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A POLÍTICA DE ALIANÇA DE CLASSES NO BRASIL DOS ANOS 2000

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Trabalho preparado a apresentar no 9º Congresso Latinoamericano de Ciência

Política, organizado por Associação Latinoamericana de Ciência Política –

ALACIP. Montevideo, 26 a 28 Julho de 2017.

FRANCISCO PEREIRA DE FARIAS UFPI/USP 7. ESTUDOS DE CIDADANIA

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A POLÍTICA DE ALIANÇA DE CLASSES NO BRASIL DOS ANOS 2000.1 Francisco Pereira de Farias2

Resumo: o texto volta-se para análise da política de aliança levada a efeito pelo principal partido de representação de classe no Brasil dos anos 2000. De início, procuramos demonstrar criticamente ou de modo não axiomático a função mandatária do partido de classe, bem como os obstáculos surgidos ao exercício deste papel representativo. Em seguida, serão expostos os traços básicos da política de aliança implementada pelo Partido dos Trabalhadores em sua ascensão à liderança da coalisão governante dos anos 2003-2016. Finalmente, apontamos a discussão de alguns dos condicionantes da crise política brasileira.

Palavras-chave: representação de classe; política de aliança; Partido dos Trabalhadores. 1. A função mandatária

A política de aliança de classes sociais na formação capitalista contemporânea apresenta-se, sob o regime democrático, produzindo (e sendo a expressão de) uma frente de forças sociais e políticas, composta em parte por uma coalisão de partidos de esquerda (progressistas ou anticapitalistas) cuja característica específica é a presença do partido de representação de classe. A nossa discussão inicia-se, pois, pela análise do partido de representação de classe.

O partido de representação de classe distingue-se por reivindicar a si a identidade classista. Em geral, o partido político expressa concretamente interesses de classe, exceto aquele que se descola dos interesses sociais mais amplos, como o “partido de clientela” e o “partido-seita”. Pois sendo própria do partido político a busca de conquista da direção do aparelho de Estado, as políticas que o partido almeja se destinam a impactar os interesses sociais, em competição ou antagônicos, no interior da coletividade. Em outras palavras, o partido político tende a constituir-se em mandatário de uma classe social.

Mas, por diversas razões, somente as correntes partidárias mandatárias da classe do salariado tendem a se apresentar na cena política com a nomeação dos interesses de classe enquanto tal. Em primeiro lugar, o grande número de membros da classe viabiliza o tipo de apelo eleitoral, uma vez que a posição de classe não se restringe aos

1O presente texto retoma formulações do autor apresentadas em textos anteriores: “A política de

aliança de classe (I)” (Informe econômico, Decon/UFPI, julho/2016); “A política de aliança de classe (II)” (Idem, a sair); “Perspectivas da crise política no Estado democrático do Brasil” (Le monde diplomatique

Brasil, fevereiro de 2017).

2Pós-doutorando em Sociologia Política na Universidade de São Paulo (USP) e membro do Programa de

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trabalhadores da esfera da produção. O processo social de produção da mais-valia envolve a interdependência dos âmbitos de produção (capital industrial) e circulação (capital comercial). Pois, por um lado, o mais valor produzido na esfera industrial só se realiza na esfera comercial, pelo consumo; e, por outro, a demanda suscitada pela base monetária circulante só se efetiva com a produção de bens. Apesar de as frações do capital competirem pela cota de presença na taxa de exploração do trabalho, existe uma comunidade de interesses comuns das mesmas, oposta à comunidade dos interesses afins de assalariados dos circuitos do capital. Tais elementos – a interdependência e os interesses comuns - de delimitação do agrupamento global constituem a base para que os trabalhadores da circulação possam se reconhecer como membros da mesma classe que os da produção.

Em segundo lugar, devido ao caráter coletivo do processo de trabalho na Empresa Moderna, o trabalhador assalariado tende espontaneamente a valorizar o associativismo, em suas expressões sindical e partidária, para a defesa de seus interesses. Embora existam contratendências ao associativismo proletário - como o sentimento de individuação produzido pela divisão e especialização de tarefas na Empresa e o efeito personalizante do tipo de direito configurado no contrato de trabalho assalariado -, elas não são suficientes para apagar as marcas do coletivismo. Quando o trabalhador assalariado vai ao sindicato e ao partido, ele chega com o sentimento de que os valores e interesses dessas organizações estão acima de suas projeções e carências individuais.

É diferente a condição do proprietário privado dos meios de produção, que tende a valorizar o individualismo, vendo a sua empresa antes como competidora nas relações do mercado. Embora os empreendimentos estejam interligados pela divisão social do trabalho no conjunto da sociedade e pela imposição da taxa média de lucro, a inclinação da classe capitalista é de adesão ao discurso do indivíduo, inclusive na esfera política. Quando o empresário capitalista participa em associação patronal ou partido político, ele o faz imbuído do sentimento de que seu ponto de vista e seu interesse estão acima dessas organizações.

Uma condicionante mais profunda dessa diferença entre o proletariado e a burguesia frente ao associativismo diz respeito à posição das classes sociais na comunidade global. Na coletividade com Estado e dividida em classes antagônicas, as classes sociais são as comunidades concretas, em torno dos interesses em comum de cada uma delas. Nessas condições históricas, a coletividade tornou-se uma comunidade abstrata, a memória da perda da comunidade concreta de uma coletividade onde não

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havia divisão de classes e aparelho de Estado. Ora, cabe à classe dominada a aspiração de reconquista da sociedade igualitária economicamente (sem classes sociais e Estado), correspondente à comunidade concreta da coletividade. Por isso o proletariado apresenta-se como o guardião do sentimento de coletividade originário.

Em terceiro lugar, os efeitos das políticas do Estado - ao implementar medidas como salário-mínimo, previdência social, educação básica, saúde, habitação – induzem à agregação e a articulação de setores ou profissões da classe do trabalho rotineiro, em torno de reivindicações comuns. Pois os resultados de tais políticas impactam desfavoravelmente aos interesses da classe subordinada. A tendência é de os trabalhadores “executores” se organizarem globalmente para se contrapor aos desequilíbrios resultantes.

O discurso de classe, referidos aos polos do antagonismo social, não pode ser direto, exceto em conjunturas revolucionárias. Pois o tipo de estrutura do Estado produz efeitos de abstração dissolventes da identidade antagônica e, em consequência, faz emergir na cena política cotidiana a relação de competição, dentro da ordem. O efeito de

pessoa, atributo conferido aos agentes sociais da capacidade subjetiva de agir

livremente, decorre da estrutura jurídica do Estado. É própria do aparecer da norma do direito estatal a transformação de regras funcionais (imperativos hipotéticos), visando disciplinar relações de reciprocidade, em leis incondicionais (imperativos categóricos), cujos fundamentos remetem à crença da liberdade humana. O específico do direito moderno é não apenas a atribuição da forma sujeito (livre) aos agentes da produção, como também a relação de igualdade entre suas personalidades, através do direito de propriedade privada (de meios de produção, por um lado, e de força de trabalho, por outro) - o que viabiliza o contrato da compra e venda da força de trabalho, aparecendo essa troca como uma relação de equivalência.

Por sua vez, a forma povo-nação é, em parte, decorrência da estrutura burocrática do Estado moderno. (A estrutura econômica capitalista também contribui para produzir o fetichismo do interesse nacional.) As normas burocráticas de acesso universal às tarefas estatais e recrutamento com base no critério formal de competência, compatíveis com a forma sujeito igualitário do tipo de direito, exigem a formação da sociedade ilusória denominada povo-nação. Trata-se de associação imaginária (um falso contrato) porque os papeis de empresário capitalista e trabalhador assalariado não estão numa relação equitativa, uma vez que o salário não remunera todo o valor de troca produzido pelo uso da força de trabalho, mas apenas a parte relativa à reprodução desta.

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Essa sociedade do contrato falseado requer um sistema de fronteiras nacionais, por causa de o encontro entre o governo profissionalizado e os cidadãos formalmente igualados se dar num contexto histórico de distribuição desigual das forças produtivas pelo espaço mundial. Então os capitais mais fracos no espaço territorial global necessitam do Estado nacional para a defesa dos seus interesses frente aos capitais mais fortes e resistem à formação de um Estado mundial. A busca de afastar a influência da propriedade fundiária tradicional no aparelho estatal levou à centralização do poder político, instaurando mecanismos de controle sobre os poderes regionais e locais. A burocracia do aparelho de Estado pôde, então, apresentar-se a si mesma com o papel de representante do coletivo de indivíduos autônomos (povo) e habitantes de uma secção territorial com centralização política (nação), o que induz a classe assalariada à desconfiança em sua organização enquanto classe e a fidelidade em primeiro lugar ao povo-nação.

A conjugação desses efeitos fetíchicos – sujeito, povo-nação – produzidos pelo tipo de estrutura jurídico-burocrática do Estado impede que a nomeação do antagonismo de classes (“burguesia e proletariado”) emerja na cena política. Em seu lugar, dependendo da conjuntura concreta e das forças dos partidos de representação de classe, outros termos do antagonismo, convertido em competição, apresentam-se na cena aberta, tais como “ricos e pobres”, “elite e massa”, “patronato e empregados”.

O partido político contribui, pois, para a formatação da identidade da classe, se adota um discurso compatível com a dinâmica da luta de classes, a competição ou o antagonismo. A relação entre o partido político e a classe social torna-se de implicação mútua. De um lado, o partido expressa os interesses de sua base social, embora não necessariamente refletindo-os de forma sociográfica na composição dos seus quadros dirigentes, uma vez que fatores como o programa partidário, a institucionalização organizacional e as predisposições ideológicas dos dirigentes jogam um papel mais importante na representação dos interesses sociais. De outro lado, o partido mobiliza, organiza e educa a sua base de classe - tendo em conta a teoria política, o programa de governo, a democracia partidária. Em outras palavras, o partido político exerce o seu papel de dirigente ou vanguarda do grande número de membros da classe social.

2. Obstáculos à função mandatária

Definimos acima a questão da representação de classe do partido político, referenciando-a na relação entre o discurso do partido e a dinâmica da luta de classes.

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Cabe agora nos reportarmos aos obstáculos - o personalismo, a burocratização, o vanguardismo - que concorrem para distorcer a função mandatária de classe.

O personalismo de líderes tem existência quando parte dos adeptos ou simpatizantes do partido passa a um comportamento de massas (sentimentos sensitivos,

irracionais - agindo por instinto, imitação ou contágio). O fenômeno da massificação

junto ao partido da classe trabalhadora se dá por fatores tanto materiais (acesso à informação) quanto culturais (escolaridade), em última instância remetidos à desigualdade de condições na divisão social do trabalho. Assim, a exposição intensa aos meios simplificadores de informação e comunicação, bem como a imposição de baixo patamar de escolarização científica produzem predisposições discursivas que tendem a naturalizar e superestimar as qualidades pessoais dos dirigentes políticos.

Porém, talvez mais importante que o personalismo dos líderes partidários é o desvio de burocratização. O partido sofre em sua forma de organização os efeitos do burocratismo do Estado. A especialização de funções (diretivas, parlamentares, técnicas) e a profissionalização (aquisição do saber-fazer) para os seus exercícios induzem a uma hierarquização entre, de um lado, quadros dirigentes e, de outro, militantes de base, cujo relacionamento tende a reproduzir-se em termos de mérito. Isso transfere para o partido os efeitos da representação no aparelho do Estado, quais sejam, a apatia política dos representados e a independência dos mandatários.

Por fim, outro perigo para o partido de classe é o vanguardismo. Uma dimensão do fenômeno se produz quando correntes partidárias passam a atuar estritamente orientadas pelos objetivos estratégicos (revolucionários) de classe, num contexto de ausência das condições da crise estrutural da formação social. Tais correntes se isolam das lutas da classe por reformas e podem se transformar, na expressão de CERRONI (1982), em partidos-seitas, voltados para o discurso doutrinário de auto-identificação.

O partido de classe ou socialista caracteriza-se por elaborar um programa com “dupla armadura”, distinguindo o projeto “para o imediato” (proposições a discutir e a adaptar na negociação com os outros) e o “para o futuro” (modelo antevisto e intencional de sociedade) (PRESTIPINO, 1988). Uma razão disso advém das próprias condições de constituição e emergência da classe social. Como indicou POULANTZAS (1972), as classes sociais são e não são efeitos das estruturas da totalidade social, formulação que leva em conta dois gêneros de agrupamento: a classe em luta por reformas (internas aos limites impostos pela vigência das estruturas valorativas) e a classe antagônica (tendente a transformar o modelo de sociedade). A classe social, em

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contextos de estabilidade social, possui assim dois aspectos: um descritivo (a classe competitiva) e outro prospectivo (a classe revolucionária) (GARO, 2001). A greve por salário, por exemplo, torna-se manifestação da prática competitiva e apenas potencialmente da revolucionária. Por isso se pode dizer que a classe proletária assume um duplo estatuto, ao mesmo tempo reformista e revolucionário. Como expressa Étienne Balibar, “em realidade, existem sempre dois coletivos de trabalhadores, imbricado um no outro e formados dos mesmos indivíduos (ou quase), entretanto incompatíveis” (BALIBAR, 2001, p. 95).

3. O desenvolvimento do Estado burguês no Brasil

O ponto de partida da constituição do Estado burguês é o governo que se profissionaliza, tornando-se Estado, para defender os interesses comuns de uma coletividade advinda mais complexa, pela expansão e adensamento populacional, aumento de população esse relacionado às inovações nas técnicas de trabalho; mas o surgimento do Estado produz consigo o germe da dominação, a defesa da divisão da sociedade em classes sociais. Pois a especialização e o caráter permanente das funções governativas, estabelecendo o monopólio das tarefas de liderança política, suscitam as normas que estabilizam não apenas a burocracia estatal, mas também a profissionalização do produtor de mercadorias e a divisão social do trabalho, determinando o direito de propriedade privada dos meios de produção e a legitimação da exploração do trabalho dos não-proprietários de meios de produção: escravo, servo, assalariado.

Estado e proprietário tornam-se interdependentes, uma vez que, de um lado, o agente estatal produz a aparência de lei (o falso pacto de trabalho) e a violência física (aparentemente legítima) - necessários à reprodução das relações de produção classistas (escravista, servil, assalariada); e, de outro lado, os proprietários dos meios de produção social (senhor escravagista, patrão feudal, burguês capitalista) propiciam os recursos fiscais para o funcionamento do aparelho de Estado.

Em síntese, o movimento histórico global interverte o governo de todo o povo em Estado escravagista, Estado senhorial, Estado burguês.

A revolução burguesa no Brasil, a partir da Abolição da escravatura (1888) e a Proclamação da República (1889), movimentou-se para o aniquilamento das raízes não burguesas de nossa formação social e a construção de nova sociabilidade, centrada no direito igualitário e o cosmopolitismo urbano - em substituição à sociabilidade (ou

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cordialidade) escravocrata, voltada aos privilégios do direito senhorial e o particularismo rural e familiar (HOLANDA, 1995). O impulso à ordem burguesa (relacionada ao trabalho assalariado) veio das classes médias urbanas, que encontrou na revolta escrava o somatório de vetores para desencadear a revolução jurídico-política. A militância abolicionista de José do Patrocínio, jornalista da capital Rio de Janeiro, representou não só os desejos do escravo rural ou urbano em se emancipar, mas também as aspirações do funcionário de Estado ou do profissional liberal de expandir o seu consumo de bens manufaturados (SAES, 1985).

A cordialidade igualitária tornava-se funcional aos valores e interesses da burguesia ascendente; inicialmente menos aos valores e interesses da fração industrial -que privilegiava o discurso de harmonia entre a agricultura tradicional e a indústria moderna, seja porque o industrial dependia de financiamento da economia agromercantil para implantar novos meios de produção, seja por ele possuir uma origem social nas frações agrária ou mercantil -, e mais aos valores e interesses da classe do capital como um todo. Coube à categoria social dos militares, influenciada pelas pressões difusas das camadas médias urbanas e do proletariado recém-formado, em defender um programa de industrialização, assentado na empresa de bens de produção e na exploração das riquezas naturais, como forma (aparente) de garantir o aparelhamento moderno-meritocrático das forças armadas, em correspondência às exigências do igualitarismo jurídico, mas cujo conteúdo (latente) dizia respeito a completar as bases da acumulação de capital.

Curiosa aproximação de capitalismo e estatismo, uma vez que a filosofia social inspiradora da burguesia industrial deplorava o “socialismo estatal”, pois interpretava o poder da burocracia de Estado como ameaça ao princípio da propriedade privada. No entanto, havia a influência da organização militar, valorizando o papel do Estado na economia para se chegar a um capitalismo autossustentado.

A revolução burguesa vai se especificar, numa primeira fase, pela construção do capitalismo de “democracia restrita”, em razão das articulações que o submetem: de um lado, nasce atrelado, via geração de divisas, ao setor agrário-mercantil tradicional (não capitalista); e, de outro, forma-se vinculado às polarizações de investimentos e força de trabalho no centro econômico nacional. Além disso, contribuem para os direitos sociais restritos as motivações políticas da burguesia: a) a suposição de que a expansão do mercado interno (com as melhorias dos sistemas de transportes e comunicações) tornaria possível resolver os problemas herdados do período agromercantil, como a

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baixa capacidade de arrecadação tributária do Estado nacional; b) a consideração de que as restrições do poder da “iniciativa privada industrial” e da “soberania” do Estado nacional seriam momentâneas, pois a integração do capitalismo nacional diluiria, por si mesma, as desvantagens do desenvolvimento capitalista desigual, tanto social quanto regionalmente; c) o medo de que uma aliança com a classe trabalhadora, possibilitando a reciprocidade de ganho de produtividade e ampliação dos direitos sociais, pudesse ensejar nesta o desejo consciente de mudança radical da ordem capitalista (FERNANDES, 1975).

Em 24 de Agosto de 1954, o líder do Estado brasileiro, Getúlio Vargas, foi levado à atitude extrema do suicídio, após um ultimato da cúpula militar para que renunciasse à Presidência da República, talvez por ter se dado conta que seu papel de coligar os interesses de todas as frações do capital havia se esgotado. De um lado, a economia agroexportadora, em especial o café, atingira um patamar tal de descenso que obrigava o Estado a agravar a taxação sobre o setor para manter a política de valorização de preços no mercado internacional. A solução mais eficiente era romper com o compromisso que evitava a revolução capitalista na agricultura e o seu aumento de produtividade. De outro lado, o próprio sucesso da política nacional-desenvolvimentista de implantar o setor de bens de capital (siderurgia, petróleo, energia elétrica) propiciava as condições de a burguesia industrial almejar a conquista da hegemonia política; os quase dez anos que se seguiram à queda trágica de Getúlio e aos governos de seus herdeiros foram tempos de preparação para isso, culminado com o movimento civil-militar que destituiu o Presidente João Goulart em 01 de Abril 1964. O enredo trágico-cômico desse desfecho foi o Presidente Goulart, que se acreditava o líder da maioria social, ver-se obrigado a fugir do país por seu apelo à essa maioria não ter tido ressonância.

A burguesia industrial conquistou a hegemonia política, mas não devia governar diretamente, sob pena de cair numa visão imediatista de seus interesses de fração de classe. Para isso a liderança dos industriais foi levada a aceitar que outro grupo social ocupasse a cúpula do aparelho estatal, que se tornava assim uma representação mais distanciada, para impor à maioria de membros da fração industrial uma política de longo prazo. A equipe econômica pôde, por exemplo, implementar uma política de elevação das tarifas bancárias, impulsionando a competição e a concentração de capital no setor dos bancos, mas que resultava para a fração industrial numa melhor oferta de crédito em investimento.

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O processo de concentração e centralização do capital nos vários setores da economia e a tendência à taxa decrescente de lucro daí resultante induziram às grandes empresas industriais e aos grandes bancos a buscarem uma saída de redução de custos com a formação dos conglomerados econômicos (a coexistência na mesma empresa das funções produtiva e de circulação). Assim, uma empresa industrial instituiu seu departamento de banco (Grupo Votorantim) ou o inverso se deu (Grupo Bradesco). Mas a formação do capital financeiro (banco + indústria) não anulou o conflito de frações no interior da classe dominante. Pois, por um lado, continuam a existir as empresas especializadas numa mesma função do capital (industrial, bancária, comercial) e, por outro, o conflito de frações subsiste no seio do próprio capital financeiro. Assim, enquanto um grupo econômico pode ganhar enquanto banco, pode perder como indústria.

O agronegócio também se estabelece a partir de conglomerados econômicos, através de duas frentes: pelo capital produtivo, advindo das commodities; e pela sua associação com o capital monetário, manifesta nos empréstimos para os pequenos e médios produtores modernizados. A atuação do agronegócio nos cerrados brasileiros foi responsável pela modernização capitalista das relações de produção e do estatuto da propriedade na agricultura (mesmo se com a incorporação ilegal de terras públicas e trabalho escravo), combinada com fortes impactos ambientais. Talvez isto ilustre o significativo crescimento e a alta rentabilidade desse setor econômico durante os governos do pós-1964, que adotaram uma forte política agroindustrial em detrimento de políticas de proteção ambiental.3

Mas a necessidade em alavancar recursos para a expansão da atividade econômica em outro setor trouxe também a modificação no estatuto da propriedade, que de empresa familiar tendeu a tornar-se um grupo de acionistas. Ora, do ponto de vista destes investidores pouco importa de qual fonte na empresa provirá a maior lucratividade de seu recurso, se da atividade produtiva ou se da função monetária. Em pouco tempo os diretores dos grupos de capital financeiro foram levados à sagacidade de acentuar o braço de comerciante de dinheiro, transformando os acionistas em verdadeiros rentistas.

O grande capital financeiro está melhor posicionado para absorver a inovação técnica, dada a sua capacidade de racionalizar os custos. No entanto, por efeito do

3Agradeço a Ferdinand Cavalcante Pereira pela colaboração na análise da questão agrária em geral e no

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desemprego tecnológico acentuado neste setor do grande capital, o Estado estará obrigado a despender mais gastos em políticas sociais compensatórias, seja em medidas de seguro-desemprego, seja em programas de proteção social aos trabalhadores que irão para o setor precarizado do trabalho sob o domínio do médio capital. De onde sairão as novas receitas do aparelho estatal? Dados os limites políticos de elevação da carga tributária, os agentes estatais recorrerão ao endividamento, sob a forma de títulos de longo prazo com elevadas taxas de juros, e atrairão do braço monetário dos grupos econômicos os recursos necessitados. Estão assim estabelecidas, em traços largos, as bases da probabilidade à interdependência entre a política do Estado e os interesses do capital financeiro.

4. O ciclo do Partido dos Trabalhadores e a política de aliança de classes

O trabalho de SINGER (2012) procura decifrar os significados das práticas do Partido dos Trabalhadores e do governo Lula a partir das relações de classes. A sua visão da relação do governo Lula e a classe dominante privilegia os conflitos entre, de um lado, a ‘coalizão rentista’ (capital ‘financeiro’ nacional e internacional) e, de outro, a ‘coalizão produtivista’ (capital industrial e classe trabalhadora). A nossa análise da política de aliança do PT referencia-se, em parte, nesta visão de A. Singer.

Durante a transição ao capitalismo industrial no Brasil (1930-1964), o campo da esquerda socialista havia sido liderado pelo PCB, que surgira filiado à IIIª Internacional Comunista, sob a liderança do PC da URSS. No modelo soviético, o Estado era encarregado de controlar a propriedade dos meios de produção e de planificar a economia. Havia a predominância dos planos centralizados, que se referiam à economia e a cultura. A divisão do trabalho técnico e social foi intensificada. E o partido único tornou-se o órgão supremo do Estado. Assim, a Internacional Comunista e o PCB estavam comprometidos com uma concepção estratégica que, intervertendo o programa socialista, passou a defender os interesses, por assim dizer, de uma nova classe dominante, a burguesia de Estado.

No entanto, desde sua fundação em 1922, o PCB manteve uma coerência de objetivos táticos, sustentando, nas condições históricas da sociedade brasileira, o programa de caráter nacional-democrático, e não ainda “socialista”. Embora tenha mudado de método quanto à perseguição dos fins imediatos, adotando o partido ora a prática insurrecional, ora a legalista – em função da conjuntura política. O programa político imediato era o de viabilizar o desenvolvimento capitalista no país por meio da

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industrialização em bases privadas e nacionais, e de uma ampla reforma agrária contra o latifúndio tradicional.

Mas, no processo da industrialização, a burguesia industrial não se mostrou favorável à aliança com a classe assalariada. Dada sua condição ambígua em dispor de uma base de acumulação própria e ao mesmo tempo depender monetariamente do capital agromercantil, a fração industrial preferiu voltar as costas à tese do capitalismo nacional-democrático. Como não tinha força para subordinar no interior do bloco no poder os interesses da economia agromercantil, a liderança industrial aderiu, não sem momentos de hesitação, como na Guerra de 1932 e na deposição do Presidente Getúlio Vargas em 1954, ao compromisso de equilíbrio político que sustentava os governos nacional-desenvolvimentistas. Porém, com o avanço do processo de industrialização, a burguesia industrial passou a organizar-se para a conquista da hegemonia política, viabilizada com o golpe civil-militar de 1964.

No processo de abertura democrática do final dos anos 1970, vários fatores convergiram para formação do PT como expressão da interdependência entre organização partidária e classe social; primeiro, a emergência do sindicalismo menos subordinado à institucionalidade do Estado; segundo, a mobilização dos movimentos sociais urbanos; terceiro, a renovação do catolicismo tradicional com a Teologia da Libertação e as Comunidades Eclesiais de Base; quarto, a reorganização da militância dos agrupamentos de esquerda socialista. Mas talvez possamos dizer que o elemento determinante, em última instância, do surgimento desta nova força partidária de esquerda foram as consequências da hegemonia do empresariado industrial, que elevou as taxas de crescimento econômico, mas sem possibilitar a reprodução ampliada da força de trabalho, ao beneficiar-se do regime repressivo do Estado.

O PT nasceu no Brasil como manifestação da nova esquerda socialista. Reivindicava uma visão crítica da experiência chamada socialista, contrapondo a essa experiência o controle dos meios de produção pelos trabalhadores, o planejamento descentralizado, o pluralismo partidário; e propunha a conquista da direção do Estado burguês com base no programa “democrático-popular”, impulsionado pelos movimentos sindicais e sociais. No intervalo de uma década veio tornar-se a principal força partidária no campo da esquerda brasileira, em razão, em parte, da crise do PCB, provocada pelo golpe civil-militar de 1964, que fez desacreditar o programa “nacional-democrático”; e, outra parte, pela ascensão das lutas reivindicativas e de oposição ao regime militar.

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As aspirações da maioria eleitoral que deu vitória à candidatura de Lula na Presidência da República em 2002 foram apresentadas nos documentos (1) “Concepções e diretrizes do programa de governo do PT para o Brasil – Lula 2002”; (2) “Carta ao Povo Brasileiro”; (3) “Programa de Governo 2002 – Coligação Lula Presidente – Brasil para todos”. O teor das diretrizes de política econômica e social apontava para medidas tais como: honrar os contratos e preservar o superávit primário; proteção à produção nacional, reduzindo as altas taxas de juros e empreendendo uma reforma tributária; regulação da entrada de capital estrangeiro; incentivo às exportações; proteção ao emprego; ampliação das políticas sociais (MARTUSCELLI, 2015).

A política econômica no primeiro ano do governo Lula assumiu um perfil de transição, combinando a manutenção de medidas de estabilidade monetária com iniciativas na área social. Sob a pressão do chamado “risco Lula” (a expectativa de agentes do mercado monetário que continuasse o ataque especulativo da fuga de capitais iniciado durante a campanha eleitoral, mesmo após ter exposto a suas intenções de governo na Carta aos Brasileiros), o Presidente Lula nomeou uma equipe econômica que tomou medidas conservadoras, como o ajuste fiscal e a reforma da previdência, sob a alegação de evitar os riscos inflacionários. Paralelamente, os investimentos em programas sociais começaram a trazer para a base de apoio ao governo os setores mais pobres. Em seguida, a mudança da equipe econômica, abandonando a orientação conservadora da política econômica, substituindo-a por um modelo de desenvolvimento que articulava crescimento econômico com políticas de distribuição de renda e estabilidade monetária, mostrou a “intuição” e o “pragmatismo” do Presidente Lula (SADER, 2013).

Os dados apontam um desempenho positivo nos indicadores econômicos e sociais do país. A taxa de inflação decresceu, registrando os índices de 9,3%, em 2003, e 3,1%, em 2006. Ao mesmo tempo, o governo conseguiu reduzir os juros em quase metade; a taxa Selic, que atingiu em maio de 2003 o índice de 26,3%, chegou ao final de 2006 com o índice de 13,2%. Por sua vez, deu-se o aumento gradual do salário mínimo, que passou de R$ 302 para R$ 402 no período. Embora os gastos com saúde e educação não tenham progredido na mesma proporção, houve uma ampliação significativa na área de proteção social, que passou do patamar de 13,7% para 20,5%, entre 2003-2006.

Esses resultados foram, em boa parte, produtos da frente de forças sociais e políticas, que conseguiu reverter o padrão de desenvolvimento socioeconômico dos

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governos anteriores sob a orientação do pensamento neoliberal. Por um lado, a coligação PT (Lula) e PL (José de Alencar) induzia a um acordo tácito das lideranças de trabalhadores – CUT, MST – e setores empresarias nacionais – FIESP, FEBRABAN – em torno de uma nova política de desenvolvimento econômico e social. Por outro lado, iniciativas conjuntas das lideranças empresariais e dos trabalhadores repercutiam no interior do aparelho governamental, como o Conselho de Desenvolvimento Econômico e Social, cujo funcionamento envolvia a negociação de patrões e empregados.

A vitória dessa coalisão política pressupunha dois condicionantes. Primeiro, o condomínio de interesses no sistema hegemônico entre a fração dos bancos e a fração industrial; tal equilíbrio de posição deveria se chocar com as diretrizes da política neoliberal – desregulamentação monetária, taxas de juros elevadas –, que privilegiavam os interesses dos bancos dentro do grande capital. Segundo, os setores empresariais hegemônicos deveriam conceder de fato ganhos para as classes trabalhadoras; isso implicava um novo padrão de política trabalhista e social, que possibilitasse a reprodução ampliada da classe assalariada. Como declarou um dirigente sindical, “era preciso romper flancos no campo adversário e construir alianças. Em reunião do CDES defendi o emprego e o salário para fortalecer o mercado interno como forma de enfrentamento da crise” (HENRIQUE, 2013).

Em síntese, o PT e a CUT praticaram uma política de aliança de classe, cujos resultados mostraram que no global foram de ganhos reais para os interesses da maioria social, sem deixar de privilegiar os interesses hegemônicos do capital; todos ganharam, mas não na mesma proporção. Afinal, o governo de esquerda ou centro-esquerda se instalou sem revolucionar as estruturas do Estado burguês, que, pelos seus valores e pela sua institucionalidade limitada a tais valores, impõe invariavelmente a convergência da política estatal aos interesses da classe dominante ou da sua fração hegemônica. Mais concretamente, as alianças Lula-Alencar e CUT-FIESP produziram efeitos que ampliaram de fato o bem-estar da maioria social, num contexto em que frações da burguesia (multinacionais, grande comércio, bancos estrangeiros) patrocinavam a adoção de políticas regressivas dos direitos sociais; ao mesmo tempo, essas alianças ensejaram a estabilidade política para consecução de um programa neodesenvolvimentista.

5. A crise política

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O primeiro governo Dilma Rousseff (2011-15) veio concretizar a hegemonia política do capital financeiro com dominante industrial, em aliança com a classe trabalhadora assalariada. A política econômica do Estado beneficiava prevalentemente o grande capital industrial e gerava um acréscimo na taxa de mais-valor que podia ser redistribuído para a ampliação da reprodução da força de trabalho.

O intervencionismo adotado pela equipe econômica do governo incidiu no investimento produtivo por meio do Plano de Aceleração do Crescimento, que focava em obras de infraestrutura (portos, aeroportos, estradas, fontes de energia), e através das desonerações fiscais e previdenciárias, crédito subsidiado dos bancos estatais, redução de taxa de juros e barateamento de preços de insumos às empresas industriais. Tais medidas ensejaram o aumento da rentabilidade do capital industrial e estimularam os ganhos de produtividade pela adoção de novas tecnologias.

O segmento de bancos do capital financeiro não se sentiu contemplado com a política industrial do governo, porque continha as linhas da redução da taxa de juros ao crédito de investimento e da isenção fiscal das empresas. Os representantes dos banqueiros reagiram a essas medidas governamentais, sob os argumentos de que se chocavam com a meta de controle da inflação da moeda e levariam ao sobreaquecimento da demanda efetiva. Ao final dessas manifestações, embora continuassem a se beneficiar com a bancarização de contingentes da classe assalariada que ascendiam materialmente no período, os bancos estavam na oposição ao governo.

As aspirações conscientes da coalisão governamental que deslocou a hegemonia política para o setor industrial do capital financeiro foram expressas num conjunto de diretrizes, chamado de Nova Matriz Econômica. A NME indicava (a) afrouxar o controle sobre a política monetária; (b) reforçar o incentivo ao investimento privado; (c) defender o crescimento do mercado interno. O resultado da NME foi abrir novas frentes de expansão ao investimento produtivo, especialmente na construção da infraestrutura das atividades econômicas (BASTOS, 2015).

No entanto, apesar de o governo sustentar a hegemonia do setor industrial, os representantes diretos dessa fração de classe transitaram para a postura de não fazer a defesa do governo diante das críticas do setor bancário. É que os representantes industriais intuíam, mas de maneira distorcida, a possibilidade de o governo adotar uma política bonapartista, ou seja, passar a exigir sacrifícios de todas as frações do capital para garantir o crescimento econômico. Assim, identificavam no “lulismo” (o crescimento econômico com a ampliação de direitos sociais) da Presidente Dilma o

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fantasma de Getúlio Vargas. O que o governo pedia, na substância, era que os industriais abrissem mão de interesse imediato (a desregulamentação das relações de trabalho) em prol mesmo de seu interesse de longo prazo (a preponderância econômica).

A exceção dentro da fração industrial se refere à conduta do setor do agronegócio que tendo continuado na coalisão do segundo governo Dilma apostou numa reversão da crise política até o momento final do impeachment e tinha na defesa dos seus interesses a representante Kátia Abreu (PMDB), empresária pecuarista e ministra da Agricultura, Pecuária e Abastecimento. Talvez venha ao caso a distinção de interesses, já apontada pelo historiador Caio Prado Júnior, entre os comerciantes da agroexportação e os proprietários produtores. Ora, a política econômica impactou favoravelmente aos interesses dos produtores agrícolas. Além disso, o agronegócio talvez se sentisse em condições de arcar com os custos da política salarial, dada a tática do setor de grilagem de terras.

O início do segundo governo Dilma, em 2015, deu-se com a acirrada disputa entre a fração industrial e a fração banqueira no interior do capital financeiro, mobilizando os respectivos representantes políticos e partidários. De um lado, os agentes políticos ligados ao circuito produtivo sustentavam a prioridade de política econômica voltada ao investimento estatal e ao fortalecimento do mercado de consumo. De outro lado, os representantes políticos conectados à circulação do dinheiro dão ênfase à estabilidade da moeda e à reorganização institucional do comércio monetário.

O golpe palaciano

A política governamental de alavancar o investimento produtivo por meio do financiamento estatal provocou a reação dos bancos privados, que se opuseram em especial às medidas de redução da taxa de juros; e não obteve o apoio ativo da fração industrial, pelo receio de o governo vir a implementar medidas “populistas” (bonapartistas). O governo viu-se então em dificuldades, pois, por um lado, as altas taxas consomem boa parte do orçamento estatal com o pagamento dos juros da dívida pública e, por outro, os novos investimentos produtivos tornam-se menos atrativos, induzindo as empresas industriais a aplicarem os recursos no sistema monetário, cuja rentabilidade vem elevada.

Como então expandir a empregabilidade produtiva, aumentar a capacidade extrativa do Estado e ampliar os serviços governamentais à reprodução da força de trabalho? Ficou difícil diante da resistência política do capital-dinheiro. Assim, o

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sistema monetário gerará mais dinheiro de modo fictício, fazendo a economia da materialização do circuito produtivo. Torna-se compreensível que o excesso em dinheiro-moeda provocará sua subvalorização.

O enfoque dos representantes políticos do capitalismo financeiro com dominante monetária será o de resolver o problema da instabilidade do dinheiro-moeda por meio de uma política de redução de custos das empresas, como forma de elevar a produtividade dos capitais, buscando readequar a defasagem de esfera monetária e base material da economia. A receita para o grande capital serão as medidas de combinar a inovação técnica com a desregulamentação das relações de trabalho; privatizar as empresas estatais lucrativas; desregulamentar a circulação de mercadorias e de dinheiro.

Cabe então apontar que em boa medida as pressões do capital financeiro com dominante monetária e seus principais representantes partidários (PSDB e parte do PMDB) induziram o Governo Dilma, no início do segundo mandato em 2015, a adotar a política do ajuste fiscal, numa tentativa de recuo provisório em sua linha política mais geral do intervencionismo estatal. A concretização dessa política de “um passo atrás e dois passos à frente”, ficou a cargo do Ministro da Fazenda, Joaquim Levy, um representante direto dos bancos privados.

Disso decorreram tensões no interior da coalizão governante sobre os custos regressivos desse desvio na política do crescimento econômico. Setores empresariais e sindicais, bem como lideranças partidárias passaram a manifestar os descontentamentos com os efeitos das medidas contencionistas dos gastos governamentais e os riscos de uma recessão econômica. A associação patronal dos industriais, FIESP, passou à posição de ruptura com a coalisão governante. A representação sindical dos trabalhadores, CUT, adotou a postura de aliada crítica do governo. A mudança do Ministro da Fazenda, de Joaquim Levy (orientação liberal) para Nelson Barbosa (pensamento desenvolvimentista), não foi suficiente para produzir um conjunto de medidas reaglutinadoras da frente social e política neodesenvolvimentista.

Por sua vez, a coalizão de oposição tomou a iniciativa de combinar a tática do desgaste político das forças governantes por meio do tema da “corrupção” (clientelismo político) com a proposta de impedimento da Presidente do Executivo Dilma Rousseff a pretexto de desvios administrativos. Ter encontrado dentro do PMDB um grupo que, por motivações partidárias (carreiras políticas) ou pessoais (envolvimentos ilícitos), estava disposto a romper com a coligação governante foi o catalizador do golpe palaciano.

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Em 2016, a cena política veio marcado pelas tensões entre os segmentos do grande capital, competidores pela influência política, e também pela disputa dos partidos principais no seio da coalisão governante (Partido dos Trabalhadores; Partido do Movimento Democrático Brasileiro), visando a ocupação do aparelho de Estado. Este segundo aspecto da competição política vem expresso por meio da rivalidade entre Presidência da República e Presidência da Câmara dos Deputados, quando um ramo estatal passou a acusar o outro de práticas desviantes face às regras administrativas e eleitorais.

O ápice da crise será de a Presidente Dilma Roussef (PT), ex-guerrilheira, presa e torturada no período do regime militar, sofrer impeachment em 31 de Agosto 2016, sob a acusação de desvio administrativo, num processo movido pelo Presidente da Câmara, Eduardo Cunha (PMDB), político profissional carreirista, que semanas depois terá o seu mandato suspenso por investigação de crime de desvio pessoal de recursos, em tese, partidários. Mas o ponto máximo da encenação macunaímica desta crise política foi a Presidente da República ter sido condenada, sob a audiência de rede nacional de televisão, por desvio de responsabilidade administrativa e, em seguida, ver assegurados os seus direitos políticos.

Assumiu a Presidência da República o Vice-Presidente Michel Temer (PMDB), que parece encarnar todas as virtudes negativas do líder político: traiçoeiro, sem linha programática, bacharelesco, sensualista. Talvez nunca na história da República do Brasil um dirigente tenha dado tantos motivos para gracejos no grande número da população.

Em resumo, o Estado burguês no Brasil desenvolveu-se do momento inicial, sob a hegemonia do capital mercantil, para os dias de hoje, com a hegemonia da burguesia financeira - por determinações de guerra (a Revolução de 1930) e de disputas políticas (o golpe palaciano de 1954, o golpe institucional-palaciano de 1964, o novo golpe palaciano de 2016). O percurso modificou, porém, o estatuto dos papeis encenados; da personagem heroica, para cujas práticas tornava-se eficaz a narrativa épica, passamos ao herói problemático, por quem vem adequada a exposição trágico-cômica, e finalmente chegamos ao anti-herói (o usurpador do poder político).

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Carlos Lessa apontou como significado principal da crise política atual no Brasil o fato de ser uma derivação da crise econômica mundial do capitalismo4. Em outros termos, tratou-se da tentativa dos governos dos países centrais, especialmente dos Estados Unidos da América e a Alemanha, em impor sacrifícios aos governos dos países periféricos ou semiperiféricos, a fim de fortalecer a recuperação de suas economias dos efeitos da crise monetária internacional. No caso brasileiro, um dos pontos sensíveis desta política internacional dominante vem ser a quebra do monopólio estatal do petróleo.

É verdade que no plano das relações internacionais, os agentes políticos principais tendem ser os governos dos países. Mas esses governos agem em boa medida em defesa dos interesses das empresas de suas nacionalidades, os capitais nativos. São poucas as empresas que têm uma característica transnacional, ou seja, de coexistência jurisdicional de múltiplas nacionalidades, empresas que dariam base ao discurso da “globalização” econômica.

A busca de interesses pelos governos centrais provoca uma divisão nas classes dominantes periféricas ou semiperiféricas. De um lado, há setores que, pela sua inserção direta nos capitais externos (filiais de multinacionais, comércio de exportação\importação, empresas montadoras de produtos importados etc.), tendem sustentar os interesses estrangeiros no país. A sociologia denomina esses setores de capitais associados ou burguesia associada. De outro lado, tem-se os setores que, devido possuírem uma base interna (produção, mercado) de acumulação de capital, mas ainda dependerem em aspectos importantes (tecnologia, recursos monetários) dos capitais externos, costumam posicionar-se de modo seletivo frente aos interesses estrangeiros, ora contrapondo-se, ora os apoiando. Esses setores da classe dominante capitalista são chamados de burguesia interna. Geralmente a burguesia interna não tem disposição de assumir uma postura nacionalista, ou seja, um enfrentamento global aos interesses dos grandes capitais externos. Caberá, então, ao médio capital desenvolver a dupla expectativa de uma política anti-imperialista e uma política anti-oligopolista.

Ora, no Brasil atual ocorre uma acirrada disputa entre o grande capital e o médio capital. O grande capital não está disposto a assumir uma participação maior nas tarifas de impostos, e com isso aliviar os custos para o médio capital com os gastos de política social. Mas o médio capital dispõe de forte recurso de barganha, que é a capacidade de

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absorver o contingente de força de trabalho no curto prazo e, assim, contribuir para política de combate ao desemprego. É oportuno lembrar que a capacidade de endividamento deste setor do capital estaria no limite, e, se proposta, por exemplo, uma política de corte dos incentivos fiscais e creditícios ao grande capital e de transferência desses recursos para o capital não oligopolístico, essa fração poderá, dentro do quadro da crise, transformar-se em importante força política.

Samuel Pinheiro Guimarães foi contundente sobre o significado da crise política: “o impeachment é o golpe de Estado do ‘mercado’”. Isto é, foi a manobra política encontrada pelo segmento dos banqueiros dentro do capital financeiro para fazer prevalecer sua lucratividade frente ao segmento industrial.

Para contrapor-se ao golpe político, GUIMARÃES (2015, p. 24) propõe:

A ação política intensa junto aos movimentos populares, junto às organizações da sociedade civil, junto ao Congresso, junto à Administração Pública e aos governadores, enfim, a mobilização da sociedade pelo seu esclarecimento e para a defesa da democracia em toda sua integridade.

Segundo Samuel Guimarães, “aqueles que defendem hoje o impeachment e criam o clima de instabilidade e de radicalização são os mesmos golpistas históricos de 1954 e de 1964: as classes privilegiadas que temem o progresso e os resultados da democracia e não os aceitam” (Idem, ibidem, p. 25).

Mas o debate de ideias não é suficiente para mobilização política; pois junto aos ideais estão os interesses, e muitas vezes no mundo político vencem não as orientações mais justas, mas sim as teses que melhor se utilizam dos interesses manifestos para concretizar as aspirações latentes de classes ou frações de classe. Luiz Carlos Prestes, o líder do Partido Comunista Brasileiro, lançou em 1945 a palavra de ordem de União Nacional, no contexto de disputa entre as economias agromercantil e industrial no Brasil, contribuindo a uma sobrevida à política nacional-desenvolvimentista (leia-se a conversão da burocracia civil-militar do Estado em força social defensora dos interesses institucionais-globais da burguesia brasileira), em troca do atendimento de reivindicações do movimento sindical não atrelado ao aparelho de Estado e em nome da revolução nacional-democrática. E, mais do que isso, Prestes reorientou a prática do PCB no momento que se encontrava preso por conta da oposição ao Governo de Getúlio Vargas e depois de a polícia do governo getulista ter deportado sua companheira Olga Benário para morte.

É provável que o Partido dos Trabalhadores e o líder Luís Inácio Lula da Silva estejam dispostos, como atores sociais, a alterar a auto-representação e a dinâmica de

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suas práticas na atual conjuntura política. Pois o reconhecimento e a congregação junto a novas forças no jogo político induzem à mudança programática e apresentam-se como os meios de recuperar a confiança da maioria social no regime democrático para o impulso e a concretização de suas aspirações.

Por fim, a título de reflexão e ampliação do debate sobre a análise esboçada, convém constatarmos que o modelo democrático atual, centrado no Estado burguês-liberal, tende a subestimar as práticas coletivas dos cidadãos.

A burguesia tende a patrocinar um padrão político-eleitoral de tipo individualizante. Essa classe social, pela condição de dominante, procura negar a existência do antagonismo de classes, e vê as formas de associativismo (sindicatos, partidos políticos) como os instrumentos dos indivíduos. Assim, para a classe capitalista, o deputado parlamentar será o representante do cidadão, não devendo subordinar-se às pressões nem sindicais, nem partidárias.

Convém à fração da burguesia alinhada com o programa neoliberal, especialmente no que diz respeito à política de desregulamentação dos direitos do trabalho, dar ênfase ao discurso da representação liberal. Pois assim torna-se legitimada a fragilização dos sindicatos dos trabalhadores na cena política.

O Partido da Social Democracia Brasileira ascendeu ao poder, na década de 1990, num momento de transformação da socialdemocracia na Europa. Na década de 1970, os partidos social-democráticos, que até então eram mais ou menos partidos de representação de classe, estavam se transformando em partidos do tipo catch-all, de absorver tudo: em vez de buscar votos preferentemente na classe trabalhadora, estavam se dirigindo a todas as classes sociais para construir a maioria eleitoral. Então, quando os analistas passaram a dizer que o PSDB não tinha uma base sindical, isso não era, aos olhos do partido, um problema.

Em contraposição, as revalorizações do associativismo e novas práticas coletivas podem expressar-se através de arranjos político-institucionais, que, sem serem incompatíveis com a democracia representativa, permitam a participação e a deliberação de opinião e de interesses, capazes de fazer frente ao poder econômico e ao poder burocrático. Esses novos arranjos postos à vida política vigente constituem uma condição para se ampliar o teor da representação, que tende a reemergir restrita ao voto individual e a interesses conservadores.

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