PEREIRA PASSOS E EDUARDO PAES: SITUANDO A CIDADE NA
HISTÓRIA
Guilherme Mendes Tenório1Resenha : AZEVEDO, André Nunes de Azevedo. A grande reforma urbana do Rio de Janeiro: Pereira Passos, Rodrigues Alves e as Ideias de Civilização e Progresso. Rio de Janeiro: Ed. PUC-Rio, 2016.
O livro de André Nunes de Azevedo é uma das boas
revelações deste ano. Diria, sem exagero, que é uma boa notícia num ano que tem sido
tão nefasto, pelo menos para aqueles que se alinham ao campo da política progressista.
E por que podemos pensar desta forma? Quer dizer: o que tem de tão especial no livro
de André Nunes?
Primeiro, vamos esclarecer o tema da obra. A pesquisa de André investiga as Reformas
capitaneadas pelo prefeito Pereira Passos no início do século XX a partir da história das
ideias. Trata-se de entender como as noções de progresso e a civilização deram ensejo
ao conjunto de obras que ficou conhecido como Reforma Passos. Entre as obras
1 Doutor em História pelo Centro de Pesquisa em História Contemporânea do Brasil. Atualmente realiza
Estágio Pós-Doutoral pelo Programa de Pós-Graduação em Desenvolvimento e Território da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (PPGDT-UFRRJ). Gtenorio6@gmail.com
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concretizadas, a mais conhecida é, sem dúvida, a abertura da Avenida Central, hoje
Avenida Rio Branco.
E aí temos o primeiro ponto de grande valor de André Nunes. Na verdade, a
abertura da Avenida Central não coube ao prefeito Pereira Passos e sim ao governo
federal, naquele momento chefiado pelo Presidente Rodrigues Alves. Como diz André
mais de uma vez ao longo do seu livro, a transformação ocorrida na então Capital
Federal, entre 1902 e 1906, consistiu de duas reformas: aquela gerida pelo governo
federal e aquela conduzida pelo então nomeado Pereira Passos.
A reforma promovida pelo governo federal não se reduz, é claro, a construção
da Avenida Central. Conjuntamente, temos a reforma do porto do Rio de Janeiro e a
abertura das Avenidas Francisco Bicalho e Avenida Rodrigues Alves. Isso sem falar na
profilaxia contra doenças que infestavam o Rio de Janeiro a exemplo da varíola, da
malária e da peste bubônica, iniciativa sob a batuta do médico sanitarista Oswaldo Cruz.
Por sua vez, a reforma de Pereira Passos propriamente dita consistiu na abertura
de vias que articulassem o centro da cidade às regiões periféricas, sejam aquelas
situadas ao Sul, sejam aquelas localizadas ao Norte e a Oeste. Entre as novas vias
construídas temos a Avenida Beira Mar e a Rua Visconde de Itaúna, sem esquecer o
alargamento da Rua da Assembleia e da extensão da Rua Floriano Peixoto. Ressalte-se
ainda que Pereira Passos começou a levar a malha urbana até Copacabana, chegando a
construir a Avenida Atlântica e o túnel que ligava Botafogo a Copacabana, hoje chamado
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Mais do que as obras em si, André Azevedo
está a todo o tempo preocupado com as ideias
que se articulam por meio dessas. E nisso estaria
a grande diferença entre a reforma urbana federal
e a reforma municipal: enquanto a primeira se
basearia na noção de progresso, a segunda estava
focada sob a égide da civilização. Neste sentido, o
autor nos lembra de dois pontos de extrema
relevância: a chamada Grande Reforma Urbana se
compõe, a bem dizer, de duas reformas. E ainda
mais: estas reformas têm significados distintos.
Para chegar a estas conclusões, André
retorna ao tempo do Império e lá percorre a formação social e intelectual dos dois
mentores da reforma: Pereira Passos e Rodrigues Alves. Francisco Pereira Passos
formou-se na Escola Militar da Corte entre 1853 e 1856 e ainda fez parte da Comissão
de Melhoramentos da Cidade do Rio de Janeiro entre 1874 e 1875, tendo ainda passado
uma temporada em Paris justamente no período em que a cidade passava por um
importante período de Reforma Urbana capitaneado por Haussman.
Tomando esta passagem de Pereira Passos pela Paris de Haussman, muitos
historiadores, entre eles Jayme Bechimol, apontam as modificações introduzidas por
Pereira Passos como uma cópia daquelas promovidas pelo alcaide francês. A fim de
questionar esta tese, André Azevedo faz considerações importantes: a primeira delas
diz respeito ao fato de que a proposta de reforma urbana encaminhada por Haussman
“(...)a reforma de
Pereira Passos
propriamente dita
consistiu na
abertura de vias que
articulassem o
centro da cidade às
regiões periféricas,
sejam aquelas
situadas ao Sul,
sejam aquelas
localizadas ao Norte
e a Oeste(...)”
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não fora a única naquele momento, convivendo com outros projetos urbanos que não
lograram êxito.
A segunda concerne à questão da inclusão das classes operárias no traçado
urbano. Enquanto a reforma parisiense teria excluído os trabalhadores do centro,
Pereira Passos promoveu a inclusão dos trabalhadores nos espaços novos da urbe como
a Avenida Central. Para tanto, Passos mandou construir coretos e banheiros públicos na
região para que a população pudesse aproveitar melhor a cidade em seus passeios. De
fato, há autores, entre eles Rosa Maria Barboza de Araújo (1993), que pontuam como
as reformas de Pereira Passos aclimataram a cidade para novos hábitos de lazer. Ainda
em relação aos trabalhadores, André cita que Passos construiu escolas públicas em
diversos bairros da Zona Norte e uma vila operária na Avenida Salvador de Sá.
Poderíamos pensar que o livro de André enquadrar-se-ia no revisionismo
histórico que tem encetado em novas leituras de eventos como o Holocausto, a
Revolução Russa ou processos como a escravidão. Leituras muitas vezes de viés político
conservador, como adverte o pensador Domenico Losurdo (2017) em livro recente
sobre o tema. Mas não é o caso, visto que o livro de André pontua em diversas ocasiões
como as reformas de Pereira Passos incluíram os trabalhadores a partir de um viés
conservador, não levando em conta algumas tradições da cidade, notadamente aquela
que divide o Rio de Janeiro entre a “cidade da ordem” e a “cidade da desordem”, uma
em constante interação com a outra.
A “cidade de desordem” seria aquela formada desde os tempos coloniais pelos escravos,
libertos e trabalhadores pobres que tentavam garantir sua sobrevivência por uma série
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persiste até os dias atuais e que naquele momento foi combatida por Pereira Passos
através de uma série de práticas voltadas para os hábitos populares, como, por exemplo,
a proibição do entrudo e a retirada dos quiosques do centro da cidade.
Assim, por mais que revisite de forma favorável as reformas de Pereira Passos, o
livro de André não chega ao extremo do revisionismo. Senão teria que desconhecer
totalmente como o prefeito da então Capital Federal empreendeu uma inclusão dos
populares a partir de um viés conservador, muito no sentido de um processo civilizador
como queria Norbert Elias.
Na verdade, por mais que tivesse incluído os operários, Passos não levou em
conta uma série de expedientes de sobrevivência utilizados pela população carioca,
notadamente a afrodescendente. Devemos lembrar primeiro que o Rio de Janeiro
recebeu um contingente expressivo de escravos libertos pela Lei Áurea. Segundo,
muitos destes ex-escravos tiveram enorme dificuldade de encontrar colocação no
mercado de trabalho formal, só restando empreender formas de sobrevivência que
contribuíram para a ocupação desordenada do espaço urbano. Ou, melhor dizendo, tais
expedientes de sobrevivência não casavam com o figurino de civilização que o prefeito
Passos queria emprestar ao Rio de Janeiro. Uma civilização sustentada pela valorização
da alta cultura e da ação do Estado, sem maiores diálogos com o mundo dos populares.
Os pontos levantados acima são esclarecidos com precisão no livro de André
Nunes. Definitivamente, não se pode reduzir Pereira Passos a um destruidor de cortiços.
Até porque os fatos desmentem tal assertiva: segundo André, a freguesia de Santana
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não mexeram um milímetro com aquela região da cidade. Se houve derrubada de
cortiços na cidade do Rio de Janeiro, durante sua história, não foi obra de Pereira Passos.
Portanto, André cumpre seu dever de historiador e mantem-se a parte de disputas pela
memória das reformas Pereira Passos, seja afastando-se das obras que nos anos 1930
enalteceram as transformações da Capital Federal, seja da historiografia dos anos 1980,
que trocou o sinal positivo pelo negativo ao pesquisar aquele contexto da cidade do Rio
de Janeiro.
Afinal de contas, História e Memória não necessariamente são equivalentes. A
Memória tende a ser uma reconstrução do passado menos rigorosa do ponto de vista
científico, em que se constrói uma narrativa do que aconteceu para dar bases
pretensamente mais sólidas a uma identidade pessoal ou social. Já a História lida com o
passado a partir de um arcabouço científico que inclui a busca e a crítica de fontes a
partir de referenciais teóricos. Contudo, como nos ensina o filosofo francês Paul Ricoeur
(2010), os livros de História são narrativas que podem ser apropriadas por distintos
atores em prol de lutas de memórias existentes no presente. Assim, é factível que a
pesquisa de André possa dar sustentação seja a uma reconfiguração do passado do Rio
de Janeiro e mesmo ao seu presente.
Isto porque, passados cem anos, uma nova onda de reformas atravessou alguns
espaços da cidade do Rio de Janeiro. Desta feita, elas foram encaminhadas pelo prefeito
Eduardo Paes em conjunto com os governos estadual e federal. Tais reformas podem
ser resumidas em três eixos: a revitalização da região portuária; a incorporação de novos
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arenas esportivas tendo em vista os Jogos Olímpicos de 2016, da qual o Rio de Janeiro
foi a sede.
Dos três eixos citados, o que apresenta maior parentesco com a reforma de
Pereira Passos é a revitalização da área portuária. O projeto Porto Maravilha incluiu a
construção de um aquário, do Museu do Amanhã e do Museu de Arte do Rio de Janeiro,
o MAR. Também é interessante observar como a atual Avenida Rio Branco, antiga
Avenida Central, foi novamente remodelada e arborizada, traçando um dialogo
intencional ou não entre o rio de Eduardo Paes e o de Pereira Passos.
Alias, traçar um dialogo entre as reformas do passado e as reformas do presente
não é das tarefas mais simples. Entre outros fatores, por conta das diferenças entre os
dois contextos, as quais não devem ser esmaecidas. Hoje, estamos falando de uma
cidade de 6 milhões de habitantes e que faz parte de uma metrópole de 12 milhões,
números que a colocam em segunda posição no ranking nacional, atrás de São Paulo.
No início do século XX, tínhamos uma cidade de pouco mais de 800.000 que mantinha
parcas relações com seu entorno, o então Estado do Rio de Janeiro com capital em
Niterói.
Vamos deixar as diferenças entre o Rio de antanho e o Rio atual para outra
oportunidade porque aqui o objeto é o livro de André Azevedo. De qualquer maneira,
penso que o autor nos fornece caminhos interessantes para abordarmos as reformas de
Eduardo Paes. Um deles seria uma pesquisa mais aprofundada acerca do ideário que
sedimentou as atuais intervenções urbanas. O outro seria averiguar os usos que têm
sido feitos dos novos espaços urbanos, principalmente daqueles localizados na região
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Até porque, como lembra o uruguaio Angel Rama, uma coisa é a cidade ideal
planejada por governantes. A outra, bem distinta, é a cidade do dia-a-dia, aquela que
refazemos a cada dia em nosso caminhar.
Referências bibliográficas:
ARAUJO, Rosa Maria Barboza de. A vocação do prazer: a cidade e a família no Rio de
Janeiro republicano. Rio de Janeiro: ROCCO, 1993.
AZEVEDO, André Nunes. A grande reforma urbana do Rio de Janeiro: Pereira Passos,
Rodrigues Alves e as ideias de civilização e progresso. Rio de Janeiro: Ed.Puc-Rio, 2016.
FERREIRA, Álvaro. A cidade no século XXI: segregação e banalização do espaço. Rio de
Janeiro: consequência, 2011.
LOSURDO, Domenico. Guerra e revolução: o mundo um século após outubro de 1917.
São Paulo: Boitempo, 2017.
RAMA, Angel. A cidade e as letras. São Paulo: Brasiliense, 1982.
RICOUER, Paul. Tempo e narrativa. Vol.3. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2010.
Data de Submissão: 28/11/2017 Data da Avaliação: 20/12/2017