VI: Jason Vive (1986); Sexta-Feira 13 – Parte VII: A Matança Continue (1988); Sexta-Feira 13 – Parte VIII: Jason Ataca Nova York (1989); Jason Vai Para o Inferno: a Última Sexta-Feira (1993); Jason X (2001); Freddy VS. Jason (2003) e Sexta-Feira 13 (2009), o último sendo uma refilmagem do original de 1980.

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momentos culturais que tem potencializado suas recepções, ou seja, certos filmes podem ser considerados como medidores de um humor nacional e também como importantes espaços culturais onde os cidadãos podem se engajar num escape e examinar tendências, assim como fazer escolhas de como reagir e interpretá-las.

De tal forma pretendemos compreender o surgimento de uma violência extrema direcionada ao corpo feminino no cinema de horror em um contexto estadunidense marcado pelo retorno de imagens e políticas conservadoras. Entendemos que o horror também se encontra inserido dentro das representações de gênero e sexualidades, tendo como alvo principal nesse período, o público adolescente, criando identificações com os personagens exibidos nas telas e atuando como advertência, principalmente para as mulheres. Estas foram relegadas à ausência, silêncio e marginalidade por muito tempo, seja na sociedade, nas produções culturais ou na produção do conhecimento. A questão do olhar masculino no cinema reforça tal ideia, sendo este visto como capaz de dominar e reprimir a mulher por meio de um poder controlador sobre seu discurso e desejo (KAPLAN, 1995). Tendo isto em mente, acreditamos ser de suma importância entender como esta construção de gênero - a mulher - é inserida no audiovisual, principalmente no recorte temporal escolhido, quando a brutalidade contra o corpo feminino ganha espaço inigualável nos filmes de horror. Sendo assim, mesmo sendo condenado por muitos, o cinema de horror e seus diferentes subgêneros podem ser inseridos e vistos como objetos válidos de conhecimento, já que se inspiram em inquietações e ideologias de seu público para criar significados, discursos e proposições acerca da sociedade em que foram produzidos e recebidos.

5. Referências Bibliográficas

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CLOVER, Carol. Men, Women and Chain Saws: Gender in the Modern Horror Film. Nova Jersey: Princeton University Press, 1993.

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Horrors: Essays on the Modern American Horror Film. EUA: University Of Illinois

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FALUDI, Susan. Backlash: O Contra-ataque na guerra não declarada contra as mulheres. Rio de Janeiro: Rocco, 2001.

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KARNAL, Leandro. História dos Estados Unidos: das origens ao século XXI. São Paulo: Contexto, 2007.

KELLNER, Douglas. A Cultura da Mídia – Estudos Culturais: Identidade e Política Entre o Moderno e Pós-Moderno. Bauru, São Paulo: EDUSC, 2001

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