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Erotismo e gozo: reflexões a partir do sadismo e o masoquismo na neurose e na perversão

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Academic year: 2021

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Erotismo e gozo: reflexões a partir do sadismo e o masoquismo na neurose e na perversão

A questão do erotismo na psicanálise poderia ser contornada pelo viés do desejo, do fantasma, da pulsão e do gozo. Falo contornar porque trata-se disso; de contornos, bordas, superfícies e texturas.

O erotismo tem uma peculiaridade: ele é extremamente singular. O que para um sujeito resulta erótico não necessariamente é para outro, pois além do que define a resposta fantasmática para cada um, temos ali o encontro de duas condições; os elementos que nos oferece a cultura e os circuitos traçados pela pulsão que definem certos modos de gozar; o universal e o singular. Assim, o que para um sujeito resulta erótico pode cobrar as mais diversas formas, tempos, espaços e volumes: uma parte do corpo (próprio ou do outro), um olhar, um cheiro, um tom de voz, uma palavra, uma caricia, uma mordida, uma batida, uma lingerie, um salto alto, uma roupa de renda, uma imagem, uma música...

Me parece que a partir da proposta que faço na presente articulação, poderíamos localizar borromeanamente o erotismo no espaço que define a corda imaginária que avança sobre o real, na medida em que o erótico permite velar, de forma instigante e singular, o que nos resulta insuportável: o real do sexo.

O erotismo nos conduzir num movimento de cobrir e ao mesmo tempo repassar (com o tato, com a voz, com o olhar) as superfícies e os contornos dos buracos do corpo, movimento que cativa o sujeito. Bataille o define como: “o desequilíbrio em que o próprio ser se põe em questão; [...] o ser se perde objetivamente, mas nesse momento o indivíduo identifica-se com o que se perde”; frase que me faz pensar sobre a questão do objeto no erotismo e sobre que tipo de identificação é essa do sujeito com o objeto, o que me envia inevitavelmente à questão do objeto a e do gozo.

Erotismo e gozo parecem intimamente atrelados, o primeiro mais situável no imaginário, o segundo da ordem do real. No ato sexual um sujeito goza de

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partes do corpo do outro: um é sujeito e o outro é seu objeto de gozo, não há laço que faça esse semblante de Um como diz Collet Soller com relação ao amor. O amor é semblante de laço entre dois sujeitos, o gozo não é laço na medida em que o outro é um objeto parcial. Gozar, disse Lacan “é usufruir de um corpo. Gozar é abraça-lo, estreita-lo, é pica-lo em pedaços”. É procurar no corpo do outro o próprio objeto a. Então, retomando a citação de Bataille, ali há um sujeito que se perde, e o gozo em si se perde e se recupera num mais-de-gozar para novamente perder-se.

Mas quando nos aproximamos do erotismo nestes termos, falamos de uma questão própria do campo da neurose. ¿Devemos entende-lo desde uma outra lógica quando entramos no terreno da perversão? Me parece que uma das vias possíveis para acompanhar esta pergunta é retomar a questão do gozo a partir de um elemento articulador: o sado-masoquismo.

O casal sado-masoquista, tão paradigmático nas nossas fantasias sobre “o quê é gozar”, nos leva na neurose à ilusão de uma falsa complementaridade. Falsa no sentido de parcial e imaginária. Nos leva à fantasia de que é possível fazer Um, um par que se une num gozo infinito; duas caras de uma moeda, onde os gozos do agressor e o agredido se encontram e produzem um calce. Mas o que a psicanálise nos diz é que justamente não existe tal complementaridade entre os sexos, entendendo os sexos como posições de um lado ou outro nas fórmulas da sexuação. Não há como fazer Um, declara Lacan. Não há possibilidade de complementaridade, de relação sexual entre homem e mulher. O gozo masculino é fálico; o gozo feminino suplementário, para além do falo.

Assim, retomando a questão anteriormente colocada: ¿podemos falar sobre gozo masoquista ou sádico na neurose? ¿Quando sabemos que estamos no campo da neurose e quando estamos no território da perversão?

O neurótico fantasia e vivencia algo desse gozo que costumamos caracterizar de perverso pela sua performance, pela sua forma de se colocar em jogo. A agressão, a violência, a submissão, costumam fazer parte das brincadeiras eróticas; são elementos que escutamos com frequência na clínica

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e os experimentamos na nossa própria vida sexual. "Tive que deixar meu namorado anterior porque cada vez que tínhamos sexo ele fazia de conta que me enforcava. Colocava as mãos no meu pescoço e começava a fazer pressão até ejacular. Aceitei no começo mas depois senti temor e tive que parar com tudo", me relata uma paciente numa sessão. Isso nos coloca perante a pergunta: ¿de que gozo se trata nessa cena? Da posição dela podemos escutar alguns elementos que nos dão certas diretrizes: ela se submete mas com um certo limite, razão pela qual podemos supor que se trata ali de uma “submissão neurótica”, que não é radical e aparece como uma forma de responder à demanda do seu parceiro. Ela faz de conta (pelo menos ela sim), ela joga o jogo mas logo desiste, o que nos faz pensar que essa não é sua única forma de gozar. Com relação ao gozo do seu parceiro, só poderíamos especular... É assim como vem à minha memória algumas cenas do filme "Elle" do diretor Paul Verhoeven onde a protagonista interpretada por Isabelle Huppert é estuprada e espancada pelo seu parceiro em cada encontro sexual. Ela questiona, se interroga. Ela está disposta a transar com ele, a interpretar um personagem se for necessário; mas a brincadeira não para e sempre sai do controle. Cada coito é invariavelmente marcado pela agressão e pela montagem da cena do estupro. Assim, seu parceiro afirma, sem vacilação, que para ele “não existe outra forma", frase que podemos completar como: “não existe outra forma de gozar”. O que podia ter sido uma brincadeira erótica entre dois neuróticos, perde seu valor de erotismo e vira um ato cru e brutal.

Estas duas situações, uma extraída da experiência clínica e a outra extraída da experiência voyeurística que suscita o cinema, me permitem trazer essa questão já trabalhada amplamente na psicanálise: as formas do gozo no perverso são restritas, não há infinitas possibilidades. Daqui podemos partir para pensarmos em algumas diferenças estruturais entre neurose e perversão.

Perversão não é completamente alheia à neurose; foi o próprio Freud quem nos coloca a questão de uma sexualidade perverso – polimorfa na infância de todo neurótico. Por outro lado, tanto neurótico quanto perverso se deparam com algo que lhes resulta insuportável, a falta no Outro. Porém, cada um teria modos diferentes de responder a essa falta, como assinala a psicanalista Marta

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Gerez Ambertín: o neurótico, se sustentando na sua inserção na linguagem e na operabilidade de certos véus imaginários, recorre a alguns mecanismos que não resultam tão eficazes e radicais para se defender do insuportável da castração. O perverso, por sua parte, utiliza mecanismos que lhe permitem asseverar que essa falta não existe. Assim por exemplo vemos a função do fetiche como artefato que efetivamente tampona a castração. O sujeito perverso acredita num Outro não castrado; daí que Lacan chamasse os perversos de “os últimos crentes”, e nesse sentido o perverso não é quem transgrede uma lei mas sim quem leva a lei até as últimas consequências. Ainda no seminário 16 lemos: “... o perverso é aquele que se consagra a tapar o buraco no Outro. Para introduzir aqui as cores que dão relevo às coisas direi que, até certo ponto, ele está do lado do fato de que o Outro existe. É um defensor da fé”. Desta forma, neurose e perversão se configuram como diferentes modos não só de gozar, mas de existência.

Enquanto na fantasia neurótica o sádico e o masoquista fazem Um no encontro dos seus gozos, o sádico perverso e o masoquista perverso jamais poderiam corresponder-se nesse encontro. Deleuze disse que não pode-se falar em sado-masoquismo, pois o sádico não tomará como objeto àquele que lhe implora por dor, e o masoquista não forçará ao outro a fazê-lo sofrer.

O neurótico pode gozar de uma forma que tenha uma aparência ou mascarada masoquista. O próprio Freud teoriza, em função do que a clínica lhe oferece, sobre uma certa fantasia fundamental de caráter masoquista: bate-se numa criança, que seria constitutiva na neurose. Mas Lacan nos adverte: “Não é por sonharem com a perversão que vocês são perversos. Sonhar com a perversão pode servir para algo totalmente diferente, e, em especial, quando se é neurótico, para sustentar o desejo, o que, quando se é neurótico, é muito necessário”.

Por outro lado, fazendo uma breve referência a Isidoro Vegh, na leitura sobre o caso de Jean Genet, resulta possível pensar que o masoquista perverso (assim como o sádico) se identifica ao objeto a na cena, encontrando nessa identificação um modo de ser, uma posição subjetiva. E no caso do masoquismo,

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esse a é um dejeto, uma porcaria, uma merda. Onde termina o prazer começa uma possibilidade de gozo. Nos diz Lacan sobre esta questão no seu seminário “de um outro ao Outro”: “O gozo masoquista é um gozo analógico. Nele, o sujeito assume analogicamente a posição de perda, de resto, representada pelo a no nível do mais-de-gozar”.

Identificado ao a o sujeito perverso se encontra com Outro sem barra, o que se coloca em jogo na cena narrada por Catherine Millot onde uma religiosa que lavava os pés de doentes de lepra, impulsivamente come uma casquinha que flutuava na água e experimenta ali o mais sublime dos gozos. (recorte do libro “De poetas, niños y criminalidades: A propósito de Jean Genet” da psicanalista Alba Flesler).

Na perversão, a voz, a pulsão invocante, joga um papel fundamental a través da fala. No caso do masoquismo, e também no sadismo, seria esse o objeto que tampona a falta no Outro. Disse Lacan: “Que o masoquista faça da voz do Outro, por si só, aquilo a que dará a garantia de responder como um cão, isso é o essencial”. A voz então adquire uma função de suplemento. No caso do sádico, a situação seria inversa: sua tentativa de completar o Outro é roubando-lhe a fala e roubando-lhe impondo sua voz. Ele vira o instrumento do suplemento dado ao Outro (mas que o Outro não quer).

O funcionamento da voz, diz Lacan, encontra nestas perversões seu registro pleno. Porém, a pesar de que seu lugar está mascarado pela dominação do objeto a, o gozo não está em parte nenhuma. O essencial na perversão não é a satisfação da pulsão. O perverso se faz instrumento de gozo; não é ele quem goza.

A partir das elucubrações e articulações que realizo neste texto, realizo um convite para pensarmos na clínica, na riqueza que cada caso nos traz, que nos convoca, que nos suscita interrogações, que nos exige escutar cuidadosamente, sem julgamentos nem moralismos. O paciente que está na nossa frente chegou até ali para falar sobre seu sofrimento e suas formas de gozar. O performático das suas formas de gozar sexualmente não

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necessariamente nos dará uma luz sobre sua estrutura. Precisamos ali (e talvez ainda nas nossas próprias vidas corriqueiras) tomar cuidado de não confundir uma escuta “fantasmática”, moral, com uma escuta ética, analítica.

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